Drafts by Francisco Luís Parreira
I came to know that an article I'wrote back in 2010 and published in The Edgar Allan Poe Review (... more I came to know that an article I'wrote back in 2010 and published in The Edgar Allan Poe Review (USA) is now "available" for online consultation for 19 american dollars at the J-stor database. No one at the Edgar Allan Poe Review — which I then allowed to publish my article with no financial compensation — or J-stor ever called for my agreement. Needless to say, this is against my will. I never signed any declaration allowing my authorial and intellectual property over the article to be transfered to any third party whatsoever. Cartels such as the ones we heard about in certain countries operate in the same way. Their processes however are well identified and (in most cases) have the law against them. The undue monetization of intellectual production has on its side a very much effective kind of law: the neoliberal madness that took universities all around the globe by its grip and that we are supposed to count as normalcy. Well, not for me. I publish here, at Academia.edu, the very same article free form any charge whatosever (see my page). The reference is: PARREIRA, Francisco Luís, «Un-Metaphysical Detectives: dialectics of law and mystery in crime fiction». The Edgar Allan Poe Review, 11, 1 (Spring), 2010, pp. 31-39. I strongly suggest sane writers and researchers from around the globe, in a similar situation, to do the same, if not through Academia.edu, then on other sites or their personal pages.
Papers by Francisco Luís Parreira
The Edgar Allan Poe Review
Book Reviews by Francisco Luís Parreira
, inicia-se com uma cha no yu (cerimónia do chá) nos arredores de Tóquio. A caminho do templo, o ... more , inicia-se com uma cha no yu (cerimónia do chá) nos arredores de Tóquio. A caminho do templo, o protagonista Kikuji recorda com repulsa a ocasião na infância em que viu Chikako, a amante do seu pai falecido, a cortar com uma tesoura os pêlos do sinal de nascença que lhe cobria metade do peito. Kikuji está reticente: a cerimónia é organizada pela mesma Chikako, que o convidou e cujas intenções são indecifráveis. A mórbida imagem do sinal dá então lugar à sua antitética: a de uma rapariga que também se encaminha para o templo e que é metonimicamente definida pelo lenço que transporta, decorado com um padrão de mil grous. Na cerimónia, Chikako desempenha o papel de mediadora amorosa, apresentando Kikuji à portadora do lenço. Mas ali também se encontra a senhora Ota, que substituiu em tempos a ominosa Chikako nas atenções do pai. Kikuji, naquela ocasião, ignora ainda que se tornará amante da senhora Ota e, após o suicídio dela, da sua filha Fumiko. A rapariga dos mil grous, Yokiko, atravessará a narrativa como uma "impressão de luz" que logo se extinguirá. Mais tarde, tentando em vão recordar-lhe o rosto, Kikuji pondera o contraste entre a impermanência das imagens da beleza e a vívida memória do peito maculado da senhora Chikako. A percepção de Yokiko ilustra o tropo japonês do mono no awarê, a vigilância emotiva da impermanência do mundo, despertada pela unicidade e pureza de uma imagem -no caso, a dos mil grous. Toda a grande arte japonesa detectou na fugacidade destas imagens o domicílio da beleza autêntica. Mas contra que fundo eclode essa beleza, para logo desaparecer? E, ao desaparecer, o que é que deixa à vista? Eis o segredo da imagem (e do título). Segundo a crença japonesa, o enfermo que modele mil grous em papel tem garantido um pronto restabelecimento, mesmo que se encontre no leito de morte (e não é impossível ver ainda origamis desse tipo à entrada dos templos, como expressões votivas de saúde). O que o título evoca -e assim o tema da novela -é questão da doença. A doença de Kikuji é a possessão pelo passado, em particular o do pai. É enquanto substituto ou fantasma que as mulheres o solicitam. A sua vida assemelha-se a uma reincarnação de amores insubstanciais. Nunca a presença erótica feminina chega a constituir-se em permanência. Kikuji sente-a como uma "onda", um refluir que a cada instante se limita a presentificar o mesmo: uma força exterior a que as suas amantes se submetem, sob o modo patológico da irresolução e da passividade. As personagens cruzam-se no interior das estruturas de relação fornecidas pela cha no yu. Os objectos da cerimónia constituem a paisagem simbólica da narrativa e trazem inscrita a mesma possessão. As taças do chá não se limitam a acumular as marcas do tempo; também prolongam as relações dos mortos que as empunharam. Tal como o veneno que circula nas intrigas humanas, o chá flui de taça para taça, de boca para boca, para produzir os mesmos efeitos. Deste modo, o motivo da doença transfere-se para a própria materialidade da cerimónia. Reagindo à professada falta de interesse de Kikuji na cha no yu, afirma a senhora Ota: "mas tu tens o chá no sangue",
