Trilhas da redenção
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Trilhas da redenção - Huglênia Castilho Jorge
A AUTORA
Nasci em outubro de 1970, na cidade de Itumbiara, estado de Goiás. Oriunda de uma família católica, com muita alegria frequentei as aulas de catecismo.
Contava quatorze anos de idade quando fui presenteada com um exemplar de O Livro dos Espíritos.
Ao descobrir a beleza de tantos mistérios desvendados, imenso consolo e serenidade envolveram minha alma, pois descobri que as dores e provações tinham uma explicação. E que tal causa, fundamentada nas Leis de Amor e Justiça, jamais poderia ser chamada de punição.
Desde então, a Codificação Espírita passou a ser valiosa dádiva divina que muito enriquece a minha existência.
Diante da impossibilidade de citar todos os queridos companheiros de trabalho, recordo os trabalhadores do Centro Espírita Eurípedes Barsanulpho, em Rio Verde. Especialmente ao Sr. Antônio Martins, que na época era diretor do Sanatório Espírita Dona Marieta, devo, não apenas as minhas primeiras lições doutrinárias, mas também o afeto e a gentileza tão imprescindíveis a quem inicia os primeiros passos. Agradeço, também, ao valoroso irmão Diomar Ferreira, trabalhador do Centro Espírita Grupo André Luiz, que tanto auxiliou em minhas tarefas mediúnicas.
Cursei Direito e Letras. Em Rio Verde, casei-me com Eduardo e fomos viver em Cuiabá. Recebemos nossos filhos: Gabriel e Letícia. Durante o tempo em que morei nessas cidades, atuei como evangelizadora infantil e instrutora, contribuindo com as equipes responsáveis por estudos sistematizados da Doutrina Espírita.
Desde a juventude ouvia as vozes dos espíritos, e às vezes, os enxergava. O estudo e o cultivo de pequeninas virtudes foram ferramentas indispensáveis para que a conexão com o Plano Espiritual se convertesse em trabalho e bênçãos. A misericórdia de Deus permitiu que eu fosse alvo de amparo e orientação, e a presença espiritual de Dona Yvonne do Amaral Pereira sempre irradiou consolações e esperanças. Foi através dela, no ano de 2008, que soube de meu compromisso com a psicografia de livros.
Atualmente, resido em Goiânia e sou professora. Continuo a desempenhar tarefas variadas no Movimento Espírita em Goiás.
Há quatro anos, recebi a visita de um espírito muito afável. Tinha a aparência de um jovem sorridente, muito belo em sua veste branca e usava uma quipá — espécie de boina utilizada
pelos judeus. Gradativamente concedeu-me informações reveladoras acerca do passado e pediu-me que incluísse a Bíblia em meus estudos. Era o Espírito Samuel desvendando nossos vínculos em anteriores existências. É ele o autor espiritual desta obra que temos a honra de oferecer ao amigo leitor.
Adoraríamos receber suas impressões sobre o livro, no seguinte contato: [email protected].
Huglênia Castilho Jorge
BREVES PALAVRAS
Convidada a dizer algo sobre Samuel, sinto-me deveras feliz. Em que pese a inspiradora biograf ia pontuada por lições de sacrifícios e árduo trabalho alicerçado no bem, esclareço que também o faço impelida pelos sagrados laços de afeição espiritual que nos unem, desde épocas recuadas no tempo.
Em longínqua existência, na velha Ibéria, era ele um rabino estudioso e propagador das Sagradas Escrituras. Naquela época ouviu a voz melodiosa de Paulo, o extraordinário divulgador da Boa Nova, ressoar pelas ruas da cidade em que vivia, na Espanha.
Portador de um caráter apaixonado e resoluto sentiu-se atraído pela personalidade enérgica do pregador. Através do forte colorido da oratória de Paulo, contemplou Jesus com os olhos do coração e, exultante diante daquele Mestre Incomparável, tornou-se profundamente enamorado de suas lições imortais. Arrebatado pela beleza transcendente dos ensinamentos de Jesus, Samuel compreendeu ser ele o Messias, longamente esperado, tantas vezes anunciado pelas antigas profecias, infinitas vezes incompreendido e rejeitado pela intelectualidade cética dos homens.
