O Esplendor de São Petersburgo
De Jan Brokken
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O Esplendor de São Petersburgo - Jan Brokken
A MURALHA CEGA VERMELHA
Quando estive em Leningrado pela primeira vez, em 1975, fazia apenas nove anos que Anna Akhmátova dera o último suspiro. Sua influência era ainda muito visível na cidade, mas, para não ter problemas com as autoridades, era melhor não mencionar seu nome em público. Oficialmente suas obras não eram proibidas, e estimo que um entre dez habitantes de Leningrado sabia de cor os versos do ciclo de poemas Réquiem; mesmo assim o nome dela continuava associado ao protesto e à dissidência. A edição completa, não censurada, de Réquiem sairia muitos anos depois na União Soviética, em 1987; Anna Akhmátova ainda estava incluída em parte na lista negra.
Nos últimos anos antes de sua morte, ela viveu como prisioneira, separada e isolada do mundo. O principal motivo de o discípulo Joseph Brodsky ter sido declarado persona non grata e deportado em um avião para os Estados Unidos era seu contato constante com a poeta, contra a vontade das autoridades. Ele fez de tudo para difundir a poesia de Akhmátova para o grande público e não escondia que a considerava o maior poeta russo desde Púchkin. Isso inflamava o seu ego. Akhmátova recebia o jovem quase todos os dias, sempre que possível, até porque ele a fazia recordar o tempo todo de Óssip Mandelstam, assassinado anos antes. Ela tinha laços com Mandelstam que iam muito além da afinidade e do afeto: pareciam compartilhar a mesma alma poética.
Passaram-se quarenta anos da minha primeira visita à cidade. Em 22 de fevereiro de 2015, um domingo, caminho pela Voskresenskaya, o cais da Insurreição que se chamava antigamente cais Robespierre, beirando o rio Neva em direção à catedral de Smolny. A neve range sob a sola dos meus sapatos. Faz tanto frio que o ar que respiro parece cortar meus pulmões como uma faca. Longas filas de automóveis passam fazendo rumor pela avenida embranquecida ao longo do rio; o barulho dos pneus com pregos assemelha-se a disparos de fuzil. Visto o capuz do meu casaco, aperto a echarpe em volta do colarinho e de repente estou diante da estátua de Anna Akhmátova. Conforme aparece na inscrição, o monumento é de 2006. Só então percebo que do outro lado do cais, na outra margem do Neva, desponta a fortaleza do terror, a infame penitenciária Kresty; dia sim, dia não, Akhmátova ficava aguardando ali, sob a neve ou vento úmido, na esperança de receber notícias do filho encarcerado.
Ao pé da estátua leem-se alguns versos de Réquiem:
E não rogo por mim somente,
Mas por todos que a espera se assemelha,
No frio atroz e no calor fervente
Junto à muralha cega, vermelha.
A muralha é ainda vermelha, o Kresty ainda tem a forma de cruz (krest significa «cruz»), mas já há algum tempo nenhum prisioneiro cumpre pena no local. Será reestruturado; placas informam que ali funcionará um complexo hoteleiro de luxo — fato que não o torna menos atroz. A estátua de Akhmátova se destaca diante de tal fundo; tem pelo menos três metros, é esbelta, briosa, altiva, com refinamento feminino e, sobretudo, aristocrático. Mesmo estando junto a ela, tenho a impressão de estar diante de uma estátua de Giacometti, devido aos braços longos e às pernas finas. Claro que, sem demora, me lembro dos desenhos e retratos de Modigliani do seu primeiro período no exterior, em Paris. Modigliani foi um dos primeiros a se apaixonar por seu rosto longo e estreito, seu nariz fino e seus olhos indagadores e próximos um do outro. Mas estou enganado; a autora é uma artista russa, Galina Dodonova, que tinha em mente a imagem bíblica da mulher de Lote, que vira a cabeça para trás e se transforma em uma estátua de sal. Este foi seu erro: olhar para trás, para o mal. Dodonova, leio no pedestal, inspirou-se no poema A mulher de Lote de Akhmátova, que termina assim:
Quem por essa mulher ainda chorará,
Sua perda não se parece ignorar?
