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Topeka School
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E-book351 páginas6 horas

Topeka School

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Sobre este e-book

Darren Eberheart arremessa a bola branca no meio da festinha de sua turma na Topeka High School. A bola, girando no ar como a lua, parece que esteve lá a vida toda. O ano é 1997, e o gesto de violência, aparentemente gratuito, desdobra – em diferentes esferas, da família, da ideologia e da linguagem – todo um passado e todo um futuro urdidos naquele Meio-Oeste estadunidense.
Com necessidades especiais, Darren está no último ano do colegial e é colega de Adam Gordon, que faz de tudo para integrá-lo àquela pequena comunidade escolar, mas não sem alguns resultados desastrosos. Além de poeta aspirante, Adam é um destacado orador nos torneios de debates da escola, e se prepara para vencer um campeonato nacional antes de seguir para a faculdade. É, definitivamente, um dos garotos populares de Topeka, ainda que necessite de muitas idas à academia, sessões de biofeedback e suplementos de creatina para não expor suas fraquezas em um ambiente de masculinidade tóxica.
Em casa, porém, as coisas são um pouco mais complicadas para Adam. Seus pais são psicanalistas da Fundação, um prestigioso instituto psiquiátrico em Topeka que atrai pacientes de todo o mundo. Jane, a mãe, que sofrera abuso sexual quando criança, torna-se uma famosa escritora feminista. Jonathan, o pai, atende a adolescentes, inclusive a Darren, sem que Adam saiba disso – embora vá descobrir outras coisas impactantes sobre o pai.
Narrado em diferentes pontos de vista e em tempos que se entrecruzam, Topeka School é um drama familiar sofisticado que reflete sobre padrões que se repetem ou se rompem de geração para geração. É também uma narrativa política, que entrelaça as tecnologias emergentes nos anos 1990 e os campeonatos de debates nacionais ao que eclodiria no início do século XXI: o colapso do discurso público e o advento da pós-verdade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2020
ISBN9786555950014
Topeka School
Autor

Ben Lerner

Ben Lerner was born in Topeka, Kansas, in 1979. He has received fellowships from the Fulbright, Guggenheim, and MacArthur Foundations, and is the author of two internationally acclaimed novels, Leaving the Atocha Station and 10:04. He has published three poetry collections: The Lichtenberg Figures, Angle of Yaw, and Mean Free Path. Lerner is a professor of English at Brooklyn College.

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    Topeka School - Ben Lerner

    Para meu irmão, Matt

    SUMÁRIO

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    [Darren imaginou-se quebrando...]

    O Spread (Adam)

    [Paus e pedras podem quebrar meus ossos...]

    Speech Shadowing (Jonathan)

    [As coisas com que Darren sonhava...]

    Os Homens (Jane)

    [Darren ajudava o vizinho...]

    O Código (Adam)

    [O gelo endurecera...]

    A New York School (Jonathan)

    [Do teto...]

    Efeitos Paradoxais (Jane)

    [Darren pensa nisso...]

    Olde English (Adam)

    Apercepção Temática (Adam)

    Agradecimentos

    Darren imaginou-se quebrando o espelho com sua cadeira de metal. Quanto à TV, ele sabia que podia ter gente atrás dela no escuro, e que essas pessoas podiam vê-lo. Acreditava sentir a pressão dos olhares fixos em seu rosto. Em câmera lenta, uma chuva de estilhaços, as presenças reveladas. Ele pausou, retrocedeu e assistiu à cena novamente.

    O homem de bigode preto ficava perguntando se ele queria algo para beber e, por fim, Darren disse água quente. O homem saiu para pegar a água, e o outro homem, que não tinha bigode, perguntou a Darren se ele estava bem. Sinta-se à vontade para esticar as pernas.