A educação sentimental de Frédéric Moreau, o jovem provinciano que, investido de uma herança ines... more A educação sentimental de Frédéric Moreau, o jovem provinciano que, investido de uma herança inesperada, se instala em Paris, aspira ao amor daquela vaga Madame Arnoux que nunca possuirá e falha o encontro com a revolução de 1848, constitui a matéria da obra mais perfeita e ambiciosa de Flaubert -mas também, talvez, a que mais se aproximou do seu projecto de escrever um romance sobre coisa nenhuma e, nessa medida, a menos compreendida e amada. Foi, porém, o romance predilecto de Kafka; Proust leu-a como ninguém e a genealogia de Em Busca do Tempo Perdido a ela remonta; foi para Eça de Queiroz o mesmo que o Quixote foi para Pierre Ménard: a medida compulsiva da suas aspirações. Já o próprio Flaubert chamou-lhe (perversamente) o "romance de uma geração" e deve-lhe, mais do que a qualquer outra das suas obras, a condição de mestre absoluto da Modernidade. Uma boa pista para se ler A Educação Sentimental é fornecida por André Malraux. Num ensaio sobre As Ligações Perigosas, observava ele que o Visconde de Valmont representou uma novidade absoluta na tipologia do herói romanesco, inaugurando a era do que se pode chamar "le personnage significatif". Esta personagem é a que investe o mundo com um desejo continuado e coerente -e a narrativa que o contém, por seu lado, concebida agora como "intriga", uma projecção subordinada à dinâmica da ambição. Malraux enumera as figuras representativas: o Julien Sorel, de Stendhal, o Rastignac, de Balzac, o Raskolnikov, de Dostoievsky. Aponta depois em Flaubert a perversão explícita desta tradição. As suas personagens, afirma, são as mesmas de Balzac, mas concebidas sob o modo do fracasso e da frustração. A Educação Sentimental, em particular, seria como um romance de Balzac em que nem o autor nem o protagonista acreditassem já na ambição. A memória do romance balzaquiano permeia de facto toda a narrativa. Mas a incorporação dessa memória e a sua glosa explícita por parte de Flaubert estão ao serviço de uma perversidade suprema, sem a percepção da qual não se pode compreender nem a grandeza nem a importância de A Educação... Um exemplo. Os leitores de Balzac recordam decerto aquele empolgado final do Père Goriot em que Rastignac, após sepultar a "última lágrima da juventude" no túmulo de Goriot, contempla Paris do alto do Père Lachaise e lança ao beau monde de luxúria e glória em que ambiciona reinar o seu repto famoso: "À nous deux maintenant!" O repto precede a sua efectiva conquista de Paris, tal como registada nos volumes subsequentes da Comédie Humaine. A lição de Rastignac é sumptuosa. Não apenas Paris será para sempre um lugar que se conquista, como também o género romanesco exprimirá doravante a criação de uma ordem objectiva no mundo, por acção do desejo ou ambição do protagonista. A glosa de Flaubert é uma decepção deliberada. Frédéric afasta-se da campa do amigo Dambreuse e, sem lágrimas derramadas, contempla, do alto do Père Lachaise, uma Paris trivial e insignificante. Flaubert é quase mesquinho. Apenas nos diz que essa contemplação ocorre durante os discursos fúnebres. Não há qualquer tentativa de
O pensamento ressuscitou" -assim exprimiu Hannah Arendt o modo como a sua geração reagiu ao adven... more O pensamento ressuscitou" -assim exprimiu Hannah Arendt o modo como a sua geração reagiu ao advento de Martin Heidegger, de quem foi aluna e amante. No século XX, assistiu-se a essa ressurreição do pensamento pelo menos em duas outras ocasiões. A primeira nos anos de 1930, em Paris, quando Alexandre Kojève, perante um grupo de discípulos venerandos, tratou de reconstituir nos seus seminários a filosofia hegeliana. Cada encontro com Kojève, diria Bataille, "deixava o ouvinte esmagado, morto dez vezes, sufocado e pregado ao chão." A segunda, já no pós-guerra, quando intelectuais de toda a Europa rumavam a Plettenberg, na Alemanha, com o propósito de conhecerem Carl Schmitt. "Schmitt", diria o próprio Kojève, "é o único homem na Alemanha com quem vale a pena falar". Este outrora prestigiado professor de Direito Constitucional, porém, vivia agora como um proscrito, remetido ao silêncio e em exílio interior. Entre 1933 e 1936, gozara o infame privilégio de ser o "jurista coroado" do Terceiro Reich. Fora (equivocamente) julgado em Nuremberga como um dos autores intelectuais da barbárie nazi e em torno da sua obra erguia-se agora o previsível cordão sanitário. Mas em Plettenberg, pelos vistos, também se operava a ressurreição.
