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segunda-feira, 4 de março de 2024

"Mulheres da China" de Xinran

Livro de não ficção que habitava nas minhas estantes há demasiado tempo. Às vezes os clubes de leitura fazem-nos pegar nos livros “esquecidos” e, neste caso, a surpresa não poderia ter sido melhor.

Na capa é referido: "Um livro que começa onde Cisnes Selvagens de Jung Chang terminou: a vida das mulheres chinesas depois de Mao".

Xinran é jornalista e, presentemente, não vive na China. Mas apresentou, durante aproximadamente oito anos, um programa na rádio, “Palavras na Brisa da Noite” que, pese embora tivesse de passar pelo crivo da censura do Partido, conseguiu ser um espaço de reflexão e partilha de muitos problemas e questões levantadas pelas mulheres chinesas, que até aí, não tinham voz. Começou a receber inúmeras cartas, muitos pedidos de ajuda e de opinião, muitas das quais não poderia ler em público. De qualquer modo, durante esse tempo conseguiu dar a conhecer um pouco a realidade da mulher chinesa, Confesso que todo este livro foi, para mim, uma descoberta constante.

A radio era a porta-voz do Partido pelo que só podiam transmitir o guião depois de devidamente escrutinado e o programa final depois de gravado e editado passava por um departamento que supervisionava tudo. Logo, as chamadas recebidas não podiam ser atendidas em tempo real. No entanto, entrevistou várias mulheres - jovens e mais velhas - e pode perceber a diferença de atitudes entre elas e a descrença das mais novas face às atitudes dos homens que consideravam machistas. O fosso entre gerações mostrava-se grande.

A história das mulheres da China e das suas lutas por igualdade de tratamento não caminha de par em par com a história das mulheres ocidentais. "Nos anos 30 do século XX, quando as mulheres ocidentais já estavam a exigir a igualdade sexual, as mulheres chinesas estavam apenas a começar a desafiar a sociedade dominada pelo homem, não querendo que os pés fossem ligados ou que os casamentos fossem arranjados pela geração mais velha" (pág 65).

Xiran conta-nos em cada capítulo histórias de vida de algumas mulheres chinesas e, ao mesmo tempo, um pouco da sua história familiar. Alguns relatos são impressionantes.

Em 1997 Xiran sai da China e vai viver para Inglaterra. O sentimento que passa ao leitor neste livro todo é que tudo o que viveu foi demais para ela. Precisava sair. Viver livre.

Recomendo muitíssimo. Tenho outro livro da autora na estante que quero ler em breve, "Mensagem de Uma Mãe Chinesa Desconhecida".

Terminado em 13 de Fevereiro de 2024

Estrelas: 6*

Sinopse

Durante oito inesquecíveis anos, a jornalista Xinran apresentou na China um programa de rádio em que muitas mulheres falavam de si próprias e da sua vida. «Palavras na Brisa Nocturna», assim se chamava, rapidamente se tornou no mais famoso programa de rádio chinês. Nele se revelava o que significa ser mulher na China de hoje. Nesta primeira obra impressionante, Xinran revela as muitas formas como foi obrigada a contornar o sistema e dá voz a todas as mulheres chinesas, independentemente do seu estrato social. Este é um livro que começa onde «Cisnes Selvagens» de Jung Chang terminou: a vida das mulheres chinesas depois de Mao.

Cris


terça-feira, 30 de maio de 2017

A convidada escolhe: “Mensagem de uma Mãe Chinesa Desconhecida”

Depois de “Filhas sem Nome”, este é o segundo livro que leio da autoria de Xinran, uma escritora e jornalista chinesa. Também este tem como centro as mulheres chinesas e a sua condição de desigualdade e profunda discriminação em relação aos homens. Aqui ela trata do abandono, rejeição e morte de muitas meninas chinesas, por serem raparigas, por serem um segundo filho, ou por não serem o filho primogénito. E também das que sobreviveram e tiveram a sorte de serem adoptadas.

Certamente o facto de ela própria ter sentido “falta de ter sido filha” e de quase no final do livro confessar a sua experiência pessoal de ter sido forçada a abdicar de uma menina que quis adoptar, por já ser mãe de um rapaz, foram razões suficientes para escrever este livro pungente de histórias dramáticas que teve a oportunidade de conhecer por via da sua profissão de repórter e locutora na rádio. Filha da Revolução Cultural, numa altura em que os laços de afecto não eram considerados importantes, em que o amor não era verbalizado ou demonstrado através de um gesto de carinho como um simples abraço, as histórias que ouviu de mulheres em aldeias remotas ou em grandes cidades da China, levaram Xinran a querer deixar esse testemunho para a actual geração de jovens chineses desconhecedores desse passado. Mas não só: uma mensagem para as mães chinesas desconhecidas que foram forçadas a abandonar as filhas e também para as filhas adoptadas que nunca conheceram as suas mães biológicas e que se perguntam “por que é que a minha mamã chinesa não me quis?”