    Darren ficou imóvel. O homem de bigode voltou com um copo de papel pardo fumegando, um punhado de canudos vermelhos e sachês: Nescafé, Lipton, Sweet’n Low. Escolha o seu veneno, ele disse, mas Darren sabia que era brincadeira; não seria envenenado. Havia um cartaz na parede: CONHEÇA OS SEUS DIREITOS, e embaixo algo com letras miúdas que ele não conseguiu ler. Fora isso, não havia nada para ficar olhando enquanto o homem sem bigode falava. A iluminação da sala parecia a da escola. Intensa e dolorosa nas raras ocasiões em que ele era chamado. (Planeta Terra chamando Darren, a voz da sra. Greiner. Depois, a familiar gargalhada geral de seus colegas.)

    Ele abaixou os olhos e viu iniciais e estrelas e códigos arranhados na superfície de madeira folheada. Acompanhou-os com os dedos, mantendo os pulsos juntos, como se ainda estivessem algemados. Quando um dos homens pediu que Darren olhasse para ele, Darren olhou. Primeiro nos olhos dele (azuis), depois nos lábios. Que o instruíram a repetir a história. Então Darren lhes contou novamente como havia arremessado a bola branca na festa, mas o outro homem, ainda que gentilmente, o interrompeu: Darren, nós precisamos que você comece do princípio.

    Embora queimasse um pouco a boca, ele bebeu a água em dois goles. Pessoas reunidas atrás do espelho em sua mente: sua mãe, o pai, o dr. Jonathan, Mandy. O que Darren não conseguia fazer com que entendessem era que ele nunca a teria jogado, a não ser que sempre tivesse feito isso. Muito antes de o calouro xingá-lo dos nomes costumeiros, antes de ele tirar a bola da caçapa do canto, sentir seu peso, o frio e a suavidade da resina, antes de arremessá-la na escuridão superlotada — a bola estava pendurada no ar, girando lentamente. Como a lua, esteve lá a vida toda.

    O SPREAD

    (Adam)

    Eles estavam no barco do padrasto dela no meio de um lago artificial sem mais ninguém. Navegavam sem rumo e cercados por casas grandes iguais. Era início de outono, e eles bebiam Southern Comfort da garrafa. Adam estava na proa do barco observando uma luz azul intermitente do outro lado do lago que, provavelmente, era uma televisão vista através de uma janela ou porta de vidro. Ouviu o ruído da pedra do isqueiro dela sendo riscada, depois viu a fumaça passar flutuando sobre sua cabeça e se dissolver. Ele já estava falando há um bom tempo.

    Quando virou-se para ver o efeito de suas palavras, ela não estava mais ali, jeans e suéter em uma pequena pilha com o cachimbo e o isqueiro.

    Subitamente consciente do silêncio que o cercava, ele chamou-a pelo nome e pôs a mão na água, que estava fria. Sem pensar, pegou o suéter branco dela e sentiu o cheiro da fumaça da fogueira que tinham feito um pouco antes naquela noite no Clinton Lake, e da lavanda sintética de que ele sabia ser o seu gel de banho. Ele disse o nome dela de novo, desta vez mais alto, depois olhou em volta. Alguns pássaros voavam rentes à superfície imperturbada do lago; não, eram morcegos. Em que momento ela mergulhou ou saiu do barco e como teria feito isso sem deixar nenhum respingo, e se tivesse se afogado? Então ele gritou; um cachorro respondeu à distância. De tanto girar a cabeça para procurá-la, ficou tonto e se sentou. Depois levantou-se novamente e olhou por toda a borda do barco; talvez ela estivesse ali do lado, se contendo para não soltar uma gargalhada, mas não estava.

    Ele teria que conduzir o barco de volta ao píer, onde ela tinha que estar esperando. (Havia um píer de atracação para cada duas ou três subdivisões.) Pensou ter visto sinais luminosos de vaga-lumes na costa, mas não era a época do ano para isso. Sentiu uma onda de raiva subindo e acolheu-a, querendo que ela subjugasse o seu pânico. Sua esperança era de que Amber tivesse mergulhado na água antes de sua desconexa confissão de sentimentos. Ele tinha dito que eles continuariam juntos quando ele deixasse Topeka para estudar, mas agora sabia que isso não ia acontecer; estava ansioso para demonstrar sua indiferença assim que a encontrasse segura em terra.

