Não me lembro muito bem onde arranjava e onde guardava o papel velho que recolhia e ia levar, num carro de mão muito pouco usual, ao Caldeirada, o farrapeiro da minha zona. Creio que o preço devia ser 5 escudos o quilo. Também não estou seguro disso. Mesmo o que fazia com o dinheiro não tenho a certeza. Provavelmente comprava aquela saquetas com os jogadores da bola. Sim, provavelmente seria isso. Ainda o Tirsense estava na primeira divisão. Disso lembro-me, de ter todos os cartões e deles constar a equipa do Tirsense. Não existia vergonha em recolher o cartão e papel. Já a minha avó e a minha mãe o faziam. Era algo natural lá em casa. Ninguém me obrigava a fazer, fazia porque queria. Mas provavelmente escolhia uma hora com pouco movimento na rua, para não ser visto pelos amigos e não gozarem comigo.
terça-feira, dezembro 29, 2020
A vergonha vem pintada de vermelho
A vergonha sempre foi algo muito presente na minha vida. Não sei porque, mas foi. Bastava alguém me fazer uma pergunta e zás, as bochechas ficavam logo vermelhas. Nunca tive como disfarçar a minha timidez e a minha vergonha. E eu tinha vergonha de tanta coisa. Tinha tão pouca confiança. Tudo parecia um teste. Contudo, em alguns momentos olho para trás e percebo que tive fugachos de confiança. Quase todos eles ligados a trabalhos. Juntar papel. Vender pão à porta da igreja. Vender velharias na praça de sábado de manha. Ser ajudante numa pastelaria. Trabalhar nunca foi motivo de vergonha. Sempre esteve presente na minha mente a família ser trabalhadora, esforçada, muitas vezes quase escrava. Que o digam as costas da minha tia Leopoldina que fazer uma curvatura digna da ponte da Arrábida. Mas hoje a Leopoldina tem 94 anos. Já não trabalha mais. Provavelmente a sua mente continua presa e escrava nos campos que tanto cavou.
E toda aquela vergonha e timidez que eu tinha, já não tenho mais. Bem, será junto dizer que tenho ainda uma pequena parte delas.
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