À condenada
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À condenada - Salvador Araújo
SALVADOR ARAÚJO
A
CONDENADA
SÃO PAULO-SP
2020
Copyright © 2020 por Salvador Araújo
À condenada
Salvador Araújo
2 a Edição
Capa;
Editora Bookprint
Impressão e encadernação:
Renovagraf
Revisão geral:
Responsabilidade do autor
ISBN - 978-65-902088-4-2
CIP - (Cataloguing in Publication) - Brasil - Catalogação na Publicação
imagemAraújo, Salvador
À condenada / Salvador Araújo. 2 ed. São Paulo, Renovagraf, 2020.
236 pp.; 2lcm (broch.);
ISBN 978-65-902088-4-2
A658a
CDD B869.3
imagemíndice para catálogo sistemático 1. Ficção Brasileira I. Título
Renovagraf
Rua do Orfanato, 1205 - Vila Prudente - São Paulo - S.P - CEP: 03131-010 São Paulo: (11) 2667-0011 / 2667- 6086
E-mail: contato(Srenovagraf.com.br
imagemEditora Bookprint
www.ebookprint.com.br
E-mail: contato
imagemÀ escritora
Ana Paula Cândido
Ao Tem. Cel.
Antônio Rodrigues Rocha
Ao Defensor Público
Dr. Dimas Tameirão dos Santos
A Edna Gomes de Oliveira
A Jhenifer Grazielle Dias Silva
A Tatiane Xismene da Silva
A José Araújo dos Santos (Té) e sua esposa Rosemeire Rios Gonçalves dos Santos (Lu)
DESEJOS
Ah, se eu pudesse matar meus desejos, Por sobre o seu corpo esguio e marrom! Perderia a vida em troca de beijos, A urdir segredos com o seu batom.
Quem dera o mundo fosse, assim, tão bom! Ao longe, o mantra de alguns realejos; Num canto suave, à luz de neon, Seria o gemer dos nossos solfejos.
Já inebriado por sua ternura,
Dormiria ao som do seu acalanto, A sonhar em paz, surfando seu pranto
Revolto em ondas de felicidade. Vivendo à custa de sua doçura, É que eu seria feliz de verdade!
Mas é impossível tamanha alegria Você não existe, é só fantasia!
Salvador Araújo
BH, abril/2012
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CAPÍTULO I O MEDO
As gravações terminaram por volta das três da tarde e ela estava sentada à brisa que vinha do lado do mar. Palitava maquinalmente os alvos dentes, depois de lhes tirar, com o fio, os resíduos do almoço pobre do Pai Julião
. Naquele momento, não era mais a Mercedes, nem a Branca, nem a Glorinha do Chá: era ela mesma, sem a máscara, sem a maquiagem que esconde a vida do ator.
O apartamento que tanto a havia esperado era, agora, toda uma vitrola com Cazuza e, na pia, um prato e um copo sujos, desde a véspera, esperavam por suas mãos.
Bom era ter contratado Maria Teresa; senão, aquilo de casa seria um lixo, um amontoado de tapetes revirados, móveis empoeirados e Scripts por todo lado (ela possuía desde o primeiro).
Mas a boa Tetê estava em férias e, por isso, o som era baixo, a música era penetrante e seus olhos vacilavam naquele silêncio.
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Os pais estavam longe, nas alturas de Recife. Que bom seria ouvir, pelo menos, os ralhos da irmã! A mãe escrevia sempre, um dos irmãos vinha vê-la de vez em quando. Só o pai não movia um dedo para vir a seu encontro ou, pelo menos, para saber como estava ela.
Dezenove anos é idade pequena para tantas moças. Para ela, esse tempo já era demais: uma marca significante, ainda que bem longe de ser um limite. O cigarro do dia anterior havia queimado quase sozinho no cinzeiro dourado do último Natal, um Natal sem muita festa, como devia ter sido o de tantas outras que vieram de um Natal.
O cigarro lembrou-lhe o cinzeiro; o cinzeiro trouxe-lhe o Natal; o Natal, mais um ano. Tudo isso vinha-lhe à Júlio César: corrido, azougado, sem tempo. E foi seu último cigarro! Quem quer ser um grande artista não pode esquecer a saúde! Todo seu sacrifício pode perder-se ao vento; e, de toda sua esperança, pode vingar apenas uma grande e dolorosa saudade!