Embora um campo de batalha (observou Aristóteles) ofereça um espectáculo deplorável, a representa... more Embora um campo de batalha (observou Aristóteles) ofereça um espectáculo deplorável, a representação dele pode ser-nos agradável. Este paradoxo da mimesis foi actualizado por Nabokov no domínio da perversão sexual e de tal modo que, sob o venenoso alfinete da sua Lolita estilística, se torna comovente o destino do pedófilo Humbert Humbert. Há perversões terríveis que nada têm de sexual; uma das mais repugnantes, por exemplo, é a de viver sem remorso à custa do trabalho alheio, tal como praticada por proxenetas e banqueiros. Mas desde que o proxenetismo passou a ser praticado por estações de televisão, em concursos e "espectáculos de realidade", e que a respeitabilidade dos banqueiros é certificada pelos "comentadores da economia", o respectivo carácter perverso, admiravelmente, deixou de ser notado. De modo que já só o poço da sexualidade, precisamente porque insondável, se mostra apto a absorver as feias qualificações que, como moedas da sorte, necessitamos de lhe atirar -não vá o diabo tecê-las. É que nesse campo bastam dois (ou três) para dançar o tango, como se diz, e quanto mais restrito é o convívio mais surtem os palavrões.
A Psicanálise é um matrimónio. O noivo, um doutor vienense; a noiva, uma infeliz com registo de a... more A Psicanálise é um matrimónio. O noivo, um doutor vienense; a noiva, uma infeliz com registo de amplas devassidões, malograda pelos muitos que a cortejaram e nunca a quiseram tornar respeitável. Os "muitos" são os mestres do doutor. Ela é... a "Coisa". Enquanto que o Dr. Freud acabou por desposar a Coisa, com todos os deveres e dificuldades inerentes, os mestres nunca arriscaram mais que um simples flirt. Quer dizer: andavam sempre com a Coisa na boca, mas nunca a diziam. Foi o não--dito dos mestres que apresentou a Coisa ao doutor. O caso é narrado na História do Movimento Psicanalítico, de 1914. O ironista Freud, meditando sobre o seu trabalho e antecipando Pessoa, descobre a certa altura que "não meu, não meu é quanto 'screvo" e que a ideia original de que se fizera responsável não nascera afinal no seu espírito; os mestres, sem saberem, é que lha tinham comunicado: "as sugestões deles dormiram em mim durante anos, para depois despertarem sob a forma de uma ideia aparentemente original."
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América "Público", suplemento Ipsilon, 2008 Num país cuja... more Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América "Público", suplemento Ipsilon, 2008 Num país cujas prioridades intelectuais, admiravelmente, não parecem passar pela filosofia política (e onde a carência dela mais drasticamente se faz sentir) é raro que um grande texto representativo conheça uma edição excelente. Que um mesmo texto conheça duas edições excelentes é quase inquietante. Cabe à Relógio d´Água, desta vez, suscitar esta feliz inquietação, acrescentando à edição da Principia, que desde 2001 serve entre nós de referência, a sua não menos recomendável edição de Da Democracia na América. É ocioso procurar vantagens decisivas numa ou noutra edição. Devo assinalar, porém, que a da Relógio d'Água importa para prefácio um muito instrutivo ensaio de François Furet (além de ser mais portátil).
