terça-feira, 31 de maio de 2011

Bernard Quiriny



QUI HABET AURES...

"Durante as semanas que se seguiram, Renouvier divertiu-se muito servindo-se do seu dom. Começou por operar uma triagem entre as suas relações, ouvindo, sem excepção, todas as conversas que mantinham a seu respeito. Num caderno, traçou duas colunas, anotando do lado esquerdo os nomes dos que ouvia falar bem dele, e do lado direito, os dos outros. Deparou com pressentimentos confirmados, preconceitos desmentidos e algumas surpresas más. A coluna da direita engrossou mais depressa do que a da esquerda, e Renouvier pensou com amargura que as suas crises teriam tido pelo menos a vantagem de o instruir sobre a natureza humana.
Captar as conversas dos seus semelhantes permitiu-lhe igualmente adiantar-se aos seus desejos e responder preventivamente a todas as suas recriminações. A uma tia que se queixava de que ele nunca escrevia, enviou uma longa carta na qual rogava que lhe perdoasse o seu silêncio e prometendo que de futuro lha daria notícias mais frequentes. (...) Aos que ofendera sem dar por isso, enviava flores e um cartão, dizendo-lhes que lamentava muito o sucedido e desfazendo-se em desculpas. Todos se espantavam com a sua lucidez: achavam-no fino psicólogo, perfeito cavalheiro."

O clima é de partida, vou dar sequência na minha vida

João Diogo Zagalo


SABIAM QUE TENHO UM RELÓGIO DE PAREDE?


"Já comprei um relógio de parede. Não funciona, mas já tenho um relógio de parede, dourado, com uns grandes ponteiros a marcar as 2.45.
Arranjei uns livros para encher as prateleiras. Numa das prateleiras instalei a máquina de fazer café, ainda sem filtros e sem café, mas é uma máquina.
Também tenho os candeeiros e as lâmpadas todas. Ainda não foi instalada a electricidade mas já tenho os candeeiros de mesa, de tecto, de todos os géneros e feitios. E são bem bonitos.
A divisão é fria, já instalei o ar condicionado. Logo que haja electricidade estarei melhor.
Comprei toalhas para a casa de banho, sabonetes caros, um novo tampo de sanita, até novas cortinas para o pequeno chuveiro que lá existe. Assim que houver água poderei tomar uns magníficos banhos. Ao princípio frios, claro está, pois o gás só virá depois.
Tenho umas maças com ar delicioso, apanhadas das árvores quando vinha a caminho. Estão besuntadas de insecticida mas logo que tiver uma faca para as descascar, poderei saciar a minha fome, que já se começa a sentir. Pudera! Há uma pastelaria aqui ao lado, diz-se que se fazem lá uns óptimos bolos. O cheiro sente-se a centenas de metros. Comprarei alguns bolos mas receba dinheiro.
Já tenho telefone, falta só assinar o contrato de adesão mas já tenho telefone.
Em cima da mesa, mais livros e papeis. Espero só os primeiros clientes. Vão começar a ligar, de certeza, mal seja instalado o telefone. 
Entretanto para matar o tempo, aguardo. Trouxe muitos e bons livros para ler. Agora não posso, porque é de noite e está escuro e não tenho electricidade. Mas logo que amanheça posso ler alguma coisa. Tenho aqui muitos e bons livros.
Estou com sono. Tenho um confortável sofá, lá dentro de casa, óptimo para me poder deitar e dormir de seguida. Perdi as chaves, não posso entrar, mas tenho um sofá confortável lá dentro.
Deitei-me à porta de casa, para ver se descanso um pouco. Conheço um serralheiro que me pode abrir a porta mas está a dormir e, de qualquer forma, não tenho dinheiro para lhe pagar, mas conheço um serralheiro.
Já não deve faltar muito para amanhecer, não sei que horas são. Tenho um relógio de parede, mas está dentro de casa. Além disso, não funciona e eu estou com dores de cabeça, não consigo adormecer. Está mesmo a apetecer-me um café." 