Pai Julião filosofou um dia.
O banquinho que sustentava seu corpo nada dizia, só Cazuza, de teimoso, poetizava calmo lá da sala. Então ela alongou seus olhos num vazio imenso, até pintar de verde a Baía de Guanabara.
Maldita Aids! Agora, onde andam tantos dos seus! E a pensar que esteve tão perto do vírus! A salvação fora aquele engarrafamento pela morte do operário. Provavelmente, ela não ia resistir. Aquele dia claro prenunciava a grande noite que toda mulher virgem espera.
Meu Deus, meu Deus, o que se pode fazer para fugir desse mal? O meio artístico é quase um grupo de risco e ela não quer ficar só, pela vida inteira.
A mãe já havia dito que mulher que não tem filhos é quase uma excomungada, uma incapaz que renega o
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sexo a que pertence, uma rama seca que se esteriliza e que não dá continuidade à espécie. A não querer gerar, melhor é nascer já estéril.
A saída seria o casamento. Mas casar agora lhe roubaria o grande sonho de ser uma atriz famosa, importante para o teatro, para a televisão e para o cinema. Queria ser uma estrela, uma mega-star. Bonita ela era. Sabia disso. Tinha quase um corpo à Lois Lane, apenas era loira, tinha olhos verdes e ainda não possuía seu Super-Man.
Na verdade, ela corria perigo mesmo. O mundo artístico, cheio de galãs, fascinava-a. E não eram poucas as cantadas que levava para casa. Seu organismo resistia bravamente, mas não sabia até quando poderia aguentar. Já uns programas rolaram em sua vida, coisas de que não se arrependia. Algo que nunca se repete, para não destruir a expectativa de uma primeira vez.
Mas aquela pernambucana, ainda tímida, já possuía muitas coisas por lembrar. Até mesmo nos seus tempos de teatro em praça pública, tempo em que o artista quase paga para que o povo assista a ele, ela já curtia grandes embalos. A mãe sabia que ela tinha juízo e até confiava nela. Mas o pai não: nordestino por natureza, desconfiado e machista, era um cerne em suas resoluções. E a ordem era não mexer com aquelas asneiras de mulheres sem vergonha
. Aquele machão esbravejava todos os dias nos ouvidos da filha que mulher tinha que saber duas coisas: cozinhar e parir
.
O que ela fora de modelo em Pernambuco teve de ser em Olinda, pois parecia que Recife inteira cochichava aos ouvidos do pai, toda vez que ela ia fazer uma apresentação. Muitas foram as suas decepções. Houve algumas vezes em que o velho até a arrancou do palco aos empurrões.
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Já um bom tempo havia passado desde sua chegada do Phoenix, onde fora receber novo papel. Aquele êxtase já estava além dos quarenta minutos. E ela continuava numa espécie de mundo só seu. Olhava o chão, mas o que via não era o chão: era o vazio que sua vida tinha sido até ali. Voltar não, nunca! Nunquinha! ! ! Não tinha sido fácil chegar àquele lugar e não era sempre que a sorte ajudava. Difícil era encontrar um padrinho Otacílio que desse à afilhada, como presente de aniversário, uma viagem ao Rio. E nem todo afilhado teria a coragem de se perder em Guadalupe para, só dois dias mais tarde, telefonar avisando aos pais que estava bem e que não ia voltar.
Sua vontade não tinha limite. Seu segundo grau tinha sido feito quase contra a vontade do pai. Homem mulherengo pensa que toda mulher bonita é burra. Tinha era que ficar em casa, ajudando a mãe na cozinha!
Mas toda mãe de verdade se abre com seus filhos, principalmente com suas filhas. E ela teve uma amiga, uma santa protetora em quem podia apoiar-se, um abrigo seguro para guardar seus sonhos. Sua sorte foi ter nascido daquela mãe, pois não era fácil para uma nordestina quase sem letras antever o sucesso da filha e por ela se entregar.
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CAPÍTULO II
A SALVAÇÃO
— Ai, carambas e carambolas!... Ainda nesse estado, menina?
— Estou indisposta, acho que não vou!
— Não estrague seu reveillon, a elite artística toda vai estar lá: pode ser seu trampolim.
— Arranjarei outro, estou cansada. Além do mais, isso já não são horas para quem ainda nem sabe o que vestir.
