Aprender pela vida cotidiana
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Aprender pela vida cotidiana - Gilles Brougère
PRIMEIRA PARTE
Aprender nos espaços sociais
Capítulo 1
Vida cotidiana e aprendizagens
Gilles Brougère
Nunca ficamos fora da vida cotidiana.
Guy Debord
Antes de saber se é possível aprender na vida cotidiana, e como, convém examinar essa noção que parece polissêmica, sujeita a múltiplas interpretações por vezes contraditórias, ainda que se esteja de acordo quanto ao que ela recobre exatamente. Ela é tomada entre dois extremos que convém evitar se se quiser deles se servir. De um lado, a vida cotidiana remeter ao mais banal, às rotinas, às repetições da vida, àquilo de que se tentaria fugir e que seria difícil considerar portador de uma aprendizagem qualquer. Em contrapartida, tudo seria vida cotidiana a pretexto de que tudo se desdobra, de um modo ou de outro, no cotidiano.
Para evitar essa oposição, importa considerar que, para além da expressão vida cotidiana
, trata-se de enfatizar o cotidiano, o que se desenrola no dia a dia. Essa é uma dimensão pouco contornável que imprime sua marca no conjunto da vida social. Esta tem lugar no cotidiano, insere-se na repetição temporal, implica repetições, rotinas, costumes, hábitos. Isso se deve em parte ao ciclo dos dias e das noites, das estações, dos anos, que fornece um contexto temporal ao cotidiano e do qual é difícil escapar mesmo que se possam construir atividades que o neguem, o contestem, tentem revertê-lo. Procurar desconstruir o contexto cotidiano habitual equivale sempre a construir um novo cotidiano num ciclo diferente. Isso decorre também da ordem biológica à qual o ser humano está submetido, com o risco de nela perder a vida, risco que alguns podem correr e que implica satisfazer a necessidades que se repetem (dormir, comer etc.). Esses dois aspectos nos permitem compreender por que o cotidiano pode ser malvisto, símbolo da coação que se exerce sobre cada um de nós. Só nos tornaríamos livres se saíssemos desse espaço forçado. Mas pode-se também formular a hipótese segundo a qual uma liberdade concreta supõe a aceitação das coações, a partir das quais se torna possível construir outro cotidiano.
A vida cotidiana não se reduz a submeter-se ao exercício daquelas coações cuja origem está fora do social, ainda que assumam necessariamente formas sociais (tempo socializado dos relógios, modalidade social do sono ou da refeição) que constituem a primeira dimensão da reapropriação humana da necessidade. A vida cotidiana é também aquele conjunto de modos de fazer, de rituais, de rotinas que nenhuma outra ordem cósmica ou biológica vem impor ao homem. Por que seguir o mesmo caminho para dirigir-se todas as manhãs ao trabalho, por que sempre um café às dez horas, por que comer na mesma lanchonete, por que a academia de ginástica todas as sextas-feiras ao meio-dia etc. Longe de tentar escapar à rotina, nós a construímos sem cessar, algumas duradouramente ou mesmo por toda a vida, outras de modo efêmero. Temos uma forte tendência a repetir-nos, com o risco de resistir ao que vem questionar essa organização. A razão é que isso é mais simples: evita recomeçar cada manhã a partir do zero, como se fosse o primeiro dia da nossa vida. Poder-se-ia imaginar que, hesitando como o asno de Buridan¹, entre todos os caminhos possíveis para ir ao trabalho, jamais chegaríamos a ele. O hábito nos dá um contexto, que não é talvez o melhor, mas que tem a vantagem de nos permitir agir sem forçar a cabeça
, sem esforço. Enquanto dirigimos, podemos sonhar, pensar em outra coisa, não empregar toda a nossa energia na organização do trajeto.
O cotidiano é um conjunto de recursos que nos permite economizar, apoiar-nos no que já fizemos, mas também no que outros fizeram, pois as rotinas podem ser transmitidas.