    Veja o motor de popa brilhando ao luar. Para qualquer um de seus amigos, comandar um barco seria fácil; todos eles, até mesmo os outros garotos da Fundação, exibiam uma competência mecânica básica do Meio-Oeste, sabiam trocar o óleo ou limpar uma arma, ao passo que ele não conseguia nem dirigir com câmbio manual. Adam localizou o que presumiu ser uma corda de partida, puxou, nada aconteceu; empurrou o que devia ser o acelerador para outra posição e tentou novamente; nada. Estava começando a se perguntar se teria que nadar — não lembrava se sabia direito — quando viu a chave na ignição; ele a girou e o motor deu a partida.

    Dirigiu de volta à costa o mais lentamente possível. No momento da aproximação, desligou o motor, mas não conseguiu posicionar o barco em paralelo com o píer; algo estalou alto quando a fibra de vidro atingiu a madeira, o que silenciou as rãs próximas; nada parecia danificado, mas ele na verdade nem parou para verificar. Apressou-se a lançar as cordas de atracação em torno dos grampos pregados no píer, improvisou rapidamente alguns nós e depois saltou para fora do barco; rezou para que ninguém o estivesse observando de uma janela. Sem pegar as chaves ou as roupas dela, o cachimbo ou a garrafa, ele subiu correndo pela grama molhada em direção à casa de Amber; se o barco voltasse para a água, seria culpa dela.

    As grandes portas deslizantes de vidro que davam para o lago ficavam sempre destrancadas; ele abriu uma silenciosamente e entrou. Só agora sentia o suor frio. Pôde distinguir a figura do irmão dela no sofá, travesseiro na cabeça, dormindo no brilho do telão da TV; o noticiário estava no mudo. O restante da sala estava escuro. Pensou em acordá-lo, mas em vez disso tirou suas botas Timberland, que supôs estarem enlameadas, e esgueirou-se pela sala até a escada de carpete branco; subiu lentamente.

    Já havia passado duas ou três noites naquela casa, quando ela argumentou com os pais que ele bebera demais; eles pensaram que ele tinha dormido no quarto de hóspedes; pensaram, corretamente, que ele tinha ligado para casa. Mas a perspectiva de topar com alguém agora — antes mesmo de se certificar de que ela estava ali — o aterrorizava. A mãe dela tomava comprimidos para dormir, ele havia visto o enorme frasco de tranquilizantes, sabia que ela os tomava com vinho todas as noites; o padrasto tinha ido dormir depois de uma briga numa festa; eles não vão acordar nunca, ele se tranquilizou, apenas não esbarre em nada; ficou feliz por estar de meias.

    Chegando no andar de cima, examinou a ampla sala de estar às escuras antes de subir o próximo lance de escada até os quartos. Ele quase conseguia discernir a grande cena de caça que decorava a parede oposta: cachorros capturando presas para os caçadores num bosque ao lado de um lago ao pôr do sol. Viu a luz vermelha piscando no painel do sistema de alarme que felizmente eles nunca armavam. E a luzinha que contornava as bordas prateadas das fotos emolduradas da família no console da lareira: adolescentes de suéteres posando em um gramado coberto de folhas, o irmão dela segurando uma bola de futebol. Alguma coisa estalou na imensa cozinha e depois parou. Ele subiu a escada.

    A primeira porta aberta à direita era o quarto dela e, sem entrar ou acender a luz, ele viu que Amber estava na cama, sob as cobertas, respirando regularmente. Seus ombros relaxaram; o alívio foi profundo, mas este alívio abriu mais espaço para a raiva, e também fez com que percebesse a sua urgência de mijar. Ele deu meia-volta e atravessou o corredor até o banheiro, fechou a porta com cuidado e, sem acender a luz, levantou o assento do vaso. Pensando melhor, decidiu baixar o assento e sentar. Um carro passou vagarosamente lá fora, os faróis iluminando o banheiro por uma veneziana aberta.

