DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

21/12/2024

Tristes tempos ou tempos tristes...

 Escrita cuneiforme-sumérios-Mesopotâmia




Ontem pensei que havia pensado um pensamento mas quando tentei pensá-lo outra vez era tarde demais: havia perdido a Manhã, e a Noite já estava saindo às pressas com o Dia. Tristes tempos de estrambóticas tecnologias que amealham cabeças, guilhotinam ideias, multiplicam solidões. Cada era tem o seu pensar; todo passado é uma semeadura. Nas franjas da escrita a palavra deixa a sua História.

13/12/2024

Dúvidas

 

Alberto Burri




Jiló. Amargo que nem o coração apertando o peito, e a dúvida se é legume ou fruta; se a vida passa ou fica amarga com o passar dos anos; se a uva é fruta ou passa e adocica quando enruga a pele e transparece seus vasos comunicantes. Os veios atravessam o tempo e a luz? Bobagem, fruta ou legume o jiló será sempre amargo, resta saber se queremos ou se temos condições de suportar seu amargor. Enquanto nos enganamos com supostos questionamentos infrutíferos o tempo vai passando imperceptivelmente, e com ele a nossa vida...Por outro lado, são as dúvidas que nos levam adiante, que nos dão a exata dimensão de nossa incompletude, de nossa imperfeição. 

06/12/2024

Invenção

 



Tinha asas duplas que se escondiam na sombra do sol que incidia sobre a parede. Duas delas se foram com o pensamento que voou até amarelecer a tarde que teimava em não anoitecer. Quando a noite caiu voltaram porque as estrelas haviam pousado sobre si: cada uma foi pro seu lado e o pensamento continuou voando. Planando sobre a cidade deu de cara com uma nuvem de predadores: urubus gaviões carcarás. Devido ao acinzentado da hora concluiu que seria melhor fechar as asas e tornar-se uno e indivisível. E acordar!  

28/11/2024

Um lembrete:

 

Aldemir Martins




Quando vires uma ainda que pequena nuvem escura no horizonte; quando ouvires ainda que ao longe um zumbir parecido com o voo de abelhas; quando sentires no ar um odor nauseabundo, não duvides: há algo de podre ao redor de ti. E se no meio da madrugada acordares em sobressalto supondo ser mais um daqueles pesadelos, não te assustes, é apenas a realidade impondo-se sobre teus insensatos sonhos!

Sonhar que está nas nuvens, num mar de rosas, que ouve as palhas do coqueiro quando o vento dá, ou mesmo o canto do galo ao amanhecer, pode ser apenas um delírio provocado pelas águas de um colírio!

20/11/2024

Cruz e Sousa, o "poeta negro" *


 


Vida Obscura


Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro

Ó ser humilde entre os humildes seres.

Embriagado, tonto de prazeres,

O mundo para ti foi negro e duro.


Atravessaste no silêncio escuro

A vida presa a trágicos deveres

E chegaste ao saber de altos saberes

Tornando-te mais simples e mais puro.


Ninguém te viu o sentimento inquieto,

Magoado, oculto e aterrador, secreto.

Que o coração te apunhalou no mundo.


Mas eu, que sempre te segui os passos,

Sei que cruz infernal prendeu-te os braços

E o teu suspiro como foi profundo!


Post Mortem


Quando do amor das Formas inefáveis

No teu sangue apagar-se a imensa chama

Quando os brilhos estranhos e variáveis

Esmorecerem nos troféus da Fama.


Quando as níveas estrelas invioláveis, 

Doce velário que um luar derrama,

Nas clareiras azuis ilimitáveis

Clamarem tudo que o teu Verso clama  


Já terás para os báratros descido,

Nos cilícios da Morte revestido,

Pés e faces e mãos e olhos gelados...


Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas

Pelo alto ficarão de eras supremas

Nos relevos do Sol eternizados!


* João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, atual Florianópolis (SC), em 1861. Era filho de escravos alforriados. Foi jornalista, professor e poeta simbolista. Faleceu em 1898 vítima de tuberculose.

17/11/2024

Lugar comum

 




Sentou-se à varanda. Era tarde quando aquelas gotículas começaram a cair. Lembrava-se que parecia ser noite tão escuro amanhecera o dia. Antenas subterrâneas guardam canções de silêncios: inaudíveis recordações. Passos pesados deslizavam sobre um tablado rangente cujo som se propagava monocordicamente ensurdecendo os sentidos.

Te vejo te escrevo te leio.

Decifras-me?

Ou me devoras?

10/11/2024

Tartarugando...

 


Tartarugando pelos cantos escuros da Terra pressinto o seu ranger de dentes; escuto um batuque de tambores ancestrais, ritmado pela cadência da pisada de um rinoceronte enfurecido e faminto.

19/10/2024

Ficção ou imaginação?

 





Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? -         Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques e taques dos dias e noites das noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas que doravante não será fácil atribuir um sentido propriamente literário a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos de fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler.        

08/10/2024

(Re)FLUXOS





Pensou que tinha sonhado. Voou...Sonhou que tinha sonhado e pensou: será que estou voando? Quando acordou teve a nítida sensação de ainda estar nas alturas. Levantou-se e começou a flutuar agachada ao lápis que estava preso nas asas do vento, e era um vento tão forte que seu pensamento disparou criando milhares de lápis, como se fossem moscas vistas de longe, com aquele zunido infernal que fazem os microventiladores. De repente a porta bateu o telefone tocou o vento parou. Teria sonhado? 

29/09/2024

Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim *

 




Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?                                                         O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.                           Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.                                           Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" - mas não o fiz para não entristecer o homem.                                                   Espero que uma velhice tranquila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios - me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso, pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama, a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?)                                Alguém já me escreveu também - que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação - contra a língua." Mas acho que isso é exagero. Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Espero que nunca na minha vida, tenha escardinchado ninguém, se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.           Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar. Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairel, caireta, cairota ou cariri - e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas de Última Hora ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de O Globo?                                                  No fundo, o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros. Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo de póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente - de Cachoeiro de Itapemirim!

Rio, 1959


* Rubem Braga (Cachoeiro de Itapemirim-ES/ 1913-1990).