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Rui Nunes



13.
"há nas casas uma pobreza tão grande que por mais que as enchamos de mesas, quadros, livros, cadeiras, tapetes, estão sempre vazias. Aquilo que vejo, ao entrar numa sala, é o vazio a espreitar por entre os móveis, recortado nas paredes pelos quadros, camuflado nas janelas pelas cortinas, o vazio das portas fechadas e o vazio das portas abertas: o vazio que esconde um vazio, e o vazio que mostra um vazio, também as pessoas carregam essa falta, logo atrás dos olhos, ou nos olhos, nas pupilas, e que se expande quando nos aproximamos delas e vemos a desaparecer tudo o que chamamos humanidade, até surgir a abertura de um poço, ou um furo de sovela, é por isso que os carrascos matam, porque das vítimas conhecem unicamente esses buracos circulares, como eu das casas só conheço o vazio que as habita, talvez eu nada mais tenha aprendido a ver,"

Franz Kafka


PROMETEU


"A lenda tenta explicar o que não se pode explicar; porque vem de um fundamento de verdade, tem de terminar no que não se pode explicar.
De Prometeu conhecemos quatro lendas. Diz a primeira que ele foi agrilhoado ao Cáucaso por ter traído os deuses aos homens e que os deuses enviaram águias que lhe devoravam o fígado que se renovava sem fim.
Diz a segunda que, com a dor das bicadas que o atormentava, Prometeu se apertou cada vez mais contra o rochedo até se tornarem num.
Diz a terceira que passados milhares e milhares de anos a sua traição foi esquecida, os deuses esqueceram, as águias, ele próprio.
Diz a quarta que todos se cansaram do que já não tinha fundamento. Os deuses cansaram-se, as águias. A ferida fechou cansada.
Restou o rochedo inexplicável."

domingo, 29 de maio de 2011

Set your clock by your heart

Rui Pires Cabral


«You are a foreigner of some sort.»


"À míngua de uma ideia
de futuro, só o medo
te compelia a mudar.
E além dos livros difíceis
que te davam as horas
mais duras, sofrias os danos
do hábito e uma assídua
preocupação com a morte
no escuro antes de dormir.
Ao corpo do mundo 
só o conhecias com a parte
mais desacompanhada
de ti próprio - um coração
com defeito, peça de dúbia
oficina, que confundia
o amor e tomava por alegria
um perdido laranjal junto à linha
do comboio, com nuvens roxas
ao largo e os teus amigos todos
antes do inverno e do necessário
inferno reservado a cada um."


* Da (fabulosa) Averno

Livros Infanto-Adultos (4)



"Era uma vez uma menina, não muito diferente das outras,
que queria saber tudo
o que havia para saber
acerca do seu mundo.
Intrigada com as estrelas.
Fascinada pelo mar.
Ela vivia no encanto da descoberta...
... até ao dia em que encontrou uma cadeira vazia."

sábado, 28 de maio de 2011

Livreira + Vinho + Livros

Hoje a livreira vai sair da livraria a ver os livros a triplicar! O que é bom no caso de certos livros... no caso de outros posso sempre ter um ataque de coração ao pensar: mas eu tenho três exemplares daquele livro?
Neste sábado, a conversa e a amizade juntam-se ao vinho, agradavelmente fornecido pela Herdade da Malhadinha Nova Monte da Peceguina
Em dias como o de hoje o prazer de ser livreira é a dobrar. 

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Greed's all gone now, the panic subsides

Quando uma só vida não chega para filmes assim (6)

No more can I say, Frozen to myself

Nunca um grafite ficou tão bem numa parede (2)




Movimento"Se tu és a égua de âmbar 
                  eu sou o caminho de sangue 
Se tu és o primeiro nevão 
                  eu sou quem acende a fogueira da madrugada 
Se tu és a torre da noite 
                  eu sou o cravo ardendo em tua fronte 
Se tu és a maré matutina 
                  eu sou o grito do primeiro pássaro 
Se tu és a cesta de laranjas 
                  eu sou o punhal de sol 
Se tu és o altar de pedra 
                  eu sou a mão sacrílega 
Se tu és a terra deitada 
                  eu sou a cana verde 
Se tu és o salto do vento 
                  eu sou o fogo oculto 
Se tu és a boca da água 
                  eu sou a boca do musgo 
Se tu és o bosque das nuvens 
                  eu sou o machado que as corta 
Se tu és a cidade profunda 
                  eu sou a chuva da consagração 

Se tu és a montanha amarela 
                  eu sou os braços vermelhos do líquen 
Se tu és o sol que se levanta 
                  eu sou o caminho de sangue" 

Octavio Paz

Ana Teresa Pereira (2)