Quando em 2004, já a viver no Reino Unido, fundou a “Mother’s Bridge of Love” (MBL) Xinran quis, com esta associação, ser um instrumento de ligação das meninas chinesas adoptadas no estrangeiro à cultura das suas mães biológicas, minimizando sentimentos de dúvida, incompreensão e tristeza das meninas por terem sido abandonadas.

O livro é pungente não só pela crueza de muitas das histórias reais, mas pela ambivalência da escritora na forma de passar aquele testemunho. Ao iniciar a escrita em 2008, teve dúvidas se o livro deveria ser romanceado ou factual. À medida que vai contando as dez histórias de mulheres, a autora contextualiza-as na sociedade chinesa e refere a tradição ancestral da valorização dos rapazes porque ajudam ao sustento e o desejo de que o primeiro filho do casal seja um varão para honrar a memória dos antepassados; ou a desvalorização das raparigas, a maldição que era ser mulher e mãe, ter uma filha era uma calamidade pois “não se conta como ser humano a não ser que se tenha um filho rapaz.”

Mas a China moderna e as grandes transformações ocorridas no passado século não melhoraram essa situação nem diminuíram a ausência de direitos das mulheres. As tradições e a cultura persistem mesmo com algumas mudanças legislativas. A Lei da População e do Planeamento Familiar que entrou em vigor em 2002 não deixa lugar a dúvidas. No seu artigo 18º lê-se: “O Estado mantém a sua política corrente para a reprodução, encorajando o casamento e a procriação tardios e defende um filho por casal. Caso estejam preenchidos os requisitos especificados pelas leis e pelos regulamentos, podem ser feitos planos para um segundo filho, caso seja solicitado. Serão formuladas medidas específicas a este respeito pelo Congresso Popular ou pelo seu comité permanente de uma província, região autónoma ou município sob alçada directa do Governo Central.”

Xinran aborda inúmeras questões como o mundo fechado e privado que é a vida do casal, o conceito inexistente de amor no casamento, uma sociedade em que as pessoas não são estimuladas nem sabem expressar sentimentos ou receiam ser castigadas por os expressarem, em que chorar é apontado como sinal de fraqueza e depois os suicídios como quinta causa de morte na China, sendo o número de mulheres superior ao dos homens. Num relatório das Nações Unidas de 2002, a China encabeçava a lista de suicídios de mulheres, sobretudo jovens e com especial incidência entre as mulheres camponesas. Por que será?

Enquanto viveu na China fazendo rádio e reportagens até 1997 percebeu que enquanto jornalista podia ter um papel decisivo ao testemunhar situações e histórias de vida no sentido de despertar consciências e chegar ao coração de pessoas desesperadas e sozinhas. Enquanto fundadora de uma associação -  a MBL - podia apoiar as meninas chinesas adoptadas em todo o mundo, fazendo uma ponte de amor entre as meninas e as suas mães biológicas que um dia tiveram que renunciar ao seu amor. Enquanto escritora continua por todo o mundo a dar testemunho do que se passa no seu país natal e nos faz chegar bem fundo à alma e aos sentimentos de pessoas anónimas, desconhecidas, longínquas, mas tão próximas, porque humanas.

Nas suas viagens, entre os objectos que leva, há um seixo e uma folha que sempre a acompanham. Estão associadas a duas histórias de vida: a de uma mãe a quem raptaram a filha e que acredita que um dia a irá reaver e de uma filha raptada que anseia um dia reencontrar a mãe biológica. Esses objectos que um dia lhe foram oferecidos simbolizam o sonho de um reencontro improvável, mas sempre perseguido.

Este livro é também uma reflexão sobre os julgamentos morais instantâneos de casos que surgem na comunicação social de mulheres que abandonam os filhos. Melhor seria que se fizessem perguntas, antes de se julgar. Serão mesmo mulheres sem coração?