Mas pode-se² ter uma visão mais fundamental desse processo de cotidianização
considerando-se o cotidiano na sua dinâmica como o suporte inevitável da vida humana ou social, que permite tornar as coisas familiares, expulsar o estranho incômodo, construir um universo habitável, apropriação do mundo pelos seres humanos, por parte de cada um de nós na esfera que nos diz respeito.
Compreende-se por que se pôde ver, como Henri Lefebvre em sua Critique de la vie quotidienne, a alienação no centro do cotidiano, vendo nele também o seu contrário, libertação, resistência, invenção. Porque a vida cotidiana aparece efetivamente, em certos aspectos, como uma autoalienação, uma domesticação do mundo que o ser humano opera sobre si mesmo e por meio dele mesmo, indispensável para viver, mas que por vezes se pode tornar uma coação. A cotidianização dos meios torna-se então um fim em si. A vida se dependura no café das dez, sem o qual já não podemos viver, e em todos esses hábitos dos quais nos arriscamos a todo momento a nos tornar escravos, mas cuja ausência nos pode tornar infelizes.
Basta comparar o cotidiano, década após década, para ver que, sendo embora o espaço da repetição diária, nem por isso se trata de uma repetição secular. O cotidiano muda constantemente com os objetos, as organizações, os modos de vida. Nada mais cambiante – e, portanto, mais inovador – do que o cotidiano. Há, em primeiro lugar, transformações sociais profundas: relações entre as pessoas, novas práticas, novas técnicas etc.
Essa dimensão da vida social apresenta então um paradoxo, já que ele impregna tudo, distinguindo-se das atividades especializadas que estão fora do e no cotidiano ao mesmo tempo. Religião, vida política, ciência, atividade artística são atividades que podem definir a si mesmas a distância do cotidiano, podendo por vezes colocar em cena essa diferença sobre o modelo do artista ou do cientista sem contato com a vida comum. Mas essas atividades, contrariamente a certas imagens que elas podem produzir por si mesmas, enraízam-se no cotidiano de duas maneiras: de um lado, a vida religiosa e a vida científica têm um cotidiano e se desenvolvem mediante modos de fazer dia após dia, mês após mês, ano após ano. De outro, elas penetram o cotidiano, quer se trate da missa dominical ou de uma transmissão científica pela televisão.
Toda prática social se inscreve, portanto, de um modo ou de outro no cotidiano, ainda que ela não se defina unicamente por essa dimensão. O cotidiano pode então ser apreendido como a base, o suporte ou mesmo o fundamento de qualquer prática social.
Assim, a escola tem suas rotinas, sua vida cotidiana, embora seja também o lugar de uma ruptura com o cotidiano. Toda ruptura é parcial, pois uma ruptura total, se não é impossível, exigiria ao menos demasiados esforços. Entre as coações (por exemplo, é preciso comer bem) e a segurança trazida pela banalização, compreende-se por que o cotidiano é reconstruído com toda a rapidez quando é destruído (por uma guerra, por exemplo), mesmo que seja sobre novas bases.
Se se evita dicotomizar o cotidiano considerando que qualquer atividade é permeada por uma dimensão cotidiana, como pensar as relações entre aprendizagem e vida cotidiana?
Aprender a vida cotidiana
A vida cotidiana não é genética; trata-se de uma construção humana particular. Se existe em toda parte uma vida cotidiana, ela difere de acordo com as sociedades, os ambientes sociais, as famílias, as instituições. Ela foi, portanto, aprendida não na escola, mas por confrontação, imersão, contato. Disso a aprendizagem doméstica das meninas de Marrocos, apresentada por Hakima Mounir, oferece-nos no capítulo seguinte um exemplo preciso e documentado. A socialização passa, sem dúvida, por essa mestria da vida cotidiana que leva a saber agir nos diferentes momentos da vida em conformidade com as expectativas dos outros. A infância é aquele tempo essencial da aprendizagem da vida cotidiana familiar, mas hoje também da de uma família de acolhida ou da creche. O mesmo vale para qualquer entrada numa instituição ou num grupo: neles eu aprendo, sem me dar conta disso, as lógicas cotidianas, as maneiras de fazer (de saudar, de interagir, de organizar as produções comuns etc.). Essa aprendizagem por observação, por imitação, não aparece como tal: faço como os outros, ou faço o que os outros esperam de mim. Uma vez que a compreendi, já não tenho a sensação de ter aprendido. A aprendizagem não é aí necessariamente intencional, nem mesmo sempre consciente; é informal, implícita, incidente, da ordem da socialização ou da aculturação, segundo o termo que se preferir utilizar.