Meu coração só, jamais esquecerá
A quem custou a vida, um único olhar.
Sob a saia, que vai até a canela, são visíveis apenas os sapatos da poeta. Sapatos fechados com saltos largos, porém altos, inequivocamente pertencentes a Akhmátova. Duvido que ela tenha esperado por horas diante da prisão usando tais sapatos. De todo modo está aqui, maravilhosa, próxima à antiga prisão e ao rio, como um farol de esperança e retidão.
Em 1975, eu só poderia imaginar em um momento de otimismo louco, sem nenhum senso da realidade, que um dia ergueriam tal monumento. Era simplesmente impossível, como era impensável o sumiço de centenas de estátuas de Lênin da paisagem urbana. Ainda que Akhmátova termine seu Réquiem assim:
Se neste país, em qualquer momento,
Erguerem para mim um monumento,
Meu consenso dou à celebração
Apenas aceitando a condição
De não ser junto ao mar, onde nasci:
Nossos laços terminaram já ali,
Nem sob — recôndito pinho de jardim,
De inconsolável sombra sobre mim,
Mas aqui onde passei trezentas horas
Sem jamais me descerrarem as portas.
Porque temo mesmo em beata morte
Esquecer o rumor negro sem sorte
Esquecer, cruel pórtico agredido,
Do gritar da anciã, de animal ferido.
Estátua de Anna Akhmátova por Galina Dodonova.
Derreta do imóvel bronze do olhar
A neve, lágrima, a despencar,
E voe a pomba da prisão distante
E o barco a cruzar o Neva constante.
DEFENSORES DA PÁTRIA
Vi Anna Akhmátova novamente no dia seguinte no Museu Russo, em 23 de fevereiro, o Dia dos Defensores da Pátria. Um feriado em que se comemora a Guerra Civil e que marca a data do primeiro recrutamento em massa do Exército Vermelho em Petrogrado e Moscou. Em 23 de fevereiro de 1918 a questão era se os Vermelhos ou os Brancos venceriam, e a incerteza se prolongou por dois anos inteiros.
Até 1946, a festa se chamava Dia do Exército Vermelho, depois, até 1993, Dia da Marinha e do Exército Soviético. Com o fim do período soviético, tornou-se Dia dos Homens da Pátria ou Dia dos Defensores da Pátria. Na televisão estatal, paradas e marchas militares se encadeiam numa virulenta ostentação de força, mas no âmbito doméstico tudo é afetuoso e amoroso como o Dia dos Namorados: as mulheres compram presentes para os maridos ou namorados e os convidam para sair.
Retrato de Anna Akhmátova, 1922, por Kuzma Petrov-Vodkin.
Milhares de visitantes cotovelavam-se diante dos portões estreitos do museu naquela segunda-feira, 23 de fevereiro. Muitos homens, e, na verdade, todos russos, exceção feita a algum chinês perdido e a mim. Com relação às dimensões, o Museu Russo não deve nada ao Hermitage; é gigantesco. As salas de Ilya Repin sucedem-se uma após outra, seus retratos, sem exceção, são impressionantes, os rebocadores de barco do Volga estão exaustos e gemendo diante de mim, Sadko some misteriosamente no reino subaquático e as paisagens são tão plenas de bétulas que minhas pálpebras se tornam pesadas. Dou voltas pela sala dos discípulos de Repin e só então volto a apreciar, sozinho, as impressões de Piotr Kontchalovski ao estilo de Cézanne e a sala inteira de Malévitch.
Encontro-me então diante de um retrato de Anna Akhmátova. Raras vezes tiro fotos em museus, mas essa não posso deixar passar; miro na lente como se a fitasse nos olhos e bato a foto. No mesmo instante, sou gentilmente empurrado por alguns homens que querem chegar tão perto do quadro a ponto de poder tocar a boca e o nariz da poeta.