Desde então, em diversas etapas terrenas, Samuel viveu, errou, recapitulou lições, sofreu, aprendeu e trabalhou sempre em busca da rota salvadora. Tomou para si a tarefa de compartilhar com os irmãos compatriotas as verdades entesouradas no Evangelho e assim, nasceu e renasceu entre o povo judeu. Decisão que lhe acarretou, não raro, dor e perseguições. Contudo, os espinhos do caminho jamais lhe enfraqueceram a coragem ou diminuíram a alegria de servir a Jesus.
Mais tarde, atendendo ao apelo do Alto, encheu-se de esperança, associando-se aos jesuítas, a fim de colaborar com a obra de implantação do Evangelho no coração do povo brasileiro.
Dando continuidade à tarefa, retornou ao Brasil em uma nova existência, como um dos primeiros tarefeiros da seara espírita, espalhando as sementes da Doutrina Celeste que restaura o Cristianismo em sua indescritível beleza dos primeiros tempos. Doutrina Espírita, amada e reverenciada, que promove o nosso soerguimento e conduz-nos rumo ao porto florido da redenção. Que descortina um caminho novo e luminoso ao conceder-nos infinitas bênçãos; uma delas é reatar laços de afeto, os quais muitas vezes julgamos distanciados pelo tempo e pelas diversas encarnações.
Fiel a Jesus e a Kardec, assim é Samuel; um desses laços que a misericórdia infinita de Deus nos permitiu restaurar e em breves palavras, apresentar a vocês.
Numa época grave, em que tantas informações deprimentes proliferam numa velocidade jamais vista na Terra; tempos em que os corações se fazem mais sequiosos de paz e espiritualidade, a Literatura Espírita é canal de instrução e renovação moral ao oferecer uma leitura agradável e salutar em sua feição consoladora. Em uma linguagem romanceada, que tanto agrada aos corações, Samuel vos oferece o livro Trilhas da Redenção, uma narrativa que exalta o imenso amor de Deus, a valorização da família e da vida.
Yvonne do Amaral Pereira
EM BUSCA DA REDENÇÃO
Longa é a estrada que palmilhamos em busca da redenção. No limiar da grande jornada somos equipados com dons imensos e infinitas bênçãos, entre eles, a imortalidade e o livre-arbítrio, presentes divinos que ainda não são devidamente avaliados por grande parcela da humanidade terrena.
Criados à imagem e semelhança de Deus, em nosso íntimo repousam os germens da perfeição. Contudo, assemelhando-nos ao filho pródigo da parábola messiânica, acorrentamo-nos à herança material e rejeitamos nossos potenciais divinos.
Assim, afastamo-nos voluntariamente do Pai.
Mergulhamos nos pântanos das paixões.
Espalhamos pedregulhos de dor e revolta.
Caímos em armadilhas de ambição desmedida.
E subimos montículos ilusórios na exaltação de nosso orgulho.
Lentamente prosseguimos e, aos poucos, dolorosa exaustão rasga o véu das ilusões.
Conscientizamo-nos que em nossa fuga, nenhum subterfúgio substituiu Deus em nossos corações.
Sedentos e famintos buscamos o caminho de volta. Regozijamo-nos ao percebermos que embora a trilha da redenção seja estreita, árida e escarpada, o Pai nos espera de braços abertos. Apesar de distantes da plenitude, descobrimos que é possível andar com segurança, pois seja qual for o abismo ao qual nos atiramos, jamais estivemos sós.
O amor de Deus, qual sentinela, é chama que não se apaga e vela, permanentemente, por nós. Faz-se presente no Evangelho de Jesus a iluminar a senda, nas dificuldades que nos desafiam a seguir, nas afeições que cultivamos, nas palestras construtivas. Desperta-nos através de livros que convidam a transitar pelas faixas mais nobres da vida; este é um dos objetivos da narrativa que oferecemos ao querido leitor.
