Colisões bestiais (particula)res
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Sobre este e-book
Muitos bichos — formigas, papagaios. Bichos grandes e pequenos, bichos que andam na cabeça (por cima e por dentro). A linguagem rápida; as frases descrevem, acertam nos eventos observados com olho clínico. Olho que se mexe.
Muitos autores convidados (gentileza da hospitaleira Kátia): Cortázar, Borges, Bolaño, David Foster Wallace e etc.
Mendigos e muchachas subnormais, mulheres que protegem e julgam. Personagens como Juarez, jogador, pornógrafo e muitas coisas — e ainda etc. Humor e sarcasmo, sempre presentes.
A minha amiga Kátia Bandeira de Mello Gerlach escreveu um belíssimo livro: ritmado com a batida que convém à língua; histórias e frases em jazz corrido; jazz alegre. Deixo um exemplo, de "Cuspe no aquário": "Se me perco nas ruas numeradas, zombam de mim? Os peixes morrem no aquário. Alimento-os nas manhãs. Correm afoitos para engolirem o pó granulado de odor marinho, e à tardinha eles já, já morrem. Por vezes, nascem filhotes e não sobrevivem, solúveis como os grãos. Difícil distinguir mãe e pai; nadam sem expor o sexo, embora corram uns atrás dos outros com ímpeto em momentos espontâneos e certos. Perecem para a minha redenção: um mecanismo medonho nos liga e transcende. Olham-me pela transparência do vidro e reconhecem-me, a mulher perdida nos números, a mulher ¥p¡@."
Este COLISÕES, de Kátia Bandeira de Mello Gerlach, é um livro insolúvel, ele aí está — alegrando o espaço."
GONÇALO M. TAVARES
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Colisões bestiais (particula)res - Kátia Bandeira de Mello
Kátia Bandeira de Mello Gerlach
COLISÕES BESTIAIS (PARTICULA)RE
Sumário
NOTA EPISTOLAR
BICHO NA CABEÇA
COLEIRAS DE ESTIMAÇÃO
O COLUMBÍDEO DE MONSIEUR LE PAIN
CIRCE E OS OLHOS MELINDROSOS DO BODE
CHINCHILAS NA PELETERIA
CUSPE NO AQUÁRIO
COLECIONADORES FOTOGÊNICOS
SANATÓRIO NÚMERO SEIS
DIA DE RABADA
MUCHACHA SUBNORMAL: NOVA VERSÃO SIMULTÂNEA
AS FORMIGAS CAMINHAM PELO CORPO TAMBÉM
MARYLIN, GRETA E O PAPAGAIO
SOBRE O LOMBO DE KUJATA
UMA HISTÓRIA PARA LEITURA
O MONGE REBELDE
NAVIO DE PAPELÃO EM INTEMPÉRIE TROPICAL
SALMOURA
Sobre a autora
Desde o bosão de Higgs, gente e bestas esbarram-se.
As histórias nascem entre duas coxas grossas,ensanguentadas e maternais.
J’achéte ma gloire Au prix des mots mélodieux.
Le Bestiaire, Apollinaire
NOTA EPISTOLAR
Admirável J. Cortázar:
Padeço de cefaleias intermitentes e acendo os sonhos com a cabeça de um fósforo. O fluido de analgésicos de última geração inunda o meu sangue. Nestes devaneios do vício, dialogo com mestres do universo e mortos históricos, dentre os quais, você (se me permite o trato informal). Rogo à Maga, neste jogo de amarelinha, que me auxilie em provocar tanta aderência ao papel dos personagens e bestas quanto a ânima de um ou outro leitor.
Escrevo em manifesto de resistência (o meu idioma vive no pedestal da extinção). Exilado que sou, tal qual o admirável J. Cortázar um dia o foi na Paris, ou Bolaño, nos acampamentos de veraneio espanhóis, mudo apenas de cidade. O continente teu, dele, meu continua à deriva em direção a futuros de um olho, entreaberto como a porta de Magritte.
Reparo na tolice da megalomania (as sessões de terapia não revelam a amplitude da minha ambiciosa imaginação, ha!) e o meu rosto truculento combina com o quadro geral das coisas.
Sou um abestalhado, como todos os outros neste planeta em vias de escurecer assim que deus usar o dedo furibundo para apertar a tomada.
