Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 66-80 | julho-dezembro de 2009
Genealogia de uma comunidade: a trama da trança
Genealogy of community – the tram of the braid
Sonia Bahia I,*
Regina Andrade II,**
RESUMO
Este artigo discute a sucessão e a transmissão da cultura na Comunidade da Mangueira, buscando entender de que
forma se estruturam as relações entre os principais sujeitos implicados nessa ação. Toma como unidade de análise o
Centro Cultural Cartola e, pela trama existente, examina as ligações com os responsáveis pela Escola de Samba
Estação Primeira de Mangueira. O estudo identifica duas famílias herdeiras do projeto do Samba na Comunidade e
verifica como se relacionam para instituir as lideranças do samba naquela comunidade. Termina por identificar a
genealogia dessa sucessão a partir de duas mulheres – D. Neuma e D.Zica, reconhecendo como suas herdeiras dão
continuidade à ação dessas matriarcas, e aponta uma rivalidade fraterna, estruturadora dessa relação, tal como uma
trama trançada, fazendo um movimento helicoidal semelhante ao DNA genético humano.
Palavras-chaves: Genealogia, Comunidade, Liderança, Transmissão Cultural
ABSTRACT
This article discusses the succession and the transmission of the culture in the Community of the Mangueira,
searching for understanding in which way the relations among the main citizens implied in this action are structured..
It takes as unit of analysis The Cultural Center Cartola, and, for existing plot, examines the link with those
responsible for the Scholl of Samba the First Mangueira Station. The study identifies two inheriting families of the
project of the Samba in the Community and verifies if they relate to institute the leaderships of Samba in that
community. It finishes by identifying the genealogy of this succession from two women – D. Neuma and D. Zica,
recognizing as their heiresses have continue the action of these matriarcs, and point to a fraternal rivalry, that gives
structure to this relation, as a locked plot, making similar helical movement to human genetic DNA.
Keywords: Genealogy, Community, Leaderships, Transmission of Culture.
____________________________
I
Universidade Federal da Bahia (Salvador) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro).
II
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro).
O presente estudo apresenta
recortes pontuais de uma pesquisa
intitulada A genealogia de um lugar,
realizada na Comunidade da Mangueira,
no Rio de Janeiro. Guiando-se por
perguntas do tipo “Como se dão a sucessão
e a transmissão da herança na comunidade
da Mangueira?” “Como se repassa
cultura?”, deparou-se reconstruindo uma
genealogia. Este termo remete à condição
de sucessão, à memória reconstruída e
reafirmada. Ao longo do trabalho, foi-se
apercebendo que as condições sociais que
A Trama da Trança
eram remontadas faziam o mesmo
movimento helicoidal das cadeias do DNA
que se organizam em pares, em forma de
escadas que “giram” e formam a chamada
dupla hélice. A ordem desses pares
determina como é o funcionamento do ser
humano. Da mesma forma, a genealogia
dessa comunidade são duas hastes
modelares, duas famílias herdeiras que,
numa dança trançada, elaboram um ritual,
uma trama e um argumento de sucessão. O
subtítulo deste trabalho revela o
movimento feito pelas famílias para
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reafirmar suas posições e lugares,
ressaltando que é na sustentação entre elas
que se processa a herança. Este trabalho
consiste, portanto, em desvendar a trama
como os fios foram trançados para revelar
a condição da liderança.
Através
das
informações
levantadas durante o ano de 2006, buscouse identificar o perfil das lideranças da
comunidade, no intuito de refletir de que
maneira essas lideranças se articulam entre
si e institucionalizam a herança e
continuidade dentro da comunidade e em
que medida constituem formas originais de
subjetivação, assim como traduzem as suas
tradições e, ao mesmo tempo, operam
transformações, visando à manutenção e à
sobrevivência de seus grupos. Nesse
sentido, este trabalho propõe identificar
como tais lideranças estabelecem novos
acordos culturais que podem significar
maneiras diferenciadas de sociabilidade,
ajustadas à contemporaneidade.
Encontram-se, de imediato,
alguns traços bem marcantes na referida
comunidade. Nela há duas famílias
herdeiras do Projeto do Samba,
configurado na Escola Estação Primeira da
Mangueira. Elas se distinguem nitidamente
pela forma como lidam com suas heranças.
