LA FONTAINE FÁBULAS
De La Fontaine
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LA FONTAINE FÁBULAS - La Fontaine
Vida de Esopo
O frígio
Não dispomos de nenhum dado seguro sobre o nascimento de Homero e Esopo: quando muito, sabemos o que lhes aconteceu de mais extraordinário. Temos aí um bom motivo para nos surpreender, visto que a história retém coisas muito menos agradáveis e necessárias. Tantos predadores de nações, tantos príncipes sem mérito nos foram mostrados nas mínimas particularidades de suas vidas, enquanto nós ignoramos as de Homero e Esopo, ou seja, os dois personagens que mais o mereceram nos séculos seguintes! Homero não é apenas o pai dos deuses, mas também o pai dos bons poetas. Quanto a Esopo, penso que deveria ser colocado entre os sábios dos quais a Grécia tanto se vangloria, ele que ensinava a verdadeira sabedoria, e que a ensinava com mais arte do que aqueles que dela dão definições e regras. A vida destes dois grandes homens foi registrada em relatos; mas a maioria dos sábios os vêm como fabulosos, sobretudo o escrito por Planudes.Quanto a mim, não quis participar desta crítica. Tendo vivido num século em que a memória das coisas vividas por Esopo ainda não havia se apagado, acreditei no fato de que Planudes aprendera pela tradição tudo que deixou. Munido desta convicção, eliminei apenas o que me pareceu muito pueril ou que se afastava da conveniência.
Esopo era Frígio, proveniente de uma aldeia chamada Amorto. Nasceu por volta da qüinquagésima sétima olimpíada, uns dois anos após a fundação de Roma [ 18 ] Não saberíamos dizer se tinha motivos para agradecer a natureza ou para se queixar dela; porque dotando-lhe de um belo espírito, o fez nascer disforme, de aparência repulsiva, mal poderíamos dizer tratar-se de um homem; e quase lhe foi totalmente negado o uso da palavra. Com estes defeitos, tinha todas as condições para ser escravo, e o foi. Mas sua alma se manteve sempre livre e independente do destino.
O primeiro dono o mandou para os campos trabalhar na terra, quer porque o julgasse incapaz para qualquer outra coisa, quer para afastar das suas vistas um objeto tão desagradável. Estando o mestre na sua casa de campo, um camponês veio agradá-lo com figos frescos: ele os achou lindos e os mandou embalar com muito cuidado, deixando ordens com o dispenseiro chamado Agátopo de levá-los quando saísse do banho. O acaso quis que Esopo naquele momento tivesse um motivo para ir até lá. Assim que entrou, Agátopo se aproveitou da coincidência e comeu os figos junto com seus camaradas; depois responsabilizaram Esopo pelo abuso acreditando que ele não tivesse condições de se defender: tanto pela gagueira quanto pela aparência de um perfeito idiota. Os castigos empregados pelos antigos eram muito cruéis e a falta cometida muito grave. O pobre Esopo se jogou aos pés do mestre e, esforçando-se para se fazer compreender, pedia que lhe concedesse um prazo de alguns instantes antes de puni-lo. A graça tendo sido outorgada, buscou um pouco de água quente, bebeu-a na frente do senhor, enfiou os dedos na garganta e o que se viu foi a devolução apenas da água morna. Depois de ter-se justificado fez sinal obrigando os outros a fazerem o mesmo. Cada um se surpreendeu; não teriam acreditado que uma tal invenção pudesse ter partido de Esopo. Agátopo e os companheiros não demonstraram o espanto. Beberam a água como o Frígio havia feito, mas cuidaram de não enfiar muito os dedos na boca. Mas a água agiu e provocou seus efeitos: exibiu os figos ainda crus e vermelhinhos; deste modo, Esopo se defendeu; os acusadores foram duplamente punidos - pela gulodice e pela maldade.