"Quando parou de chover ela saiu do chalé e ficou distraída a olhar os canteiros cheios de urtigas; senti o desejo de que cuidasse das minhas plantas, como cuidara durante alguns minutos dos meus barcos e dos meus livros, das coisas que as minhas mãos tocaram e amaram.
Lavanda marítima, que tolera o vento do mar e o solo salgado; unha-de-gato, que cresce bem em lugares solarengos e ventosos e no solo mais seco e arenoso; rosas da rocha, com as suas flores cor-de-rosa e brancas. E num canto mais protegido, miosótis, que plantei num mês de Julho e deram flor na Primavera seguinte, flores azuis, rosas e brancas; devem ter sido os primeiros a morrer.
Quando ela foi embora peguei num dos barcos que limpara com o lenço. Parecia-se com o meu. Era verde e branco e tinha uma pequena cabina, velas de tecido áspero. Em criança, gostava de barcos dentro de garrafas. O meu pai comprava-me um de vez em quando. Eu imaginava-o a caminhar nas ruas junto ao rio, no meio do nevoeiro, e a entrar nas lojas escuras, ate encontrar um barco dentro de uma garrafa, uma velha bússola, um mapa antigo, um caderno de bordo. Uma história de piratas esgotada há muito tempo.
Os meus livros. Eu compreendi que o meu pai tinha morrido quando rocei a mão pelos seus livros e pensei que ele não os voltaria a ler. E fiquei a tarde inteira na biblioteca. Uma garrafa de xerez, um cinzeiro cheio de beatas. E rosas muito abertas que começavam a perder as pétalas."

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Margaret Millar



8. Sempre teve vergonha, não só de mim, mas também dela própria.


"Os portões de ferro pareciam ter sido feito para gigantes. Uma buganvília tapava uma vedação de aço com mais de três metros de altura, e as suas flores carmesim pareciam indiferentes aos espigões arredondados que espreitavam sob as folhas, mais afiados do que qualquer arame farpado. Entre a rua e a vedação, vários renques de eucaliptos agitavam a prata das suas folhas como se fossem jogadores enlouquecidos.
A casa de pedra cinzenta do guarda parecia uma prisão em miniatura, com as suas janelas gradeadas e a porta de ferro trancada. Tanto a porta como a fechadura estavam enferrujadas, como se o guarda se tivesse mudado há muito para outra parte do cemitério. Árvores centenárias, suficientemente grandes para estarem próximas do fim do tempo da vida, alinhavam-se de ambos os lados do caminho até à capela. alternando com estrelícias azuis que pareciam prontas a cantar ou a levantar voo.(...)
Só se via uma pessoa, o organista. Parecia estar a tocar para si próprio; talvez tivesse havido um funeral há  pouco e ele tivesse ficado mais algum tempo para ensaiar ou para silenciar um persistente coro de fantasmas."


*(Fabulosa) Averno

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (12)

Cliente - Tem a Olidia da Odisseia?
Eu - o_O (e agora como é que explico que não é Olidia mas Ilíada, e que a Odisseia não é o autor mas um livro, e que os dois livros são de Homero?) 

But you don't really care for music, do you?


segunda-feira, 23 de maio de 2011

Diogo Vaz Pinto


FLOR SUFICIENTE

Uma idade em que nos apetecia ainda
falar de idade, sem futuro nem constrangimentos. 
                                                     
                                                             para o Manuel



"A doce insolência de uns dias
mais a sul, esse regresso pontual aos lugares
onde fiz à pressa os primeiros seis anos
e quis ser tudo menos, é claro,
poeta, emprestou-me uma razão.
Na demora do crepúsculo a luz
inchava e faz parecer
belo o fim da rua que subi.


Entro no supermercado, atravesso
sozinho os corredores enquanto penso
na glória obscena e acessível
deste nosso princípio de século.
Bolachas e iogurtes, fiambre, um saco
de café, cervejas e sabão. Não é
o real quotidiano,  mas umas coisas
que tinha em falta quando saí.


Volto por um outro caminho
a ver se espreito um pouco dessa vocação
litoral. Putos dos que têm ainda
as ruas e montam ventos (desses
que às miúdas levantam as saias), andam
aos chutos na fuça do mar, trepam descalços
às árvores e fazem guerras com a fruta.