Fazem um movimento de cumplicidade e
dissensão entre si, marcando territórios, ao
tempo que se complementam nessa tensão
que se constitui, por isso mesmo, numa
estrutura de interação, permitindo-lhes
moverem-se no mundo. Dessa forma,
sustentam suas relações e permitem a
vinculação de novos atores nesse cenário.
A segmentação na estrutura da
comunidade é marcada, claramente, de um
lado, por um projeto estético humanista,
através do qual a arte clássica e barroca
ganha um espaço de inserção ímpar no
engajamento
e
superação
das
vulnerabilidades ali encontradas; de outro
lado, por um projeto assistencialista
comunitário, no qual se reflete o
Bahia, S. & Andrade, R.
sentimento de solidariedade de seus
cotidianos.
Nesse
subconjunto
da
comunidade, a memória e as tradições
familiares constituem a sustentação das
práticas através das quais abrigar o frágil,
auxiliar o outro e compartilhar o viver
sobrepujam qualquer dificuldade que se
apresente, como afirma um dos membros
da Escola: [...] aqui ninguém morre por
falta de apoio. A comunidade é a máxima;
a Mangueira, a religião. 1
Numa análise mais detalhada
desse cenário, veem-se como alguns
aspectos ganham sentidos diferenciados
nas duas alas da segmentação. A forma
como lidam com a sexualidade, com a
religião e com o conhecimento sistemático,
formal, são exemplos de concepções que
as distinguem, além do entrelaçamento e
da via cruzada, através dos quais a herança
é transmitida. É possível depreenderem-se,
na sucessão, algumas insígnias distintas
que foram invertidas, embora a casa onde
vivem essas famílias, e o Projeto do
Samba, as unam.
Nesse sentido, refazer a
Genealogia de uma comunidade leva a
várias e diversas direções, sejam dos
suportes teóricos, que permitem um
enquadre epistemológico de entendimento,
sejam daqueles provenientes da própria
realidade empírica. Esses caminhos
contêm atalhos, idas e vindas contínuas e,
portanto, se tornam dialéticos, visto que,
em alguns momentos, expõe-se a teoria
que revela uma prática e, em outros,
revela-se uma prática que contém uma
questão teórica evidente, porque a
metodologia utilizada buscou sempre a
legitimação das falas dos autores e dos
sujeitos sociais envolvidos nesse processo.
1
Depoimento de Dona Chininha, vice–presidente
da Escola de Samba da Mangueira, filha mais velha
de Dona Neuma, matriarca de uma das famílias
contempladas neste estudo.
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Sobre Genealogia e Comunidades
Genealogia é uma palavra de
origem grega e abarca uma variedade de
significados. Para os leigos, tem o sentido
de conhecimento; para os eruditos, remete
ao objeto da ciência. A genealogia dedicase ao estudo de famílias, sua origem, sua
evolução, descrevendo as gerações em
cadeia e traçando, sempre que possível, a
história de vida dos seus membros e dos
sujeitos a elas pertencentes.
Carreteiro (2001, p. 121),
baseada em Legendre (1985), afirma que,
[...] a genealogia é o imperativo que
fundamenta a ordem social, posto que
ordena os objetos, que nos identificam,
tratando de designar, classificar e de dispor
da questão da identidade. E a filiação é o
eixo de produção da instituição
genealógica e jurídica.
A ordem genealógica inscreve o
sujeito num conjunto de relações no qual
cada um encontra referências e limites,
reconhecendo seu lugar na espécie. A
partir desse lugar, o sujeito pode, ao
mesmo tempo, fazer a identificação ou a
diferenciação dos demais.
A técnica da genealogia vem
sendo usada por algumas linhas de
pesquisa em Psicologia, permitindo
investigar as trajetórias dos sujeitos,
buscando
identificar
os
pontos
mobilizadores de suas escolhas, que
servem de ancoragem para seus projetos de
vida. De Gaulejac (1995) utiliza essa
metodologia a fim de identificar as
originalidades dos sujeitos individuais e
coletivos
em
suas
construções,
considerando que o sujeito é fruto de suas
sobredeterminações sociais e de suas
injunções psíquicas inconscientes. Da
mesma forma, esse teórico afirma que
reconstruir ou perceber a genealogia
permite a compreensão do lugar ocupado
na constituição familiar no sistema de
ascendentes e descendentes e no sistema de
A Trama da Trança
•
•
alianças, configurando o que denomina de
classificação e nominação. Para De
Gaulejac (1999), a nominação atribui aos
sujeitos a sua inscrição em uma linhagem,
podendo conter dois aspectos: aqueles da
ordem de suas singularidades, quando se
trata da definição dos pré-nomes, contendo
uma possibilidade de sua originalidade na
família; e aqueles que expressam as suas
relações no estatuto da parentalidade,
remetendo, dessa forma, aos papéis de pai,
mãe, filhos e da consequente prescrição e
proscrição sexuais.