Eu li
Educação informal, os efeitos formadores no cotidiano
Éducation informelle, les effets formateurs dans le quotidien
Abraham Pain, Paris, L’Harmattan, 1990.
A partir de um rápido panorama que traça as evoluções da educação popular até o advento da formação profissional contínua, A. Pain se empenha em ressituar as aprendizagens informais no conjunto mais vasto das ações educativas. Baseando-se de início nessa abordagem diacrônica, ele analisa as razões que relegam essas aprendizagens informais às fronteiras do sistema educativo. Em seguida, apoiando-se em pesquisas relativas a domínios diferentes, como a apropriação de novos princípios organizacionais, a arrumação de uma casa ou o uso da televisão, ele mostra que as pessoas não aprendem apenas em espaços concebidos para serem educativos, mas se formam em todas as idades da vida de maneira informal em seu contexto cotidiano. Essa constatação o leva a lançar um olhar novo sobre o cotidiano da nossa vida, que, para além da sua banalidade, oferece múltiplas oportunidades de aprender. Sem aspirações pedagógicas explícitas, essas situações comuns encerram um forte potencial de efeitos educativos que A. Pain denomina coprodução educativa em relação à atividade principal
. O cotidiano, portanto, é não apenas o espaço da rotina, mas também aquele onde se estruturam aprendizagens informais. Devemos deduzir daí, então, que a vida cotidiana, no que ela tem de mais banal, é sempre fonte de aprendizagens? A. Pain precisa: essas situações comuns devem constituir vetores que veiculam conteúdos capazes de provocar mudanças de comportamento
. É, pois, estudando as ações educativas, não do ponto de vista de sua intencionalidade pedagógica, mas em razão de seus efeitos sobre as práticas, que ele nos incita a voltar nosso interesse para as aprendizagens informais. Enfatizando a influência do ambiente para fazer face a uma situação, A. Pain mostra que as aprendizagens informais são construídas por impregnação (quando transmitidas pelas estruturas nas quais os indivíduos vivem e agem) ou por repetição (quando as pessoas empreendem por si mesmas uma ação). Em cada uma dessas ilustrações, a participação das pessoas afigura-se essencial para favorecer essas aprendizagens, já que é operando triagens nas inúmeras solicitações do real que elas podem levar a cabo suas ações e encontrar soluções para os problemas com os quais se deparam. O vínculo entre essas aprendizagens informais e as preocupações imediatas visando à ação vem confirmar que a mera transmissão das informações se mostra insuficiente se não se inscreve no projeto das pessoas. Sublinhando as relações estreitas que essas aprendizagens informais mantêm com o pensamento e a ação, A. Pain faz a demonstração de que essas situações sem intencionalidade educativa não concorrem com outros modos de educação mais tradicionais, mas incitam, ao contrário, a pensar conjuntamente a educação formal e a educação informal.
Anne-Lise Ulmann
Eu aprendo a fazer como os outros, mas construo igualmente uma produção original por minhas rotinas pessoais, por meu repertório de práticas³. De fato, a vida cotidiana pode ser considerada um vasto repertório que vou conhecer e reconhecer, mas que não vou utilizar inteiramente. Algumas práticas não me são úteis, outras não me agradam. No quadro do repertório compartilhado no seio de uma sociedade, vou produzir o meu próprio repertório e sem dúvida inventarei certas práticas que poderão continuar a ser minhas ou ser retomadas, imitadas e integradas a outros repertórios. Relação com o passado e inovação podem ter o seu lugar nesses repertórios, alguns dos quais são, decerto, mais inovadores que outros. Mas quem afirma um repertório afirma também a possibilidade de convocar práticas de maneira mais ou menos importante e frequente. Existem práticas que dominamos (como a de um cantor com seu repertório), mas que utilizamos pouco, por falta de ocasião, de vontade, de interesse etc.