Um acerta noutro em cheio e grita
morreste!, esse cai ao chão. Larga cuspo
nos dedos, esfrega a estrela de sangue
que lhe abre o joelho e volta lá para cima.
Morrer e matar, também brincávamos
a isso. Mas a coisa depois
foi ficando séria. Deixámos para trás
infâncias épicas, muitas mesmo
inventadas. O tempo mordia-nos então
com doçura, agora, as vezes,
magoa.


À distância (segura) de algumas pedradas,
devolvemos imagens à memória,
nós com eles, trincando o caule das azedas
com uns dois, três cães velhos
sempre por perto, ao alcance de um
último afago, de vez em quando as sobras
do lanche, pedaços de pão com manteiga.


Um dos miúdos isolou-se entretanto.
Com um isqueiro, a chama lambendo
as murtas, ele soprando cinza. Os olhos,
à frente, devagar, batendo a beleza cansada
de terra baldia, a medir com um suspiro
ou mais a dimensão desse jardim deserto


O mesmo assobio, tão antigo,
o mesmo vigor melodioso, preso entre
aqueles dois lábios breves e a falta
de ritmo que dói nestes versos.
Um silêncio afogando-se noutro
e a cor que o atingiu aos poucos.
Abrindo o mais que pôde, uma flor
foi suficiente para aproximar-nos
em idade e no resto."

Quando uma só vida não chega para filmes assim (4)

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (11)

Numa livraria nem sempre entram compradores de livros, por vezes entram também vendedores que acreditam piamente nos seus produtos: vendedores de tapetes, de quadros, de perfumes, de flores de plástico, de telemóveis...
De facto já vi um pouco de tudo, mas ouve uma situação que me marcou especialmente.
A livreira tem certas dificuldades em se manter acordada durante as primeiras horas do dia, ou não fosse ela fã acérrima de um lema "só gostava de ter tanto sono à noite como tenho de manhã", e quando o insólito a procurou estava realmente a dormir em pé. 
Entra um jovem cheio de energia pela livraria dentro:
Jovem - Ora muito BOM DIA! (devia ter tomado no mínimo 10 cafés)
Eu - Bom dia!
Jovem - Trago aqui uma maravilha para lhe mostrar!
Eu - (por favor, mal consigo abrir os olhos) Peço desculpa, mas se é para vender alguma coisa aviso-o que está a perder o seu tempo.
Jovem - Não tem de me comprar nada, apenas lhe quero mostrar as maravilhas que este produto pode fazer. (tira de uma mala um produto muito semelhante a um qualquer vulgar limpa vidros)
Posso começar?
Eu - Começar?
Jovem - Sim, vou começar por lhe limpar o chão. (ajoelha-se e começa a deitar o produto no chão, de seguida esfrega com a mão) Está a ver, tudo preto! Este produto tira tudo! (passa um pano no chão e mostra-me a diferença do antes e do depois, confesso que gosto mais daquelas fotos de produtos para emagrecer, aí o antes e o depois sempre me fascinou.)
Eu - Pois, mas qualquer outro produto pode fazer o mesmo.
Jovem - Nem pensar! Repare nisto (e começa a borrifar as calças com aquilo o_O) Não M-A-N-C-H-A! 
(de seguida deita na mão) Está a ver não faz mal à pele! (agarra na minha mão e borrifa-me com aquilo) Não tenha medo menina, não faz mal! Posso limpar até os seu livros com isto!
Eu - Não me parece! É melhor nem sequer tentar.
Jovem - Duvida de mim? Tem medo que lhe estrague alguma coisa? Pode ficar com o nº do meu BI! (estende-me o BI)
Eu - Não é necessário. Agradeço a sua demonstração. Mas de facto não preci... (começa a deitar aquele liquido no meu balcão que quando o comprei foi-me dito mais de mil vezes para o limpar só com um pano seco, quando muito um pano húmido) Mas o que está a fazer? Esse balcão não pode ser limpo com produtos.
Jovem - Não tem mal nenhum! Não estraga nada! É um produto maravilhoso! (neste momento tira a tampa do produto e começa a BEBER!!!??? entrei em pânico, literalmente em pânico)
Eu - Por favor não faça uma coisa dessas, mas o que é que me quer demonstrar afinal, isso não se bebe (e estava ligeiramente alterada quando disse isto)
Jovem - Mas não faz mal nenhum beber, não entende que o produto é biodegradável!  