O quadro de Kuzma Petrov-Vodkin é inegavelmente menos pejado de significados do que o jogo de linhas de Modigliani, mas o russo captou bem os olhos, e o fundo azul-cobalto reforça os traços angulosos de seu rosto. Tomo distância, dou uns dez passos para trás, permaneço ali uma meia horinha e vejo dezenas de visitantes olharem para a poeta com reverência, como se fosse uma procissão.
«Como Púchkin, Gógol e Dostoiévski, pertenço a Petersburgo», gostava de dizer Anna Akhmátova, mesmo quando a polícia secreta vinha bater pela enésima vez em sua porta. Estava ligada à cidade com todo o seu ser e recusava mesmo o pensamento mais fugaz de emigrar.
Eu estava então com o meu povo,
Lá, onde o meu povo, infelizmente, estava.
No entanto, escrevia frequentemente sobre despedida e parecia estar sempre em busca de uma pátria, que, afinal, encontrou apenas em sua poesia.
Teria Akhmátova se tornado a Anna Akhmátova que conhecemos se tivesse vivido toda a sua vida em Moscou? Nascida em uma cidadezinha próxima a Odessa, junto ao mar Negro, viveu em Kiev, Paris, Tassikent e morreu em um asilo nos arredores de Moscou, mas passou a maior parte da vida em Leningrado, e, quando pensava em um rio, pensava nas águas turvas do Neva ou do Fontanka. Sua postura e seu estilo expressavam Petersburgo — os russos de outras partes do país diriam: arrogância de Petersburgo. Como verdadeira petersburguesa, olhava tanto para o Ocidente quanto para o Oriente, pertencia à Rússia de modo absoluto e ao que de mais refinado a Rússia podia oferecer, mas permanecendo também meio estrangeira, uma mulher demasiado sofisticada e elegante para a Rússia comunista, que fumava cigarros em piteira de marfim, vestia-se e se comportava como uma grã-duquesa, que jamais era rude, descontrolada e escabrosa, como Marina Tsvetáeva, uma verdadeira moscovita.
Óssip Mandelstam era de origem judaico-leto-lituana e Joseph Brodsky de origem judaico-polonesa. Eram tachados de cosmopolitas, um dos maiores pecados que alguém podia ser acusado de cometer durante o período soviético. Olhavam de vez em quando para além da fronteira e deixavam-se inspirar por um inglês, um alemão ou um francês. Não eram cem por cento russos, não eram homens para a pátria. O pecado era cometido com muito mais frequência em Leningrado do que no resto da União Soviética. Também Anna Akhmátova era criticada por deixar-se influenciar com demasiado prazer e avidez por Shakespeare, Byron ou Auden. Era ainda pior se um poeta, um escritor ou um compositor se rendesse ao «formalismo»: utilizando formas clássicas, negava o papel que o Estado lhe havia incumbido e colocava-se em uma tradição burguesa desprezível. Caíram em pecado de formalismo tanto Mandelstam quanto Akhmátova e Brodsky. Eram petersburgueses até a medula.
Continuo meu lento passeio pelo museu.
Diante do retrato de Anna Akhmátova, de Natan Altman, de 1914, param ainda mais pessoas do que em frente ao quadro de Petrov-Vodkin de 1922. Certamente devido à pose de desafio, aos ombros nus e ao decote. Abro caminho até a frente, paro diante da pintura, prossigo, volto.
É de perder o fôlego o modo como Altman a retrata — reclinada na poltrona sem curvar os ombros altivos; os sapatos com os saltos altos e largos sobre um apoio (os mesmos sapatos da estátua), uma manta amarelo-ardente envolta nos ombros e nos braços. A influência dos cubistas é inegável, Natan Altman conhecera Picasso e Braque em Paris. Em 1912 retornou a São Petersburgo, e, dois anos depois, pediu a Anna Akhmátova que posasse para ele. Tinham a mesma idade — 25 anos — e representavam os ícones do modernismo. Ambos eram, sobretudo, petersburgueses: com uma janela aberta para o mundo, impetuosos, inovadores.
A Revolução suscitou em Natan Altman o mesmo entusiasmo que em outros vanguardistas; em 1918 pintou uma série de retratos de Lênin. Mas Altman era judeu, e no final dos anos 1920 e essa não