No dia seguinte, depois que o mestre partiu e estando o Frígio no seu trabalho como de hábito, uns viajantes perdidos, (dizendo-se sacerdotes de Diana [ 19 ]), lhe pediram em nome de Júpiter [ 20 ] hospitaleiro que lhes ensinasse o caminho para a cidade. Primeiro, Esopo os obrigou a se repousarem à sombra; depois, tendo-lhes servido um pequeno lanche, ofereceu-se como guia e só os deixou depois de tê-los posto no caminho certo. A brava gente levantou as mãos pros céus pedindo a Júpiter que não deixasse a ação sem recompensa. Assim que Esopo os deixou, o calor e o cansaço o obrigaram a um cochilo. Durante o sono, imaginou que a Fortuna [ 21 ], em pé diante dele, soltava sua língua e lhe presenteava com a arte da qual podemos dizer que é o autor. Regozijando-se com a ventura, acorda sobressaltado e acordado... : -O que é isto? diz; minha voz está livre, pronuncio certo rota, carroça e tudo que quero! Esta maravilha fez que buscasse outro mestre. Certa vez, surpreendendo um tal de Xenos, administrador que não tirava os olhos dos escravos e espancava de modo ultrajante um deles por um erro do qual não era culpado, Esopo não se conteve e o repreendeu, ameaçando denunciá-lo pelos maus tratos! Xenos, de volta ao campo, encontra um mercador que lhe propõe um animal de carga em troca de uma pequena soma: -Não, não tenho este valor, disse. Mas posso te vender um dos nossos escravos, se quiseres. O mercador responde: -Estás me gozando? Comprar este personagem que parece mais um saco?!... O mercador, assim falando, se despede entre resmungos e risos. Esopo o chama e lhe diz: -Compra-me, te serei útil. Se teus filhos gritam e são malvados, minha figura os fará calar; se sentirão ameaçados com a minha presença como se fosse um animal. O truque agradou o mercador. Comprou o Frígio e disse às gargalhadas: -Os deuses sejam louvados! Não fiz uma grande compra, mas também não desembolsei muito.
Entre outros produtos, o mercador comercializava escravos. Dirigia-se a Éfeso para negociar alguns deles; cada um deveria carregar, para a comodidade da viagem, a bagagem segundo sua função e suas forças. Esopo rogou que levassem em consideração seu tamanho; era recém chegado e deviam tratá-lo com delicadeza: -Não transportarás nada, se quiseres, responderam-lhe os colegas. Esopo, sentindo-se ferido no seu amor próprio, quis levar a sua carga como os outros. Deixaram-no escolher. Apanhou o cesto de pão; era o fardo mais pesado. Todos pensaram que o tivesse escolhido por ser pouco inteligente; mas depois do lanche, o cesto já foi um tanto aliviado e o Frígio também; à noite, idem e igualmente no dia seguinte; de modo que passados dois dias, não tinha mais fardo. O bom senso e o entendimento do personagem foram admirados.
Quanto ao mercador, desconfiava de todos os seus escravos com exceção de um gramático, de um cantor e de Esopo os quais exporia em Samos para venda. Antes de levá-los, providenciou roupas para os dois primeiros - as mais limpas -, e os preparou como se fossem mercadorias; Esopo, ao contrário, foi revestido de um saco e colocado entre os dois companheiros a fim de realçá-los. Alguns compradores se apresentaram, entre eles, um filósofo chamado Xanto. Perguntou ao gramático e ao cantor o que sabiam fazer. -Tudo, responderam. O Frígio riu: podemos bem imaginar como! Planudes descreve a cena dizendo que o fato quase provocou uma debandada por causa das horríveis caretas. O mercador vendia seu cantor por mil óbolos [ 22 ], o gramático por três mil; no caso da venda de um deles, daria Esopo como brinde. O preço do gramático e do cantor não agradou Xanto que os achou caros. Mas, pra não chegar em casa com as mãos vazias, seus discípulos o aconselharam a comprar aquele projeto de gente que rira de forma tão engraçada; fariam dele um espantalho que divertiria as pessoas pela sua aparência. Xanto se convenceu e fez a oferta de sessenta óbolos por Esopo. Antes de comprá-lo, perguntou-lhe pra que serviria, como fez aos outros. Esopo respondeu: -Pra nada, uma vez que os dois outros já haviam preenchido todos os requisitos. Os guardas fiscais os deixaram passar, cobrando apenas um soldo [ 23 ] por libra [ 24 ] sem notas ou recibo.
