29.10.07

Risinhos irritantes

Corri até à parede mais próxima e, sem medo, dei uma, duas…nove cabeçadas. Tantas quantos os números que havia contado enquanto esperava um sinal seu. Como compensação, ganhei um galo na cabeça e a dor de saber que a não voltaria a ver. Por mais que andasse às voltas e tentasse distrair-me, eu não conseguia esquecer aqueles olhos. Pelo menos enquanto me doeu a cabeça!
Ainda com as ideias meio turvas, tal fora a violência das turras, andei à toa para cima e para baixo. Eu tinha de a reencontrar. Enquanto me perdia entre ruas e ruelas escuras, imaginei os segredos e as vidas que se escondem para lá de cada uma das portas ou janelas por que passava. É um jogo que costumo fazer frequentemente quando me quero esquecer de alguma coisa ou de alguém. Já era tarde, nem me tinha apercebido de como o tempo tinha passado.
Parei para acender um cigarro. Ouvia-se uma musica que saia directamente da janela de um primeiro andar de um prédio tipicamente alfacinha. Embora a janela fosse pequena e a luz fraca, via-se por detrás de uma cortina branca, um vulto de mulher. Ela despia-se. Pela forma como o fazia, adivinhava-se que não estaria ali sozinha. Não havia mais ninguém naquela rua senão eu. Escondi-me sob a protecção de uma porta. Com o escuro da noite a proteger-me, fiquei ali a espreitar como um garotinho que vê pela primeira vez o corpo de uma mulher. Era engraçada a sensação de estar ali. Ver e não ser visto, olhar sem tocar. O prazer de estar a observar sem ser observado. Não é que me excite a observação só por si. Não! Não sou viciado em corpos desnudados nem em pornografia... definitivamente, não sou propriamente aquilo a que vulgarmente denominamos por “espreitas” ou ”Voyeur“. O que verdadeiramente me atraiu naquela situação, foi o facto de me sentir transportado para dentro daquele quarto, daquela musica, daquele ambiente sem ser visto. Quem nunca numa desejou ser mosca? Naquele momento eu era a própria da mosca que já havia desejado ser em tantas outras ocasiões. Partilhar um universo que não é o meu e não conheço, com alguém que nunca vi nem vou conhecer. Partilhar um momento tão intimo como é o de assistir a alguém a despir-se para outrem.
A forma como aquela mulher se despia - apesar de não ser especialmente esbelta - estava carregada de sensualidade. Lentamente e em gestos previamente ensaiados, tirava uma a uma as peças de roupa que trazia. E eu ali a ver. Por momentos imaginei que ela sabia da minha presença e que o fazia para mim. Quando se preparava para tirar a ultima peça de roupa que lhe cobria o peito e revelar a sua completa nudez, alguém que não eu, sem qualquer aviso prévio apagou a luz. Daquela janela saia uma escuridão total e uns risinhos irritantes! Má sorte a minha, pensei! Acendi outro cigarro e fiz-me ao caminho enquanto constatava como o meu comportamento fora estranho.
(M.C - 1996)

Lai Lai despedida

23.10.07

Verdes e grandes

A rapariga irradiava bem estar numas calças tipo uniforme militar. Camisola de alças de algodão branca e uns ténis de sola grossa, que ata invulgarmente em volta do tornozelo. Está a observar um jovem que passa à sua frente. Segue-o com o olhar. Ele, nitidamente incomodado, olha timidamente para o chão, seguindo o seu caminho sem olhar para trás. Ela sorri sonora e descaradamente. Foi neste preciso momento que os nossos olhares se cruzaram pela primeira vez.
Verdes e grandes. Inesquecíveis aqueles olhos! Inesquecível aquele momento! Perdi a noção do tempo. Devemos ter ficado ali assim, imóveis, sorridentes a olharmo-nos olhos nos olhos cerca de dois… três minutos. Ela apetecia-me. E o pior é que eu não conseguia disfarçar isso. Numa atitude ousada como julguei não ter coragem, passei à frente dela. Fiz um olhar provocador q.b. e boquinhas como só eu sei. De andar sexy - tanto quanto me foi possível - segui rua abaixo na esperança que ela metesse conversa comigo! que me chamasse, que me fizesse um sinal, que me desse uma deixa para eu meter conversa. Depois de passar por ela, reduzi drasticamente a velocidade do desfile.
... Ela não me chamou! não fez nenhum sinal, nem me deu deixa alguma! Naquele instante apeteceu-me virar para trás e chamar-lhe todos os nomes que me viessem à cabeça: Estúpida!, suína!, cruel! Azeitona! convencida!, ranhosa! linda! ...
Mas não! Em vez disso, sem olhar para trás, e ainda com a esperança que ela desejasse tanto falar comigo como eu com ela, contei baixinho: 1... 2... 3... 4... 5... 6... 7?... 8... 9!...
Não cheguei ao 10! tinha ao menos de ver se ela continuava ali a olhar e a sorrir para mim. Virei ligeiramente o pescoço. Depois voltei o corpo todo. Num movimento rápido olhei em todas as direcções e nada. Voltei a olhar e olhei outra vez. Nada!
Ela não estava ali e eu já não sorria nem acreditava que pudesse voltar a vê-la.
(MC-1996)

19.10.07

EU NÃO QUERO MORRER!

