Como havia prometido, voltei para concluir as minhas impressões sobre o meu domingo, na Virada Cultural, em São Paulo. O gran finale ficou por conta da peça Simplesmente Eu, Clarice Lispector, que está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, até 20/6, mas já soube que os ingressos estão esgotados. O meu, por exemplo, foi comprado com um mês de antecedência. A intensa procura é justificada não só pela própria Clarice, essa escritora instigante e que suscita em nós, leitores apaixonados, uma espécie de devoção, mas também pela brilhante e delicada atuação de Beth Goulart, prêmio Shell 2009 de melhor atriz por esse espetáculo. Atuação é muito pouco para resumir o trabalho dela, Beth teve que fazer uma exaustiva imersão na obra da escritora, começando por reler os seus livros, depois “costurar” os textos e, enfim, devolver ao espectador o máximo de Clarice. A mulher, a mãe dedicada, a escritora frágil, a figura egocêntrica, o mito, está tudo lá, em relevo e nas sutilezas, para quem não “esmaga as entrelinhas” e para os distraídos também, basta fazer silêncio e se deixar envolver por todo aquele universo intimista, pontuado por frequentes tensões. A supervisão ficou a cargo de um mestre desse tipo de espetáculo, o diretor Amir Haddad. Imagino que ele tenha trabalhado menos questionando as escolhas da atriz do que editando possíveis excessos.
A escolha dos textos que compõem o monólogo, segundo Beth, se deu de forma intuitiva e fragmentária, como a própria Clarice gostava de trabalhar. No entanto, houve naturalmente uma divisão por temas, o que só ajudou na compreensão geral da peça, porque embora Clarice tenha construído sua obra ao redor de si mesma, a linguagem teatral exige essencialmente diálogos e movimento. Amor, inquietações existenciais, processo criativo, mitificação, entre todos eles o que se sobressai é, sem dúvida, o primeiro, não só pela abrangência, já que se desdobra em amor próprio, pelos filhos e marido, pela natureza, mas principalmente por propor uma reflexão sobre o sentido de amar, que anda cada vez mais empoeirado. A banalização do amor é crescente nos dias de hoje, como já sabemos. Muitas pessoas costumam dizer “eu te amo” pensando que na pronúncia está toda a carga de significação que comporta aquele sentimento, mas não é bem assim. Lembrei-me agora do final de Água Viva e que, infelizmente, não entrou na peça: “Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo”. Ao apagar das luzes, saímos então com a certeza de que apenas nos amamos e ao outro para nos salvar. E de que também os escritos de Clarice, como observou o poeta Felipe Fortuna, sempre desembocam no questionamento da divindade, enquanto padecemos impotentes por não poder responder por nossa liberdade diante de Deus. O final da peça deixa isso bem claro, quando, já cansada de ser Clarice Lispector e abatida pelo câncer, ela clama por Deus e o reverencia como “a pedra fundamental dos destinos que, sem solução, dissolvem-se em erro, fatalidade e mistério”.
O teatro do CCBB comporta no máximo umas cem pessoas, ideal para espetáculos assim, mais intimistas. Sem cortinas, o nosso primeiro contato é então visual, com o cenário que é bastante simples, mas deslumbrante, como vocês podem conferir nas imagens, que, como sempre, fiz escondido rs. Oval, claro, simbolizando aquele vazio que tanto colocava Clarice em contato com a sua permanente solidão e que está tão bem representado no quarto da empregada, em “A Paixão Segundo G.H”. Nenhum objeto cênico ou figurino está ali de forma apenas decorativa, todos ajudam a contar a trajetória da escritora ou de seus personagens. Pouco depois de pisar no palco, por exemplo, a atriz já está com um figurino nude, descalça, sinalizando a presença da inquieta Joana, de "Perto do Coração Selvagem". Mais uma peça de roupa e sapatos altos e entra em cena a Clarice escritora em processo de criação, fumando um cigarro atrás do outro, num gestual de impressionante realismo. Depois a atriz volta ao centro do palco, para pegar um bonde imaginário e viver a introspectiva Ana, do conto “Amor”, e por aí vai. A interpretação de alguns textos lembra muito a do programa “Contos da Meia Noite”, que foi exibido pela TV Cultura, no começo dos anos 2000, e que era um casamento perfeito entre literatura e dramaturgia. Deve ter algum vídeo no You Tube. A própria Beth Goulart participou do programa.
A luz de Maneco Quinderé também é excelente, não tem como não notar. Há um momento em que Beth fica à meia luz, de perfil, na chaise longue, que eu jurava estar diante da própria Clarice, tal a semelhança física entre as duas, o que só somou também. Agora um momentinho gossip. Não queria fazer comparações, mas não resisto. A última peça protagonizada por uma global sobre um texto da Clarice foi o monólogo Água Viva, interpretado pela Suzana Vieira. Vi apenas em vídeo, o que já é bem diferente, mas, mesmo assim, não encontrei a menor ligação entre aquela atriz e a escritora. Nem falo por ela estar sempre na mídia fazendo a linha madura, gostosa e feliz. Não é nada pessoal, pelo amor de Deus. É tão-somente porque acho que ela não tem nada a ver com a Clarice. Já a Beth, não, ela não só é parecida com a Clarice como também é uma ótima atriz e tem uma postura pessoal e sensibilidade muito bacanas. Fiz um videozinho clandestino rs, notem como tenho razão. Sem contar que ela é também bastante gentil. Mesmo correndo para pegar a Ponte Aérea, ainda arrumou um tempinho para a nossa tietagem. E eu, claro, estava lá para receber o meu autógrafo no lindo programa da peça. E voltei pra casa todo feliz, como se tivesse recebido um... “sopro de vida”.
Pessoal, mil desculpas, mas não tenho visitado ninguém ultimamente, porque mal tenho saído do ateliê, por conta de uma série nova de quadros. Em breve, postarei alguns deles aqui e farei a minha "ronda" pela bloguesfera, afinal já estou com saudades também. Bem, um ótimo final de semana a todos. E a vida segue inspiradora. Abração!