Por que as pulsões de destruição ou de morte?
De André Green
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Por que as pulsões de destruição ou de morte? - André Green
Prefácio André Green: pensar a destrutividade, recriar em psicanálise
Fernando Urribarri
Certa vez, conversando sobre o seu itinerário intelectual, André Green sustentava, de forma humorística, que se tivesse de aceitar algum rótulo preferia o de homem pulsional
. Esta opção tinha um pano de fundo histórico (embora ainda vigente) que, dentre outras coisas, contemplava o reconhecimento anterior de seu livro sobre o afeto e que o caracterizou, durante algum tempo, como o homem do afeto
. A irada reação de Jacques Lacan ao ver-se criticado naquela obra de seu antigo discípulo, ao qual tentou desqualificar fazendo um jogo de palavras com o abjeto
, foi a irônica ressignificação deste termo lacaniano, operada por Júlia Kristeva, que a conduziu do autor dos Escritos até o estudo e supervisão com André Green (justamente para aprofundar a sua investigação a respeito do afeto e do pulsional enquanto irredutíveis a linguagem). Os posteriores ataques à psicanálise que partiram das neurociências e do cognitivismo, promovendo um homem neuronal
(Changeux), foram rebatidos pelo autor em sua obra A causalidade psíquica por meio de inúmeras polêmicas, nesta ocasião, em que, novamente Júlia Kristeva, entre outros, viu-se reconhecendo-o como um homem pulsional
, alguém que entra no jogo encarnando a defesa dos fundamentos freudianos. Finalmente, pode completar esta mesma imagem, com a imagem proposta por J. B. Pontalis, para definir seu velho amigo e companheiro de aventuras intelectuais: a paixão clínica
.
Pensador do pulsional, praticante de uma clínica na qual o afeto pode colocar em questão a simbolização, sobre esta tela de fundo deveria ser quase evidente que esse novo livro de André Green aprofunda a veia principal de seu pensamento. Por que a pulsão de destruição ou de morte? É uma pergunta que, com diversas formulações, percorre toda a sua obra. Em seu inovador primeiro livro Narcisismo de vida e narcisismo de morte (1967¹) encontramos a introdução de um narcisismo negativo
, como complemento do narcisismo positivo conceituado por Freud. O manuscrito inconcluso seu último livro denomina-se O positivo, o negativo do negativo. As conflituosas e complexas relações entre a destrutividade e a criatividade psíquica são um dos núcleos imperecíveis de sua extensa investigação.
Em grande parte, a potência deste livro surge da convicção de seu autor de que o por vir da psicanálise encontra-se em relação com os destinos da pulsão de morte, ou seja, em relação com a capacidade da psicanálise de confrontar o desafio teórico e clínico que a destrutividade comporta, tanto no nível do campo analítico contemporâneo (definido pelo predomínio de estruturas não neuróticas), como no nível do mal-estar cultural atual (o avanço da insignificância, segundo Cornelius Castoriadis). Em outras palavras: a psicanálise depende de sua capacidade para definir o contemporâneo de sua época.
A questão do contemporâneo, como pergunta e como projeto, impulsiona e define a obra de André Green, desde O inconsciente e a psicanálise francesa contemporânea (1962), passando por Ideias e diretrizes para uma psicanálise contemporânea (2002), até chegar a Clínica Psicanalítica Contemporânea (2012), podemos dizer que o contemporâneo evolui do adjetivo para o substantivo, do conceito à ideia diretriz.
No que consiste a questão do contemporâneo? Colocando de modo simples, em reconhecer o reducionismo teórico e os impasses práticos que causam a crise dos modelos pós-freudianos. Em propor-se a superá-los. Neste sentido, o percurso de quase meio século da obra de nosso autor implica na elaboração de um modelo teórico e clínico pessoal, ao mesmo tempo freudiano e original, que articula uma renovação do método psicanalítico, uma extensão do campo clínico e uma reformulação dos fundamentos metapsicológicos. Um percurso que, em sua última etapa, propõe reconhecer os desenvolvimentos pessoais como aportes para a construção, necessariamente coletiva, de um novo paradigma contemporâneo: freudiano, pluralista, complexo, estendido.
A amplitude panorâmica, a complexidade polifônica e o estilo dialógico (de leitura de diversos autores, de colocar as ideias em jogo, de interpelar aos leitores) diferenciam este livro que agora apresentamos. A perspectiva contemporânea se encontra, antes de tudo, expressa na estrutura do texto, em sua forma de tríptico. A exposição segue com elegância e rigor os aportes de Freud, seguidos pelos de Ferenczi e dos grandes pensadores pós-freudianos (Klein, Lacan, Bion, Winnicott) e, finalmente, os de certos autores e debates atuais. Por sua vez, esses aportes conceituais são colocados em relação, em tensão, a respeito das questões levantadas no campo clínico e social.