Na origem de Da Democracia na América agiram circunstâncias relacionadas com o lento e convulso n... more Na origem de Da Democracia na América agiram circunstâncias relacionadas com o lento e convulso nascimento da democracia francesa. Em 1830, a Revolução de Julho depôe os Bourbon e etroniza o "rei-cidadão" Louis Phillipe, dando origem a essa singularidade conhecida na história política como "monarquia burguesa". O conde Alexis de Tocqueville, magistrado em Versailles, não se mostra entusiasmado. Decide abandonar a magistratura. Solicita ao rei-cidadão uma licença para se deslocar ao Novo Mundo, alegando o objectivo de estudar o sistema penal da República Americana. Louis Phillipe, que desconfia do conde, dificulta burocraticamente a viagem e não o deixa partir sem um juramento de fidelidade. Só em Maio de 1831, a um mês de cumprir 26 anos, é que Tocqueville desembarca em Rhode Island. Apressado pela contingência política, viaja, porém, com um objectivo mais antigo e essencial: conhecer de perto a primeira e maior democracia do mundo moderno. Nos nove meses de permanência nos Estados Unidos, percorre as principais cidades, contacta os homens eminentes da república, lê os jornais, absorve a doutrina e as instituições, interpela o homem comum. Também naufraga no Mississipi, edifica uma cabana na fronteira, esgota cadernos de anotações. A importância destas anotações é incalculável: elas representam uma segunda descoberta da América, desta vez no plano das ideias. Da Democracia da América foi delas originada e não é justiça bastante dizer que se trata do melhor texto jamais escrito sobre a América; é também, ainda hoje, o melhor texto jamais escrito sobre a democracia. Os dois primeiros volumes surgiram em 1835 e de imediato valeram a Tocqueville um lugar eminente entre os escritores políticos do seu tempo. Mas só em 1840, quando saem os dois volumes restantes, é que a verdadeira grandeza da obra se torna perceptível. Mais meditativos e filosóficos, não conseguem, porém, repetir o êxito dos primeiros. Saint-Beuve, um dos maiores entusiastas da primeira parte, deplorou na Revue des Deux Mondes que a América se tivesse tornasse um pretexto e que o autor se dirigisse agora às sociedades modernas no seu todo: "Faltam-lhe no entanto os exemplos com que ilustrar ou animar as suas páginas." O próprio Tocqueville, em carta a John Stuart Mill, esclarecia este aspecto: "Quando apenas falei dos Estados Unidos, tudo era compreensível; se falasse da democracia francesa, tal como começa a formar-se, também me faria compreender. Mas, partindo das noções que me fornecem as sociedades americana e francesa, quis pintar os traços gerais das sociedades democráticas, de que não existe ainda nenhum modelo completo." Deste modo, elaborava já Tocqueville aquilo a que Max Weber, setenta anos mais tarde, havia de chamar o "tipo ideal", esse composto de realidade concreta e abstracção que está na base do método sociológico. O alcance desta inovação escapou a Saint-Beuve, mas garante, em contrapartida, a actualidade permanente da obra. E, de facto, aquelas mesmas palavras de Tocqueville que talvez carecessem de "exemplo" para os seus contemporâneos, tornam-se para o leitor de hoje a imagem acabada do seu presente imediato.
" Público", suplemento Ipsilon, 2008 Naquele evangelho intitulado Moby Dick, cabe a Ishmael defin... more " Público", suplemento Ipsilon, 2008 Naquele evangelho intitulado Moby Dick, cabe a Ishmael definir a impiedosa obsessão do Capitão Ahab: "os teus pensamentos formaram uma criatura dentro de ti". Toda a existência de Ahab é movida (e por fim destruida) pelo imperativo de aniquilar uma baleia branca. A criatura que nele se forma é o duplo da baleia; possui-o com a sua fanática brancura. Escondida no oceano ou no fundo da criatura, olha-se para essa brancura, a um tempo santa e demoníaca, como para "as imensidades sem coração do universo" e sempre com risco de cegueira total. Este risco não assombra apenas Ahab, mas todas as desoladas criaturas de Melville. O inocente Billy Budd, o soturno Benito Cereno, prometem também uma plenitude branca e cega, na qual a autenticidade e a destruição de si mesmo se confundem numa única experiência.
escrivão "Público", suplemento Ipsilon, 2008 A presente edição reúne dois textos. No primeiro, de... more escrivão "Público", suplemento Ipsilon, 2008 A presente edição reúne dois textos. No primeiro, de 1993, o filósofo italiano Giorgio Agamben consagra-se ao escrivão Bartleby e ao enigma que ele propõe desde o remoto ano de 1853 em que Herman Melville o pôs a "preferir não" num escritório de Wall Street. O segundo é o conto de Melville, na tradução de Gil de Carvalho, a mesma que em 1988 a Assírio publicou em volume autónomo (e agora revista pelo editor).
