Viagens de Gulliver
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Sobre este e-book
Nesta edição, apresentamos as duas viagens mais conhecidas, a Lilliput e a Brobdingnag. Em Lilliput, Gulliver encontra homenzinhos minúsculos, diante dos quais ele é um verdadeiro gigante. Os liliputianos estavam em guerra constante com os também minúsculos habitantes de Blefuscu, a ilha vizinha. Brigavam para defender seu ponto de vista sobre o lado certo de quebrar o ovo, o mais fino ou o mais largo – e Gulliver, naturalmente, acaba se envolvendo na guerra, pelo lado de Lilliput.
Em Brobdingnag, inverte-se a situação: os habitantes do reino são gigantes, e Gulliver, agora muito menor que um anão, torna-se um brinquedo e uma atração para o povo, embora fosse bem-tratado e bem-cuidado por todos e tivesse longas e produtivas conversas com o rei.
Num texto cheio de ironia, de sátiras à sociedade da época e à própria vida do autor, o livro questiona e critica os motivos fúteis pelos quais a Inglaterra e a Europa entravam em guerras, a facilidade em dominar os outros quando se é "superior", física ou economicamente, a utilidade dos exércitos, as guerras, as traições e intrigas palacianas, o governo inglês e seus governantes.
Jonathan Swift
Jonathan Swift (1667–1745) was an Irish author and satirist. After receiving a doctor of divinity degree from Trinity College, Dublin, Swift went on to publish numerous books, essays, pamphlets, and poems, many of which express his political allegiance to the Tories. In addition to being a literary and political writer, Swift was dean of St. Patrick’s Cathedral in Dublin.
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Viagens de Gulliver - Jonathan Swift
MAPA DE LILLIPUT E BLEFUSCU
CAPÍTULO I
O autor conta algumas coisas a respeito dele, da sua família e dos motivos que o levaram a empreender suas viagens. Ele naufraga, mas consegue nadar e chegar são e salvo a uma praia no País de Lilliput. É então aprisionado e carregado até o interior do país.
Meu pai tinha uma pequena propriedade em Nottinghamshire. Eu era o terceiro de cinco filhos. Aos 14 anos, mandou-me para o Colégio Emmanuel, em Cambridge, e lá morei três anos, muito dedicado aos estudos. No entanto, como o custo de me manter era alto demais para as suas escassas posses, apesar de eu receber uma pensão bem pequena, fui ser aprendiz do Sr. James Bates, eminente médico-cirurgião de Londres, com quem fiquei quatro anos. E, com as pequenas quantias de dinheiro que meu pai de vez em quando me remetia, aprendi navegação e algumas partes da matemática úteis a quem pretende viajar, como sempre acreditei que seria meu destino, mais cedo ou mais tarde. Ao parar de trabalhar com o Sr. Bates, procurei meu pai, e com a ajuda dele, de meu tio John e de outros parentes, consegui quarenta libras e a promessa de receber trinta libras por ano para me manter em Leyden. Ali estudei Medicina por dois anos e sete meses, sabendo que me seria útil em longas viagens.
Assim que voltei de Leyden, meu bom mestre, o Sr. Bates, recomendou-me como médico-cirurgião ao navio Andorinha, do Capitão Abraham Pannell, comandante com quem fiquei três anos e meio e fiz duas viagens ao Levante** e a alguns outros lugares. Ao voltar, decidi instalar-me em Londres, no que fui auxiliado também pelo Sr. Bates, meu mestre, que me arrumou vários pacientes. Acomodei-me numa casinha no antigo Bairro Judeu e, aconselhado a mudar meu estado civil, casei-me com a Srta. Mary Burton, segunda filha do Sr. Edmund Burton, um comerciante de meias e roupas de baixo da Newgate Street, de quem recebi quatrocentas libras como dote.