— O Bateau Mouche já está ancorado há meia hora.
— E agora, que horas são?
— Dez e quinze, vá-se vestir.
— Não. Meu reveillon será aqui, amiga.
— Você já sabe quem está indo?... Não interessa saber?... Pode ser decisivo hoje, hein?
— Ele deve entender que São Paulo não fica aqui e que as gravações foram até além do previsto. Quando cheguei, fui ao teatro e o vi. Ele reconheceu meu estado. Se quiser, há de me perdoar.
— Com mil carambolas! Agora estou convencida de que realmente você não vai mesmo!
— Sim, não vou! Isso não é uma novela, onde a gente viaja sem sair do lugar: basta trocar de cenário.
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Vou aproveitar esse tempo para repensar minha vida, quero um 89 diferente. Preciso me analisar, tomar algumas decisões...
— Quando cheguei e toquei a campainha tantas vezes e você não foi atender, até me assustei, pois sabia que você estava em casa.
— Assim que cheguei aqui, sentei-me neste banquinho e me entreguei a um monte de pensamentos.
— Bons ou ruins?
— Variados. Alguns, quase lamentações... Coisas da vida.
— Você está muito nova para isso. Lembre-se de que sou sua mãe: posso aconselhar.
Houve sorrisos; da atriz, à parte, mofinos e retrancados, reprimidos por este desabafo:
— Do que eu precisava mesmo era de um pai... Sempre precisei! De mãe, não: tenho uma santa por mim; uma espécie de anjo da guarda! E ainda tenho você.
— Mas... e o Julião?
— Ah, aquele é bom demais para ser verdade. Infelizmente, é só na televisão.
— Você já sofreu muito, não é?
-Se já!
— Não fique revoltada por isso. Afinal de contas, você tem se desenvolvido muito nos seus trabalhos. Todos acreditam em você e gostam do seu jeito. Além do mais, você é muito bonita!
Novamente o dlim dlão
. Era uma outra atriz:
— O que é isso? Vocês ainda estão nessas roupas? — Ela está empacada.
— Por que você não vai? Garanto-lhe que vai ser um encontro inusitado! Algo difícil de se repetir.
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— E uma resolução que tomei na vinda de São Paulo. Faço questão de ficar sozinha hoje, minhas amigas. Podem ir despreocupadas, eu vou torcer para que a noite seja realmente muito boa. Nem é preciso teimar mais: eu não vou mesmo! E vejam — olhou o relógio da amiga — ainda que eu resolvesse, não daria mais tempo: nem banho eu tomei. Divirtam-se!
O papo não demorou muito. Estava decidido: o Bateau Mouche não havia de esperar. E, por isso, as atrizes se separaram com beijinhos e abraços de felicidades e de desejos de um ano bom, melhor que todos os já vividos. Então, com cuidado, a atriz roçou, nas faces maquiladas das amigas, aqueles lábios tristes, camuflados pelos restos de um beijo artístico de algumas horas atrás.
Com a saída das duas, o ambiente ganhou a inércia anterior: tudo estava calmo ali, até Cazuza havia se calado. Lá fora, pouco tempo separava o Rio de Janeiro de mais um Ano Novo. Um ano de festas e de esperançosas realizações.
Nos outros prédios e nas altas torres, lâmpadas coloridas desenhavam figuras e palavras festivas. E a Baía de Guanabara espalhava-se, feito um leque, como a querer envolver todo o Rio com seus mistérios e encantamentos. Só ela já sabia de tudo que estava para acontecer.
Então, a linda atriz desvencilhou-se daqueles aziagos pensamentos, usou-se de Chico Buarque para tomar um banho e deitar-se nua, nua, completamente nua, no tapete grã-fino da sala. Não sabia, agora, se fizera a melhor escolha.
Chico já estava no final do lado B
e a moça fechava os olhos para defender aqueles seus dezenove anos de virgindade: uma virgindade tão desacreditada por tantos de sua primeira sociedade; inclusive, pelo
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próprio pai. Era provável que, naquela hora, por intermédio de mais um capítulo, muitos dos seus primeiros amigos, ao invés de se orgulharem por tê-la conhecido, diziam despeitados:
— Eis aí uma perdida!
Outros, com olhares de reprovação e inveja:
— Quem vivia por aqui, sem saber nem mesmo a letra O
, agora, anda pelas telas, tirando onda!...