Compreende-se: o projeto contemporâneo procura captar o presente como história, enquanto condição de possibilidade para a elucidação e transformação dos problemas atuais. Em minha colaboração com André Green durante a preparação de seus livros e, em especial, nos prefácios e posfácios que redigi para alguns deles, meu aporte orientou-se para colocar em perspectiva, historicamente e conceitualmente, o que cada novo trabalho marca em sua obra, bem como no contexto geral da psicanálise. É esta também a intenção que anima estas linhas introdutórias.
Seguindo uma clássica distinção, é possível diferenciar no percurso de André Green uma etapa inicial (décadas de 1960 e 1970), uma etapa de maturidade (1980 e 1990) e uma etapa tardia (inaugurada por volta do ano 2000)². O texto que aqui apresentamos, publicado em francês em 2007 (e reeditado em 2011), não somente corresponde à terceira e última etapa, como também é especialmente representativo de sua singular riqueza.
Desde o começo dos anos setenta até o final dos setenta, vimos o nome de André Green surgir, destacar-se e estabelecer-se como autor com seus próprios temas de interesse, sua perspectiva pessoal e seu estilo. Partindo de uma notável preocupação com os desafios da clínica e com os limites da analisabilidade, se delineia uma identidade freudiana de base e um pensamento pluralista que vai se enriquecendo com a influência de seus
autores pós-freudianos (Lacan, Winnicott, Bion), complementado pelo intercâmbio com seus contemporâneos (especialmente com seus colegas do movimento pós-lacaniano, como Laplanche, Pontalis, Aulagnier, Anzieu, entre outros). Emerge um estilo que sintetiza paixão clínica e pensamento complexo.
O discurso vivo: a concepção psicanalítica do afeto (1973) é, possivelmente, o livro mais representativo desta etapa, pois estuda este tema se aprofundando em Freud, revisando os aportes pós-freudianos e propondo conclusões pessoais. Green concebe o afeto como modo de simbolização primário e postula a heterogeneidade do significante psicanalítico. Inscreve o afeto em uma lógica da heterogeneidade que caracteriza o processo de representação (a função básica do psiquismo) pela tensão irredutível entre a força e o sentido, o econômico e o simbólico, o estrutural e o histórico. Esta é e sempre será, uma chave fundamental de seu pensamento.
Os decênios da maturidade (1980/1990) são os de elucidação da clínica no que diz respeito aos limites de analisabilidade, e, portanto, de novos desenvolvimentos metapsicológicos. Narcisismo de vida e narcisismo de morte (1983) e Sobre a Loucura privada (1990) desenvolvem e consolidam a concepção original do funcionamento e do tratamento dos casos limite, dando conta da profunda transformação do campo analítico. Para outorgar fundamento metapsicológico à clínica, parte da pulsão como conceito limite
e acaba fazendo do próprio limite um conceito. O homem, ser pulsional pode transformar-se em um limite móvel
. Por outro lado, a elaboração do narcisismo negativo (ou de morte), busca esclarecer conceitualmente e orientar tecnicamente a clínica que se denomina do vazio
, referente à alucinação negativa, ao luto branco, ao sentimento de vazio, entendidos como resultantes de um desinvestimento massivo e temporal do objeto primário (expressão da destrutividade da pulsão de morte). O complexo da mãe morta
constitui uma síntese potente das problemáticas do luto branco
e se torna uma figura paradigmática da clínica contemporânea.
Os anos 1990 foram marcados por uma notória inovação conceitual e pela sistematização de uma visão teórico-clínica geral. A inovação comporta a introdução dos metaconceitos
ou eixos conceituais. André Green introduz uma noção de terceiridade, por meio da qual renova sua noção de simbolização, que, ao mesmo tempo, permite articular e aprofundar uma série de noções terciárias
prévias (a partir da teoria da triangulação generalizada
até os processos terciários). Pouco tempo depois é publicado seu livro mais original: O trabalho do negativo (1993). A elaboração de suas dimensões estruturantes e desestruturantes vão desde a especulação mais abstrata sobre as pulsões destrutivas até a mais concreta consideração das situações limite na clínica, passando por uma revisão global dos mecanismos de defesa e da concepção do Eu. Dois anos depois, A causalidade psíquica e A metapsicologia revisitada respondem a expectativa de numerosos leitores que desejavam uma apresentação do conjunto do pensamento teórico de André Green. Esquematicamente, digamos que se concebe o sujeito psíquico como processo heterogêneo de representação, que simboliza as relações no e entre o intrapsíquico (centrado na pulsão) e o intersubjetivo (centrado no objeto).