Nesse
âmbito
específico,
podem-se encontrar discussões correlatas
trazidas por Bourdieu (1997), quando
revela as contradições que podem ser
encetadas na adjudicação ou aceitação de
tais projetos de herança pelos herdeiros e
as consequências que daí são geradas.
No texto Romances familiares
(Freud, 1977), é possível encontrarem-se,
com base na teoria freudiana, referências
específicas sobre a herança e a trajetória
dos desejos do sujeito, não só revelando o
conjunto de fantasias psíquicas que se
engendram a partir do lugar de herdeiro,
mas também revelando uma fonte de limite
ao próprio autoengendramento do sujeito
de se considerar todo poderoso, posto que
a ordem familiar o insere numa teia de
relações da qual ele é um dos elementos.
No presente trabalho, tomou-se
a genealogia como técnica e como
epistemologia, uma vez que a concepção
de sujeito que subjaz a essa linha teórica
aponta que os sujeitos se inscrevem em
uma dupla inserção, a saber:
Inscrição genealógica – O sujeito se
situa em uma cadeia genealógica. Ele é
portador de um projeto que assegura a
continuidade da linhagem, transmitindo-a a
uma geração futura, tornando-se agente de
uma historicidade familiar.
Inscrição cidadã – O sujeito é instituído
pertencendo a uma sociedade, exercendo
seus direitos e deveres e sendo capaz de
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intervir na vida da polis. (De Gaulejac,
1999, p. 57).
Do ponto de vista comunitário,
estudar a genealogia permitiu pensar sobre
esses complexos mecanismos de inscrição
e sobre a eclosão de sentimentos de
pertencimento
a
famílias,
grupos,
coletividades e sociedades, ainda que tais
inscrições
possam
se
apresentar
comprometidas
quando
o
seu
reconhecimento é posto à prova.
A
genealogia,
quando
compreendida no seio das comunidades,
apresenta originalidades que incorporaram
dados e suportes provenientes da
Antropologia para ampliar a leitura e o
cruzamento dos dados dessas heranças. A
teoria estruturalista do antropólogo Levy
Strauss (1971) esclarece que, em uma
comunidade, dada a necessidade de regular
a relação, os grupos estabelecem, muitas
vezes, um conjunto de rituais equivalentes,
que tratam de rivalidades e enfrentamentos
como forma de fortalecimento e de
marcação de suas identidades.
Para
Zaluar
(1998),
a
rivalidade, enquanto dado estruturador de
relações, pode ser vista em várias
comunidades nacionais e internacionais,
mas no Rio de Janeiro e, posteriormente,
em outras cidades brasileiras, nas favelas e
em bairros populares, as escolas de samba,
os blocos de carnaval e os times de futebol
podem ser entendidos como uma forma
dessa representação, expressando a
rivalidade entre eles. Muitas vezes, a
apoteose das festas representa a forma de
conflito e a sociabilidade, a qual prega a
união, a comensalidade, a mistura e o
festejar como antídotos da violência
sempre presentes, mas contida ou
transcendida pela festa.
Para Lessa (2000, p. 298), é
importante perceber:
[...] como no território da favela se
desenvolvem sistemas de relações sociais,
hierarquias de poder e complexos códigos
Bahia, S. & Andrade, R.
inscritos. A insuficiência de cidadania,
reduzida cobertura social, precária
assistência jurídica, fazem surgir um
conjunto de comportamentos e ritos
respeitados no âmbito da favela.
Complexas hierarquias de poder inspiradas
na família patriarcal. Os fundadores do
lugar, os pastores e, na atualidade, os
traficantes constroem códigos de conduta e
respeito severos.
