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Penélope Africana: Romance
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Penélope Africana: Romance
E-book158 páginas2 horas

Penélope Africana: Romance

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Sobre este e-book

Penélope Africana é um romance moderno, corajoso, histórico e imaginativo, que transita entre realidade e fantasia. O autor escreve sobre um Brasil escravocrata e cruel, sem excluir a poesia. Narrado por uma voz feminina que tenta contar como possivelmente tudo aconteceu, o romance cresce a cada capítulo ao ir além dos dramas cotidianos até o fortalecimento da personalidade e conscientização dos direitos de Yaá, com uma linguagem cativante que envolve o leitor do início ao fim.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de ago. de 2018
ISBN9788578586652
Penélope Africana: Romance

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    Pré-visualização do livro

    Penélope Africana - André Resende

    Outros títulos do autor publicados pela Cubzac:

    Mundo Enquadrado (ensaios)

    Zômis (ensaios, psicanálise)

    Quem sou eu (infantil)

    Ermitongo (infantil)

    Amor Vário (romance)

    Birdboy (romance infantojuvenil)

    Maçã Caramelada (teatro)

    Quem disse sim (poesia)

    Uma coisa de cada vez (contos).

    Para Yaá, Yií e Samula, Manoel e Josano

    Para Deborah, Guilherme e Otávio

    Por Cândida Maria da Conceição, em nome de tantas outras

    O que se mostra é um aspecto do invisível.

    Anaxágoras

    Prólogo

    Entre1831 e 1843, 20 mil africanos chegaram a Pernambuco, litoral leste do Brasil, na condição de escravos, contrariando a lei antitráfico de 1831. Estava entre eles Yaá ou, como ficou registrada, Cândida Maria da Conceição, nome composto e sobrenome adquiridos em Recife, provavelmente para fazer parte de uma religião e ter registro como propriedade.

    Pela Lei de 1831, toda carga humana apreendida nas costas brasileiras seria considerada livre: Artigo 1º - Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora dele, ficarão libertos.

    Yaá estava a bordo da escuna Clementina, apreendida nas proximidades de Goiana. Era, desde aquele instante, africana livre, mas deveria viver um período de catorze anos de trabalho para uma família local. A família pagaria ao Governo da Província um arrendamento anual e deveria ensinar a Cândida a língua, a religião e um ofício.

    Da captura ao embarque em navios europeus, os africanos ficavam presos entre seis meses e um ano. Passavam três meses na costa africana à espera do embarque. A travessia da África ao Brasil levava um mês.

    A cada africano cabia um espaço de 0,45 m² a 0,65 m² no convés. Um quinto da população embarcada morria, exposta a febres, disenteria, outras doenças e contaminação da ração.

    Com a lei antitráfico, os compradores queriam mais mulheres, em especial crianças e adolescentes, para aumentar a reprodução, mas quem determinava a idade e o sexo dos escravos eram os fornecedores africanos.

    1.

    Nenhum particular destaco em meu gosto de viver, a não ser cuidar de aves. Aves de terreiro: galinhas e guinés.

    Da aldeia de onde vim, as aves viviam espalhadas no chão de todo o terreiro e descampado, ao lado e dentro das casas. Algumas crianças cuidavam delas com estima de gente. Para uns, era mais que irmão ou parentado. As aves vivem pouco e não têm proximidade e apego de gente ou de animais de quatro patas. Estava satisfeita de cuidar, olhar de perto e ajudar desde miudinhas crescerem. Onde houvesse chão, dava para ver aves bicando e ciscando a terra. Alguém teria de cuidar dos animais. Não era uma obrigação do interesse de todos. Para mim era algo agradável.

    As aves me atraíam desde miúdas, quando nascem e saem das casas a correr pelo terreiro. Cuidava para todos os ovos fazerem valer a vida contida neles. Ver a ninhada largar da casca para emoleirar debaixo da mãe era o momento mais alto da espera. Os pintos saíam desorientados e rodopiavam de olho onde toda luz e imensidão paravam, até encontrar o som da mãe, e corriam para ela, sem demora. Acontecia de manhã, o mais cedo, na maioria das vezes. Os piados no terreiro surpreendiam a todos. Não era incomum quebrarem a casca na hora em que o sol estivesse mais quente sob as cabeças. Certo mesmo era quebrarem a casca bem cedo, com a luz do sol chegando e a terra fresca.