    Não era o banheiro dela. A escova de dentes elétrica, o secador de cabelo, ainda mais aqueles sabonetes — não eram os produtos de higiene pessoal que ela usava. Por um segundo, pensou, desejou desesperadamente, que pudessem pertencer à mãe dela, mas havia muitas outras discrepâncias: a porta do boxe era diferente, com vidro fosco; então ele cheirou as bolinhas de gel com essência de limão em um pote acima do vaso; flores secas estranhas pendiam de uma sacola roxa na parede. Em um único tremor retrospectivo, suas impressões sobre a casa mudaram: onde estava o piano (que ninguém tocava)? Ele vira ou não o lustre candelabro elétrico? O carpete da escada não era grosso demais, escuro demais no escuro para ser verdadeiramente branco?

    Junto com o pavor absoluto de estar na casa errada, com o reconhecimento dessas diferenças veio a sensação, por conta da uniformidade das casas, de que ele estava em todas as casas do lago ao mesmo tempo; o sublime dos projetos idênticos. Em cada casa, Amber ou alguém parecido com ela estava em sua cama, dormindo ou fingindo dormir; os guardiões estavam mais adiante no corredor, homenzarrões roncando; as caras e poses nas fotografias da família no console da lareira podem mudar, mas todos pertenceriam à mesma gramática de caras e poses; os elementos das cenas pintadas podem variar, mas não o nível de familiaridade e insipidez; se você abrisse qualquer uma das enormes geladeiras de aço inox ou inspecionasse as ilhas de falso mármore, encontraria produtos modulares combinados com outros de configurações bem pouco diferentes.

    Ele estava em todas as casas, mas, precisamente porque não estava mais ligado a um corpo distinto, também podia flutuar sobre elas; era como olhar para o trem em miniatura que Klaus, amigo de seu pai, lhe dera quando criança; ele pouco se importava com os trens, mal conseguia fazê-los correr, mas adorava o cenário, a grama verde estática espalhando-se pela maquete, os minúsculos mas imponentes pinheiros e as árvores folhosas. Quando olhava para as árvores incrivelmente detalhadas, ele ocupava dois postos de observação de uma só vez: imaginava-se sob os galhos e também os contemplava de cima; lá de baixo ele olhava para cima e via a si mesmo olhando para baixo. Então podia alternar rapidamente entre essas perspectivas, essas escalas, em um revezamento que o separava de seu corpo. Agora ele estava paralisado de medo dentro daquele banheiro específico e, ao mesmo tempo, em todos os banheiros; olhava de uma centena de janelas para o barquinho no plácido lago artificial. (Uns toques de tinta branca sobre o acrílico seco acrescentam uma sensação de luar e movimento à superfície.)

    Ele nadou de volta a si mesmo. Sentiu como se um cronômetro tivesse sido acionado em algum lugar, que ele tinha minutos, talvez apenas segundos, para fugir da casa que acidentalmente havia invadido antes que alguém descarregasse uma espingarda na sua cara ou a polícia chegasse e pudesse flagrá-lo pairando sobre o quarto de uma garota dormindo. O medo dificultava sua respiração, mas ele disse a si mesmo que apertaria o botão de retroceder e voltaria calmamente pelo caminho que fizera, sem perturbar ninguém. Foi o que fez, embora agora as pequenas diferenças tenham saltado aos seus olhos quando ele desceu: havia um grande sofá em L que não tinha visto antes; ele podia notar que a mesinha de centro era de vidro e não de madeira escura como a dela. No final da escada, hesitou: uma porta que dava para a rua estava ali, acenando; ele estaria livre, mas suas botas estavam lá embaixo, onde as deixara. Para recuperá-las, teria de passar pelo estranho que dormia.