As vidas sobre as quais discorremos são reais. Alguns de nossos personagens viveram na Terra até o final do século XIX e já retornaram à Pátria Espiritual, enquanto a maioria prossegue sua trajetória ainda encarnados. Sem prejuízo da verdade dos fatos, alteramos alguns nomes a fim de resguardar corações que ainda mourejam em plena luta terrena.
Se em um volume é impossível narrar todas as peripécias que envolvem uma vida, nosso relato não tem a pretensão de descrever de forma integral duas etapas terrenas. Recordando o velho Portugal do século XVIII, conheceremos dramas nascidos na noite escura da Inquisição e numa próxima etapa terrena observaremos nossos protagonistas em nova roupagem física, no Brasil Império, participantes da sociedade escravocrata.
Em ambas as épocas encenaram dramas reais que, ainda hoje, os afligem e ressoam em seus destinos. Preferimos utilizar a simplicidade do cotidiano para nossa reflexão quanto à responsabilidade das escolhas, às vezes tão banais, mas que reverberam em séculos do porvir. Investigamos as consequências de seus atos e, quase atônitos, observamos os resultados diante dos poderosos mecanismos da Lei de Justiça; maravilhados e reverentes curvamo-nos diante do amor de Deus, que atende a cada uma de suas criaturas em suas múltiplas necessidades de amparo e soerguimento.
Ao acompanharmos os desfechos dos inúmeros episódios comoventes, somos surpreendidos pela inevitável conclusão: felizes são aqueles que exaustos das paixões do mundo terreno, ultrapassando a própria humanidade, transcendem aos desejos inferiores e reconhecem em Jesus um amor diferente.
Manifestamos nossa gratidão ao amigo leitor e oferecemos a singela narrativa a todos; especialmente aos irmãos que ainda não compreendem o quanto a obediência ao mandamento maior: "Amar a Deus e ao próximo como a si mesmo",nos resguarda dos desatinos que causam tanta dor e distanciam-nos do eterno bem.
Agradecemos a Deus por sua bondade infinita. Ele concede-nos a concretização do ideal de propagar uma Doutrina que tão profundamente recorda o cristianismo nascente, ilumina consciências e consola.
Recordamos Jesus, o Profeta Inesquecível, compartilhando o cotidiano de um povo ainda embrutecido, que incansavelmente consola as dores e aflições da multidão sequiosa de amparo, fazendo de suas palavras e atitudes, cânticos de amor ao Deus único e sempre presente na vida de seus filhos amados. Que Ele seja sempre nossa inspiração, que abençoe o nosso esforço e conceda-nos paz.
Samuel
Sumário
PRIMEIRA PARTE: Em Portugal
I.De volta a Sintra
II.Família Rosenthal
III.Afonso e Isabel
IV.Planos sinistros
V.Na corte de D. João V
VI.Trágicos acontecimentos
VII.Teias de dor
VIII.Em Funchal
IX.O amor não morre
X.A força regeneradora do Evangelho
SEGUNDA PARTE: No Brasil
I.Casamento de almas
II.A família Lira Brandão
III.Filhos da África
IV.Compromissos com a retaguarda
V.Colheita inesperada
VI.Novos senhores, novas ideias
VII.Abolicionistas e conflitos
VIII.Entre dois mundos
IX.Nascer de novo
X.E a vida prossegue
TERCEIRA PARTE: Além da Terra
I.Notícias de além-túmulo
II.O suicida Lancelot
III.Preciosas reflexões
IV.Em casa de Anita
V.Novas trilhas da redenção
REFERÊNCIAS
Primeira Parte
EM PORTUGAL
Capítulo 1
DE VOLTA A SINTRA
Ah! Se tivesses dado ouvidos aos meus mandamentos! Então, seria a tua paz como um rio, e a tua justiça, como as ondas do mar.