A Livreira (3)

A livreira quando era pequena lembra-se que lhe perguntavam o que gostava de ser quando fosse grande.
- Quero ter um sítio para guardar muitos livros.
Aqueles que esperavam ouvir médica, advogada ou astronauta, ficaram escandalizados (coitada da criancinha!).
A livreira estudava de dia com afinco, mas passava a noite acordada a ler livros. Quantas vezes foi para a escola sem dormir!
Quando entrou na universidade, a livreira arrastava-se com o sentimento de que algo estava mal. Longe de casa, refugiava-se na leitura, por vezes não trazia roupa suficiente para a semana toda, mas os livros não podiam faltar e a mala era pequena.
Mudou de universidade para perto de casa e para novo curso em que sentia que algo poderia nascer. Mas enquanto se debatia para ser uma grande Socióloga o bichinho de criança, de ter um sítio para guardar livros, começou a ser tão grande que era impossível de conter.
Quis o destino que a livreira fosse trabalhar para um sítio enorme, um que guardava muitos livros, mas ainda não era seu, faltava essa parte.
Um dia, depois de oito horas de trabalho, passeia com quem partilha o seu mundo de papel; de repente:
- Pára o carro! Pára agora!
Sai e fica extasiada a olhar para a loja vazia. Olha para o lado e a sorrir diz:
- É esta. É agora. Vamos montar a livraria.
E nesse dia o seu coração de papel, quase se sentiu com vida.

sábado, 21 de maio de 2011

Quando uma só vida não chega para filmes assim (3)

560 (6)

Carlos Alberto Machado


"Um milagre qualquer põe sombras nos teus olhos
um rimel especial para tornar castanho o olhar
sob a pressão das pálpebras indecisas
vieste assim triste é essa a sabedoria de prender
os corpos uma laranja que se solta
ao ritmo do coração desarranjado
as pessoas tristes não sabem soluçar
o pensamento está preso fundo muito fundo
e é por isso que apenas se deixam adivinhar
vieste assim triste como eu não sabia
foi ontem há muito tempo esquecemos
ficámos esquecidos a olhar o tempo
trocámos longas cartas com ausência de luz
queimadas desfeitas nas nossas mãos
vieste assim triste e fiquei a olhar-te a pensar
na escuridão a soletrar palavras desconhecidas
vieste assim triste e virás repetidamente virás
até o meu olhar aprender a olhar o teu
vejo ao  longe o mar que ainda brilha
penso em ti assim triste que não virás
as sobras frias do peixe frito sobre a mesa."

Lydia Davis



A Empregada Doméstica


"Eu sei que não sou bonita. O meu cabelo é escuro, muito curto e tão fino que mal cobre o crânio. Caminho de forma desengonçada, como se tivesse uma deficiência numa das pernas. Quando comprei os meu óculos, pensei que eram elegantes - a armação é negra e em forma de asas de borboleta - mas agora sei que não me ficam bem e estou presa a eles, uma vez que não tenho dinheiro para comprar uns novos. A minha pele tem a cor da barriga dos sapos e os meu lábios são estreitos. Ainda assim, sou bastante menos feia do que a minha mãe, que é muito mais velha. A cara dela é pequena, enrugada e preta como uma ameixa, e os dentes balançam-lhe na boca. Mal aguento sentar-me em frente dela ao jantar e posso dizer, pelo modo como me olha, que o sentimento é recíproco. 
Há muitos anos que vivemos juntas na cave. Ela é a cozinheira; eu sou a empregada doméstica. Não somos boas serviçais, mas ninguém nos despede porque ainda somos melhores do que a maioria. O sonho da minha mãe é juntar dinheiro suficiente para me deixar e ir viver no campo. O meu sonho é quase igual, excepto num detalhe: quando me sinto furiosa e infeliz, olho para as suas mãos que mais parecem garras, do outro lado da mesa, e desejo que morra engasgada com a comida. Então ninguém me impediria de ir ao seu armário e abrir a sua caixa do dinheiro. Vestiria os seus vestidos e os seus chapéus, e abriria as janelas do seu quarto, para deixar sair o cheiro."

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Quando uma só vida não chega para filmes assim (2)

A loaded gun won't set you free

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (10)

(Contado por um livreiro que trabalhou na Feira do Livro do Porto e teve o prazer de presenciar este delicioso momento de humor)


Cliente - Boa tarde! Pedro Almeida Vieira... 
Livreiro - Boa tarde! João Lopes, muito prazer! (culminado com um aperto de mão)
Cliente - (atarantado) José Carvalho.