    Apesar do medo de ser descoberto a qualquer momento, decidiu que deveria ir pegar suas botas, não tanto por serem provas que poderiam apontar o culpado, mas porque sentia que estaria se arriscando a ser ridicularizado e humilhado se retornasse a ela descalço. Podia intuir o desenvolvimento da história, podia sentir que se estenderia — primeiro, como ela o deixou para trás sozinho no barco onde ele só fez besteira, e segundo, como pôde perder a porra das botas no meio de toda essa desgraça. Ei, Gordon, você amarrou bem os sapatos? Trouxe os chinelos? Espocou em sua mente uma lembrança de seu colega de escola, Sean McCabe, voltando para casa de meias, chorando, depois de roubarem o seu tênis Air Jordan. Sean ainda era ridicularizado por isso, mas agora levantava 130 quilos no supino.

    O jovem que fora o suposto irmão dela havia virado o rosto para o encosto do sofá; o travesseiro agora estava caído no chão. O cabeção de Bob Dole movia os lábios na tela enquanto ele passava furtivamente. Pegou as botas e abriu a porta de correr devagar; os rolamentos emperraram um pouco; ele teve que aplicar alguma força, o que provocou um rangido alto; o corpo no sofá se mexeu e começou a se sentar. (Em toda a Comunidade Residencial de Lake Sherwood, os corpos se mexeram e começaram a se sentar.) Sem fechar a porta, ele disparou pela grama molhada com as botas na mão — indiferente à irregularidades do terreno, a paus e pedras — a uma velocidade que talvez jamais alcançasse de novo, seu corpo agradecido por poder fazer algo de útil com a adrenalina. Ninguém gritou atrás dele; havia apenas o som dos seus passos, o sangue estrepitando em seus ouvidos; ele disparou alguns sensores de movimento e resolveu ficar mais perto da água; correu com força total por um minuto até perceber que não sabia direito para onde estava indo. Caiu de joelhos, os pulmões queimando, olhou para trás para se certificar de que não estava sendo seguido. Calçou as botas o mais rápido possível sobre as meias molhadas. Depois levantou-se e correu desembestado entre duas casas até chegar à rua.

    Seu único objetivo agora era encontrar seu Camry 89 vermelho estacionado na entrada da casa dela e ir para sua própria casa, para a cama. Ele ainda estava assustado — a qualquer momento poderia ouvir sirenes —, mas longe da água e da cena de sua invasão ridícula percebeu que o pior havia passado. Apalpou o bolso para confirmar a presença de suas chaves e caminhou a passos rápidos pelo meio-fio — não havia calçadas —, mas não correu, devia minimizar qualquer suspeita se por acaso fosse visto. Andou sem parar, envergonhado por estar a pé; não conseguia encontrar o carro dele, a casa dela; Adam provavelmente tinha levado o barco para a direção errada. Depois de procurar por quase meia hora, de contornar metade do lago, ele viu, foi uma visão arrebatadora, o seu carro onde deixara estacionado algumas horas antes. O som das portas destravando foi profundamente reconfortante. Entrou, viu o seu maço de Marlboro vermelho no banco do carona e pegou um cigarro; colocou a chave na ignição, mas não deu a partida. Abaixou a janela, acendeu o cigarro com um Bic amarelo que tirou do porta-copo e inalou o que parecia ser sua primeira respiração completa desde que descobriu que ela havia sumido do barco.

    Ligou o motor, acendeu os faróis e descobriu que ela estava de pé, o tempo todo de pé, no limiar da porta da frente, vestindo um suéter enorme. Seu cabelo louro-escuro quase na altura da cintura estava solto. Num reflexo, ele desligou o motor, apagando os faróis. Descalça, ela foi até o carro, abriu a porta do carona, pegou um cigarro do maço, acendeu e disse, como se ele estivesse alguns minutos atrasado para um compromisso, Por onde você andou?