Os estudos sobre comunidades
têm várias possibilidades de entendimento,
seja porque esse fato social se reporta a um
espaço de convivência real, seja pelo
aspecto simbólico que a palavra
comunidade remete aos que a pronunciam
– referência a um local específico, ou a um
lugar idealizado, fantasiado como um bom
lugar. Normalmente, a palavra comunidade
é utilizada por moradores de periferias,
explicitando um sentimento positivo em
relação ao lugar. Por isso desenvolvem
relações de vizinhança, denotando um
local onde é possível encontrarem-se laços
de solidariedade para a sobrevivência.
Vários são os teóricos que se
dedicam aos estudos das comunidades –
Simmel (1849) e Tonniës (1944); Lane e
Sawaia (1986; 1987) no Brasil; Martin
Baró (1983) em El Salvador (cf. Freitas
Campos, 1996). Parece, contudo, que o
sentimento de comunitarismo é o principal
elemento que emerge dessas pesquisas.
Na atualidade, Bauman (2001;
2003) está se dedicando aos estudos de
várias temáticas contemporâneas, entre
elas o sentimento de comunitarismo que
vem ressurgindo na atualidade como uma
reação acelerada à “liquefação da vida
moderna”. A abordagem das questões
comunitárias, entretanto, pode requerer um
exame mais aprofundado do que se
depreende como comunidade, uma vez que
há certo radicalismo e saudosismo
ensejando uma contradição sobre seus
propósitos. Para Bauman (2001, p. 195),
tal sentimento é [...] uma reação antes e
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acima de tudo ao aspecto da vida sentido
como a mais aborrecida e incômoda entre
suas numerosas consequências penosas – o
crescente desequilíbrio entre liberdade e
garantias individuais. E
assim, problematiza quais os dilemas
humanos que movem o crescente desejo e
a fantasia do encontro de uma comunidade
idealizada e quais os paradoxos e
contradições que tal projeto encerra. Para
esse teórico, essa busca, por um lado,
demonstra um desejo primevo de pertencer
a um grupo de referência, de ter um lar
onde se abrigar e se proteger; por outro
lado, recoloca a impossibilidade de
convivência com os diferentes. Assim, tais
comunidades se tornam tribos e guetos
com códigos de conduta fechados, alguns
afiançados nos velhos sentimentos de
patriotismo e culturalismo que impedem
uma dinâmica de abrigamento da
solidariedade sonhada. Bauman destaca,
também, que as fronteiras e os limites se
tornam formas de resistência ao
aniquilamento que a sociedade líquida e
desabrigada engendrou. As sonhadas
segurança e harmonia permeiam os
discursos mais comoventes de guerras
fratricidas e violentas que se esgueiram em
cada esquina de cada comunidade, e
cultura, que se fecha em si mesma, em
nome dos velhos ideais iluministas da
natureza humana. A impossibilidade de se
desenvolverem laços com a civilidade
universal é cada vez mais evidente, e a
coerção continua sendo ainda a única
possibilidade de manter algum traço de
união entre os pertencentes de dentro e de
fora das comunidades reais.
Dessa maneira, as reflexões
aqui feitas não só tomam como referência
os teóricos estudados, mas, sobretudo, se
ancoram na experiência de campo, na
escuta dos sujeitos sociais com quem se
interagiu ao longo desta pesquisa. Foi
feito o percurso de suas histórias de vida.
Todos esses sujeitos mantêm ligações
A Trama da Trança
profundas com a Escola Estação Primeira
de Mangueira, possuindo laços estreitos
com a comunidade local e tendo
representatividade perante seus pares.
A Comunidade da Mangueira
A favela da Mangueira, situada
próxima ao bairro do Maracanã, surge no
amálgama
de
vários
contingentes
populacionais. A Mangueira é um visual
fascinante. A frente limitada pela Rua
Visconde de Niterói; o lado esquerdo
margeado pela Rua Ana Néri, que termina
no Largo do Pedregulho, início da Rua São
Luiz Gonzaga, limite dos fundos; à direita
tem-se a Quinta da Boa Vista.