Isaías 48:18.
Era o ano de 1.713, em uma fria manhã, diligentes cavaleiros escoltavam o luxuoso coche que passava celeremente. A estrada estreita avançava sobre uma eminência do terreno permitindo ao viajante contemplar o deslumbrante panorama que a ladeava. Os bosques espalhados pelas serras e vales exibiam a mata vestida com as cores do outono; tons vibrantes variavam do cobre ao amarelo, colorindo as copas frondosas. As folhas se deixavam levar pelo vento, cobrindo o chão como se fossem detalhes de um tapete caprichosamente tecido em variados matizes.
A carruagem de madeira escurecida, encerada com resina brilhante, ostentava entalhes dourados. O interior luxuoso era revestido com couro macio e tecidos acetinados cobriam poltronas confortáveis.
O viajor, Afonso Navarro, era um dos mais importantes membros do clero português, acostumado à solidão viajava sem acompanhantes. Afastou as cortinas e abriu a pequena janela sentindo o ar gelado fustigar-lhe a face. Sem importar-se com as rajadas cortantes ou com a paisagem bucólica, tudo observava entediado. Avistou a velha fortaleza de pedra, construída por antigos invasores mouros, encarapitada em um enorme rochedo. Logo adiante viu as velhas muralhas inexpugnáveis que guardavam mosteiros e conventos. Aqui e ali identificou as pequenas ermidas de pedra, solitárias, aninhadas aos sopés dos montes.
O sol dissipara o denso nevoeiro deixando no ar o aroma de pequeninas flores silvestres que coloriam a beira da estrada. O trote ligeiro dos cavalos fazia com que a paisagem mudasse rapidamente. Depois de acentuadas curvas, ele contemplou os vinhedos das prósperas herdades que abrigavam castelos requintados adornados com cúpulas e torres imponentes a erguerem-se rumo ao céu muito claro... A riqueza das construções evidenciava o apreço da nobreza por aqueles sítios.
A região era um destes recantos do planeta Terra que impelia o observador mais sensível a concluir que o Divino Criador tudo fazia para agradar aos filhos amados.
A Vila de Sintra, considerada por muitos como uma joia portuguesa, incrustada entre as montanhas e o Atlântico, para Afonso era apenas uma paisagem familiar. Em verdade, representava uma localidade que jamais desejou rever. Desde que de lá saíra e nunca mais voltara, considerava o lugar como uma espécie de cemitério dos sonhos malogrados.
Por mais que buscasse permanecer alheio ao cenário, Afonso não saiu ileso. Indiferente aos conflitos do viajante, a natureza exibia o esplendor de cores exuberantes, diversas texturas, cheiros familiares. Tais detalhes, mesmo que ignorados, compunham a ambiência, material e espiritual, repleta de um magnetismo forte o suficiente para revolver recordações inquietantes.
Uma revoada de pássaros emitindo melodiosos trinados interrompeu a quietude reinante. Irritado, Afonso fechou a janela produzindo um ruído baixo. Quisera ele ter um dispositivo interno que o permitisse fechar o passado e conter a avalanche de lembranças que julgara haver sepultado para sempre.
Partira há mais de quinze anos...
Era o irmão mais novo de numerosa prole. A mãe dedicava-lhe entranhado afeto, o criara com cuidados extremos, em seus arroubos sentimentais chegava a exigir que as irmãs fizessem todas as suas vontades. A semelhança física com o avô materno era a justificativa utilizada por Pilar, a fim de explicar preferência tão explícita. Recordou a figura da mãe, tão temperamental!... Parecia, ainda, ouvir-lhe os gritos a lamentar o quanto era infeliz no casamento e que ele constituía toda a sua alegria.
Na infância correra por aqueles campos, na adolescência participara das festas em alguns daqueles castelos e na quinta dos tios ficara noivo da prima Martina. Eram jovens, belos e abastados. No dia das bodas reuniram fidalgos, nobres e familiares ilustres vieram de longe. Tudo parecia conspirar para o enlace feliz. E assim seria, se a ausência da noiva não houvesse provocado o fim do sonho.