Eu peco tu pecas ele peca … e os outros?
beija-me.
Não me consigo esquecer.

Beija-me!
Beija-me.
É a morte.
Eu não quero morrer.
Beija-me!
Beija-me uma ultima vez.
As meninas boas vão para o céu e as outras…?
Eu não quero morrer…beija-me.
(coro - 7 p.m)

18.10.07

top model

A velha das flores, arruma os cestos reclamando a venda, como fez ontem e antes de ontem e durante toda a semana.
- Hoje não quer nada menina?- Pergunta esta à empregada da loja de roupa de autor, que se prepara para fechar a loja.
- Menina! menina! é consigo. Então hoje não quer nada? - Insiste. “É para me estrear!” Acrescenta. A rapariga abana a cabeça esboçando um discreto sorriso anémico. Lança um olhar tipo de estrela cinema. Fecha a porta. Lábios vermelho flamejante e maquilhagem perfeitamente retocada. Indiferente, segue o seu caminho de andar sacudido, formosa e pouco segura nos finos saltos de 12 cm. Usa saia de tamanho reduzido Donna Karen, blusa Giane Versace, que propositadamente deixa desabotoada para inocentemente mostrar o abundante peito. Na cabeça uns magníficos óculos Armani e na mão, uma minúscula “pochete” de vinil rosa choque a dar com o fino cinto de verniz, que faz conjunto com as sandálias de tiras entrelaçadas no mesmo tom.
A rapariga tem uma imagem fantástica, talvez demasiado plástica, demasiado sofisticada, tipo “top model” tipo estúpida!... Mas sem duvida chamativa. Que o digam o grupo dos “pilas murchas” que todos os dias ali se juntam para jogar às cartas e a ver passar.
(MC-1996)

16.10.07

Ser poeta


Cármen Dolores "dizendo" "Ser Poeta" de Florbela Espanca, na cerimonia de homenagem aos actores Mário Sargedas e Mário João Sargedas.

Recado

Excepcionalmente - por motivos que se prendem com a programação do Cineteatro - esta quarta feira não haverá ensaio.

11.10.07

O Bairro do Amor

A zona do Bairro do Amor proporciona o melhor entardecer que conheço. Ao fim da tarde, quando o dia se confunde com a noite, chulos de outros e destes tempos, devagar, ocupam os lugares à muito conquistados. Cumprindo o destino, mulheres de pouca sorte surgem de ruas e travessas, distribuindo-se por portais e esquinas, preparadas para mais uma noite de actividades secretas, por todos demais conhecidas. Nas tradicionais tascas, pseudo intelectuais interrogam-se sobre o destino do mundo depois de uma tarde inteira de conversa onde se falou de tudo, de todos, de nada e de ninguém. Fuma-se um ultimo cigarro antes de regressar à solidão do lar.
Jovens aspirantes a artistas, caminham em grupos de três ou quatro e com o entusiasmo próprio da idade, tecem considerações sobre as ultimas novidades da literatura, cinema e outras artes. Alegremente, em passo apressado, misturam-se entre os característicos habitantes do bairro. Carregam enormes pastas que exibem orgulhosamente, transbordando sonhos, projectos e coisa alguma.
A noite trás o frio e o mistério! Na noite tudo é possivel. Neste sitio, à noite, tudo pode acontecer. O Bairro do Amor é sem dúvida um dos lugares mais excitantes que conheço.
M.C. (1996)

Ana Barbara...Justamente!


Na passada quinta feira tivemos a oportunidade de assistir à peça "Justamente" no cineteatro de Rio Maior. Do jovem elenco, composto por alunos do agrupamento da Escola Marinhas do Sal, consta a nossa querida e linda Princesa, numa actuação cheia de vigor e entusiasmo. Parabens à nossa Princesa e a todos os que estiveram envolvidos nesta produção, alunos e professores sem excepção.
É bom saber que o teatro também se faz por ai nas escolas!