Sua história remonta desde
1852, quando se inaugurou o primeiro
correio aéreo do Brasil. Como era também
uma região que produzia muitas
frutas,mangas em especial, o senso comum
tendeu a identificar o morro como sendo o
Morro das Mangueiras. Este foi um nome
tão forte que, em 1889, ocasião da
inauguração da Central do Brasil, se
batizou a estação e sua circunvizinhança
também de Estação Mangueira. Mesmo
que hoje se trate de um espaço público,
pertenceu a Francisco de Paula Negreiros
Saião Lobato, o Visconde de Niterói, que o
recebera como presente do Imperador
Pedro II. Aos poucos, com a República,
autorizou-se que alguns militares lá
construissem seus casebres, e outros
moradores foram instalando os seus
barracões, inclusive vários soldados do
nono Regimento de Cavalaria. Em
diferentes épocas sociais, mormente
aquelas em que a imigração nordestina foi
incentivada, as pessoas foram invadindo e
se apropriando do espaço.
A Mangueira tornou-se, então,
uma comunidade de gente pobre,
constituída quase que na sua totalidade por
negros, filhos e netos de escravos,
inteiramente
identificada
com
as
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manifestações culturais e religiosas que
caracterizavam esse segmento social e
racial.
Diversas foram as tentativas de
reapropriação do morro por parte de
possíveis herdeiros dos reais proprietários,
mas os governos do Rio de Janeiro foram
resguardando os direitos dos que lá
residiam, instituindo políticas públicas no
sentido da legitimação desses moradores.
Destaque-se aqui a ação da Igreja Católica
que, numa alavancagem notável, deu apoio
a tais populações no que tange a auxiliá-las
na busca dos direitos civis, principalmente
os relacionados aos serviços públicos de
água, luz, esgoto e transporte.
A Comunidade da Mangueira
se constitui, como as demais comunidades
cariocas, numa zona de convergência de
pobreza e exclusão social. Entretanto
guarda para si mesma e para os cariocas
uma imagem de ser uma das comunidades
mais tradicionais e populares do Rio de
Janeiro. Isso se deve, em parte, à imagem
que a Escola de Samba Estação Primeira
de Mangueira representa, como berço de
grandes sambistas e do próprio samba.
Quem ouve ou lê sobre a história do Morro
da Mangueira e da sua Escola de Samba
adentra logo no cenário de segmentação e
paradoxo que cercam a existência da
comunidade, do ponto de vista da história
contada e do ponto de vista da
sobrevivência de seus moradores.
Numa comunidade como essa,
cuja marca é a carência, vários ritos são
instituídos; a adoção, o compadrio e as
redes de sustentação ocultas são alguns
exemplos. De acordo com Lessa (2000, p.
303), “é muito forte o conceito de
localidade como espaço que privilegia
vizinhança, amizade consolidada e laços
potenciais de parentesco. O morador se
percebe
como
um
conquistador,
desbravador, alguém que construiu tudo a
partir do nada, alguém que se bastou a si
próprio. Tem consciência das carências,
Bahia, S. & Andrade, R.
porém valoriza a obra de décadas de
trabalho e se orgulha do lugar. Valoriza
como especial a coesão vigente na
comunidade e, aliás, esta postura é basilar
para a construção da identidade da
micronação favelada.”
Por isso, a topografia do lugar
pode, muitas vezes, como no caso do
presente estudo, apontar as zonas de
frequência de um determinado grupo e as
que são consideradas inapropriadas para
outros. Essa disposição do campo aponta
simbolicamente quem é quem. Assim é
com o Buraco Quente 2 , [...] apropria-se
simbolicamente dos espaços... E na nação
mangueirense foi construída com orgulho a
identidade do “Buraco Quente”. Para eles,
é considerado ponto de inspiração de
compositores, é lugar de bamba onde a
polícia não se mete. (Lessa, 2000, p. 304).
Encontra-se, nos depoimentos
coletados, certa reticência em relação a ser
frequentador desse espaço; só os mais
ousados e destemidos são respeitados e
continuam freqüentando o local.
2
O buraco quente é um local dentro da Mangueira
cujo nome real é Travessa Saião Lobato. Constituise num espaço de passagem para regiões mais
íngremes no morro, e foi sempre visto
tradicionalmente como um lugar de encontro de
bambas, designando tanto o lugar de frequência dos
grandes compositores como dos destemidos do
morro, onde as práticas flutuavam entre espaço para
criação e espaço para derivação, bebida, bate-papo
etc., havendo hoje uma contaminação sobre ser um
espaço onde a frequência não é muito recomendada.