Maio 2017

Almerinda Bento

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A Convidada Escolhe: "As Filhas Sem Nome"

"As Filhas sem Nome" (do inglês "Miss Chopsticks"), Xinran, 2007
Este livro passa-se no início deste século e foi escrito por uma jornalista chinesa cujo trabalho de apresentadora de um programa de rádio a levou a conhecer e conversar com grande número de mulheres muito diversas oriundas de um país imenso, a China. As diferenças entre elas decorriam da origem geográfica, mas também de serem citadinas ou camponesas, com hábitos, culturas e dialectos tão distintos que por vezes pareciam terem origem em países diferentes. Chinesas, diferentes, mas com um traço comum: discriminadas por serem mulheres.
Quando a autora, no final dos anos 90 do século passado, foi viver para Inglaterra, teve de trabalhar como empregada de mesa em restaurantes e em hotéis, viveu na pele a condição de imigrante, invisível e nessa altura recordou algumas mulheres rurais chinesas que se tinham mudado para as cidades em busca de uma vida melhor e que eram ignoradas e tornadas invisíveis, apesar da imprescindibilidade do seu trabalho para a comunidade.
Lembrou-se das histórias que tinha ouvido das bocas dessas suas conterrâneas, da infelicidade que era não terem filhos, mas apenas filhas, havendo até casos extremos de mulheres que se suicidavam por isso. Numa sociedade que encara(va) as raparigas como "pauzinhos" (chopsticks), úteis, mas frágeis e facilmente quebráveis, portanto incapazes de serem o suporte de uma casa, só um rapaz pode ter esse papel, pois é tido como a "trave-mestra" de uma casa.
É a partir desta triste e dura realidade que a autora vai desenvolver o seu romance. Uma família camponesa, infeliz e socialmente desvalorizada porque teve seis filhas e nenhum filho-varão. Estes "pauzinhos" nem sequer merecem ter um nome, apenas um número, correspondendo à sua chegada ao mundo. No entanto, há três – a Três, a Cinco e a Seis – que ousam sair desse mundo profundamente limitado, sem saídas, caracterizado pela pobreza e escassez a todos os níveis.
A chegada à cidade – Nanquim – é uma revelação, por vezes dolorosa. Mas também há uma alegria infantil e encantadora no prazer da descoberta das pequenas coisas. Tudo é surpreendente para aquelas três irmãs de uma ingenuidade extrema, confrontadas com o choque de culturas, educadas na repressão dos corpos e da sexualidade, moldadas para servir e não mais do que isso. Aliás, o que sempre tinham visto como modo de vida da mãe, dominada por um forte sentimento de inferioridade comum a todas as mulheres do campo e que elas querem reverter e compensar de algum modo no final do livro, quando regressam a casa para as comemorações do Festival da Primavera.
Diferentes nas suas aptidões, elas vão ser valorizadas na cidade de Nanquim pelas suas qualidades particulares, coisa que nunca tinham conhecido na sua aldeia nem no seio da sua família. A Três era especialmente dotada para fazer arranjos artísticos com vegetais frescos, o que tornou o restaurante O Tolo Feliz onde trabalhava mais apetecível e com mais clientela. A Cinco, sempre considerada o patinho feio da família e a rapariga mais estúpida da aldeia, revelou no Centro Cultural Aquático do Dragão uma sensibilidade natural para conjugar as ervas usadas nos tratamentos termais. Por fim, a Seis, a única das irmãs que tinha frequentado a escola e que sabia ler, encontrou na Casa de Chá dos Provadores de Livros o espaço ideal para a leitura, para alargar a sua visão do mundo no contacto com os estrangeiros, para aprender inglês e ensinar chinês aos estudantes estrangeiros que frequentavam a Casa de Chá. Aí descobriu a existência de livros proibidos e também o quase completo desconhecimento da cultura e da história da China por parte dos ocidentais.
Ao longo do livro são frequentes as referências aos diferentes períodos da história da China com as figuras do imperador, dos senhores da guerra e mais recentemente o papel da revolução cultural de Mao na vida do povo. Apesar da abertura mais recente da sociedade chinesa ao exterior e da alteração de alguma legislação restritiva, há uma crítica à corrupção generalizada começando pelos mais baixos funcionários do Estado, à prepotência da polícia e ao atropelo da justiça e dos direitos humanos e, sobretudo, há uma crítica ao fosso enorme na vida das pessoas do campo em relação às da cidade, assim como um olhar muito crítico à forma como as mulheres são encaradas na sociedade chinesa actual. "…folhas de erva a crescerem nas fendas entre as pedras; queriam ver a luz do Sol e arranjar um espaço para respirarem, mas o vento e a chuva abatiam-se sobre elas. Era muito fácil estas raparigas serem esmagadas pelos homens e sentirem que não tinham o menor valor."
Espantado e ao mesmo tempo incapaz de assumir a realidade das transformações notórias nas filhas, o pai pergunta-se se seria possível que as suas filhas pauzinhos fossem capazes de suportar o telhado da sua casa. O posfácio que resulta do desafio da tradutora e amiga pessoal de Xinran para que ela desvende a continuação da história das três irmãs que um dia saíram da sua aldeia e descobriram um outro mundo na cidade de Nanquim é, em minha opinião, irrelevante e retira, porventura, a este belo romance o tom optimista do percurso daquelas meninas sem nome que o pai considerava meros pauzinhos.

Almerinda Bento