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Surdez & Educação
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E-book124 páginas2 horas

Surdez & Educação

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Sobre este e-book

Este livro faz parte da Série Temas & Educação, voltada para educadores, pesquisadores e estudantes. Sobre a proposta deste livro, a autora diz: "Não nego a falta de audição do corpo surdo, porém desloco meu olhar para o que os próprios surdos dizem de si quando articulados e engajados na luta por seus direitos de se verem e de quererem ser vistos como sujeitos surdos, e não como sujeitos com surdez. […] Rompendo com as interpretações e os usos fundados em bases clínicas e em bases que a declaram uma anormalidade, a surdez, vista como presença de algo (e não a falta de algo), possibilita outras formas de significação e de representações de surdos."
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de jun. de 2017
ISBN9788582179932
Surdez & Educação

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    Surdez & Educação - Maura Corcini Lopes

    Maura Corcini Lopes

    Surdez & Educação

    2ª edição

    Revista e ampliada

    CAPÍTULO I

    RUPTURAS E POSIÇÕES

    Mas, se não ouvir não define fundamentalmente o ser surdo, o que é que está em jogo, então, nesta afirmação?

    (BENVENUTO, 2006, p. 227)

    Um começo

    A surdez é uma grande invenção. Não estou me referindo aqui à surdez como materialidade inscrita em um corpo, mas à surdez como construção de um olhar sobre aquele que não ouve. Para além da materialidade do corpo, construímos culturalmente a surdez dentro de distintas narrativas associadas e produzidas no interior (mas não fechadas em si mesmas) de campos discursivos distintos clínicos, linguísticos, religiosos, educacionais, jurídicos, filosóficos etc.

    Não há comparações entre narrativas sobre a surdez produzidas a partir de tais campos, pois estas não se propõem a eliminar umas às outras. Todas foram e estão sendo forjadas a partir de nossos conhecimentos e interpretações sobre a materialidade de um corpo ou sobre o que podemos dizer ser a natureza de um corpo. Portanto, todas as interpretações possíveis sobre o que convencionamos chamar de surdez são interpretações sempre culturais. Não há nada do que possamos afirmar sobre a surdez que não esteja alojado dentro de campos de sentidos produzidos culturalmente. Culturalmente produzimos o normal, o diferente, o anormal, o surdo, o deficiente, o desviante, o exótico, o comum, entre outros que poderiam compor uma lista infindável de sujeitos. Sustentando a produção dessa lista, vemos argumentos consistentes que podem ser aceitos ou não, considerados ou não por nós que pensamos as questões relativas à surdez. Qualquer escolha será sempre feita a partir de interpretações e representações que construímos, partindo de um conjunto de justificativas que escolhemos para sustentar nossas formas de entender aquilo que somos e aquilo que o outro é. Toda escolha que fazemos e as justificativas que lhe damos são culturais, mas nem toda interpretação feita sobre a surdez está sustentada em uma teorização de base antropológica.

    A ciência, no desejo de produzir conhecimentos capazes de explicar o desconhecido, inventou a surdez através dos níveis de perdas auditivas, das lesões no tímpano, dos fatores hereditários e adquiridos. Decorrentes da ciência e de padrões históricos estabelecidos por diferentes grupos culturais, foram criados distintos modos de se trabalhar com sujeitos acometidos pela surdez. Na clínica, terapias de fala, aparelhos auditivos, técnicas diversas de oralidade foram desenvolvidas com a finalidade da normalização. Na família, a busca por especialistas, a dedicação integral aos filhos com surdez e a inconformidade pela falta de audição, por muitos anos mobilizaram e mobilizam pais e mães. Na igreja, confissões, sentimento de culpa, pecado, tolerância e solidariedade com aquele que sofre são cada vez mais alimentados pelas práticas religiosas. Na justiça, as mobilizações por salário e por direito a ser reconhecido ora como diferente, ora como deficiente, ora como sujeito de risco e ora como sujeito normal confundem os sujeitos. Na educação recorte que interessa neste livro , a surdez como deficiência que marca um corpo determinando sua aprendizagem é inventada através do referente ouvinte, das pedagogias corretivas, da normalização e dos especialistas que fundaram um campo de saber capaz de dar conta de todos aqueles que não se enquadram em um perfil idealizado de normalidade.

    Durante anos, a surdez ocupou o centro das atenções de experts de diferentes campos do saber. Grande parte de tais experts era fortemente atravessada por discursos clínicos que se impunham na forma de descrever e classificar a surdez e os seus portadores. A maioria deles produziu saberes que orientaram grupos a olhar os sujeitos com surdez como capazes de serem tratados, corrigidos e normalizados através de terapias, treinamentos orofaciais, protetização, implantes cocleares e outras tecnologias avançadas que buscam, pela ciborguização do corpo, a condição de normalidade.

