The Will
Meu pai morreu e deixou para Nana, a mais velha de todas nós, a cadeira
de balanços, a vaca, todas as quinquilharias da cozinha, utensílios de pizzaôlos,
o livro de receitas e, é claro, a batedeira de bolos. Nana é a melhor fazedora
de bolos da redondeza. Nana faz bolos de graça, de encomenda, de presente e também
para venda. Nana é uma confeiteira de mão cheia!
Para nossa irmã caçula, Marlúcia, papai deixou a galeria de artes, a prancha de desenho, caixas e mais caixas de pincéis, as réguas todas e todos os cordéis.
Para Marihill, nossa mana do meio, deixou o guarda-roupa com todos os uniformes de gala, o chapéu do Panamá, o galinheiro, a bengala e muito dinheiro.
Para Micahill, gêmeo de Marihill, deixou o toca fitas, a vitrola, a guitarra angolana e o pé de acerola. Para Maribela, a que veio antes da caçula, deixou a biblioteca com tudo que estava ali; os livros, a mesinha de jacarandá, os vinis, os quadros de Frida Kahlo e Salvador Dali.
Para nossa mama deixou, os travesseiros de macela, as redes do Ceará, o roseiral, o baralho de Tarot, os dois lampiões, todos os relógios de bolso, os retratos todos, uma carta de amor, a bola de cristal, a máquina fotográfica, o cavalo, Pilão-de-fogo, todos os móveis, lembranças imemoráveis, as tapeçarias de Kennedy Bahia e a casa número seis.
No dia que meu pai morreu, fez uma ventania danada lá no porto da nossa cidade. Na madrugada caiu uma chuva de açoite que não teve barco que ficasse quieto no cais.
Para mim, papai deixou, muita saudade, frascos e mais frascos de patchouli, a casa número onze, o Corcel azul, a prancha de surf, rapé à
vontade, a cachorra de três patas, o pato, a obra completa de Edgard Allan Poe,
a caixa preta, o dedo verde, os tubos de ensaio, todos os crayons,
a colmeia de abelhas, o amor pelo mar, a bússola e o estaleiro com todas as
quinquilharias dentro; barcos recém pintados, barcos inacabados, destroços de
velhos barcos, pedaços de vigas, tábuas e mais tábuas, a viola-de-arco, panos e
mais panos para fazer velas de barco. No banco do carona do Corcel, deixou um maço de Hollywood sem
filtro, o boné, a farda da aeronáutica, um frasco de óleo Johnson, uma carta náutica e, dentro do porta-luvas, os óculos de
sol e um bilhete que... ainda não tive coragem de abrir...
Will I?
P.S.1: I miss you so much, dad! So, soooooo much!
P.S.2: Essa foto do meu pai é muito legal. O texto é ficção e a saudade é visceral.