A mulher de Xanto possuía um gosto muito delicado e não era qualquer um que a agradava: de modo que apresentar o novo escravo seria ou provocação, ou pretexto pra ridicularizá-lo. Portanto, resolveu fazer do assunto motivo pra brincadeira: em casa, foi logo dizendo que acabara de comprar um escravo, o mais bonito do mundo, o mais bem feito. Diante da novidade, as moças que serviam à sua mulher discutiram pra saber quem o veria primeiro. Qual não foi o espanto quando o personagem apareceu: uma tampou os olhos, outra fugiu, a terceira gritou. A dona da casa disse que era pra expulsá-la que lhe traziam um tal monstro; que o filósofo deveria estar cansado dela. Cada um colocando mais lenha na fogueira, a coisa chegou a tal ponto que a mulher quis a sua parte nos bens, falando em voltar pra casa dos pais. Xanto tanto fez, por obra da sua paciência e Esopo do seu espírito, que as coisas se acalmaram. Não se falava mais em sair de casa e talvez o hábito tenha, por fim, apagado a feiúra do novo escravo.
Faço um curto apanhado destas estórias onde aparece a sua vivacidade; mesmo que possibilitem fazer algum juízo sobre o caráter de Esopo, são muito insignificantes para informar à posteridade. Eis uma amostra do seu bom senso e da ignorância do dono. Este último passou num horticultor a fim de escolher, ele próprio, um pé de alface. Depois das plantas colhidas, o jardineiro pediu que o esclarecesse sobre algo que inquietava seu espírito − a dificuldade dizia respeito tanto à filosofia quanto à jardinagem − : as verduras que plantava e das quais cuidava com tanto zelo não se beneficiavam, ao contrário, como as que a terra produz sem cultura nem planejamento. Xanto deixou tudo por conta da Providência [ 25 ] como fazem as pessoas curtas. Esopo caiu na gargalhada: chamou o mestre à parte e o aconselhou a dizer ao jardineiro que lhe havia dado uma resposta muito geral porque o assunto não era digno dele; deixaria que o rapaz que o acompanhava o fizesse e ele se satisfaria com a explicação. Xanto se dirigiu ao outro lado do jardim e Esopo comparou a terra a uma mulher que, tendo filhos do primeiro marido, casou-se com um segundo que também tinha filhos com outra mulher: a nova esposa, avessa a estes, desviaria o alimento deles para que seus filhos aproveitassem mais. Assim era a terra que, contrariada, adotava as produções do trabalho e da cultura, reservando ternura e dedicação só para as suas. O jardineiro ficou tão contente com a explicação que ofereceu a Esopo tudo o que possuía no seu jardim.
Passado um tempo, o filósofo teve um grande desentendimento com sua mulher. Participando de um banquete, separou umas guloseimas e disse a Esopo: -Leva isto à minha boa companheira. Esopo deu à cachorrinha que era os dengos do mestre. Xanto, entrando em casa, quer notícias do presente; se tinham gostado. Sua mulher não compreendeu uma só palavra deste discurso; chamaram Esopo para esclarecer. Xanto, que esperava apenas um pretexto para castigá-lo, perguntou-lhe se não havia dito categoricamente que levasse as guloseimas para a sua boa companheira. Esopo respondeu que a boa companheira não era a mulher que ao menor descuido o ameaçava com o divórcio; era a cadela que tudo suportava e sempre voltava para receber carinhos depois de apanhar. O filósofo ficou incomodado; mas a mulher, enfurecida, saiu de casa. Amigos, parentes... a todos Xanto recorreu para que intermediassem, mas nem razões nem súplicas obtiveram êxito. Esopo recorreu a um estratagema: comprou muita caça, como para um banquete de núpcias; tanto fez que acabou por ser visto por um dos empregados da patroa. Este perguntou para que tantos preparativos. Esopo lhe diz que o mestre, não podendo obrigar sua mulher a voltar, ia se casar com outra. Assim que a senhora soube da novidade retornou à casa do marido por espírito de contradição ou por ciúme. A situação era prato cheio para Esopo que, todos os dias, colocava o patrão num impasse e todos os dias escapava da punição com alguma saída sutil. O filósofo não conseguia enredá-lo.