Aprender na vida cotidiana é constituir, por via dos encontros, atividades, observações, dificuldades e sucessos, um repertório de práticas. Esse repertório pode continuar a se enriquecer de novas práticas (mas também a ver desaparecer outras) ao longo da vida, em razão de novos encontros, atividades, migrações e viagens, inovações geradas pela sociedade e seus objetos.
As práticas nunca vêm sozinhas: acompanham-se de conhecimentos, justificações, valores etc. É nesse sentido que se pode falar de saberes cotidianos ligados às nossas práticas (ver o capítulo de Lysette Ngeng neste trabalho). Não se trata apenas de aprender a fazer; trata-se também de dominar os conhecimentos, por exemplo, ligados aos provérbios referentes às regularidades climáticas ou às interações humanas.
A vida cotidiana não existiria se não fosse objeto de aprendizagem. Aprende-se primeiro a própria vida cotidiana, suas práticas e seus saberes.
Vida cotidiana como processo de aprendizagem
A vida cotidiana não mantém com a aprendizagem uma relação original? Aqui, é preciso passar ao limite e pensar no processo da própria cotidianização
. Tornar cotidiano o mundo, domesticá-lo, não será um processo de aprendizagem coletiva e individual?
Criar o mundo cotidiano é aprender o mundo, entender como ele funciona para mergulhar nele. O mundo cotidiano é um mundo aprendido, na passagem da estranheza à familiaridade. De certo modo, o cotidiano se instala quando o processo de aprendizagem terminou. Os exemplos são vários: por que o computador se tornou um objeto do cotidiano senão porque já não me é estranho, porque eu soube domá-lo, domesticá-lo? Qual é esse processo, senão (mas não apenas) um processo de aprendizagem que me permitiu ultrapassar e, doravante, esquecer o sentimento de estranheza dos primeiros tempos em face desse objeto? Aprendi a me servir do computador, mas ao mesmo tempo participei da invenção de seus usos, de usos compatíveis com o que é o meu cotidiano, não raro longe dos usos imaginados pelos inventores. Estaríamos aqui numa lógica próxima daquela enfatizada por Michel de Certeau⁴ na localização das invenções, das resistências, dos desvios, como a estratégia denominada a peruca
(que consiste em utilizar o material de sua empresa para uso pessoal). Matizaríamos essa visão romântica considerando que os usos conformes são também invenções. Apropriar-se de um objeto é inseri-lo no cotidiano, conferir-lhe sentido, aprender com ele, sem, contudo, submeter-se a ele. Essa aprendizagem aberta, portadora de novas significações negociadas com o objeto e com outros usuários, produz o cotidiano, faz com que o automóvel, a televisão, o computador e o celular participem do nosso cotidiano.
Essa relação forte e reversível entre a aprendizagem e a vida cotidiana aparece muito claramente na confrontação com outro cotidiano.
Eu li
Ensino e aprendizagem informais: um estudo do desenvolvimento cognitivo do cotidiano em uma comunidade grega
Informal teaching and learning: a study of everyday cognition in a Greek community
Rosemary C. Henze, Hillsdale, L. Eribaum, 1992.
Essa obra apoia-se numa observação participativa, tendo a autora compartilhado a vida de uma família grega da classe média urbana. Ela localizou as aprendizagens que a vida cotidiana gerava, tanto para as crianças quanto para os adultos, ressaltando, sobretudo no primeiro caso, as atitudes dos adultos que favoreciam as aprendizagens dos mais jovens sem com isso procurá-los explicitamente, o que remete à ideia de que em relação à aprendizagem informal se enfatiza um ensino totalmente informal.