Murasaki Shikibu nasceu no último terço do século X, na corte imperial japonesa de Heian-kyô, hoj... more Murasaki Shikibu nasceu no último terço do século X, na corte imperial japonesa de Heian-kyô, hoje Quioto, a "Cidade da Paz e Tranquilidade", fundada pelo Imperador Kamu no ano de 784. Os quatro séculos compreendidos entre a fundação da nova capital e a imposição do regime militar de Miniamoto no Yoritomo, em 1185, são conhecidos na história japonesa como "Período Heian". Das coisas que é costume associar ao Japão, nenhuma existia ainda no Heian: nem os prodígios dramáticos do Nô ou do Kabuki, nem as xilografias do "mundo flutuante" (ukiyo-e), nem o haiku, nem a arte de dispor as flores, nem a tolerância (ou veneração) do suicídio, nem os samurais, nem as geishas, nem mesmo a dieta de peixe cru. Foi porém no Heian que se originou o complexo mundo espiritual que amparou estas formas culturais e, em geral, a extraordinária experiência humana (um pouco mais misteriosa que as outras) chamada Japão. O testemunho monumental desse mundo devemo-lo a Murasaki e tem a improvável forma de um romance. O que dela se sabe é elementar. Terá acompanhado o pai a Echizan, quando ele foi nomeado governador dessa província. Regressou à capital para casar com um conselheiro imperial. Praticou a poesia e predominou nos serões da corte. Embora se refira 1014 como a data da sua morte, é possível que então apenas tenha morrido para a mundaneidade e que tenha vivido mais alguns anos em retiro espiritual, segundo a profissão de fé budista expendida no seu diário (de que nos chegaram fragmentos). É incerto até que Murasaki fosse o seu nome; na corte imperial, era de mau tom proferir os nomes próprios e esse interdito prevalece também nos registos. No Romance do Genji, agora traduzido em Português, a dama que vence duradoiramente o coração do protagonista chama-se Murasaki. Talvez a posteridade tenha resolvido perpetuar a criadora com o nome da criatura. Não é injusto. O Genji não será apenas (como defende razoavelmente a Unesco) o primeiro romance da história da literatura; é também uma das suas obras-primas perpétuas. É, por conseguinte, o documento eloquente de uma visão literária única e o verdadeiro resgate da existência da Dama Murasaki. O Genji é um príncipe de sangue, nascido da união do Imperador com uma Consorte Menor e, por isso, excluido da sucessão dinástica. É assinalável que no romance ele não realize nenhuma das façanhas atribuidas aos seus antepassados. Aquilo em que pensa é na sua carreira, nos seus amores, nos seus filhos; quando a morte e a adversidade ensombram os seus pensamentos é para mitigar-lhe a felicidade com melancolia ou para encorajá-lo à paciência. O Genji é o produto de um Império pacificado. O ideal japonês de Império surgira no século VII e visara um princípio de unidade capaz de moderar as vassalagens particulares que devastavam o arquipélago. Atingiu esse objectivo por meio de duas importações chinesas: o modelo administra-
O desejo entre os crisântemos Murasaki Shikibu, O Romance do Genji "Público", suplemento Ipsilon,... more O desejo entre os crisântemos Murasaki Shikibu, O Romance do Genji "Público", suplemento Ipsilon, 2008 No século XIV, trezentos anos após a redacção do Genji, o Budismo Jodo proclamou a Dama Murasaki como encarnação do bodhisattva Kannon, o Buda da Compaixão, a que o romance faz referência, e ainda hoje o templo de Ishyama preserva um pendão que representa o avatar de Murasaki. O objectivo do Buda, ao escolher o invólucro carnal de uma cortesã de Quioto, teria sido o de facultar a iluminação sob a forma de um romance. O já remotamente legível Harold Bloom, na contracapa da edição portuguesa, declara que a lição principal de Murasaki é a do enamoramento e que, mesmo sem a termos lido, somos todos, por assim dizer, aprendizes dos seus elixires. O próprio romance, deste modo, tem as suas reencarnações -e não menos espectaculares: atravessam o incomensurável céu de um milénio inteiro e somos nós. O Genji teve sucesso imediato nas camadas ilustradas do Japão Heian, no século XI. Disso prestam testemunho duas obras da época: o diário da Dama Sarakina e o célebre Livro de Cabeceira, de Sei Shonagôn, a rival de Murasaki na supremacia poética da côrte. Deu depois origem a boa parte dos contos populares do Japão medieval e forneceu personagens e motivos aos dramas Nô. Não sem nostalgia, o