Cultura
Salve as encruzilhadas do samba
Que neste dia Nacional do Samba, o legado do povo preto seja reverenciado e enaltecido como merece
Ruas Lavapés, Sinimbu, Tamandaré, da Glória e do Glicério. Essas cinco vias, que, de maneira mágica formam cinco encruzilhadas na região central do Baixo Glicério/Liberdade, foram e são muito importantes para que a gente deixe sempre viva parte da memória do samba de São Paulo, que é rica e plural. O desenvolvimento da cidade se mistura ao do samba quando pensamos na capital paulista. Em um dia como o de hoje, em que comemoramos o Dia Nacional do Samba, muito temos o que celebrar e partilhar com o povo em termos de resgate de nossa própria história e, também, de noção de apropriação do espaço público.
Na final da década de 1930, uma mulher negra chamada Deolinda Madre — mais conhecida como Madrinha Eunice — fundou a Escola de Samba Lavapés, que foi um marco cultural na cidade, ainda mais se lembrarmos que o Carnaval em São Paulo só foi oficializado na década de 1960. Isso somente aconteceu após muito diálogo e estratégia do povo do samba para driblar a violência de um estado ditatorial e da própria polícia, que reprimia as expressões culturais pretas e criminalizava os foliões que ousavam ocupar as ruas da cidade com ousadia e alegria. De forma pioneira, quando os foliões ainda brincavam carnaval nos cordões e nas tiriricas do antigo Largo da Banana, ela criou uma instituição para enaltecer a cultura do samba e sua comunidade. Não à toa, seu legado é reverenciado até hoje, uma vez que a Lavapés é a agremiação mais antiga de São Paulo.
Madrinha Eunice, ao lado de Inocêncio Mulata (Camisa Verde e Branco), Seu Nenê (Vila Matilde), Pé Rachado (Vai-Vai) e Seu Carlão (Peruche) compõe o time dos cinco Cardeais do Samba de São Paulo. Eles receberam esse título em razão das articulações realizadas para fortalecer a cultura negra e do samba na cidade.
Último representante vivo, Seu Carlão é um dos maiores expoentes do samba em São Paulo e do Brasil, e não é exagero tachá-lo como a história viva do samba. Por isso, tive a honra de homenageá-lo na Assembleia Legislativa de São Paulo, pois acredito que todo louvor deve ser sempre feito em vida. Nascido na Barra Funda, que ao lado do Bixiga e da Zona Norte formam o berço do samba paulistano, ao longo de sua vida levantou a importância do ritmo como manifestação sociocultural e sempre enfatizou como o carnaval de rua, herdeiro dos cordões, é um importante ato de ocupação do espaço público.
Infelizmente, mesmo com o entendimento atual sobre a importância do samba e suas ramificações na cultura brasileira, a festa ainda é vista como algazarra. Assim como no século passado, o povo ainda corre o risco de apanhar da polícia por ocupar as ruas. Neste ano, a praça Olavo Bilac, na Barra Funda, virou um palco de guerra, com agentes da Guarda Civil Metropolitana batendo em foliões com cassetetes, usando spray de pimenta e bala de borracha. Tudo isso em plena luz do dia. Em 2023, também foram registradas várias denúncias de violência policial na dispersão de blocos como Charanga do França, Bloco do Fuá e o Agora Vai, que também saem da região central da cidade.
Lembro, quando ainda era doméstica, da sensação que tinha ao cruzar a rua, saindo do trabalho rumo à minha casa, e passar ao lado de uma roda de samba. O quanto o som da batucada aliviava o meu cansaço e como era bonito ver tanta gente, principalmente mulheres pretas tão empoderadas, sambando. Aliás, foi vendo tanta beleza no percurso maçante do meu então cotidiano que tomei coragem e passei a deixar meu cabelo crespo livre, leve e solto. O samba me reconectou à minha essência e ancestralidade em um momento muito difícil da vida. Assim como o samba, eu não morri porque em boa parte da minha trajetória eu soube resistir em meio às adversidades, à miséria e ao horror do racismo.
Toda vez que o samba e suas manifestações são atacados e vilipendiados, a cultura brasileira também é desrespeitada. Que na data de hoje, o legado do povo preto seja reverenciado e enaltecido como merece. O samba vive na rua e, como já disse Emicida, a rua é nóis. Salve as encruzilhadas do ritmo mais brasileiro de todos!
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