    Tantas vidas novas agitavam as demais, em particular, as crianças miudinhas. Acordavam sobressaltadas para mexer nos pintos e estavam preparadas para a bravura da mãe, correndo atrás dos afoitos sem perceber que, com isso, deixava desprotegida a ninhada, para a alegria dos mais crescidos e experientes. Não açoitados nas carreiras, ficavam próximos, parados, esperando a galinha abrir asas e correr atrás dos miúdos. Muito miudinhos, os pintos ficavam paralisados, sem saber onde estavam e para onde seguirem longe da sombra da mãe. Enchiam a cor do piado gritante, de furar os zouvidos. Somados os tantos, zumbiam até ouvir de longe. Quando digo longe, digo longe suficiente para atiçar os pássaros de rapina, animais de quatro patas e gente próxima que vivia de mexer nos terreiros alheios. Estava como tarefa de meus dias manter todos sob minha guarda e posse. Manter os pintos a piados baixos. Tarefa impossível com tantos malunguinhos rodeando o terreiro. O passe de perna e olhos que davam nas galinhas, davam em mim. Eu corria atrás de uns. Os mais espertos ficavam parados, riam orelha a orelha, esperando minha distância da ninhada. No alvoroço, a mãe não dava conta do bando e corria de asas abertas atrás dos miúdos sem conseguir proteger seus pintos – um, dois, três ou mais estavam nas mãos dos maiores.

    Para mim não era ruim: era divertido. Os pintos mais crescidos corriam atrás da mãe, asinhas de penugem rala abertas. Em um lance de tempo, ela colocava os atrevidos, um a um, para correr. A ninhada dispersa logo enfileirava e assentia seguir sob sua sombra, todos beliscando poeira no terreiro, passos de mansidão, familiarizados com tudo, desde que a sombra protetora estivesse bem perto.

    Seguiam devagarzinho, esquecidos do sobressalto pouco antes. Bastava a sombra da mãe ganhar distância de suas bicadas no chão e os pintos saíam a procurar por seu abrigo certo.

    Não era intenção de nenhum malunguinho maltratar os pintos. Não era o comum: a pega era mais para ter nas mãos os miudinhos assim saídos. Ter os pintos por um momento, largar e ver a ninhada correr desavisada e de susto. A mãe e o todo da ninhada não pareciam contentes com a chegada dos desgarrados ou de aviar aquele chegado em falta. Nem eu conseguia, a tempo, dar por sumido. Juntava asas com o resto e estava bem assim, era suficiente.

    Crescidos, pintos grandes, os homens pegavam os machos para ajeitar para brigas e para os caldos fortes. Os galos de briga eram pelados no gogó, nas coxas, por debaixo das asas. Vendavam os olhos com cipó ou gazes de palma esgaçada, para o bicho respirar de tudo para respirar, ouvir de tudo para ouvir – sem ver nada. Os galos ouviam e sentiam cheiros, gritaria e passos. Cacarejavam, reclamavam, no começo. Com o tempo, diferenciavam quem era cada um pela voz, pelos passos, talvez pelo cheiro. Aprendiam pelos passos quem apareceria para deixar comida, quem vinha apenas para tocar com empurrão, pensando assim que estaria ensinando uma maneira de defesa, evitando os movimentos dos outros. Os galos sabiam pelos passos quem ia chegar perto apenas para agoniar, dar susto, provocar a ira e o afobamento. Atados a algum pé de pau com cipó na perna, onde estivessem, não saíam. Sentiam aproximações e ganhavam ódio daquela condição de presos amarrados e roubados dos sentidos. Eram treinados para ter ódio. Com o cipó esticado na perna, corriam pelo terreiro para endurecerem as carnes, olhos sempre vendados.

    Os galos dos caldos ficavam em gaiolas de cordas para engordar. Jogavam os sobejos no espaço pequeno do terreiro onde viviam. Parados e enfofolados de sobejos, cresciam as carnes, moles, até a proximidade das festas, quando os machos, os galos, eram levados para as tinas e caçarolas.