R. C. Henze oferece-nos assim um panorama de situações nas quais há aprendizagem integrada no desenrolar da vida cotidiana, quer se trate de roupas de crianças, de dança, atividade muito presente no seio da comunidade estudada, de cuidados médicos cotidianos, da preparação do café, do sistema de parentesco, da boa pronúncia de um termo. Ela distingue três tipos de aprendizagem: o primeiro diz respeito aos procedimentos ou modos de fazer, o segundo remete à compreensão do mundo cotidiano, ou mesmo além dele, e o terceiro refere-se ao uso da linguagem. Mas o ponto mais original da abordagem proposta é o interesse pela forma, pela mediação ou, retomando a expressão de Goffman, pelos contextos da experiência. De fato, nos diferentes exemplos propostos encontram-se situações comuns nas quais se aprende participando da atividade usual e das situações que se apoiam, sempre segundo a expressão de Goffman, na modalização ou transformação do contexto comum da experiência, isto é, das situações fictícias ou não literais, sem que elas sejam educativas de maneira consciente ou intencional. Trata-se de simulação (quando a criança aprende
a aplicar ventosas, técnica de cuidado usual na comunidade, no corpo de sua mãe numa atividade fictícia), ou então de cenas de zombaria nas quais se brinca com a criança no tocante ao uso da linguagem. Nesses dois casos, a situação se refere ao cotidiano, mas só se inscreve nele indiretamente, mediante um deslocamento na simulação, no fictício, no segundo grau (o do humor ou do jogo).
Pode-se ver aí uma pedagogia informal
que se apoia no fictício, na distância em relação ao real, mas cuja finalidade educativa não é necessariamente consciente ou explícita. Pode-se zombar efetivamente da criança, mas, ao fazê-lo, mostrar-lhe o que ela não conhece ou não compreende. O cotidiano aparece como um espaço de aprendizagem com seus dispositivos, suas técnicas e seus recuos parciais da ação. Assim, no curso da vida cotidiana, alguém é levado a construir momentos nos quais se formaliza um pouco de aprendizagem (correção da linguagem, relações de parentesco, utilização de um instrumento), mas que não são separados da vida social comum.
Gilles Brougère
Entrar numa outra vida cotidiana
Essas dimensões da vida cotidiana aparecem nitidamente quando sou um estranho, seja numa nova instituição, seja como imigrante, porquanto sou levado a penetrar numa nova vida cotidiana.
O que é manifesto para os outros não o é para mim, pois o resultado da aprendizagem oculta a construção da vida cotidiana e a dá como evidência natural. É-me necessário apreender essas evidências; aprender, mas sem dúvida de maneira diferente. As modalidades de aprendizagem em meu meio de origem tinham a facilidade da socialização: aprendizagem invisível e indolor. Construo-me como ser social num contexto cotidiano específico que eu não percebo como tal. Aprendo a comer sem ter a impressão de aprender a comer de um modo cultural e socialmente construído. Ao fazê-lo, produzo uma norma, ou participo da sua produção, a partir da qual os demais modos vão parecer na melhor das hipóteses estranhos, bizarros, originais, e, na pior, insuportáveis, antinaturais, inadmissíveis.
Quando me vejo confrontado com uma nova vida cotidiana, a situação é diferente. A aprendizagem torna-se intencional, explícita e por vezes difícil quando se trata de ocultar uma parte de meu repertório de práticas para adquirir maneiras de fazer (e os saberes e os valores que as acompanham) em desaprumo com relação àquelas que me constituem.
Mas esse estatuto de estranho me permite perceber outra vida cotidiana e tornar-me etnógrafo do cotidiano, apreender a dimensão cultural, a relatividade. Nesse choque cultural podem aparecer aprendizagens reflexivas na confrontação com outros cotidianos.