Num dia de feira, Xanto pretendia regalar alguns amigos e o mandou comprar o que encontrasse de melhor. Te ensinarei, falou o Frígio com seus botões, a especificar teus desejos, ao invés de te colocares à mercê de um escravo. Comprou apenas línguas que fez acompanhar de todos os tipos de molhos: na entrada, no prato principal... tudo línguas. Os convidados elogiaram a escolha do cardápio, mas no final, já estavam cansados: -Eu não te mandei comprar, diz Xanto, o que houvesse de melhor? - E o que há de melhor que língua? Respondeu Esopo. É o laço da vida em sociedade, a chave das ciências, o órgão da verdade e da razão: através dela constroem-se cidades e por ela são vigiadas; ensinamos e persuadimos; reina nas assembleias; cumpre o primeiro de todos os deveres que é o de louvar aos deuses. -Pois então, diz Xanto que pretendia apanhá-lo, amanhã compra-me o que houver de pior; estas mesmas pessoas voltarão e eu quero variar o cardápio.
No dia seguinte, Esopo fez servir os mesmos pratos, dizendo que a língua era a pior coisa que existia no mundo: é a mãe de todas as discussões, a mentora dos processos, fonte das divisões e das guerras. Se dizemos que é o órgão da verdade, também é do erro, e, o que é pior, da calúnia. Por ela destruímos cidades, persuadimos de coisas bem pouco lisonjeiras. Se por um lado exaltamos os deuses, por outro, blasfemamos contra seu poder. A esta altura, alguém se pronuncia dizendo a Xanto que aquele escravo lhe era muito necessário; porque sabia melhor que ninguém exercer a paciência do filósofo. -O que o aborrece? Retoma Esopo. -Encontre alguém que não tenha um motivo para se aborrecer!
No outro dia, Esopo foi à praça. Vendo um camponês que tudo observava com frieza e indiferença, o levou para casa.-Eis, diz a Xanto, o homem sem problemas que o senhor procura. Xanto manda sua mulher esquentar água, colocá-la numa bacia e lavar, ela mesma, os pés do novo hóspede. O camponês consentiu sabendo que não merecia tal honra; mas dizia a si próprio: -Deve ser o costume. Indicaram-lhe a cabeceira; ele sentou-se sem cerimônia. Durante a refeição, Xanto não parou de reclamar do cozinheiro; nada o agradava; o que era doce, achava salgado; o que estava salgado, achava doce. O homem sem problemas o deixava falar, - ele era bom de garfo. Para a sobremesa, trouxeram um doce que a mulher do filósofo havia preparado. Xanto o achou horrível, apesar de que estivesse ótimo. -Este é o pior doce que já comi na minha vida! Vamos queimar a doceira porque não faz nada que preste. Tragam as brasas! -Espere, diz o camponês, vou buscar minha mulher. Assim, faremos apenas uma fogueira pras duas. A atitude do convidado abalou o filósofo que perdeu a esperança de um dia surpreender o Frígio.
Ora, não era apenas com o patrão que Esopo encontrava situações para risos e boas respostas. Xanto o havia enviado a um certo lugar: no caminho, encontrou um magistrado que lhe perguntou para onde ia. Seja porque estivesse distraído, seja por qualquer outro motivo, Esopo respondeu que não sabia. O magistrado, considerando a resposta irreverente, mandou prendê-lo. Enquanto os guardas o conduziam atalhou: - Estão vendo como dei a boa resposta? Como poderia saber que eu iria pra onde vou? O magistrado mandou soltá-lo e achou que Xanto era muito feliz por ter um escravo com tanto espírito!
Xanto se convencia de como era importante não libertar Esopo e o quanto a posse de tal escravo o projetava. Até o dia em que, recebendo seus discípulos, Esopo, que os servia, percebeu que a bebida já lhes subia à cabeça; tanto a do mestre quanto a dos estudantes. -A farra do vinho tem três estágios, disse: primeiro, a volúpia; segundo, a bebedeira; terceiro, a fúria. Riram-se da sua observação e continuaram a esvaziar os potes. Xanto bebeu tanto que perdeu a razão. Anunciava que beberia o mar, o que provocou risadas no grupo. Xanto manteve o que disse: apostou a casa que beberia o mar inteiro; e, para sacramentar a aposta, colocou seu anel sobre a mesa.