    Distante de querer somar mais uma referência na vasta bibliografia que aborda a surdez como uma deficiência, bem como longe de querer somar mais uma referência sobre metodologias de ensino, proponho olhar a surdez de outro lugar que não o da deficiência, mas o da diferença cultural. Não nego a falta de audição do corpo surdo, porém desloco meu olhar para o que os próprios surdos dizem de si quando articulados e engajados na luta por seus direitos de se verem e de quererem ser vistos como sujeitos surdos, e não como sujeitos com surdez. Tal diferença, embora pareça sutil, marca substancialmente a constituição de uma comunidade específica e a constituição de estudos que foram produzindo e inventando a surdez como um marcador cultural primordial.

    Assim como o sexo, que aparece marcado no corpo feminino e no corpo masculino, a surdez também marca aquele que a possui, diferenciando os que ouvem daqueles que não ouvem. Sem cair nas oposições entre surdos e ouvintes, quero mostrar que, anterior a qualquer narrativa sobre a surdez, esta aparece como elemento diferenciador capaz de aproximar e mobilizar aqueles que a possuem em prol de causas e lutas comuns.

    Romper com a concepção de surdez arraigada à deficiên­cia é um dos objetivos deste livro. Ele se propõe a construir uma outra narrativa sobre os surdos, inspirada nas discussões de base antropológica e culturalista. Sigo a escrita buscando referenciais que me possibilitem narrar os surdos como sujeitos culturais que, por não nascerem territorialmente próximos (WRIGLEY, 1996), necessitam ser aproximados uns dos outros. Tal aproximação tem se dado, geralmente, nas escolas e, mais recentemente, nas associações de surdos.

    Com a compreensão da surdez como um marcador cultural primordial, quero dar as costas para a interpretação clínica à qual comumente damos a palavra; meu interesse é significar a surdez dentro de um outro campo que, embora já bastante divulgado por diferentes produções acadêmicas e pela própria luta surda, ainda é constituído por poucos interessados a saber, o campo dos Estudos Surdos. Tal campo, formado por especialistas de distintas áreas do saber (sobretudo por especialistas da Educação e da Linguística), está produzindo pesquisas que têm como foco a história dos surdos e da surdez contada a partir de uma perspectiva surda. Trata-se, nesse caso, de uma história que se constitui de forma tensionada e entrelaçada a determinadas épocas e contextos sociais, políticos, econômicos, culturais etc. e que está fortemente marcada por movimentos de resistência surda.

    Vale esclarecer aqui, mesmo que minimamente, o que estou entendendo por resistência surda. Não estou afirmando que os surdos se opuseram, ao longo de suas histórias, aos processos de articulação das formas de significação da surdez feitas pelos ouvintes ou pelos próprios surdos. Utilizo resistência no sentido que lhe dá Foucault (1997), ou seja, como um movimento interno à própria invenção surdez e ao próprio acontecimento do tornar-se surdo um movimento de suspeita permanente sobre si e sobre as relações que os surdos vivenciam, um movimento de abertura feito dentro da própria invenção ser surdo que rompe com fronteiras discursivas, espaciais e temporais. Nas palavras de Vilela (2006, p. 107), resistir é criar um modo de respiração que rompe o espaço contínuo de um tempo li­near. Os surdos, em tensão no grupo e consigo mesmos, são produtos de frutíferas relações de poder, sempre articuladas com as resistências dos próprios sujeitos.

    A resistência ocorre onde existe poder, pois ela é inseparável das relações de poder. A um tempo só, a resistência funda as relações de poder, sendo, também, o resultado dessas mesmas relações. (VILELA, 2006, p. 117)

    Resistir significa viver intensamente a relação com o outro surdo que vive e sente a surdez de outras formas ou de formas semelhantes e que compartilha das mesmas lutas. A negociação de significados para o ser surdo e para a surdez é uma negociação que se dá, portanto, no interior das relações de poder e de resistência.

    Com essas pontuações iniciais, objetivo dar o tom para a leitura deste livro, qual seja, seguir na esteira das teorizações culturais e, dentro delas, das teorizações dos Estudos Surdos, compreendendo a surdez como condição primordial na constituição de outros marcadores identitários surdos.

    Uma vez já localizado o lugar onde me posiciono para falar da surdez, vale outro esclarecimento: por que surdez e educação? Sou pesquisadora e professora no campo da educação. Tenho divulgado a surdez e os surdos dentro do campo dos Estudos Surdos, além de ter militado e produzido pesquisas em um grupo constituído na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob a coordenação de Carlos Skliar. Vejamos um pouco dessa história.

    Na década de 1990, um grupo de pesquisadores surdos e ouvintes do qual eu mesma fazia parte aglutinou-se a partir da necessidade de orientação de mestrado e de doutorado, uma vez que eles haviam sido selecionados para cursarem o Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Todos eles estavam interessados em desenvolver investigações e estudos no campo da

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