8.10.07


Eu sou a Saudade!
A Saudade que um fadista me cantou um dia.
Sou guitarra que chora, alma negra no trinar.
Sou menino sem asas, com vontade de voar.
Sou peixe terrestre em busca de mar.
Sou tristeza sou alegria, sonho, fantasia,
Parelha sem par.
Sou a voz num só grito, tempestade, bonança,
Sou pássaro aflito nas mãos duma criança.
Sou poeta sofredor,
Pepita de ouro por achar,
Sou raiva sou amor, bebedeira de fogo por apagar.
Sou água no deserto,
Sou pensador sem pensar,
Estou longe e sou perto,
Sou um fado por cantar.




M.C. (sem titulo - 1997)

4.10.07

Gosto tanto de ti

As coisas que eu tenho!
Tenho tantas coisas, mas o que mais queria não tenho!
Tenho uma camisola vermelha quase rota, com que costumo dormir de Inverno, um disco que nunca ouvi e outro, com que quase sempre adormeço.
Tenho um sinal no queixo que me irrita, a fotografia de um gato preto que morreu de velho e guardo na carteira ao lado do B.I.. Tenho saudades do gato, pena de mim e dores nos joanetes quando muda o tempo.
Tenho saudades da chuva quando é Verão, do sol quando faz frio e de que gostem de mim como eu gosto de ti.
Tenho um álbum de fotografias de amigos que vejo quase todos os dias e vontade de rir quando me vejo nelas. Sofro da doença de gostar e tenho medo.
Tenho dores de cabeça quando penso em ti e não te vejo e, tenho dores de cabeça quando estou contigo e tu não me dizes que gostas de mim. Tenho uma torradeira que não funciona e uma coluna do C.D. na casa de banho, para quando tomo longos banhos de imersão. Tenho muitos amigos que gostam de mim, outros tantos que nem por isso, e a dúvida de que alguém goste de mim como eu gosto de ti.
Tenho uma casa pequenina com uma janela grande na sala de onde se avista o Tejo, um quadro na parede pintado por mim, que nunca assinei e um galo de Barcelos em cima do baú onde guardo as mais gratas recordações.
Tenho bons princípios e uma cama quase sempre vazia. Tenho sonhos eróticos de vez em quando e uma tablete de chocolate amargo na gaveta da mesa de cabeceira, para comer nos dias em que tenho insónias. Tenho um livro que nunca acabarei de ler e outro que já li 3 vezes. Tenho uma paixão por azul, embora também goste muito de verde. Tenho um carro que anda, uns lábios carnudos, e uma mãe encantadora que raramente vejo e me telefona sempre nas horas em que estou carente de afecto.
Tenho tanta coisa a que não ligo nem pedi, e o que mais quero não tenho!
Tenho pena de mim por ser quem sou, por um dia ter permitido ao meu coraçãozinho grande, encher-se de alegria por te ver. Tenho saudades de ser quem fui e desejo de te ter sempre aqui ao pé de mim. Mas sei que não pode ser! Porque tu... Tu tens mais que fazer, do que gostar de mim como eu gosto de ti.
Gosto tanto de ti!
fragmento de "O meu amor é uma cabra" de M.C.

2.10.07

O Beijo

"Um beijo. Não um beijo qualquer, mas o nosso primeiro beijo. Houve magia ali. A magia do primeiro contacto entre duas bocas que se tocam pela primeira vez.
O nosso primeiro beijo foi muito mais do que o medir a temperatura dos lábios ávidos de desejo. O nosso primeiro beijo foi tesão. Foi energia bruta que me fez entregar incondicionalmente e sem reservas a alguém que nem conhecia.
Ela estava disponível, era sensual, tinha um ar limpo e apetecível. Naquela altura isso bastou-me!"
fragmento de "O meu amor é uma cabra " de M.C.

1.10.07

Croire!

"Parei de fazer o que tinha em mãos.Baixinho ouvia-se aquela musica do festival da eurovisão de 1988. Recostei-me na cadeira confortável e como se nada mais me importasse, acendi um cigarro. Senti um crescente aperto no estômago, logo ali abaixo do coração.
Para não dar o gosto àquela lágrima teimosa, num egoísmo virtuoso liguei a quem de mim mais gostava. Eu queria ouvir qualquer coisa. Liguei à melhor amiga. Eu queria falar de qualquer coisa. Qualquer coisa que me fizesse esquecer o que trago escrito nas palmas das mãos. Ninguém me atendeu.
O destino quer-me só! Não desliguei o rádio nem fumei o cigarro. No fim da música triste, sentado na cadeira confortável, fiquei eu, a beata que se fumou sozinha e a certeza de que não liguei a quem devia. E afinal até é o único número que ainda sei de cor."
fragmento de "O meu amor é uma cabra" de M.C.