Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Elio Gaspari
Descrição de chapéu Enel

Enel tem os poderes da treva

Empresa é uma das joias da ruína de uma epidemia de privatizações mal intencionadas, desenhadas e fiscalizadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sexta-feira, 11 de outubro, foi um dia agradável do outono romano. A repórter Malu Gaspar contou que lá estava o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Participava de uma farofa num painel que tratava da "Nova Era Energética", com Flavio Cattaneo, CEO mundial da Enel. Desde abril, essa era sua terceira viagem à Itália.

Em São Paulo, numa nova era energética, uma tempestade deixou três milhões de clientes da Enel sem energia. Cinco dias depois, 74 mil residências continuavam na treva. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, culpou o governo federal, Silveira culpou Bolsonaro e todos culparam a Enel.

A privatização do fornecimento de energia em São Paulo é uma história de horrores. Lá atrás, ela se chamava Eletropaulo e era uma estatal. Quando ela começou a ser leiloada, o publicitário Mauro Salles, que conhecia o Brasil, dizia que se havia criado a "mutretoconcorrência".

Foto mostra uma avenida no escuro, iluminada pelos faróis de carros que transitam no local, rodeado por árvores e prédios
Avenida São João às escuras, após nova falta de energia no centro de São Paulo - Otavio Valle - 21.mar.2024/Folhapress

Quem levou a estatal foi a empresa americana AES, afastando sua rival numa manobra feita por baixo do pano. A investigação da mutreta deu em nada, por falta de energia.

Pouco depois, a AES pedia dinheiro ao governo, e Dilma Rousseff, ministra de Minas e Energia, revelava que ela queria cair fora do negócio. Não deu outra. O BNDES ficou com um calote, e os clientes, com os apagões. Em 2015, o Palácio dos Bandeirantes ficou sem energia por mais de uma hora.

A italiana Enel comprou a falecida Eletropaulo em 2018. Ela é uma das joias da ruína de uma epidemia de privatizações mal intencionadas, mal desenhadas e mal fiscalizadas. Ferrovias não cumprem suas obrigações e negociam a renovação de seus contratos no escurinho de Brasília. A SuperVia, concessionária da Central do Brasil, no Rio, foi-se embora.

A Enel foi multada em cerca de R$ 320 milhões e contesta as cobranças na Justiça. Eficiente nos litígios com a Viúva, ainda não pagou a multa do apagão de novembro do ano passado.

Os apagões, de energia e de multas, assim como os laudos falsos do laboratório Saleme, no Rio, são o lado cruel e visível de um processo de saque contra os serviços públicos. O pano de fundo está na relação promíscua do poder público com a privataria.

No laboratório Saleme, caminha-se para responsabilizar funcionários. Na treva paulistana, acabarão culpando as árvores e os "eventos climáticos". Está comprovado que a Enel não cumpriu as metas de investimentos acordadas.

Valeria a pena procurar uma cifra: quanto a Enel paga a advogados para tratar de litígios de multas na Justiça e de normas com a Agência Nacional de Energia Elétrica? Por curiosidade: quanto lhe custam o patrocínio de farofas como a de Roma?

Antônio Gallotti, um mestre do século 20

Houve uma época em que uma só empresa, a Light, tinha a concessão das empresas de energia do Rio e de São Paulo, isso e mais a telefonia e os bondes do Rio. Chamavam-na de "Polvo Canadense". Seu presidente foi o advogado Antônio Gallotti (1908-1986). Nenhum marajá das concessões de serviços públicos de hoje compara-se com ele.

Para ficar no item das disputas judiciais, Gallotti contratava para a Light todos os grandes advogados do Rio. (Quando era o caso, contratava também os filhos.) "Para que eles não advoguem contra a empresa", contava um ex-ministro do Supremo que tinha um filho na Light.

Gallotti era um grão-senhor, com palacete na rua São Clemente, vizinho dos embaixadores de Inglaterra, Portugal e Estados Unidos. Da sua rede, saiu o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipês, braço cerebral da conspiração que produziu a ditadura.

Dotado de um raro senso de humor, em 1977, ele contava a um editor do New York Times: "O governo passado [do general Emilio Médici] torturava pessoas físicas, o atual [do general Ernesto Geisel] tortura pessoas jurídicas".

Gallotti mandou como nenhum dos seus similares ou pretensos sucessores. Quando um amigo apresentou-o como "o nosso Godfather", corrigiu: "Não, o Vito Corleone (Marlon Brando no filme ‘O Poderoso Chefão’) se mete em tiroteios. Eu costuro por dentro".

A Light de Gallotti não patrocinava farofas. Seus similares costuram por dentro e por fora.

Lá vem farofa

A Câmara aprovou um projeto que dá aos municípios autoridade para fiscalizar e controlar concessionários de serviços públicos.

Os concessionários já são fiscalizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica e seguem regras do Ministério de Minas e Energia, bem como de várias secretarias estaduais. Deu no que deu.

Somando-se os municípios à penca de fiscais, a próxima farofa organizará dois grandes painéis para discutir a Nova Era Energética, nas versões 2.0 e 3.0 com a participação de cem prefeitos, governadores, ministros e magistrados.

Um painel durará três dias e será sediado em Paris. O outro, em Nova York.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.