A etapa tardia se inicia por volta dos anos 2000, definido pelo reconhecimento da crise da psicanálise e o projeto de um novo paradigma para a sua superação. O projeto contemporâneo não pretende ser um novo discurso ou dialeto (um novo ismo
em torno de Green, por exemplo). Aponta para a construção de uma nova matriz disciplinar, uma articulação de certas perguntas e de certas ideias diretrizes para orientar um programa coletivo de investigação, que reconheça e aborde os desafios específicos da etapa atual. Um de seus aspectos chave é a consideração dos casos limite como os novos pacientes paradigmáticos (do mesmo modo que os neuróticos e psicóticos foram para os modelos freudianos e pós-freudianos, respectivamente).
Orientado para uma psicanálise do futuro
(Green), a virada dos 2000 imprime ao trabalho de nosso autor uma dupla orientação: de um lado, de propostas para a construção de um paradigma contemporâneo, e por outro, de aprofundamento de seus próprios temas de investigação, dos quais se destacam questões complementares à destrutividade do funcionamento não neurótico (denominação que tende a substituir a de casos limite) e a criatividade do trabalho psíquico do analista.
Cada vertente se encontra representada em duas importantes obras, publicadas em 2002. Ideias e diretrizes para uma psicanálise contemporânea estabelece uma espécie de cartografia dos principais problemas teóricos e clínicos ligados à prática analítica atual. E reformula os principais eixos conceituais do pensamento de seu autor enquanto aportes (ao trabalho coletivo) para recalibrar a bússola e retraçar as coordenadas da exploração analítica.
Em O pensamento clínico podemos destacar dois eixos temáticos principais, que caracterizam, como dissemos, as investigações pessoais deste período. Um eixo temático corresponde ao estudo da destrutividade: abarca desde o trabalho do negativo nas estruturas não neuróticas até a revisão da pulsão de morte, sobre a qual voltaremos mais adiante. O outro eixo temático corresponde a uma renovada e renovadora reflexão acerca dos fundamentos e variações da prática (o método, o processo etc.), que indica o desenvolvimento de um novo modelo clínico terciário, centrado na diversidade e na criatividade do trabalho psíquico do analista. Esta teorização desemboca na nova noção de pensamento clínico
. Apontado como o enquadre interno do analista
, enquanto matriz representativa pré-consciente, o pensamento clínico transforma um eixo conceitual complexo, que inclui a atenção flutuante e a contratransferência como dimensões complementares. O trabalho psíquico do analista articula uma série de operações heterogêneas: escuta, fugurabilidade, imaginação, elaboração da contratransferência, memória pré-consciente do processo, historização, interpretação, construção etc. Seu melhor funcionamento é o dos processos terciários
sobre os quais se fundam a compreensão e a criatividade do analista.
Para concluir estes apontamentos introdutórios, vamos focalizar o tema da pulsão de morte no pensamento de André Green. Como vimos, este concebe a destrutividade como uma dimensão essencial do psiquismo (e um problema central para psicanálise). Considera justificada a segunda teoria pulsional de Freud, que contrapõe as pulsões de vida e de morte, buscando dar conta de um mais além do princípio do prazer. Contudo, rechaça certos termos da teorização freudiana. A ideia de uma pulsão de morte
, com sua concepção biologizante e teleológica, parece-lhe inconsistente. Neste sentido, propõe formulações e fundamentações alternativas.
A investigação de André Green em torno deste tema é guiada por duas grandes interrogações: Como opera a pulsão de morte no aparato psíquico? Em que se transforma a teoria do narcisismo com relação aos conceitos da última teoria das pulsões? Poderíamos afirmar, resumidamente, que a primeira questão será abordada mediante a conceitualização do trabalho do negativo. E, para responder à segunda, iremos complexizar a teoria do narcisismo a partir da introdução do par narcisismo de morte/ narcisismo de vida
.
Nesta aventura do negativo
, (parafraseando o título de seu livro sobre Henry James), este trecho do artigo Pulsão de morte, narcisismo negativo e função desobjetalizante
(incluso em O trabalho do negativo), constitui um marco sintético. Vale a pena citá-la e comentá-la: "Proporemos a hipótese de que a meta principal das pulsões de vida é assegurar uma função objetalizante. Isto não significa que seu papel seja somente criar uma relação com o objeto (interno e externo), mas sim se mostrar capaz de transformar estruturas em objeto (...). Dito de outra forma, (...) pode fazer advir ao estado de objeto algo que não possui nenhuma das qualidades, das propriedades e dos atributos de objeto, com a condição de que no trabalho psíquico efetuado se mantenha uma única característica: um investimento significativo. (...) em última instância, o objetalizado é o próprio investimento. (...) Por outro lado, o