No dia seguinte, quando os vapores de Baco [ 26 ] se dissiparam, Xanto se espantou quando não viu o anel que lhe era muito caro. Esopo o informou que estava perdido; e sua casa também, por causa da aposta que havia feito. O filósofo ficou bastante assustado: implorou Esopo que lhe ensinasse uma maneira de desfazer a embrulhada. Esopo o instruiu.
Quando chegou o dia da execução da aposta, todo o povo foi até à beira mar para testemunhar a vergonha do filósofo. Um discípulo, que apostara contra o mestre, já se vangloriava. Xanto disse à assembleia: -Senhores, realmente eu apostei que beberia o mar, mas não os rios que entram dentro dele; por isso, aquele que apostou contra mim, que desvie os seus cursos e depois eu cumprirei a promessa. Cada um admirou a inteligência de Xanto que soube sair honrado daquele desafio. O discípulo se reconheceu vencido e pediu perdão ao mestre. Xanto foi reconduzido à sua casa sob aclamações.
Como recompensa, Esopo lhe pediu a liberdade. Xanto recusou, alegando que este tempo ainda não havia chegado; mas se os deuses ordenassem, ele o faria. Ao sair, deveria prestar atenção ao primeiro sinal; se tivesse sorte e visse na sua frente duas gralhas, a liberdade lhe seria concedida; se visse uma só, ainda teria que continuar a se cansar como escravo. Esopo não perdeu tempo e o mestre se afastou procurando um recanto coberto de grandes árvores, ao que parece. Assim que pôs os pés do lado de fora, Esopo viu duas gralhas que desceram do alto. Correu avisar o mestre, que viesse ver ele próprio se dizia a verdade. Enquanto Xanto caminhava, uma das gralhas voou. -Farsante que tu és! diz a Esopo. Dêem-lhe uma surra! A ordem foi executada. Durante o suplício do pobre Esopo, vieram convidar Xanto para uma recepção. Prometeu comparecer. -Puxa! Os presságios são mentirosos, disse Esopo. Eu que vi duas gralhas, apanho; meu mestre, que só viu uma, vai a um banquete de casamento. A fala agradou Xanto que mandou suspender o castigo; mas, quanto à liberdade, ele não podia ainda oferecer-lhe, apesar de havê-la prometido várias vezes.
Um dia, estavam os dois passeando entre velhos monumentos e observando as inscrições de cada um − isto lhes dava muito prazer, por sinal, − quando Xanto se deparou com uma que não conseguia compreender, apesar de ter ficado um bom tempo tentando decifrá-la. Era composta das primeiras letras de certas palavras. O filósofo confessou ingenuamente que isto o ultrapassava. -Se, através destas letras, disse Esopo, eu o fizer descobrir um tesouro? Que recompensa terei? Xanto prometeu a liberdade e metade do tesouro. -Elas dizem, continuou Esopo, que a quatro passos desta coluna encontraremos um. De fato, depois de cavarem um pouco o encontraram. O filósofo foi intimado a cumprir sua palavra; mas sempre recuava. -Que os deuses me guardem! Não posso te libertar, disse a Esopo, antes que me desvendes o mistério de tais letras. -Aqui gravaram, prosseguiu Esopo, as primeiras letras das seguintes palavras: Apobas, Bêmata, etc., ou seja: Se recuares e cavares, encontrarás um tesouro. -Já que és tão sutil, retomou Xanto, eu cometeria um grande erro me desfazendo de ti; não espera, pois que eu te liberte. Te denunciarei então ao rei Dênis, replicou Esopo, porque o tesouro pertence a ele; as mesmas letras formam outras palavras com o significado que acabo de te dar. O filósofo, intimidado, disse ao Frígio que pegasse sua parte e que não dissesse uma palavra. Esopo declarou que não lhe devia nenhuma obrigação - as letras haviam sido escolhidas de tal maneira que continham um triplo sentido e significavam ainda: -Partindo, repartirás o tesouro que encontraste. Assim que retornaram, Xanto ordenou que trancassem o Frígio e que lhe pusessem os ferros nos pés, por medo que fosse tornar pública a aventura. -Então, é assim que os filósofos cumprem suas promessas? inquiriu Esopo. Faça o que o senhor quiser: quer queira, quer não, terá que me libertar.