Afonso compreendeu aquele instante como o momento em que deixou de ser o jovem admirado pelos rapazes e cortejado pelas moças. A partir daquele dia, onde quer que fosse, passara a ser o alvo de olhares curiosos, chacotas veladas; pois ao fato de Martina ter fugido acrescentava-se a ofensa inominável: a noiva o preterira por um judeu, neto de um velho sapateiro, morador da judiaria de Sintra.
A família de Martina, ciente do escandaloso vínculo com um judeu, após algumas buscas infrutíferas, desistiu de procurá-la.
Padre Inácio, o antigo preceptor e sacerdote que realizaria o casamento, persistiu nas investigações e através das informações de alguns conhecidos acabou por descobrir o paradeiro de Martina. Em uma conversa sigilosa revelou a Afonso que a jovem vivia na cidade de Évora. Ocultou a notícia de que a moça estava viúva, enfatizando apenas que ela passava por grandes dificuldades.
Sensibilizado, o padre resolveu auxiliar o retorno da jovem para junto daqueles que poderiam cuidar dela e Afonso aderiu ao projeto. Sem nada revelar à família dele e de Martina, organizou uma pequena expedição e partiram animados por desejos opostos. O clérigo bondoso ansiava cuidar de ambos, da moça imprudente e do ex-noivo traído. Afonso, por sua vez, não desejava nada mais além do encontro com o judeu a quem atribuía a culpa de todos os seus infortúnios.
No endereço procurado encontraram apenas uma anciã desvalida de quaisquer bens materiais. Dela obtiveram tristes e inesperadas informações. Martina ali morara, viúva, pois o judeu que desposara faleceu vitimado de grave doença. Ela que ficara só e grávida, pereceu logo após o parto.
Chorosa, a proprietária da casa e cuidadora de Martina, trouxe alguns objetos da morta. Afonso reconheceu os brincos que mandara fazer para a jovem como presente de noivado. Enquanto observavam outros pertences que identificaram ser de Martina, padre Inácio chorou pela menina que vira crescer alegre e vivaz. Consumido pelo rancor, Afonso não chorou, sequer lamentou não poder salvar a prima de mais uma aventura malsucedida, como fizera inúmeras vezes na infância e adolescência. O ódio lhe causava vertigens diante da ausência daquele que gostaria de trucidar e em vão procurou. A custo conteve a imperiosa vontade de destruir o tosco mobiliário da choupana.
Ouviram o choro de um recém-nascido; era o filho de Martina. Tomado de compaixão o padre o aconchegou nos braços. Afonso sequer o olhou, mas não impôs nenhum entrave à decisão do pároco quando esse resolveu voltar a Sintra levando a criança. Apenas organizou a viagem em silêncio, recusando-se a colaborar nos cuidados com o pequeno órfão.
Como se tivessem ocorrido ontem, a memória lhe trouxe as cenas em todas as minudências. Afonso suspirou e esfregou os olhos em um gesto impotente diante das dolorosas lembranças.
Após um trecho sinuoso da estrada, o barulho da batida dos cascos dos cavalos nas pedras que pavimentavam as ruas o tirou dos devaneios. Abriu novamente a janela e contemplou a cidade que o vira nascer e crescer. O gracioso casario de Sintra apresentava as fachadas de pedras, janelas ornamentadas inspiradas na arquitetura gótica e algumas paredes revestidas com a arte da azulejaria portuguesa.
Afonso obrigou-se a concentrar-se no presente. Recordou os intermináveis períodos de clausura, o quanto havia lutado consigo mesmo para reaver o domínio das emoções e concluiu que não havia retornado a fim de exumar antigas ilusões. Estava ali, pela última vez, atendendo ao chamado de um homem muito doente e que talvez fosse o único amigo que realmente tivera. Era padre Inácio, o mestre que lhe ensinara não só a catequese, mas também um amigo que o acompanhara durante o transe difícil que sobreviera ao vexame do malfadado noivado.