Também é importante que se note que a expressão
“ser bamba” é derivada de velhas práticas
defensivas existentes entre os oriundos de blocos
rivais e que faziam do enfrentamento com a polícia
uma de suas práticas. Os valentes do morro faziam
peripécias para a Escola poder desfilar. Foi onde se
localizou a primeira sede da Escola de Samba
Estação Primeira de Mangueira, seu primeiro
barracão.
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A consideração dualista da
favela vem acompanhando sua história,
desde o século passado, de lugar de
desordem e de falta de higiene a lugar de
amizade leal. Essas considerações sobre o
ser favela mudam ao sabor dos ventos
políticos e sociais, mas vários são os
teóricos que afirmam ser [...] um complexo
coesivo, extremamente forte em todos os
níveis: família, associação voluntária e
vizinhança (Boschi, 1970 in Zaluar, 1998).
Perlman (1976) chega a afirmar
que “[...] os favelados, além de estarem
dotados de forte sentimento de otimismo,
teriam uma vida rica de sentimentos
associativos, imbuídos de amizade e
espírito cooperativo e relativamente livres
de violência [...], situação que perdura até
a década de 80” ( p. 136).
Na Comunidade da Mangueira,
há alguns personagens entrelaçados pelos
vínculos da amizade, do comprometimento
e da sensibilidade; outros se relacionam a
partir de suas diferenças de linhagem que
marcam um território, uma descendência, e
que buscam estabelecer uma origem como
verdadeira, numa hierarquia de poder.
Com a fundação de sua escola
de samba, aparecem as diferenças em sua
genealogia. Há, por assim dizer, uma
disputa velada sobre o real fundador do
movimento do samba. Para alguns foi
Carlos Cachaça e Saturnino Gonçalves;
para outros, quem dignificou essa estrutura
foi Agenor de Castro, o Cartola.
Pode-se afirmar que sempre
houve uma rivalidade atravessando os
blocos, os ranchos e as sociedades de
carnaval, tanto assim que, no início da
fundação da Estação Primeira de
Mangueira como escola de samba, em 28
de abril de 1928, não houve a adesão de
toda a comunidade. Essa consolidação só
veio a ocorrer no segundo ano de sua
existência, quando já se pode dizer que a
Escola representava o morro. Essa disputa
velada sempre se fez presente, como se
A Trama da Trança
pode observar nas letras dos primeiros
sambas enredos da Escola: Linda demanda
existe no samba, a nossa luta sem rancor.
Mangueira, Osvaldo Cruz, Estácio, a
amizade que estreita os laços só por amor.
(Composição de Saturnino); ou Chega de
demanda, chega! Com esse time temos que
ganhar, somos a Estação Primeira. Salve o
Morro da Mangueira! (Composição de
Cartola).
Justifica-se, assim, o fato de
que se encontram versões diferentes sobre
o surgimento do samba e da Escola, mas os
principais personagens dessa história –
Carlos Cachaça, Cartola, Saturnino, Isnar,
Pedro Paquetá, Mansur e outros – sempre
são citados ainda que em papéis distintos.
Encontra-se, nos relatos obtidos, essa
competição. Mais do que uma disputa
pessoal entre os compositores, constitui-se
em algo que alimenta a história do samba,
pois, segundo consta, eram grandes amigos
e parceiros. A competição, até hoje, é
alimentada e é responsável pela diferença
na herança, determinando uma estrutura na
composição específica da genealogia da
comunidade, interferindo na sucessão
dentro da comunidade.
Em depoimentos colhidos em
momentos distintos, obtiveram-se duas
falas que explicitam a diferença hoje
sentida e que determinam esse cenário na
composição da estrutura dos herdeiros.
Uma das histórias que alimenta o sentido
da herança é assim narrada por um dos
segmentos da comunidade:
- “Quem fundou a Mangueira foi meu avô.
Era aniversário de uma tia minha
[personagem idosa, mas ainda viva],
estava fazendo cinco anos de idade nesse
dia 28 de abril, e o pai dela demorou de
aparecer na festa. Devia estar em alguma
roda de samba” [a informante sorri ao
contar isso]. A filha indagou: “– Puxa,
pai! Era meu aniversário e você não
apareceu!” No que ele responde: “– Mas,
filha, é porque eu estava fundando uma
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escola de samba para te dar de
presente”. 3
Num
outro
depoimento,
encontramos alguns elementos norteadores
dessa herança e propriedade. “[...]Minha
família é fundadora deste empreendimento
que é a Escola de Samba da Mangueira,
do samba, a maior empresa do mundo, e
não podemos deixá-la morrer, tenho um
compromisso de continuar; herdei um
bastão” 4 .