A previsão se mostrou verdadeira. Aconteceu um prodígio que deixou os Samienses bem aflitos. Uma águia sequestrou o anel público (tratava-se provavelmente do balde onde se colocavam as deliberações do conselho) e o deixou cair perto de um escravo. O filósofo foi consultado e filósofo que era, entre os primeiros da república, pediu tempo e recorreu ao seu oráculo habitual: Esopo. Este o aconselhou a fazer a coisa em público, porque se resolvesse o problema, a honra caberia ao mestre; se não, o escravo seria vaiado. Xanto aprovou a idéia e o fez subir na tribuna. Assim que apareceu, a risada foi geral: ninguém imaginava que algo de razoável pudesse sair daquela figura; Esopo ponderou que não deviam considerar a forma do vaso, mas o licor nele contido. Os Samienses gritaram que lhes dissesse, pois, sem medo, o que pensava do presságio. Esopo se desculpou alegando que não ousava fazê-lo. -A Fortuna [ 27 ], dizia, havia colocado entre ele e seu mestre uma questão de honra: se o escravo interpretasse mal, apanharia; se interpretasse melhor que o mestre, apanharia ainda mais. Imediatamente pressionaram Xanto para que o libertasse. O filósofo resistiu. Finalmente, o preboste [ 28 ] da cidade o ameaçou fazendo valer suas prerrogativas de magistrado: o filósofo foi obrigado a se render. Isto resolvido, Esopo disse que os Samienses estavam ameaçados: a águia carregando o balde significava que um poderoso rei queria subjugá-los.
Pouco tempo depois, Crésus, rei dos Lídios, intimou a população de Samos a lhe pagar tributos. Caso contrário, os forçaria pelas armas. A maioria foi de opinião que deveriam obedecer. Esopo lhes disse que a Fortuna [ 29 ] apresentava dois caminhos aos homens: um de liberdade, difícil e espinhoso no começo, mas agradável mais adiante; o outro, a escravidão - mais cômodo no início, mais trabalhoso na sequência. O conselho era bastante claro: os Samienses deveriam lutar para defender sua liberdade. Mandaram de volta o embaixador de Crésus com certa satisfação.
Crésus prepara o ataque. O embaixador lhe disse que enquanto eles tivessem Esopo, o rei teria dificuldades para submetê-los às suas vontades, por causa da confiança que depositavam no bom senso do personagem. Crésus enviou-o novamente com a missão de perguntar-lhes se aceitariam entregar Esopo em troca da promessa de terem a liberdade preservada. Os principais da cidade acharam as condições vantajosas, uma vez que negociavam a paz às custas de Esopo. O Frígio os fez mudar de atitude ao contar-lhes que os lobos e as ovelhas haviam feito um acordo de paz; elas entregaram os cães como garantia. Sem defensores, os lobos as estrangularam com mais facilidade ainda que de hábito. O apólogo fez efeito: os Samienses deliberaram o contrário do que haviam decidido anteriormente. Esopo quis, no entanto, ficar com Crésus alegando que assim seria mais útil, ao invés de permanecer em Samos.
Quando Crésus o viu se surpreendeu que uma criatura tão mirrada pudesse ter sido um obstáculo tão grande para ele: -Então é este o que orquestrou a oposição às minhas vontades! exclamou. Esopo se prostrou a seus pés. -O que foi que eu fiz? Ele diz ao homem. Não devoro o teu trigo; não causo nenhum prejuízo; só encontrarás em mim a voz da qual me utilizo inocentemente. Grande rei eu pareço com esta cigarra: só possuo a voz e não me servi dela para ofendê-lo. Crésus, tocado de admiração e compaixão, não apenas o perdoou, mas também deixou em paz os Samienses em consideração a ele.