    Ele ficou furioso. Não podia confessar que ficara apavorado, não podia dizer que fora incapaz de conduzir o barco, ou que quase confrontou a jovem errada na casa errada. Exigiu uma explicação, Porra, qual é o seu problema? Eu queria nadar, disse ela, dando de ombros e tragando o cigarro quando ele a pressionou, o cheiro do tabaco misturado com ar-condicionado. Distraidamente, ela começou a brincar com o cabelo dele.

    Meu padrasto costumava fazer discursos intermináveis no jantar. Agora ele mal fala e, de qualquer modo, nós não fazemos mais as refeições juntos. Acho que está deprimido, deveria tipo ver um terapeuta, procurar os seus pais na Fundação. É estranho vê-lo quieto porque antes nos jantares ele vinha com aquelas discussões de merda longuíssimas, falando sozinho, na verdade, porque ninguém discutia nada; ele só ficava falando na nossa direção. Fazia uma pergunta ao meu irmão de vez em quando, mas sempre era do tipo teste de conhecimentos: O que uma vez eu disse que havia dificultado a indústria aeronáutica? (Você sabe que ele enriqueceu com a invenção de outra pessoa. Uma espécie de parafuso que não pesava nada.) E meu irmão nunca precisou responder porque o meu padrasto respondia à porra das próprias perguntas. A resposta era sempre a China, basicamente. Então, teve uma noite no verão passado, quando minha mãe deixou eu tomar vinho branco escondido e meu irmão não estava em casa, que precisei ser a única ouvinte na mesa a ser convencida e aquilo realmente me deu nos nervos. Talvez tenha sido porque eu estava meio fodida da cabeça ou porque agora estou mais velha e mais consciente a respeito da minha mãe. Do que ela passou, a começar com o meu pai. Mas de qualquer maneira, eu fiz uma coisa idiota e meio incrível também. Devagarinho, comecei a me abaixar na cadeira, como se estivesse deslizando, enquanto ele comia o ravióli dele sem calar a boca. Minha mãe já estava na cozinha botando a louça na máquina; ela nunca come nada. O movimento vagaroso de descida exigiu muita força muscular no tronco todo. Aquele monte de abdominais. Muitos cristais (brincadeira). Na dança, eles sempre me dizem para visualizar um movimento enquanto o pratico e eu me imaginei como um líquido escorrendo pela cadeira. Fui descendo da cadeira até ficar debaixo da mesa e meu padrasto ainda não tinha notado nada, minha mãe estava lá, limpando, e eu estava tentando não rir.

    Ou talvez chorar?, Adam perguntou, e ela olhou para ele.

    Por esse cara ser triste pra caralho. Ou, sim, por minha mãe estar casada com ele. Porque o sujeito não percebe que a plateia foi pra casa enquanto ele continua falando sem parar. E então eu fui rastejando lentamente como uma foca pelo tapete debaixo da mesa, prendendo a respiração, até chegar na cozinha. Minha mãe tinha parado de limpar e estava do outro lado da ilha, não me viu, e aí eu me levantei silenciosamente. Ela está tomando seu vinho rosé e olhando pela janela para o lago ou para o seu próprio reflexo no vidro porque era noite. Pego a garrafa na porta da geladeira e despejo a maior parte do conteúdo num copão de plástico, me aproximo dela com o copão na mão, e ela está voltando de Marte e prestes a me dizer alguma coisa, mas eu a silencio colocando um dedo nos meus lábios e sussurro: escute. Podemos ouvir meu padrasto na sala de jantar falando com ninguém sobre Ross Perot. (Ele era obcecado por Ross Perot. Ross Perot e a China.) E minha mãe talvez não tenha entendido ainda o que estava acontecendo, então nós seguimos na ponta dos pés até a porta e ficamos olhando para a sala de jantar enquanto ele falava para o nada como uma rádio AM e o vinho estava quase saindo pelo meu nariz. Ficamos ali um tempão até ele levantar a cabeça, como se o tivéssemos flagrado se masturbando. Ele olha para a minha cadeira, depois para nós e então minha mãe e eu começamos realmente a gargalhar. Aí ele dá um sorriso escroto que é puro ódio. Tipo, como vocês se atrevem a rir de mim, suas piranhas. Mas eu lhe devolvo um sorriso de enteada e o mantenho fixo na minha expressão. Nós praticamente ficamos naquele concurso de encaradas, e a risada da minha mãe transforma-se num riso nervoso até que, por fim, o rosto dele relaxa e tudo vira uma grande piada.