    Meus irmãos cuidavam dos galos de briga e cada um deles possuía de seu mais de um. Os muito perdedores, abatidos e feridos quase mortos, eram de qualquer jeito levados a morrer. Alguém quebrava o pescoço deles com as duas palmas das mãos, retorcendo com força. Para uma morte só. O galo agoniava no chão e parava. Era pelado com água quente, esquartejado pelas partes, jogado na caçarola com ervas de folhas diferentes, raízes e óleos. Era mais comum, depois de depenados, pendurar pedaços em uma fogueira.

    Deixavam para mim e para minhas irmãs os galos gordos, as galinhas velhas não mais poedeiras, a criação de pintos, a preparação dos cantos de poeira, recolher os ovos e dizer quais levaríamos para debaixo das galinhas e quais para a casa. Trabalho tanto para mulheres mais jovens quanto para crianças. Ficavam fora do trabalho, por um tempo, mulheres com filhos, para relembrarem de si pequenas. Ou porque, e por gosto, faziam de criar filhos um interesse, ainda que seguissem com cuidados e afazeres. As mulheres mais velhas cortavam o pescoço e cuidavam do resto: sangrar, guardar o sangue, depenar, esquartejar, colocar na caçarola com as coisas e juntar o sangue guardado.

    Gostava dos pintos e não me interessava de saber que haveria um momento em minha vida de ser levada a matar minhas criações, todos que fiz nascer, crescer.

    Dormia, entrava em minha noite, acordava assustada com a proximidade destes dias. De um sonho frequente via minha mãe dizer: Yaá, vai buscar uma cria sua agora, vai. A voz era mansa. Eu fingia caminhar para o terreiro. Fugia para dentro do mato, levando todas as aves. Estava certa de evitar com minhas mãos. De minhas mãos, minhas criações não morreriam.

    Não queria ver de perto a matança. Quando os homens traziam do mato preás, bichos de cascos e cobras, evitava estar presente na hora da matança – aqueles bichos eu não comia. Enguiçava, a boca travava, debaixo do peito ardia, tudo em mim surgia fechado, enojada. Não falo apenas pelas escolhas: falo porque pareciam escolhas desnecessárias, como aqueles bichos. Quem vivo fosse, temia as cobras. Não era por menos. Foi, não foi, mas sempre morria um de picada de cobra. Matava dentro do mato, no terreiro, dentro de casa. Se morria tanto de picada de cobra quanto morriam homens nas brigas entre aldeias ou gente que estranhava gente.

    2.

    Antes de chegar a dias como esses, fizeram uma emboscada para mim na mata com a mesma esperteza que os homens jogam bicho em jaula para ter como seu. Fui parar em uma jaula fedida, entre outros mais, todos miudinhos. Malunguinhos tão miúdos como aqueles que corriam atrás dos pintos. Outros nem tão velhos como os acostumados a quebrar pescoço de galo. Machos e fêmeas, feridos, açoitados, amarrados em jaulas de cipó e cordas duras e frias.

    Dias se arrastaram pela mata e pela beira do rio, até eu ficar olhando as águas fortes correrem pela descida, debaixo de sol e calor, debaixo de frio e chuva. Chegaram homens com muita roupa e armas, línguas diferentes, grosseiros, cipós de couro nas mãos, empurrando cada um de nós para a escuna.

    Na escuna, vivia preocupada pela ausência de casa. Antes, não, mas no cair da tarde, minha mãe começaria a perguntar por mim e seria um alvoroço. Yaá – ela chamaria da porta de casa –, onde está você? Todo mundo sem saber de mim: minha mãe, avó, irmãs. Chovia, esfriava, esquentava. Cheirava a terreiro de bicho fedido. A grande morte jogada na água, sumia. Não vi chão por bom tempo.

    Estava assustada. Cada jaula tinha alguns miúdos, não sabia contar, então, talvez cinco, seis. Os mais miudinhos choravam e faziam força para quebrar os cipós. De vez em quando, ouvia gritos e tiros: um, mais forte, de tanto insistir, esfaquelava os cipós, conseguia, corria precipitado para o mato. Esperava a chuva chegar, e ela chegava, forte, barulhenta, assustando a todos. Os maus escondiam suas carcaças das chuvas e do fogo do céu. Deixavam a guarda aberta e, aí, era o momento certo para descer de uma vez,

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