mundo conturbado dos samurais havia de adoptá-lo como cânone estético. Durante séculos, integrou a educação das jovens damas e proporcionou-lhes o espelho do comportamento ideal. Para os vários nacionalismos eruditos ou políticos japoneses, serviu como prova histórica de uma sensibilidade nacional. No século XX, agitou as melhores imaginações. Foi trasladado para o japonês moderno por Akiko Yosano, a exuberante poeta feminista. Jun'ichirô Tanizaki, em 1939, ousou uma versão, logo proibida pelo governo imperial. A monja Jakuchô Setoushi reescreveu-o. O próprio Kawabata empreendeu uma versão, mas essa obra-prima presumível foi interrompida pelo seu suicídio. Chega-nos agora o primeiro tomo da encarnação portuguesa. O mercado livreiro português produziu ultimamente um conjunto de edições de excepcional relevância cultural: as traduções do Orlando Furioso e do Kalevala, o poema nacional finlandês; as novas versões de O Burro de Oiro, de Apuleio, e das Metamorfoses de Ovídio, eloquentes quanto à elegância e competência da nossa nova geração de classicistas. O Romance do Genji vem integrar este conjunto restrito. A edição dos grandes textos, numa forma que não prescinda dos seus direitos culturais (em boas traduções e com aparato crítico), é hoje uma prova conclusiva de coragem editorial, mas o mérito destas edições é sobretudo atribuível aos tradutores e à latitude, diria existencial, do seu trabalho. A presente tradução parte de três congéneres de referência: a inglesa, a francesa e a castelhana. Este seu carácter subordinado não a diminui em qualidade e, em todo o caso, o Japonês medieval excede hoje as melhores possibilidades da tradução nacional. De resto, nem sempre a perícia na língua original é caução bastante. É o que acontece em geral com as traduções portuguesas de Shakespeare emanadas de
Karl Popper, Busca Inacabada (Autobiografia Intelectual) "Público", suplemento Ipsilon, 2008 Busc... more Karl Popper, Busca Inacabada (Autobiografia Intelectual) "Público", suplemento Ipsilon, 2008 Busca Inacabada foi redigida por solicitação dos editores da Library of Living Philosophers e destinava-se a acompanhar o volume de ensaios que, em 1974, aquela prestigiosa colecção dedicava a Karl Popper. O contributo do filósofo para essa edição compreendeu também uma réplica aos seus críticos, publicada no volume principal. A autobiografia exprime a mesma intenção apologética. A páginas 34, lê-se: "os únicos fins intelectualmente importantes são: a formulação de problemas, a proposta provisória de teorias para resolvê-los e a discussão crítica das teorias em competição." Em congruência, empenha-se Popper menos em narrar a vida do que em recapitular os problemas (e soluções) que animaram a obra. Uma discussão com o pai, por exemplo, é relembrada apenas para formular a sua posição anti-essencialista, logo a seguir demonstrada. Num dos principais demolidores do psicologismo e do historicismo no século XX, não é surpreendente uma percepção da própria vida tão singularmente expurgada dessas "tentações intelectuais".
Karl Popper, A Pobreza do Historicismo "Público", suplemento Ipsilon, 2008 Embora a duradoura inf... more Karl Popper, A Pobreza do Historicismo "Público", suplemento Ipsilon, 2008 Embora a duradoura influência de A Pobreza do Historicismo, desde a sua edição inglesa em 1957, se tenha exercido sobretudo no domínio da filosofia política, a tese ali exposta é, antes de mais, de natureza epistemológica. Um modo simples de a compreender é relacioná-la com o ideal de legalidade científica herdado da Idade Moderna. Este ideal -a concepção de que a ordem natural se exprime na forma de leinão decorreu (como é costume ensinar-se) do carácter "experimental" da nova ciência moderna, mas da súbita maturação no século XVII da noção matemática de função. Uma função (por conseguinte uma lei) exprime a correlação entre dois números variáveis, um dos quais é uma função dependente do outro (o que se escreve x = f(y)). Acontece que, com esta forma, a lei resiste embaraçosamente a uma exigência científica fundamental: a de se verificar o seu valor empírico. É que, para qualquer domínio da realidade, existe sempre um contínuo virtualmente infinito de valores ou instâncias de X, em especial no futuro, o que impossibilita a verificação experimental completa da correlação estabelecida na lei.
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