(Salvou o momento o livreiro que presenciou a cena e que com sangue frio foi procurar A Mão Esquerda de Deus)

Sebastião Alba

NINGUÉM MEU AMOR


Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.



* A Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro, 3.ª edição, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (9)

Cliente - Bom Dia!
Eu - Bom dia! Precisa de ajuda?
Cliente - Sim, ando à procura de um livro mas não me lembro do nome. Sei que fala de um homem que come outros homens, come-lhes o fígado e o coração. E depois um policia mulher apaixona-se por ele, e depois existe um homem mau que o vai dar de comer aos porcos... Está a ver qual é o livro? 
Eu - Certamente será o Hannibal.
Cliente -  Mas não leia isso menina, não leia, o livro é muito violento
Eu - Mas já me contou a história quase toda. E se é assim tão violento porque o vai ler?
Cliente - Porque eu sou macho! 

Quando uma só vida não chega para filmes assim

quinta-feira, 19 de maio de 2011

560 (5)

Álvaro de Campos



TABACARIA

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

                           Álvaro de Campos

Muriel Spark


"Mary Macgregor, embora tenha vivido até ao seu vigésimo quarto aniversário, nunca chegou a compreender que as confidências de Jean Brodie não eram partilhadas com o resto do corpo docente e que a sua história de amor só foi divulgada às alunas. Não pensara muito em Jean Brodie, mas é claro que nunca lhe tivera aversão, quando, um ano depois do início da Segunda Guerra mundial. ingressou na Wrens, onde era desastrada e incompetente e muito censurada. Numa ocasião de verdadeiro infortúnio - quando o seu primeiro e último namorado, um cabo que ela conhecia havia duas semanas, a abandonou, não comparecendo a um encontro e nunca mais a tendo procurado - ela passou em revista o passado para ver se alguma vez na vida tinha sido realmente feliz; ocorreu-lhe  então que os primeiros anos com Miss Brodie, sentada a ouvir todas aquelas histórias e opiniões que nada tinham que ver com o mundo normal, haviam sido o tempo mais feliz da sua vida. Pensou isto de fugida e nunca mais Miss Brodie lhe veio à ideia, mas já tinha ultrapassado o seu infortúnio e recaído na habitual pasmaceira, antes de morrer num incêndio no hotel, quando estava de licença em Cumberland. Mary Macgregor correu para trás e para a frente ao longo dos corredores, por entre o fumo cada vez mais espesso. Correu para um doa lados; depois voltou correu para o outro lado; e em cada uma das extremidades a fornalha do incêndio saiu-lhe ao caminho. Não ouvia gritos, porque o rugido do fogo abafava os gritos; não deu nenhum grito, porque o fumo estava a sufocá-la. Na terceira volta chocou contra alguém, desequilibrou-se e morreu. Mas no início dos anos 30, quando tinha dez anos, lá estava ela apaticamente sentada entre as alunas de Miss Brodie. "Quem espirrou tinta para o chão - foste tu Mary?"
- Não sei Miss Brodie."

quarta-feira, 18 de maio de 2011

José Francisco Azevedo



"Através de qualquer coisa que a marca, a foto deixa de ser uma qualquer." 


Roland Barthes



PHILIPPE HERREWEGHE, 2010


"Chovia muito, mas não serei eu a afirmar
que as últimas notas (Lux aeterna)
faziam da própria morte uma certeza branda.


Até porque a dor impediu um amigo meu
de sair esta noite, até porque sabemos todos que
o amor não é, infelizmente, a única doença incurável.


Nisso, pelo menos, concordamos os três com Mozart
(e com Leonard Cohen). Quase nem parecemos tristes,
saltando de poça em poça, esperando como única estrela


a luz verde de um táxi qualquer em que possamos,
de mãos dadas, esquecer os pecados deste mundo."