Conduzida por pequeno séquito, a carruagem imponente parou junto à casa paroquial. Afonso vestia o costumeiro hábito branco, quase inteiramente coberto por uma capa preta, traje tradicionalmente usado por frades dominicanos. Subiu os degraus rapidamente, com passadas fortes e ritmadas.
Um dos criados observou sua chegada, impressionado com a visão do cortejo bélico-religioso, com o poderio emanado pelas insígnias visíveis nas portas da carruagem e com as vestes clericais que o identificavam como membro da Ordem de São Domingos. O servo abriu a porta e o deixou entrar sem a necessidade de anunciá-lo, apenas informando que o padre encontrava-se no salão principal.
Atraído pela música que ressoava no interior da ampla edificação, Afonso dirigiu-se ao salão. Deteve-se ao vislumbrar um jovem que dedilhava o cravo com maestria. Observou os dedos ágeis que extraíam delicada sonoridade. Finalmente, foi em direção ao antigo preceptor. Alquebrado pela doença, padre Inácio não conseguiu levantar-se para cumprimentar o pupilo que há quase vinte anos não encontrava. Os olhos brilhavam de satisfação na face abatida.
— Afonso, seja bem-vindo!
Por breves segundos Afonso esqueceu-se de que era uma autoridade portadora de inúmeras credenciais. Em um movimento automático viu a si próprio repetir um gesto aprendido desde a mais tenra infância: inclinar-se, segurar as mãos encarquilhadas de padre Inácio, beijá-las e dizer:
— A bênção, padre Inácio!
— Deus te abençoe, meu filho!
Embora a voz estivesse fraca, Afonso percebeu que a ausência protocolar do cumprimento divertira o padre. Observou nele a aparência frágil de quem estava muito doente.
Ainda lembrava o quanto ele gostava de música. Sem demora, disse:
— Podem continuar. Não gostaria de atrapalhar tão animado recital.
— Oh, não! Meu talento é apenas divertir padre Inácio! — Falou o moço sentado junto ao instrumento musical.
Pela primeira vez, Afonso encarou o rapaz. Fixou o olhar no jovem, examinou-lhe detidamente os traços: ondulados cabelos negros, nariz levemente aquilino; na face morena os olhos surpreendentemente azuis eram orlados por longos cílios escuros. Mentalmente, o catalogou como um mestiço, talvez um descendente de árabes.
Percebendo o interesse, o afável ancião apresentou o moço:
— Este é Amadeu, Afonso.
O frade achou-o estranhamente familiar e não se conteve:
— A que família de Sintra pertences?
— Padre Inácio é a família que conheci, vivo aqui desde que nasci.
O jovem inclinou-se em uma mesura para cumprimentá-lo dizendo:
— Encontro-me à vossa disposição, frei Navarro.
O rapaz tinha uma expressão serena e alegre. E ao observar o sorriso amável, Afonso soube quem ele era.
Olhou para padre Inácio e, em um entendimento silencioso, leu em seu olhar o que havia adivinhado. Aquele rapaz herdara o sorriso largo e os olhos da mãe. Era o recém-nascido que buscaram em Évora e que ficara aos cuidados do padre. Era o menino de Martina, a noiva fugitiva.
Por sua vez, o pároco observou que Afonso exterminara todas as características do rapaz jovial que um dia fora. Os cabelos, antes dourados pela longa exposição ao sol, estavam muito curtos e escurecidos; a pele pálida indicava que ele não mais andava pelos campos. Os olhos claros, antes calorosos, agora pareciam desprovidos de vivacidade. Alto, impressionava pela aura de autoridade e sisudez. A espontaneidade de outrora não mais existia. A voz baixa, a expressão taciturna e as mãos cruzadas abaixo do tórax evidenciavam traços da severa rotina conventual à qual fora submetido.
— Gostaria de estar a sós com Afonso. — Solicitou padre Inácio, fazendo com que Amadeu e os demais se ausentassem do salão.