Naquele tempo, o Frígio compôs suas fábulas, oferecendo-as ao rei da Lídia. Foi então enviado de volta aos Samienses que o receberam com grandes honras. Mas, o desejo de viajar tomou conta de Esopo. Queria andar pelo mundo, se nutrindo de coisas diversas na companhia daqueles que chamavam filósofos. Enfim, passou a desfrutar de grande crédito junto a Libério, rei da Babilônia. Os reis de então enviavam uns aos outros todos os tipos de enigmas que requeriam solução, com a condição de pagarem uma espécie de tributo, conforme a resposta - boa ou má - às questões propostas; Libério, assistido por Esopo, levava vantagem e se tornava célebre pelas respostas ou pelas proposições.
Mas eis que nosso Frígio se casa, e, não podendo ter filhos, adotou um menino de origem nobre chamado Ennus. Quando cresceu, o rapaz o retribuiu com ingratidão e se tornou tão ruim a ponto de desonrar seu benfeitor. Esopo, tomando conhecimento do fato, o expulsou. O outro, para se vingar, falsificou umas cartas nas quais deixava transparecer que Esopo mantinha contactos com reis inimigos de Libério que acreditou na farsa por causa do carimbo oficial e da assinatura. Ordenou a um de seus oficiais chamado Hermipo que, sem procurar por mais provas, desse fim imediatamente ao traidor Esopo. O tal Hermipo, sendo amigo do Frígio, lhe salvou a vida, e, contrariando todo o mundo, o alimentou por muito tempo numa sepultura. Nectanebo, rei do Egito, persuadido da morte de Esopo, pensou fazer de Libério seu tributário. Ousou provocá-lo e o desafiou dizendo que lhe mandassem arquitetos capazes de construir uma torre no ar e um homem em condições de responder a todos os tipos de questões. Libério leu as cartas e mostrou-as aos mais experimentados do Estado; mas todos ficaram devendo resposta... Então Libério se lembrou de Esopo e se lamentou. Quando Hermipo lhe disse que não estava morto, ele ordenou que o trouxessem. O Frígio foi muito bem recebido, se explicou e perdoou Ennus. Quanto à carta do rei do Egito, achou graça e mandou avisar que na primavera enviaria os arquitetos e o responsor [ 30 ]. Libério devolveu a Esopo todos os seus bens e lhe entregou Ennus para que fizesse com ele o que bem entendesse. Esopo o recebeu como filho e por único castigo recomendou: honrar os deuses e seu príncipe; fazer-se terrível com os inimigos, fácil e cômodo para com os outros; tratar bem sua mulher sem, no entanto, confiar-lhe seu segredo; falar pouco e expulsar da sua casa todos os intrometidos; não se deixar abater pela infelicidade, pensar sempre no dia de amanhã porque é melhor enriquecer os inimigos com sua morte do que causar transtornos a um amigo durante a vida; sobretudo, não invejar nem a felicidade, nem a virtude de outrem, porque é fazer mal a si próprio. Ennus, atingido pelos conselhos e bondade de Esopo como se fossem um dardo que lhe houvesse penetrado o coração, morreu pouco tempo depois.
Retornando ao desafio de Nectanebo, Esopo escolheu filhotes de águia e os ensinou (coisa difícil de acreditar). Instruiu-os a levar, cada um em seu vôo, uma cesta com crianças de tenra idade. Chegada a primavera, dirigiu-se ao Egito com toda a parafernália, enchendo de expectativas e espanto os povos dos lugares por onde passava. Nectanebo, que encorajado pela notícia da sua morte, enviara o enigma, ficou extremamente surpreso com a sua chegada. Não esperava por isso e jamais teria desafiado Libério se soubesse que Esopo estava vivo. Perguntou-lhe se havia trazido os arquitetos e o responsor. Esopo disse que o responsor era ele mesmo e que os arquitetos ele os mostraria quando estivesse no local. Partiram para o campo e uma vez lá, as águias levaram os cestos com as crianças que, aos berros, pediam que lhes trouxessem argamassa, pedras e madeira. -Trouxe-vos os operários, diz Esopo