    Levaria vinte anos para Adam captar o sentido da analogia entre ela escapando da cadeira e do barco. Ele fez algumas perguntas sobre o seu pai, e ela respondeu. Pensou em contar-lhe que havia entrado na casa errada — talvez pudesse extrair alguma poesia disso —, mas não disse nada, não quis arriscar. Para se proteger (de quê, ele não sabia), imaginou estar olhando em retrospecto para o presente, de uma cidade da Costa Leste vagamente imaginada, onde suas experiências em Topeka só poderiam ser contadas com grande ironia.

    Mas ele estava de volta ao seu corpo quando se despediram com um beijo, e os cabelos dela, levemente molhados, estavam em seu rosto e a língua dentro de sua boca, percorrendo dentes, tabaco, hortelã e creme dental Crest. O beijo intensificou-se e, quando ele passou as mãos sob o suéter dela, viu no escuro de suas pálpebras fechadas diminutos padrões luminosos reincidindo. Fosfenos, minúsculos Rorschachs desbotados formados pelas descargas elétricas inerentes que a retina produz enquanto descansa, uma experiência de luz na ausência de luz. Ele conhecia essas formas por conta de sua concussão quando criança e de suas enxaquecas, e, mais recentemente, por esse tipo de contato; ele as conhecia desde pequeno e tentava pegar no sono vendo os círculos cinzentos migrarem pela escuridão; se pressionasse os olhos fechados perto das têmporas, as formas se iluminariam. Ele se perguntou se esses padrões eram exclusivamente dele, sinal de alguma excepcionalidade ou dano, ou se eram universais, se todos podiam vê-los. Mas eram tão fracos e difíceis de descrever que ele nunca foi capaz de descobrir se seus pais ou amigos tinham essa mesma experiência acima do limiar da percepção; os padrões se dissipavam sob o peso da linguagem, permaneciam irredutivelmente individuais. Ele ouvia as pessoas dizendo que viam estrelas quando batiam com a cabeça, mas Adam não via estrelas; via anéis de luz vermelha ou amarela, ou formas de plumas tesseladas que começavam a tremular se ele prestasse atenção, ou espirais douradas esmaecidas que giravam pelo seu campo de visão — ou sabe-se lá como chamam o campo de visão quando os olhos estão fechados. Em vez de deslocar a mão para o interior de sua coxa, como era esperado, ele levou as duas mãos para o rosto dela; segurou sua cabeça e passou os polegares por suas pálpebras fechadas, aplicando cuidadosamente uma pressão distinta, mas intermitente; será que ela também via algumas centelhas vermelhas, uma rede de linhas desbotadas?

    Amber se afastou um pouco, sorrindo. O que você está fazendo? Ele disse a ela a palavra que aprendera com Klaus, que dizia que os fosfenos podem ser gatilhos de alucinações psicóticas. Que algumas pessoas tentaram desenhá-los e os desenhos são estranhamente parecidos com aquelas pinturas rupestres, a arte mais antiga. Ele esperava que ela gostasse da poesia que ele conseguia ver nisso, queria tanto que ela visse o que ele via, queria imaginar que via junto com ela ou da forma que ela via; os fogos de artifício mais sutis do mundo anunciando o problema de outras mentes. Logo estavam se beijando novamente, e ele não sabia se iriam trepar. Mas naquela noite na principal comunidade residencial de Topeka, convenientemente localizada perto do West Ridge Mall, ela se separou dele educada e decididamente; talvez estivesse menstruada. Talvez nem se importasse com ele. Saiu do banco do carona com um dos cigarros dele e o isqueiro; deu a volta pela frente do carro e devolveu-lhe o isqueiro pela janela. Onde está o barco? Ele disse que ficara dando umas voltas pelo lago e bebendo por um tempo, não lembrava direito onde o havia deixado; estava tenso de novo, preocupado com a possibilidade de ter de admitir seus vários vexames ao navegar, mas ela não demonstrou nenhuma preocupação com isso.

