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Mensagens

Publicação em destaque

2 Livros e 3 Mães

Quando percebi que a minha memória era demasiado fraca para guardar tudo aquilo que não queria esquecer, comecei a escrever diários. Não sei quando isso terá começado, mas foi cedo.  Quando fui para a Universidade a minha Mãe guardou todos os meus cadernos de notas pessoais, os famosos diários, numa caixa de cartão e arrumou-a num armário. Mais tarde, quando os meus pais mudaram de casa, a caixa de cartão mudou-se para o amplo móvel do corredor, na casa nova. Há muitos anos que me separei dessa caixa e dessa parte tão preciosa da minha memória. Dos tempos de Coimbra também já não restam quaisquer cadernos de memórias e nos anos que se seguiram abdiquei da escrita. As crianças para cuidar, o trabalho sempre muito e a ausência de intimidade comigo mesma, afastaram-me da escrita. Recuperei esse hábito há 20 anos, quando definitivamente me instalei em Lisboa e numa vida escolhida por mim.   Com o hábito de escrever diários, voltei, também, ao hábito de tirar notas sobre...
Mensagens recentes

Longe do Mar (6) Eu

Precisava do fim-de-semana. Precisava de dormir sem horas, de me enredar nos meus próprios pensamentos, de dar coerência às minhas emoções e de descansar. Queria ficar comigo por algum tempo, cuidar de mim para mim mesma. Queria ler, queria escrever. A escrita sempre foi a minha melhor maneira de organizar as emoções, de colocar em palavras os indizíveis sentimentos que tantas vezes me assolam. Manter um diário, um registo de desejos e de medos é um habito que guardo da infância e tenho tantas saudades dessa infância das palavras, em que não havia medo. Agora tenho medo das palavras que escrevo. São profecias. Foi com essas palavras que moldei a minha vida, que amassei os meus desejos, que reconstruí as minhas perdas e que tracei o meu rumo. Quase tudo o que sou e o que tenho são essas palavras. Quando arranquei ao esquecimento os meus diários comecei a   ter medo de escrever, de estar a criar um mundo demasiado fantasmagórico, habitado de seres frágeis, perigosamente solitári...

Magia

Gosto de mistérios, de pequenos pedaços de vida que não se explicam, que se escondem ou secretamente se revelam. Gosto dos segredos que se resguardam de olhares alheios e se partilham, em segredo. Aprendi com o tempo a acender a centelha do mistério enviando mensagens secretas, por isso gosto tanto de quem partilha segredos. Gosto de gestos mágicos, de trocas de olhares, de sorrisos que não dizem o que sentem e se desmancham em risos espontâneos. Foi um gesto mágico que me tocou e me prendeu, quando eu menos esperava, quando eu menos queria.  Guardo os meus mistérios nas estórias que conto, nas minhas pessoas inventadas, mas não tenho palavras para quebrar esta Magia.

Longe do Mar (3) Luisa

A Luisa estava a chegar. Eu esperava na plataforma pelo comboio que trazia a Luísa.  Os últimos dias tinham sido estranhos, quase por magia recuperei o contacto com muitos dos meus colegas e amigos de Coimbra, gente de quem não sabia praticamente nada há mais de 20 anos. Ao contrário da Luísa, que sempre manteve o contacto com os colegas de faculdade, o meu percurso tinha sido bem diferente e, quando terminei o curso, iniciei uma nova vida longe daquela que tinha tido na faculdade. O casamento, a mudança para uma cidade de interior, fria e austera, a maternidade, a minha necessidade de afirmação profissional e, depois, o divórcio, foram tomando todo o meu tempo interior deixando um quase nada de espaço onde apenas coube o que ainda restava de mim. Agora, quase sem eu querer, tudo estava a voltar e, por muito estranho que me parecesse, tudo voltava exatamente a partir do ponto em que eu me tinha afastado. Atribui estes mistérios a um milagre chamado facebook . A ...

Não é Amor, é a Vida!

Chegaste até mim na madrugada da maturidade Naquela idade em que já tudo foi  E em que tudo está ainda por acontecer Os primeiros traços da idade estavam aí Os cabelos começavam a rarear e as rugas faziam fios em torno dos teus olhos Mas o teu sorriso era de menino! Chegaste quando já não eras esperado Mas a mesa estava posta para ti Havia flores nos canteiros da memória e música a tocar E eu abri as minhas portas para acolher a tua solidão Coloquei um vestido curto para te mostrar que havia esperança Que, também eu, era ainda uma criança. Não te falei de amor, falei-te da vida! Trouxe-te para minha casa, deitei-te na minha cama Entreguei-te o meu corpo quente, maduro, sábio de outros toques Entreguei-me inteira, sem vergonha, sem culpa e sem mistérios Tomei-te para mim e decifrei os teus segredos, que calei Sabia-te frágil, incerto, esfomeado de amor que procuravas pelas ruas Sabia-te poeta, músico e ilusão Sabia-me em ti, em cada ausê...

Canção de Abril

Era abril e corria uma aragem fria, mas havia calor nas nossas vozes e nos nossos planos. E os nossos sonhos acendiam todas as paixões. O Gaspar sentava-se entre nós, era mais pequeno do que os outros rapazes, a sua pele era mais escura, também era o mais velho e o único que frequentava Direito em regime voluntário. O Gaspar trazia com ele a memória do seu povo ocupado, amordaçado, humilhado. Ao final da tarde discutíamos as resoluções da ONU, a firmeza de Portugal na defesa da autodeterminação de Timor, mas o Mundo tinha esquecido Timor, estávamos na Europeu e havia muros por derrubar.  Mas, era abril e os sonhos ferviam dentro de nós e já não estávamos sentados à volta da mesa a ouvir o Gaspar, estávamos no Gil Vicente, plateia meia cheia, muitos estudantes, alguns professores, representantes locais dos partidos políticos, uma delegação da Amnistia Internacional e, até, dois policias, sentados no fundo sala. Nós conhecíamos o Gaspar, a resistência do Gaspar, mas o...