Manuel de Freitas




*Emanuel Cameira . Manuel de Freitas . Paulo da Costa Domingos / Edição dos autores

It's not the red of which we bleed

terça-feira, 17 de maio de 2011

A livreira (2)

A livreira aprendeu cedo a ler certas palavras que considerava misteriosas: morte, sofrimento, alegria, prazer, felicidade, dor...
Tentava em vão que os livros lhe explicassem tais mistérios, percebeu depois que, só "na pele" os poderia entender.  No meio dos seus livros, meditava sobre um mundo que de vez em quando lhe atirava pedras à cabeça. 
E foi entre os livros que acabou por ouvir novamente todas as palavras misteriosas, desta vez não procurou entender, desta vez sentiu. Passou a sentir também que as palavras tem duplos significados, e que por vezes uma só palavra pode trazer atrás uma torrente de tantas outras. 
Sem utilizar dicionários sentiu que amar é igual a: felicidade, alegria, prazer.
Recentemente apercebeu-se de uma palavra terrível, uma que se recusava usar por ser feia(e qualquer um pode dizer que não há palavras feias), desta vez a livreira, tão segura no seu mundo de palavras, tão comodamente rodeada pelos seus livros, entendeu e sentiu que cancro é igual: sofrimento, dor, agonia e morte. 
A livreira preferia ficar ignorante de certas palavras. Preferia viver somente nos livros e apenas através deles desvendar os mistérios da vida, pois o seu coração de papel acabará um dia desfeito.

Iris Murdoch (2)


"Na manhã seguinte, como é óbvio, acordei num tormento. Talvez o leitor pense que foi uma estupidez da minha parte não prever que a minha felicidade, neste contexto, não poderia durar indefinidamente. Mas é provável que o leitor, se não estiver neste momento loucamente apaixonado, se tenha misericordiosamente esquecido do que tal estado de espírito significa (e isto, claro, partindo do principio de que alguma vez o conheceu). Como eu próprio disse atrás, trata-se de uma espécie de insanidade. Não será uma insanidade concentrar toda a nossa atenção exclusivamente numa pessoa, esvaziando de sentido tudo o resto à nossa volta, não ter um pensamento, um sentimento, uma existência que não seja em relação com o ser amado? O que esse ser amado «é» ou «representa» não tem aqui a menor importância. Claro que há quem enlouqueça de amor por alguém que, aos olhos de outras pessoas, não vale nada. Vermos pessoas que estimamos escravizadas por gente frívola, vulgar ou desprezível é algo que nos deixa perplexos. Mas mesmo que um homem ou uma mulher fossem tão excelentes e tão sensatos que ninguém pudesse negar-lhes tais atributos, mesmo assim seria uma forma de insanidade dedicar-lhes aquela forma de atenção veneradora a que chamamos amor."

560 (4)

Telhados de Vidro (2)


Se Pudesses Guardar Um Pouco 
Do Sol Para As Noites De Frio


I


"Um movimento mal calculado, um atrito ou um deslize inesperados, a faca desviou-se do seu curso, nada a fará voltar atrás agora. O gume encontrou o dedo, atravessou a pele, rasgou vasos sanguíneos, camadas sucessivas de tecido celular, imobilizou-se junto à trama fibrosa dos tendões e recuou, afastado num gesto reflexo a que, um instante depois, se juntou em clarão a dor. Só então o sangue em lençol fino, progressivamente mais grosso e escuro, cobriu o dedo e começou a gotejar, formando pequenas poças nos lugares de sobreposição, alternadas com pingos em distribuição aleatória. O desalento, a revolta, a raiva de não controlar o tempo, a realidade, a vida. Inúteis, bem sabes. Venha pois o raciocínio, a acção consequente: avaliar o golpe, lavar, desinfectar, fazer um penso em compressão para estancar a hemorragia. Iniciar o lento trabalho de aceitação. Delimitar, conformar, deslocar para outro ângulo de onde descobrir novo olhar. O poema, por exemplo.


II



Da paixão cansei-me (pode acolher tanta morte um corpo, esse mesmo que brilha à luz do desejo, esse mesmo que guarda a promessa da alegria). A verdade gastou-se (isto é o mais fácil de compreender: a verdade gasta-se, quando chegarmos ao lugar de a encontrar, sabemos por fim que não existe). Sobrou o que sou e o que não sou também, pelo meio a linha de uma estreita solidão, e é isto que te dou (isto o que te posso dar). Só aqui, só agora, este sorriso de estar vivo, e por vezes o cansaço, tantas vezes o cansaço (que embora não pareça, faz parte do sorriso). E agora já me entendes?
E agora ainda me queres?"


Jorge Roque


* Telhados de Vidro Nº13, da (fabulosa) Averno