Duas Mulheres, Duas Primeiras Damas:
A Tradição em Herança, a Sucessão e o
Feminino
Neuma Gonçalves da Silva
(1922-2000), Dona Neuma, nasceu no
subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro,
filha de Saturnino Gonçalves, um dos
fundadores do bloco dos Arengueiros, que
mais tarde originou a Escola de Samba
Estação Primeira da Mangueira. Desde
criança, conviveu com os grandes
compositores da Escola – seu pai era um
deles. Integrante da Velha Guarda, foi tida
como uma das grandes damas da
localidade. Sua ação não se limitava em ser
apenas uma grande sambista, por isso é
considerada um baluarte na luta pela
afirmação do samba de raiz e pela
Mangueira – sua escola, seu tudo, sua
vida, como ela bem gostava de dizer.
Orgulhosa de si mesma, sempre tinha as
portas abertas a todos que a procuravam.
Era acolhedora, sobretudo para com as
crianças e com os menos providos; não só
dava abrigo, mas remédio e educação a
quem lhe recorria. Em alguns momentos,
moravam com ela mais de 30 pessoas. É
conhecida também pelo particular método
de alfabetização que desenvolveu —
através de palavrões. Famoso também é o
episódio do uso do telefone de sua
residência por todos dentro do morro,
depois de ter socorrido vítimas de um
acidente ferroviário nas imediações da
Mangueira:
Era dia de seu aniversário, tinha recebido
um leitão de presente e tinha sua
meladinha (caçhaça misturada com mel).
Na hora da confusão, aquilo que era para
seus convidados virou alimento para os
bombeiros. Foi assim, depois do
reconhecimento, que o governador Negrão
de Lima teve de seu ato, que lhe doou uma
linha telefônica. Meu avô sempre dizia: “–
Com essa aí ninguém pode, nasceu para ser
intelectual”. Tanto é que os alunos da
Gama Filho vinham ter aula de português
com ela. Mas foi dura com as suas filhas,
sempre nos dizia: “– Vocês têm que dar
aos mais pobres”. Foi assim que ela nos
educou. E assim a gente segue seus
ensinamentos É a forma como ela viveu 5 .
Euzebia Silva do Nascimento
(1913-2003), Dona Zica, sambista da
Velha Guarda, foi a última mulher de
Cartola. Mulher dedicada aos outros, com
um sorriso permanente nos lábios, de mãos
hábeis no manuseio dos quitutes famosos.
Além de ter sido fonte de inspiração para o
Cartola, sempre foi um motivo de orgulho
nas memórias da Mangueira. Hoje, além de
ser tema de músicas, discos e livros, é
reverenciada como uma das lideranças
mais verdadeiras que o morro da
Mangueira já teve. Segue depoimento de
Marcus Quintaes:
3
Relato obtido através da narrativa de Dona
Chininha, vice-presidente da Escola de Samba,
filha de Dona Neuma.
4
Relato de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e de
Dona Zica.
Bahia, S. & Andrade, R.
5
Depoimento de D. Chiniha, vice-presidente da
Escola de samba Estação Primeira de Mangueira,
filha de D, Neuma.
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Para mim, uma das imagens do
arquétipo da Grande Mãe não está
numa pequena estátua etrusca do
período 2000 anos antes de Cristo.
Grande Mãe, para mim, é D. Zica
da Mangueira a cuidar do seu
morro e de seus filhos sambistas.
Sou brasileiro, trabalho no Rio de
Janeiro e estou inserido na alma do
meu país. Me fascina mais D. Zica
do que uma estátua etrusca de dois
mil anos. Se Caetano canta que "a
Mangueira é onde o Rio é mais
baiano", diria eu que a Mangueira
é onde o Rio é mais junguiano.
(Quintaes, 2005).