Abraços,
Um Desconhecido
BICHO NA CABEÇA
As Torres da Rua Cem, a meio metro da
Praça do Tempo
Sob a Luneta Azul
Anuschka planta sementes de pacote no vaso de argila avermelhada e quebradiça, as mãos afagam a terra para produzir o ritual da primavera num mês de outono. Da varanda até a rua, palmos tortuosos, polegar em polegar, descida em cordão. As sobrancelhas da Anuschka se aproximam, num esforço intelectual, para supor as sensações de um salto vertical da varanda suspensa. Os dedos fustigam as raízes, quer folhas de salsa e manjericão, quer vestígios de oxigênio e fotossíntese. A anã mostra pouca vontade para sair do apartamento, ou do perímetro das Torres. É semear e aguardar florescimento.
Em um ponto embaixo, com uma luneta azul, vem-nos a visão do corpo de Anuschka encolhido na varanda de grades enferrujadas. As cortinas esvoaçam como se quase não pertencessem àquele apartamento. Os objetos acumulados nos cantos da varanda ousarão voar caso os cataventos se acelerem. O lixo se espraia à laia dos micro-organismos que cobrem a patina, e lota os caminhões matinais com os detritos. Os lixeiros correm com os latões. Dançam! No anverso, Anuschka admira o movimento desinibido daqueles corpos livres e inteiros dependurados na lateral do caminhão.
Anuschka ondula os lábios de carmim. Muito nutrida, corre para dentro dos corredores enxovalhados do apartamento, e a lente da luneta azul não sacia mais os abutres. A anã pisa insatisfeita sobre o chão de linóleo da cozinha. O patrãozinho era um sovina nos moldes do pai Goriot. Quanto mais Juarez empunhava o cetro, mais Anuschka combinava ressentimento e subserviência perante o empoleirado. Uma cozinha em pedras de mármore, uma ilusão. Quanto à intimidade entre os dois, seriam irmãos, amantes ou bibelôs do tzar? Ninguém, salvo um certo diretor de circo, o douto Moskowitz, sabia. O diálogo entre Juarez e Anuschka costumava correr no seguinte tom:
– Você é imprestável, Anuschka!
– Patrãozinho, não se exalte que o coração rebela. Acabo de ralar as cenouras para a sua salada de coalhada e passas e para o salpicão de frango.
– Dispenso estes teus cuidados comigo, mulher de polegar. Para o coração, tenho as aspirinas.
O que lhe peço é não desequilibrar a minha dieta com excesso de carotenos, olhe só as palmas das minhas mãos como amarelaram.
– As cenouras estavam em promoção na feira, vinham em ramos cheios de folhagem, a qual aproveito para a sopa da ceia.
– Está bem, Anuschka. Volto para a ceia depois de fazer as contas do dia. O azarento do Ezequiel não desiste. Outro que me tira o humor, como você. Talvez quebre a minha banca quando a sorte mudar e ganhe alguma coisa no Jogo!
Na juventude, Juarez e Anuschka não lograram pertencer à companhia circense e o dissabor vivia entre eles como uma terceira pessoa de carne flácida e sangue aglutinado. Juarez naturalmente culpava a companheira pelas cartas de recusa do poderoso Moskowitz. Juarez queixava-se de Anuschka por hábito. A falta de linhagem e o nariz vulgar da companheira cortaram as chances profissionais pela metade, não haveria qualquer outra explicação. Juarez achava que, perto de Anuschka, qualquer objeto perdia o seu valor, inclusive ele. A jarra de cristal checo que fraquejava entre os dedos polegar e incisivo da anã parecia ser feita de vidro comum em suas mãos. Anuschka, ciente do olhar esquadrinhador que a fitava, derramava água e lágrimas no copo do patrãozinho e prendia a respiração para maior concentração na tarefa. Apesar dos braços curtos e inflexíveis, Anuschka esticava-se para agradar o rabugento, humilde como um cão.
La Promenade
A cada outono, Anuschka e Juarez enveredavam-se num passeio ousado e enfiavam-se na multidão para esperar a chegada do circo na tocaia da saída do túnel que ligava a ilha ao restante do mundo. Não havia mais do que um túnel e o isolamento marcava o espírito insulano. Todos aguardavam o advento da fauna circense. O trânsito do túnel se encerrava para que elefantes, camelos, cavalos, lhamas, suínos, hircinos, lupovinos, palomas, carpas, enguias, aracnídeos e criaturas fora de qualquer classificação do reino animal atravessassem o viaduto com as próprias patas. Atrás dos outros animais, um carnaval de malabaristas, palhaços e anões. O circo aplainava num campo de concreto próximo à Praça do Tempo.