Mas, certamente, havia, pelo menos, um pequeno número de boas vozes para acompanhar as palavras doces de sua mãe, num suspiro de alívio:
— Ela é mesmo uma grande batalhadora! Merece o melhor da vida. Deus a guie!
A tradicional queima de fogos não tardaria a acontecer e, por certo, nenhuma atriz de sua idade queria estar longe naquela hora. Do outro lado daquela imensa Baía de Guanabara, estava se reunindo um elenco dos mais completos de todo o país. Ali, estaria sua primeira segunda mãe. E, quem sabe, já se fizesse presente o arrastar macio do Seu Julião
: seu primeiro outro pai.
Mas, agora, o verde daqueles olhos estava guardado por duas pálpebras cansadas. Tinha o peso de uma pequenina ruga que veio pousar em sua testa. Um sonho lhe falava de namorados, de casamentos e de delícias sexuais. Mas o final guardava o assombro da pavorosa Aids. Sonhos desse tipo andam por aí, tirando o sono de muitos artistas, transformando tantos belos futuros em monótonos e tenebrosos pesadelos.
Trimmmmm!
A campainha do telefone estava alta. Como, naquele dia, não se lembrou de baixá-la!
Levantou-se, conservando ainda aquela bela nudez, esfregou os olhos, quase enjoada com o aparelho, que já gritava pela quarta ou quinta vez:
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Trimmmmm!
— Alô! — era uma voz de sono, perdida no som de um Caetano.
— Alô, meu bem! Parece até que todos estão esperando por você: o barco está quinze minutos atrasado. Arrume e venha. Você não está tão longe. Dá tempo.
— Onde vocês estão?
— Aqui, na Praia de Botafogo.
— Não, não dá!
— Oh! Vou desligar, parece que vamos partir viagem agora. De qualquer forma, foi bom ouvir sua voz. Tchau!...
— Tchau! Juízo, hein?
Aquele aviso desinteresseiro só teve uma resposta breve, acompanhada de um toque brusco de orelhão:
— Tá! — Plaft! Point... point... point...
A água gelada foi a mais rica bebida, ela não a trocaria por nada! Nem mesmo pelo champanhe estourado com farra, na proa do Bateau Mouche, ao som de palavras quase obscenas. Tais palavras apostavam até que hora a embarcação ia aguentar.
O efeito da água foi quase imediato. O sono fugiu-lhe por um momento e ela trocou Caetano pelos preparativos da São Silvestre
. Os raios coloridos que evadiam da tela vinham, loucos, faiscarem naquele corpo bronzeado, vestido de nada, que os acolhia em suas dobras escuras, divinamente sensuais.
Ainda não deram onze horas, quando o sono voltou-lhe. Agora, era uma madorna que vinha misturar-se à Retrospectiva
, como um sonho comentado. Dir-me-ei: a realidade vista de um sonho. Mas não demorou muito.
Trimmmmm!
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Que droga! Havia esquecido de novo de baixar a campainha do telefone. Ia desligá-lo!
Esperou ansiosa que o aparelho desistisse e só o atendeu quando viu malograda aquela esperança:
— Alô! — uma voz perdida em cabelos, espremida entre dois lábios sem batom.
— Acorda, preguiçosa! Você ainda tem chance de vir com a gente.
— Você ainda! O que aconteceu? O barco já não havia partido?
— Dois sargentos da Marinha nos barraram e mandaram o barco voltar a Botafogo. Estão alegando excesso de gente e falta de condições para navegar águas fortes.
— Se eu fosse vocês, abandonaria esse passeio. Tudo isso, só para assistir à queima de fogos!
— Não! E o nosso dinheiro? Não se ganham cento e quarenta mangos
num piscar de olhos. Além do mais, quem disse que nosso papo é só queima de fogos? Vão rolar muitas coisas mais...
— Mesmo sem mim?
— Você não sabe como eu gostaria de tê-la aqui!
— Então eu vou!
— Agora não dá mais tempo... Obá! Parece que deram um jeitinho
... Eles liberaram o barco!... Nossa! Tá subindo mais gente!...
— Você sabe que eu não iria nem mesmo se o barco viesse me buscar aqui.
— É, já pensou: o Bateau Mouche deslizando pelas ruas para ir buscar você?