Necessidade de uma Escola para Crianças do Sexo Feminino, em Moçambique.
-Principais argumentos apresentados para a sua criação, em 1881.
No longínquo ano de 1881, o secretário-geral do Governo de Moçambique, Joaquim de Almeida da Cunha, endereçou às Câmaras Municipais e Comissões Municipais de todo território, genuínas representantes dos interesses dos munícipes, afirmava, uma Circular em que se solicitava ajuda orçamental destinada à criação de uma casa de educação para crianças do o sexo feminino, a receber de toda a Província.
As Câmaras Municipais era assim convidadas a associar-se a tão generosa ideia e cooperar para a sua realização, contribuindo com uma quota-parte nos encargos necessários para a sua concretização.
Entre os principais argumentos apresentados, para convencer as vereações municipais, realçava-se:
- o papel da instrução pública na elevação do nível civilizacional das populações africanas sob o domínio português, com uma economia racionalmente diferente da europeia que se procurava impor;
- a importância da criada Escola de Ofícios na preparação para a vida de jovens do sexo masculino;
- e a premente necessidade, também, de uma escola para educação para jovens do sexo feminino, dado o papel da mulher no processo de mudança.
Atendendo à riqueza informativa do seu conteúdo, que deve ser entendido e explicado no seu contexto próprio, para conhecimento e análise das novas gerações de moçambicanos e portugueses, que conhecem pouco e, por vezes, mal, a História de Moçambique Colonial, baseada em factos, transcreve-se a Circular, atrás referenciada, datada de 5 de Fevereiro de 1881:
“III.mo Snr.- Um dos problemas que mais agitaram na Europa culta é o descobrimento dos ignotos sertões da África e o meio de levar as artes e indústrias, os conhecimentos e a civilização aos povos que habitam esta região vastíssima.
Quando Portugal exercia sobre quase toda a orla marítima da África um domínio exclusivo, obedecendo já então à mesma ordem de ideias que hoje predominam nas nações civilizadas, nunca descurou os meios de elevar o nível moral e intelectual dos povos seus subordinados e, ainda hoje, decorridos tantos e tantos anos, se encontram a cada passo, no interior os vestígios do trabalho civilizador dos nossos maiores.
As circunstâncias que concorreram para a decadência marítima de Portugal não permitiram que se continuasse com o mesmo ardor nesta gloriosa tarefa, a que tantos varões, cujos nomes a história regista, consagraram a vida.
A situação, porém, dos povos africanos nunca deixou de preocupar os governos de Portugal, e, não há muito ainda, que a abolição da escravatura mostrou ao mundo civilizado que os sentimentos generosos sempre encontram apoio na nação portuguesa.
Não estavam os povos preparados para tamanho benefício e daí vem que os escravos da rotina criticam de extemporânea a lei gloriosa que proclamou a emancipação do homem em todos os domínios da coroa portuguesa, como se nas disposições da lei se encontrasse a última palavra da missão civilizadora e aos governos e a seus delegados nestas regiões não incumbisse o rigorosos dever de empregar todos os recursos que a inteligência sugere e o coração aconselha para que os povos africanos colham da lei todos os benefícios que a mesma lei lhes quis dar.
Livres como nós e portugueses também, têm direito a que os poderes públicos olhem para eles e os protejam.
Parte integrante da Nação Portuguesa urge educá-los, instruí-los, criar-lhes o hábito do trabalho, contrariar-lhes as tendências viciosas, reabilitá-los aos próprios olhos, numa palavra, torná-los dignos da Nação a que pertencem.
Isto só pode conseguir-se por meio de institutos adequados.
Escravos podiam ser ignorantes, livres do próprio interesse dos grandes proprietários da província, pondo mesmo de parte a dignidade da nação, exige que sejam instruídos.
Nesta ordem de ideias fundou o ex.mº conselheiro Francisco Maria da Cunha, quando governador geral desta província, a Escola de Ofícios, instituição modesta em seus princípios, mas inspirada em sentimentos tão elevados e generosos, dum pensamento tão humanitário e civilizador, tão genuinamente português, que só por si bastaria para honrar o nome de sua ex.ª. Abolira o legislador a escravidão de direito; mostrou sua ex.' como se acaba de facto, abrindo às crianças de toda a província com a Escola de Ofícios, a arena em que se preparassem para gozar da liberdade.
Maravilha ver como os homens, que poucos anos atrás ninguém considerava acima do irracional, ali se educam e afeiçoam ao trabalho, dando assim o exemplo do muito que há a esperar dos africanos quando, verdadeiramente, se olhe pela sua cultura moral, intelectual e artística.
Não basta, porém, cuidar dos homens; em toda a parte a mulher é considerada como um verdadeiro elemento para alcançar a modificação dos hábitos inveterados dos povos, e os grandes amigos da humanidade no século actual propõem-se a educação da mulher como meio infalível de atingir a reabilitação do homem.
A instituição pois da escola de ofícios será sempre incompleta enquanto a par dela não funcionar uma outra para educação da mulher.
Que importa tomar as criancinhas do sexo masculino, inculcar-lhes o hábito do trabalho, abrir-lhes os olhos luz da razão, iluminar-lhes as trevas do espírito com a vastidão do saber, alargar-lhes o horizonte com a amplidão de conhecimentos, se, quando homens, hão-de, no contacto com os seres menos favorecidos da sua raça, perder todos os benefícios, que se intentou proporcionar-lhes? se hão-de substituir o trabalho pela vadiagem, a sobriedade pela embriaguez, e os bons costumes pelo vicio?
Não podiam estas considerações escapar a s. ex.". o actual governador geral.
Honrando-se de seguir as pisadas do seu antecessor e de continuar o pensamento do snr. conselheiro Francisco Maria da Cunha, s.exª trabalha para dotar a Província com uma instituição para o sexo feminino, que será o complemento da obra daquele ilustre funcionário.
Escasseiam-lhe, porém, os recursos para a fundação; mas não desanima, e confiando em que seu generoso pensamento achará eco, em todos os espíritos verdadeiramente ilustrados e em todos os corações bem formados, me encarregou de solicitar de v. s. se digne propor á Câmara de sua digna presidência vote, no orçamento, uma verba destinada à aquisição de um edifício adequado a um estabelecimento para crianças do sexo feminino.
Não se trata de uma instituição de interesse local. Como a Escola de Ofícios, a casa de educação para o sexo feminino é destinada a receber crianças de toda a Província: justo é pois que toda ela concorra, consoante as forças de cada distrito, para a fundação tão altamente civilizadora. Às Câmaras, genuínas representantes dos interesses dos munícipes, incumbe a obrigação de associar-se a esta generosa ideia e cooperar para a sua realização; e s.exª está convencido de que a ilustrada vereação, a que v.exª tão dignamente preside, há-de honrar a sua missão, anuindo ao convite que lhe é feito e prestando-se a tomar a sua quota parte nos encargos para a criação de um estabelecimento, cujo benéfico influxo há-de, em breve, fazer-se sentir e de cujos frutos se aproveitará toda a Província.”
Por ora, não disponho de dados que permitam conhecer os resultados da diligência levada a efeito.
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Pesquisa e texto de Carlos Lopes Bento, antropólogo e antigo administrador dos concelhos dos Macondes, Ibo e Pemba.
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