Mas meu bom mestre Bates morreu dois anos mais tarde, e, como eu tinha poucos amigos, meu negócio começou a ir mal, pois minha consciência não toleraria que eu imitasse as más práticas de muitos de meus colegas. Depois de me consultar com minha esposa e alguns conhecidos, decidi voltar para o mar. Fui médico em dois navios, e, durante seis anos, fiz várias viagens para o Oriente e as Antilhas, o que me permitiu juntar algum dinheiro. Nas horas de lazer, aproveitava para ler os melhores escritores, antigos e modernos, e sempre tinha uma boa provisão de livros comigo. E, quando em terra, observava os modos e o caráter das pessoas da região, além de aprender sua língua, o que para mim era muito fácil, devido à minha boa memória.
Como a última dessas viagens não havia sido muito afortunada, cansei um pouco do mar e decidi passar um tempo em casa, com esposa e família. Mudei-me do velho Bairro Judeu para a Fetter Lane, e de lá para Wapping, na esperança de conseguir clientes entre os marinheiros; mas não deu certo. Depois de três anos esperando que as coisas melhorassem, aceitei uma boa oferta do Capitão William Prichard, mestre do Antílope, que preparava uma viagem aos Mares do Sul. Partimos de Bristol no dia 4 de maio de 1699, e no começo nossa viagem correu muito bem.
Não seria apropriado, acredito, aborrecer o leitor com as particularidades de nossas aventuras naqueles mares. Será suficiente informá-lo de que, em nosso percurso até as Índias Orientais, fomos levados por uma violenta tempestade até o noroeste da Terra de Van Diemen.*** A partir de uma observação, concluímos estar na latitude de 30 graus e 2 minutos sul. Doze membros da nossa tripulação haviam morrido por excesso de trabalho e má alimentação, e os demais estavam muito enfraquecidos.
No dia 5 de novembro, início do verão naquelas paragens, em meio a muita neblina no mar, os marinheiros entreviram uma rocha à distância de meia corda**** do navio; mas o vento era muito forte, e fomos arremessados diretamente contra a rocha, o que partiu o navio ao meio na mesma hora. Seis da tripulação, entre eles eu, lançamos um escaler ao mar e fizemos todo o esforço para nos afastarmos do navio e da rocha. Remamos, pelos meus cálculos, cerca de treze quilômetros, até não aguentarmos mais, pois estávamos já extenuados pelo trabalho no navio. Assim, entregamos nossa sorte à misericórdia das ondas e, meia hora depois, uma súbita borrasca vinda do norte fez o bote virar. Não sei dizer o que foi feito dos meus companheiros do bote, nem daqueles que conseguiram alcançar a rocha ou ficaram no navio, mas concluí que provavelmente morreram todos.
Quanto a mim, nadei guiado pela providência, empurrado para a frente pelo vento e pela maré. De vez em quando, abaixava as pernas e não sentia o fundo, mas quando já estava perdendo os sentidos e não tinha mais forças para lutar, senti que a água dava pé, e a essa altura a tempestade já amainara.
O declive da orla era tão suave que tive que andar um quilômetro e meio até chegar à praia. Eram, imagino eu, umas 8h da noite. Avancei então mais um quilômetro, mas não vi nenhum sinal de casas ou habitantes – talvez não tenha percebido nada devido ao estado fragilizado em que me encontrava. Estava esgotadíssimo e, juntando isso ao calor que fazia e às duas canecas de conhaque que havia tomado ao sair do navio, fiquei com uma vontade enorme de dormir. Deitei na grama curta e macia e dormi o sono mais profundo que lembro ter dormido em toda a vida – pelos meus cálculos, descansei por umas nove horas, pois acordei já com o dia raiando. No entanto, ao decidir me levantar, não fui capaz de me mexer: havia deitado de costas, e descobri que meus braços e pernas estavam muito bem amarrados ao chão, de ambos os lados; e que meu cabelo, comprido e denso, também fora amarrado do mesmo jeito. Amarras mais finas cruzavam meu corpo das axilas até as coxas. Só conseguia olhar para cima, e o sol começou a ficar mais quente e a ofuscar meus olhos.