    Ganhe uma medalha para mim amanhã, ela disse, sorrindo, quando ele voltou a ligar o motor. Logo partiu rapidamente para longe das McMansões da Urish Road, o ar frio entrando pelo teto solar que ele havia aberto. Quando a Urish deu na 21st Street, ele parou num sinal vermelho e viu à sua direita o lar de idosos Rolling Hills, uma construção térrea pré-fabricada onde seu avô materno, agora não verbal, era residente, paciente e prisioneiro desde que se mudara, desde que o mudaram para lá, vindo de Phoenix dois anos antes. Sua avó, que estava em boa forma, morava na principal comunidade de vida assistida de Topeka, a alguns quilômetros ao sul. Ele jogou a guimba do cigarro pela janela, observou a brasa espalhar-se pelo asfalto negro e obrigou-se a olhar para o prédio. A iluminação da rua clareava um pouco o estacionamento quase vazio; não fosse isso, estaria escuro. Estranho pensar no velhinho encolhido dormindo lá agora. Uma rápida mas hedionda analogia entre uma cama hospitalar motorizada e um banco reclinável de motorista lhe ocorreu, depois passou. Ele pôs All Eyez on Me no toca-fitas e o som no talo, imaginando se alguém dentro do lar de idosos poderia ouvir. Daí seguiu em frente.

    Quatro horas mais tarde, o despertador o acordou. Meio dormindo ainda, ele tomou um banho e vestiu o terno preto que comprara com a mãe no West Ridge Mall. Pôs uma das duas gravatas do pai. Dirigiu por uma curta distância até a Topeka High School, parando ao lado de seus treinadores, Spears e Mulroney, que estavam dando uma olhada num mapa da Associação Automobilística Americana, a respiração deles visível à luz da rua. O primeiro tomava café de uma grande garrafa térmica; Mulroney, como sempre, bebia Coca-Cola Diet. Outros adolescentes trajando roupas formais carregavam grandes caixas de plástico da escola e as colocavam na traseira de duas vans ali perto. Ele não se ofereceu para pegar a sua própria caixa; um novato cuidaria disso. Viu sua parceira, Joanna, e cumprimentou-a com um gesto de cabeça; não eram amigos, tinham uma aliança puramente tática. Depois, dentro da van, ela quis falar de estratégias, mas ele encostou a cabeça na janela fria e ficou acompanhando o sobe e desce da fiação telefônica no escuro, e segundos depois viu-se percorrendo um condomínio de casas idênticas em seus sonhos. Despertou quando saíram da estrada para tomar um café da manhã no McDonald’s, os familiares contornos dos assentos modelados.

    Já rompia a manhã quando chegaram na Russell High School. Em geral, ele não participava de um torneio tão pequeno, mas como Russell era a cidade natal de Bob Dole, e como Bob Dole estava concorrendo à presidência, neste ano o torneio Russell Invitational atrairia as melhores equipes de todo o estado; a lógica não ficara clara para ele, mas Mulroney insistiu que participassem. De vans e ônibus similares de outras escolas, mais adolescentes com seus típicos trajes esquisitos descarregavam suas próprias caixas, transportando-as pelo estacionamento frio até a entrada principal da escola. Quando ele e Joanna passaram pela porta, seus prováveis adversários abriram caminho.

    Adam achava que as escolas ficavam estranhamente diferentes nos fins de semana, os espaços se transformavam num vazio com a

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