Acontecimento e vida cotidiana
A princípio o cotidiano parece opor-se ao singular, ao acontecimento, ao que não se repete. Será preciso, então, considerar que o acontecimento não pertence ao cotidiano? A realidade é mais complexa. O acontecimento é o não cotidiano que surge no cotidiano, que o vem perturbar, mas que é objeto de um trabalho de recolocação em cotidiano. Sem contar que o que vem romper o meu cotidiano não é tão extraordinário assim. Tomemos o exemplo de uma perna quebrada⁵, acontecimento que não é tão singular assim, mas que rompe o meu cotidiano, primeiro ao me confrontar com o mundo especializado e não cotidiano, para mim, do hospital e da medicina, depois subvertendo os meus hábitos. Mas essas mudanças têm como função absorver o acontecimento no meu cotidiano: produzo um novo cotidiano, compatível com uma perna engessada. Esse processo, a um tempo de ruptura e inserção no cotidiano, é portador de aprendizagens sobre o corpo e os cuidados, sobre mim e o meu modo de gerar um acidente, sobre os outros e a maneira pela qual eles redefinem a sua relação comigo, sobre a sociedade e o lugar atribuído às pessoas de mobilidade reduzida. Trata-se ao mesmo tempo de saberes de experiências, de sentimentos ligados a um cotidiano perturbado, redefinidos pelo acontecimento e que talvez perdurem uma vez passado o acontecimento.
O cotidiano, esse tecido da vida social, está constantemente submetido a obstáculos que implicam retecê-lo. Essa tensão entre destruição e reprodução do cotidiano é sem dúvida uma fonte de aprendizagem, que se encontra em numerosas situações que são ilustradas por diferentes capítulos deste trabalho.
A vida cotidiana como lugar de aprendizagens múltiplas
O cotidiano é aprendizagem, o lugar da aprendizagem das práticas e saberes do cotidiano, a confrontação, para alguns, com outros cotidianos, o lugar onde surgem acontecimentos que levam a reconstruir o cotidiano, mas que oferecem a possibilidade de aprendizagens fortuitas (no sentido exato do termo, no sentido de que o acontecimento se define pelo fato de ser inesperado).
A vida cotidiana é também o encontro com atividades especializadas que atravessam o cotidiano. Assim, o trabalho faz parte do meu cotidiano (necessidade vital, repetição, peso frequentemente evocado) e se organiza no cotidiano mediante rotinas. Se a noção de cotidiano não esgota o mundo do trabalho, este é efetivamente uma dimensão dele. Isso vale para a escola, os lazeres ou as férias (ver o capítulo 9, de Gilles Brougère, neste trabalho).
Mas o cotidiano possui as suas janelas para o exterior: nada mais cotidiano do que a televisão (com seus programas no dia a dia), a qual, no entanto, dá acesso a informações, a saberes afastados do cotidiano.
Debruçar-se sobre a vida cotidiana é confrontar-se com a parte imersa do iceberg da aprendizagem⁶. As aprendizagens são numerosas, mas não raro invisíveis em razão de sua própria evidência: Nada a dizer, a gente está por dentro
⁷. Se se pode dizer que todas as aprendizagens informais encontram sua origem na vida cotidiana, já que toda prática social pode gerá-las (ver o que A. Pain diz a esse respeito no quadro Eu li
, deste capítulo), a vida cotidiana – largamente construída fora das lógicas educativas e escolares explícitas – é um lugar de numerosas aprendizagens. Primeiro as aprendizagens ligadas à vida cotidiana, suas repetições e mudanças, seus acontecimentos, mas sem dúvida outras enraizadas nesta e com efeitos mais gerais. Que tiraríamos da escola sem o contato cotidiano, desde o nascimento, com uma ou várias línguas? Como poderíamos desenvolver atividades especializadas sem dominar as bases das interações humanas, esses ritos de interação
, para empregar o termo de Goffman, aprendidas no curso cotidiano da vida? Como nos mostra R. C. Henze (ver o quadro Eu li
, neste capítulo), a vida cotidiana é feita de múltiplas ocasiões de aprender. E, de modo simétrico, aprender é uma atividade da vida cotidiana, e não uma atividade que só poderia encontrar lugar rompendo com ela⁸.
1. É o nome que se dá ao animal que protagoniza um antigo argumento de redução ao absurdo, formulado contra Jean Buridan (1300-1358), defensor do livre-arbítrio e da possibilidade de ponderar toda decisão por meio da razão. Para satirizar sua posição, alguns críticos imaginaram o caso absurdo de um asno que não sabe escolher entre dois montes de feno (ou, em outras versões, entre um monte de aveia e um balde de água) e que por isso acaba morrendo de inanição (ou de sede) (Nota da tradução).