Moskowitz havia anunciado no programa de rádio a chegada de animais que, como o clã indígena tagaeri-taromenani, nunca haviam entrado em contato com a civilização, e incitara o aguilhão de curiosidade de Juarez. Sequioso por desnudar o segredo de Moskowitz, Juarez sondara aqui e acolá e ouvira dizer que o anti-herói possuía intenções de aterrorizar a flor d’água. O diretor tencionava superar KaTha e o homem faminto enjaulado. A maestria do showbiz! Quidnovi?
Quem era afinal o companheiro da boa Anuschka
Enquanto Juarez desce o elevador para novamente encontrar Ezequiel e o pessoal da roda de jogo, falemos sobre os traços mais característicos de Juarez Molina:
1. Satanista
Frequentador de cultos comunitários, Juarez considerava-se um anjo rebelde, seguidor de forças contrárias ao homem. O Inimigo o encantava pela audácia.
2. Domador de anões
Oriundos da Rússia Profunda, Juarez, Anuschka e outros moradores das Torres, como Ezequiel e Ivana, desembarcaram no porto do Rio Hudson porque os Vermelhos rejeitavam a admiração tzarista por homens e mulheres em miniatura. Parte da coleção do Tzar Pedro, o Grande, Juarez, Anuschka e os outros encontraram refúgio nos laboratórios experimentais nazistas e, finda a Segunda Guerra Mundial, foram despachados para as Torres da Rua Cem, onde aguardaram em vão o chamado de alguma companhia circense e foram fotografados por Diane Arbus[1]. De notável liderança, Juarez agia como soberano das aspirações de seus camaradas e aprendeu a negociar a sobrevivência de todos através de sua astúcia.
3. Pornógrafo
Alvo de histórias de fetiche, Juarez participara, mediante remuneração, de orgias artísticas pela cidade. Personificava Marlene Dietrich e Maurice Chevalier, e a alta casta da sociedade não concebia uma festa sem a presença de Juarez e sua trupe. Juarez adotara o nome espanhol em homenagem a Velásquez, cuja obra mostrava que o pintor não se intimidara com pessoas de estatura inferior e membros em outras proporções. Juarez praticava a decomposição carnal com homens e mulheres de todos os tamanhos.
4. Viciado em aspirinas
Devido às crises de insuficiência cardíaca, Juarez amassava, no prato de porcelana polonesa, com flores rosáceas, uma aspirina e meia, para ele a maior invenção da humanidade. O analgésico afinava o sangue denso de Juarez e suavizava as dores do esqueleto, permitindo que adiasse a cirurgia na espinha recomendada por uma junta médica.
5. Curioso
Não é que Juarez queira saber quem você, leitor, é. Isto não lhe tocaria. A curiosidade deste homem alcança outra magnitude. Juarez fareja as pessoas como os cães, de modo que raramente se surpreende. Esta capacidade permite controlar as apostas do Jogo do Bicho e evitar prejuízo. O que Juarez gostava de saber é: qual a conexão entre os números e os animais.
6. Ocultista
Para Juarez, o Sobrenatural não se limitava ao Inimigo. Outras forças influenciavam os números, os animais e o resultado das apostas. A vida, em geral, consistia em probabilidade matemática manipulada por fenômenos. Após morar durante vários meses nos laboratórios de Menguele, Juarez nota que a ciência depende da intuição para chegar a qualquer resultado, e dispensa a lógica como recurso único.
7. Enganador
Para salvar a banca do Jogo, Juarez acreditava ser justificável alterar as tabelas diárias. Embora os valores financeiros permanecessem, certos números populares como o aniversário de São Jorge, o dia do atentado às Torres Gêmeas, a data do assassinato do elefante pelo Rei da Espanha não podiam concentrar os ganhos e Juarez trapaceava os apostadores.
8. Chupador de mangas frescas
Na mercearia que servia às Torres, Anuschka comprava mangas tropicais para a sobremesa de almoço do patrão. Juarez descascava a manga