Ouvi ruídos confusos à minha volta, mas na posição em que estava, não conseguia ver nada além do céu. Então senti, mexendo-se em cima de minha perna esquerda, algo vivo que avançou com delicadeza por cima de meu peito até chegar quase no queixo; baixei os olhos o máximo que pude e percebi que se tratava de uma criatura humana com menos de quinze centímetros de altura, com um arco e flecha nas mãos e uma aljava nas costas. Logo depois, senti pelo menos mais quarenta criaturas do mesmo tipo (foi o que imaginei) vindo atrás da primeira.
Fiquei muito assustado e dei um urro tão forte que todos recuaram em pânico. Alguns deles, fui informado mais tarde, machucaram-se ao despencar no chão pelos lados do meu corpo. Mesmo assim, logo estavam de volta, e um deles, que se aventurou a ponto de conseguir enxergar totalmente meu rosto, ergueu as mãos, arregalou os olhos de admiração e gritou numa voz aguda porém nítida: "Hekinah degul!". Os outros repetiram várias vezes essas palavras, mas eu não tinha a mais vaga ideia do que significavam.
Fiquei deitado o tempo todo, na maior aflição, como o leitor pode imaginar. A certa altura, tentando me desvencilhar, tive a sorte de romper as amarras e soltar as estacas que prendiam meu braço esquerdo ao chão. Foi desse jeito, ao trazer o braço para perto do rosto, que descobri os métodos deles para me prender. Ao mesmo tempo, com um puxão violento que me fez sentir muita dor, soltei um pouco as cordas que prendiam meu cabelo do lado esquerdo, e consegui virar a cabeça uns cinco centímetros.
Fiquei deitado o tempo todo, na maior aflição.
Mas então, antes que eu conseguisse agarrá-las, as criaturas saíram correndo pela segunda vez, em meio a um grande berreiro, num tom muito agudo. Quando o barulho cessou, ouvi uma delas gritar "Tolgo phonac", e, no instante seguinte, senti, sobre minha mão esquerda, mais de uma centena de flechas que me espetaram como se fossem agulhas. Em seguida, dispararam outra revoada de flechas no ar, como fazemos com bombas na Europa; muitas delas, suponho, caíram em cima de meu corpo (embora eu não sentisse nada), e algumas em meu rosto, que na hora protegi com a mão esquerda.
Terminada essa chuva de flechas, fiquei gemendo de aflição e dor, e quando quis de novo me soltar, descarregaram outra saraivada, mais forte que a primeira, enquanto alguns tentavam me espetar os flancos com suas lanças. Por sorte, eu vestia uma jaqueta de couro, que eles não conseguiam perfurar. Achei mais prudente ficar bem quieto, e pensei em continuar assim até a noite, quando, com a mão esquerda já livre, poderia facilmente me soltar. Quanto aos habitantes, tinha razões para acreditar que eu seria capaz de enfrentar o maior exército que conseguissem reunir, caso fossem todos do tamanho que eu via.
A sorte, porém, dispôs as coisas de outro modo. Quando os membros daquele povo viram-me quieto, pararam de disparar flechas. Mas, pelo ruído que faziam, soube que o número deles aumentara muito, e a uns quatro metros da orelha esquerda ouvi, durante mais de uma hora, muitas batidas de gente trabalhando. Ao virar a cabeça naquela direção – o quanto as amarras e as estacas permitiam –, vi que tinham erguido um estrado com meio metro de altura, no qual cabiam quatro daqueles habitantes. Havia duas ou três escadas de acesso e, de lá de cima, um deles, que parecia ser alguém importante, me fez um longo discurso, do qual não entendi uma sílaba sequer.
