A Gata
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A Gata - Rodrigo Alencar
Rodrigo Alencar
A gata
e outras crônicas
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Copyright © 2020 by Rodrigo Alencar Todos os direitos reservados ISBN 978-65-001-0222-2
1ª edição
Impresso no Brasil
Inverno de 2020
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Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocó-
pia ou gravação) ou arquivada em qualquer sis-tema ou banco de dados sem permissão escrita do autor.
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A meus pais, que me deram a vida.
4
SUMÁRIO
Saudade do sítio / 6
Morte no aquário / 9
Amanda / 15
O caminho das araucárias / 18
Aula de história / 24
A rua mágica / 27
Carta de um lunático/ 33
Carta de um vadio / 36
Mulher no crepúsculo / 39
Grandes e pequenos / 41
O espetáculo da Ira / 45
A terra do amor / 48
Quando me tornei árvore / 52
Olga / 55
Manhã no Rio / 68
A gata / 70
Uma nova chance / 82
Meu pequeno labrador/ 89
Liberdade e solidão / 92
Fluidez / 95
Nos confins do mundo / 97
O auge da vida / 100
O despertar do gigante/ 103
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SAUDADE DO SÍTIO
Eu gostava do sítio, porque lá amanhecia azul. Todas as manhãs eram manhãs azuis, com pássaros e flores cantando a Vida.
Nessa comunhão entre o céu e a terra, eu era mais forte porque respirava a brisa mais leve que existe, essa brisa alva que não existe nas cidades. Eu me sentia um camponês de verdade, unido às coisas pequenas da terra, essa terra que faz brotar o milho e o café, a mandioca e o agrião... E havia o caminho de barro ladeado pelas mangueiras que me saudavam a cada ma-nhã, como se soubessem mais de mim do que delas mesmas. Era bom olhar pra cima e sentir-se afagado pelas nuvens.
Mas que saudade daquele lugar! Queria ver de novo os campos floridos do sitiozinho. Queria sentir o vento que sopra, sacudindo o copado e a cabeleira dos coqueiros. O horizonte que beija o céu, apalpando no ar constelações vivas, cintilantes. Meu Deus, faz com que eu veja de novo o seio daquela terra, traz pra mim a sua alegria, a sua paz...
6
E lá eu talvez encontre a tia Naná com seu ar senil e benfazejo. Apesar dos cabelos alvos, muito alvos, ela estará forte e robusta, como no passado. Se tivesse nascido homem, poria medo em muitos cabras, não tenho dúvida. Uma vez, eu a vi suspender nas costas uma saca de café. Tamanha era sua força que ela ia pra roça ajudar os homens e, ao voltar, à tardinha, dava ração pros cachorros e fazia a janta. Ela também debulhava o milho, ordenhava as vacas, pilava a mandioca, varria o soalho, lavava roupas e as pendurava cheirosas no varal, sob o solarão. E
um odor ameno, vindo dos tecidos, mesclava-se ao cheiro suave dos alecrins que subiam da terra, soprados pelo vento.
Naná era uma mulher pulsante. Quando penso nela, penso numa vida que teima em arder, que resiste, que não quer se apagar. Uma vida inextinguível, fulgente como uma estrela.
Também é naquelas bandas que vive a Uiara.
Dizem que ela habita um riacho cristalino, a pouca distância do sítio. Seu canto mavioso alicia os homens, arrastando-os para o fundo das águas, de onde nunca mais poderão sair. Seu canto é mais penetrante e suave que o amál-gama de muitos cantos harmoniosos. Um canto 7
mais sonoro e agudo que o canto de muitas har-pas e tambores e vozes entrelaçadas. Algo que se pode imaginar, mas não descrever.
Mas esse canto do mal eu não queria ouvir, esse não. Pra mim, isso era arte do coisa-à-toa.
Uma vez queriam me levar pra conhecer o riacho da Uiara, mas eu não fui. Sou cristão, dizia a mim mesmo, convicto. Não. Eu não caio nessas armadilhas. Além do mais, por que eu ia querer ouvir isso se eu podia ouvir o canto dos pintassilgos? Pra quê espiar algo mau se eu podia ouvir, como um eco na amplidão, a música intermitente da natureza?
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MORTE NO AQUÁRIO
Um aquário, a novidade da casa. Era pequeno e retangular e tinha uma portinhola em cima, numa das faces vítreas. Seu interior era preenchido por um castelinho fulvo, feito de gesso, e pedrinhas de cores frias, variantes entre o azul e o lilás, que cobriam a superfície. Ao pé do castelo, como se brotasse de um dos tor-reões, havia uma florzinha de plástico e, mais afastado, num vértice do cubo, um cavalo-marinho verde-musgo. Um pequeno mundo sub-merso. Um pequeno mundo náufrago que des-pertava minha fantasia, trazendo à tona piratas, tesouros ocultos, caravelas, batalhas navais, monstros marinhos, vagas colossais sopradas por Netuno...
Fascinado, eu olhava para o aquário. Ao me aproximar dele, percebi que era habitado por único ser, um ser pequenino, quase ínfimo: um peixinho escuro. Seu matiz negro, preenchendo quase todo o corpo, esmaecia na cauda e nas barbatanas, dando lugar ao marrom. Os olhos eram esbugalhados e a boquinha, miúda, parecia beijar a água com timidez, gota a gota.
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O aquário estava ali, sobre a cômoda,