2. Apoio-me em duas obras que analisam o cotidiano, uma de cunho mais sociológico, Javeau, C. (2003). La société au jour le jour – é crits sur la vie quotidienne . Bruxelles, Ante Post; a outra, mais filosófica, Bégout, B. (2005). La d é couverte du quotidien . Paris, Allia.
3. Rogoff, B. et al. (2007). Développement des répertoires culturels et participation des enfants aux pratiques quotidiennes
. In : Brougère, G. & Vandenbroeck, M. (orgs.). Repenser l’éducation des jeunes enfants . Bruxelles, Peter Lang.
4. Certeau, M. de (2002). L’invention du quotidien I, arts de faire . Paris, Gallimard.
5. Lawrence, J. A.; Dodds, A. E. & Valsiner, L. (2004). The many faces of everyday life: some challenges to the psychology of cultural practice
. Culture & Psychology , vol. 10, n. 4, pp. 455-476.
6. Brougère, G. & Bézille, H. (2007). De l’usage de la notion d’informel dans le champ de l’éducation
. Revue Française de Pédagogie , n. 158.
7. Essa expressão é a resposta de um salineiro ao pesquisador que o interroga. Delbos, G. & Jorion, P. (1984). La transmission des savoirs . Paris, MSH.
8. Jean Lave valorizou particularmente essa visão cotidiana da aprendizagem, em particular em The politics of learning in everyday life (1999). Seminário Icos da Universidade de Michigan. Disponível em: < http://www.si.umich.edu/ICOS/Presentations/041699/ >.
Capítulo 2
Um exemplo de aprendizagem na vida cotidiana: aprendizagens domésticas em Marrocos
Hakima Mounir
Antes, durante e após as diferentes formas de socialização ditas secundárias, que se efetuam geralmente em instituições claramente reconhecidas como tais, formas de socialização se exercem no espaço doméstico e servem de bases, de apoios, mas também, por vezes, de críticas das outras formas de socialização. Essas formas domésticas é que estarão no centro do presente capítulo, centrado numa análise das aprendizagens domésticas das quais as meninas são objeto nos países do Magreb. Esta análise abordará secundariamente o lugar dos meninos nessa esfera. Procurará também mostrar que as formas de socialização aqui analisadas não deixam de ter contradições, pois as meninas são ao mesmo tempo objeto de uma forte tendência a submetê-las aos modelos tradicionais e de tendências mais minoritárias e mais secretas a instruí-las na arte de neutralizar o poder masculino.
Comecemos com uma definição e uma descrição da esfera doméstica magrebina, muito mais extensa no seu espaço e pela variedade e conteúdo de suas atividades do que a francesa. Uma pesquisa que realizei entre 2002 e 2004, referente a uma amostra de oitenta mulheres, metade das quais trabalhava em casa, enquanto a outra metade efetuava um trabalho assalariado, metade vivendo em Marrocos, a outra tendo emigrado para a França¹, demonstra que essa extensão encolhe na imigração, sem, contudo, desaparecer totalmente. A esfera doméstica magrebina estende-se além da simples casa para comportar uma parte da esfera pública (ruas, vizinhança, família ampliada próxima, mas também lugares público-privados femininos, como os banhos, o lavadouro no campo etc.).
Ela compreende atividades artesanais e privadas (fazer o pão, tecer a lã, fabricar roupas) que na França se encontram há muito tempo industrializadas e externalizadas. Não compreende, pois, somente os trabalhos domésticos
no sentido restrito do termo, e por isso a socialização muito diferenciada das meninas e dos meninos faz das primeiras as detentoras de saberes e de habilidades muito complexos, enquanto exclui totalmente os meninos. Em Marrocos como na imigração, essa aprendizagem é valorizada e pode ser considerada como um capital importante que o marido leva em conta numa relação marital. Diz-se de uma menina que ela é Hadga, inteligente, o que significa que sabe manter e administrar a casa, ocupar-se dos assuntos domésticos. Pode-se