Bernardo Soares é um tipo particular dentre os
heterônimos do
poeta e escritor
português Fernando Pessoa. É o autor do
Livro do Desassossego, escrito em forma de fragmentos. Apesar de fragmentário, o livro é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX, ao encenar na linguagem categorias várias que vão desde o pragmatismo da condição humana até o absurdo da própria literatura. Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio livro, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. É considerado um semi-heterónimo porque, como seu próprio criador explica "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade."
A instância da ficção que se desenvolve no livro é insignificante, porque trata-se de uma "autobiografia sem factos", como o próprio Fernando Pessoa situa o livro. Dessa forma, o que interessa na prosa fragmentária que Bernardo Soares desenvolve é a dramaticidade das reflexões humanas que vêm à tona na insistência de uma escrita que se reconhece inviável, inútil e imperfeita, à beira do tédio, do trágico e da indiferença estética. Por essa razão, diversos fragmentos do livro são investigações íntimas das sensações provocadas pelo anonimato, pela cotidianeidade da vida comum e todo o "universo" da baixa de Lisboa.
O fato de Fernando Pessoa considerar (em cartas e anotaçoes pessoais) Bernardo Soares um semi-heterônimo faz pensar na maior proximidade de temperamento entre Pessoa e Soares. A crítica especializada tem procurado demonstrar que é exatamente esse jogo de máscaras operado por Bernardo Soares, entre a heteronimia e a semi-heteronimia, o que permite pensar como ainda mais relativo o estatuto de ortônimo que Fernando Pessoa confere a si mesmo quando escreve em nome de sua própria personalidade literária. Nesse sentido, para alguns, o jogo heteronímico ganha em complexidade e Pessoa logra o êxito da construção de si mesmo como o mais instigante mito literário português na Modernidade.
"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. (…) Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, pp 46-7 (Companhia das Letras)