Eu deveria ter mencionado que, antes de começar seu sermão, essa pessoa importante havia gritado três vezes "Langro debul san" (essas palavras e todas as demais foram depois repetidas e explicadas para mim). Ao ouvirem esses gritos, cerca de cinquenta deles avançaram e cortaram as cordas que prendiam o lado esquerdo de minha cabeça, o que me permitiu virá-la para a direita e observar a pessoa e os gestos de quem iria falar. Parecia alguém de meia-idade, mais alto que seus três acompanhantes, dos quais um era um pajem, que lhe segurava a cauda do casaco e parecia um pouco maior que meu dedo médio, e os outros dois ficavam um de cada lado, para assessorá-lo. Ele tinha todos os trejeitos de um orador, e pude intuir que várias de suas falas eram ameaças, e outras eram promessas ou palavras de compaixão e de gentileza.
Respondi com poucas palavras, mas da maneira mais submissa possível, erguendo a mão esquerda e também os olhos para o Sol, invocando-o como testemunha. E, como estava morrendo de fome, pois não comia há horas, mesmo antes de abandonar o navio, senti as exigências da natureza com tal força que não consegui evitar demonstrar minha impaciência (talvez contrariando as regras da boa educação) e coloquei o dedo várias vezes sobre a boca, indicando que queria comida. O Hurgo (era assim que chamavam seu grande senhor, como descobri depois) entendeu perfeitamente. Desceu do estrado e mandou colocar do meu lado várias escadas por onde subiram mais de cem habitantes, andando até minha boca com cestas cheias de alimento, que havia sido providenciado e enviado até lá por ordens do rei, depois da primeira informação que ele recebera sobre a minha chegada.
Notei que era carne de vários animais, mas não consegui identificá-los pelo gosto. Havia paletas, pernas e lombos, com a forma das partes do carneiro, muito bem temperados mas menores que as asas de uma cotovia. Comi-os, enfiando dois ou três pedaços em cada porção, e engoli de uma só vez três barras de pão do tamanho de balas de mosquetão. Eles me alimentaram do melhor jeito que podiam, e percebi em todos mil sinais de espanto e assombro com meu corpanzil e meu apetite. Então fiz outro gesto, indicando que queria bebida.
A julgar pelo que eu havia comido, devem ter concluído que uma pequena quantidade não seria suficiente; e, como eram bastante engenhosos, trouxeram com muita habilidade um de seus maiores barris. Fizeram-no rolar até minha mão, tiraram a tampa, e então bebi tudo de um só gole. Não era para menos, pois não chegava a meio litro, e tinha gosto de vinho ralo da Borgonha, mas muito mais delicioso. Trouxeram-me um segundo barril, que bebi do mesmo jeito, e fiz sinais de que queria mais; mas não tinham mais nenhum barril para me oferecer.
Depois de eu ter desempenhado todas essas maravilhas, eles gritaram, eufóricos, e dançaram sobre meu peito, repetindo, como haviam feito no início, "Hekinah degul". Fizeram sinais para que eu devolvesse os dois barris, mas primeiro avisaram as pessoas embaixo para se afastarem, gritando alto "Borach nevola"; quando viram os recipientes sendo arremessados pelo ar, ouviu-se um grito geral de "Hekinah degul".
Confesso que enquanto eles corriam por todo lado em cima de meu corpo, várias vezes tive a tentação de agarrar uns quarenta ou cinquenta que estivessem ao meu alcance e atirá-los no chão. Mas a lembrança do que acabara de sofrer, que talvez não fosse o pior que poderiam fazer comigo, e a promessa de honra que lhes fizera — pois assim interpretei meu comportamento submisso — logo afastaram essas imaginações. Além disso, eu agora, pelas leis da hospitalidade, sentia-me em dívida com aquele povo que me tratara com tanta exuberância e magnanimidade. De qualquer modo, não conseguia entender direito a intrepidez daqueles minúsculos mortais, que se atreviam a subir e andar por cima do meu corpo – mesmo sabendo que eu tinha uma das mãos livre – e não tremiam diante da visão daquela criatura prodigiosa, que é como eu devia parecer a eles.
Depois de um tempo, quando viram que eu não fazia mais pedidos de comida, apareceu na minha frente uma pessoa da alta hierarquia de Sua Majestade Imperial. Sua Excelência subiu pela parte de baixo