— Filho, como vês, não me encontras em bom estado. Gostaria de ouvir o que realizaste em todo esse tempo de ausência. Mas as minhas energias estão escassas, prefiro explicar-te sem rodeios a importância do assunto que me obrigou a chamar-te.
Padre Inácio falava com a voz entrecortada por tosses, demonstrava dificuldade para respirar e Afonso apenas assentia com a cabeça.
— Afonso, há quase vinte anos nos unimos para tentar auxiliar Martina e coube a mim a tarefa de encaminhar o órfão. Como primeira providência, adverti os pais de Martina que eles tinham um neto. Desprezaram-no por todo esse tempo, exceto a mãe dela que no ano passado, em seu leito de morte, entregou-me uma pequena fortuna que assegura o futuro dele, uma vez que não fora reconhecido como neto e assim não herdará nenhum quinhão da herança de Martina. Devido aos seus traços israelitas e origem obscura, foi impossível encontrar um lar adotivo para ele. Por fim, considero que o Senhor Jesus, compadecido de minha solidão, enviou-o a mim como um presente. Desde que aqui chegou, Amadeu iluminou meus dias com a mais pura alegria! Eu o amei como se ama um filho e procurei ser o melhor pai possível. Proporcionei—lhe os melhores mestres e ele, além de ser brilhante músico, revelou aptidões inatas, dominando com facilidade extraordinária diversos idiomas. Apesar da pouca idade, hoje é um dos melhores auxiliares de nosso educandário.
Um acesso de tosse obrigou o clérigo a parar. Afonso que rejeitava o sentimentalismo e apreciava a objetividade, aproveitou para interrompê-lo:
— Sempre soube que o protegeria. Tantos detalhes são desnecessários.
— Ouça-me com atenção! — A voz fraca do padre não impedia que o tom fosse imperativo e prosseguiu sem esperar uma réplica — Amadeu está muito acima destes dotes intelectuais que te resumi, pois sei que florescem em seu coração os mais ricos dons de amor ao próximo. Pensei evangelizá-lo e surpreendia-me ao ouvir sempre um entendimento novo sobre a aplicabilidade do Evangelho em nossa vida diária. Acompanhava-me em visitas aos que sofrem e diante de alguns quadros dolorosos sempre oferecia um sorriso, um afago. Jamais necessitei repreendê-lo... No decorrer do tempo, passei a ter a certeza de que ele compreendia minhas carências... Apenas deixava que eu o amasse e acreditasse que estava cuidando dele. Compreendeste?
Ansioso para por fim ao discurso que o impacientava, Afonso apenas sinalizou afirmativamente. Satisfeito, o padre continuou:
— Sei que estou em meus momentos derradeiros aqui na Terra e gostaria que Amadeu se transferisse para Lisboa a fim de viver em tua companhia. Solicitei a ele que o faça por dois anos, até que complete vinte anos e esteja mais amadurecido.
— Verdade? E o que eu poderia fazer por um ser que parece tão acima das mesquinharias humanas?
O padre desconsiderou a nota de cinismo que acompanhou as perguntas. Retrucou com a sinceridade de quem era íntimo e o conhecia bem:
— Creio que muito pouco. Mas, ele poderá fazer muito por ti!
Afonso resmungou um impropério e o padre, ignorando-o, continuou:
— Talvez ele consiga ensinar-te a amar e a confiar de novo.
Enfim, o pároco conquistou toda a atenção de Afonso. Acostumado a ordenar e ser obedecido, ele aturdiu-se — por um momento — impactado diante da ousadia de alguém que lhe atirava à face uma verdade dita de forma tão simples e, aparentemente, tão despretensiosa. Sob o olhar penetrante do padre, percebeu que ele lia em seu íntimo tudo que ele tão habilmente lutara para esconder. Buscara o sacerdócio, desfrutava de um poder que lhe proporcionava prestígio e riquezas materiais, colocara-se de corpo e alma a serviço