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De que nada se segue

De que nada se segue A propósito do centenário de Samuel Beckett A celebração do centenário de Beckett talvez envolva um elemento avesso às noções eminentemente festivas que estas iniciativas por regra comportam. A obra é esplêndida e, um dia, se os registos perdurarem, talvez Auschwitz, o Imperialismo Atómico e Beckett bastem a dar conta de uma memória específica do século XX. Mas a sua obra é também o monumento de uma perda e de um luto. Em particular, os agentes do teatro estão (se assim podemos dizer) na primeira fila desse paradoxo: no acto de prestarem a sua homenagem, celebram uma obra que comprometeu deliberadamente toda a possibilidade de determinação teatral da experiência humana. Por outras palavras, uma obra que se propôs a impossibilitação do teatro e que, na medida do seu êxito, só pode ser por eles celebrada na forma mista do luto e da melancolia. De facto, no grande cemitério das formas artísticas da modernidade, é na lápide do teatro que, mais nitidamente e sem receios espúrios, podemos inscrever as necessárias datas do nascimento e da morte. O teatro moderno nasceu com a revisão shakespereana da experiência trágica e morreu com a destruição beckettiana de toda a relação entre o trágico e a representação. Mas não o lamentemos, não podia ser de outro modo. Essa morte foi apenas o eco de uma outra mais geral e conclusiva, a que também não assiste nenhuma promessa de ressurreição. O teatro morre porque o tempo de que foi forma legítima cumpriu o seu ciclo. Que Beckett tenha liquidado o teatro, apenas comprova a relação de lealdade que todo o grande autor estabelece com o tempo que lhe é dado testemunhar. Que tempo? Uma das questões recapituladas no centenário que agora se celebra é a de saber se Beckett foi afinal o último dos autores modernos ou o primeiro dos tempos que se sucederam. O essencial da questão joga-se na percepção de um mundo que acabou e de outro que nasceu, e de que algures pelo meio está Beckett. É certo que a modernidade morreu, mas não parece que alguma coisa se lhe tenha seguido. O mais sensato será compreender a desolação destes tempos segundo a mais apta conceptologia do fim da História. Com a modernidade, morreu também a promessa de redenção pela História do fracasso essencial da experiência humana. Após a agonia da modernidade, nenhum promontório se abriu, a não ser aquele de onde se contempla a replicação infinita da própria agonia, acompanhada de todas as ilusões características, nomeadamente a de que as coisas ainda se movem devidamente legitimadas por alguma espécie de sentido. Mas as desoladas excitações desta época de acontecimentos são apenas o modo que as coisas têm de se mexer para que, na verdade, nada aconteça. Testemunhamos assim a inconcebível dilatação de um tempo de penúria ou isenção de significado que, embora repartido em peripécias a que ainda chamamos históricas, não perde por isso as qualidades unas e indivisas de todo o estertor final. Ora, é justamente nesta agonia dilatada, neste prolongamento insustentável de uma aproximação ao nada, que se situa a obra de Beckett — e nisso reside a sua lealdade. Na origem do teatro moderno, Hamlet colocou famosamente a questão de ser ou não ser, de reafirmar a vida ou invocar a morte. A morte, ponderava ele, comportava todos os benefícios da supressão total, a menos... A menos que sonhos a preenchessem. E o príncipe abismava-se perante a terrível imagem de uma morte, de uma total impotência em que, sem poder acordar, ainda lhe fosse dado desejar (sonhar) — e recuava. Mas as personagens de Beckett representam a entrega total a essa imagem. Desejam, mas não estão acordadas. Duplicam os atributos da morte na sua vida rarefeita e não pertencem exactamente nem a uma nem a outra. Constituem, como o tempo de que são sintomas, um estado de excepção existencial, dado enquanto eternidade da agonia. Dão a ver, assim, a situação que caracteriza o homem do fim da História. Na sua agonia, como na nossa, todo o mundo tradicional da ficção é preservado, como se o tempo dialéctico, o amor, a servidão ou qualquer laço humano ainda existissem — mas nenhuma expectativa de finalização já fosse possível. E vão rememorando na agonia essas imagens da História, mas apenas enquanto pura forma, exauridas numa recapitulação inane, já sem vida genuína a que sirvam de expressão.