Quem conhece as histórias
dessas mulheres sabe que, durante muito
tempo,
após
o
falecimento,
respectivamente, de seus pais e seus
maridos, ambas se encarregaram de dar
continuidade à idéia da Escola de Samba e
ao sentimento de comunidade que surgira
de seus fundadores. Foram, em momentos
diferentes, intituladas primeiras damas da
Mangueira. Ambas constituíram a Velha
Guarda da Escola, sendo admiradas pelos
trabalhos sociais que desenvolveram em
prol da comunidade.
Dona
Neuma,
mulher
extrovertida e destemida, resolvia os
problemas de todos que a procuravam.
Expressava-se com facilidade e sabia como
defender sua amada Escola, colocando a
comunidade antes de si mesma. Praticando
filantropia em excesso, exigiu de si e de
suas herdeiras tal procedimento.
Dona Zica era mulher de
grande sabedoria. A paciência, o sorriso e
o acolhimento eram, segundo seus
herdeiros, as qualidades que a resumiam.
Amigas diletas a ponto de
construírem uma casa geminada, onde,
embora permitisse que uma chamasse a
outra através do muro que as unia, era
possível guardar suas privacidades.
A Trama da Trança
Tinham suas vidas particulares bem
delimitadas, havendo entre elas uma
distinção. De acordo com o depoimento a
seguir, Dona Neuma abrigava a todos que
a buscavam:
Teve um tempo que morou aqui
com a gente mais de vinte pessoas.
Sei o que me custou isso. Tive que
trabalhar desde cedo e era com
meu dinheiro que pagava o telefone
que todos usavam. De alguma
forma, minha mãe nos obrigava a
trabalhar e a dar para os outros
que, dizia, tinham menos que a
gente. O atual presidente da
Mangueira [Perci] mora aqui na
nossa casa desde os dezessete anos
de idade. A família dele foi embora
daqui e ele ficou com a gente 6 .
Já Dona Zica sempre ajudou
muito a todos, mas resguardou sua vida
privada. Era mais tímida e tinha uma
família anterior à sua ligação com Cartola,
o que a fez guardar certa reserva de
aparições em público, só vindo a se
mostrar quando foi necessário representar
a Mangueira – e fez isso com todo amor,
mesmo estando doente – no dia em que a
Escola homenageou sua amiga Neuma,
então já falecida.
Na atualidade, quem sobe o
morro, logo de início avista as precárias
condições de vida, sobretudo nas casas da
maioria dos moradores. Em grande parte,
há ruelas, escadarias e vários casebres, mas
na Rua Visconde de Niterói algumas
construções se destacam. O Palácio do
Samba, anexo ao Barracão da Escola de
Samba Estação Primeira de Mangueira,
6
Narrativa de Cecy, filha de D. Neuma,
responsável pela Mangueira do Amanhã, escola de
samba para as crianças da comunidade, cujos
objetivos são educar as crianças e preservar a
memória
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mais adiante o Centro Cultural Cartola e,
do outro lado da pista, a quadra da Vila
Esportiva são as insígnias claras da
distribuição de poder no morro. É
importante que se perceba como tais
insígnias expressam simbolicamente as
formas encontradas por essa população
para afirmar suas posições perante o
coletivo,
sendo
imprescindíveis
à
convivência e à coesão dos moradores.
Segundo Lessa (2000, p. 305),
Isso nasce como subproduto da
necessidade dos moradores autorregularem
suas relações. No interior de cada grande
favela existem estruturas sublocais que
organizam redes de vizinhanças sólidas.
Dos abre-alas dos antigos ranchos
carnavalescos, em sua fase histórica
inicial, até as batalhas nos bailes de
corredor, entre as atuais galeras funks, a
chave explicativa é iluminadora da
tendência à competição intralocal.
É
importante
reconhecer,
entretanto, alguns dados de originalidade
que cercam cada segmento dessas
heranças, sendo três desses aspectos
evidências marcantes: a sexualidade, a
religião e o conhecimento sistemático
(pelo acesso à Universidade). Por isso, o
papel que a competição tem na transmissão
da herança; competição disfarçada pelo
afeto, havendo uma inversão de lugares e
de insígnias, em que se instala um ritual de
parecer com, de forma que uma família foi
e continua sendo modelo para a outra. O
duplo opera como espelho 7 . Com essa
7
Para a Psicanálise, o conceito mais comum
relativamente ao duplo é que este algo que, tendo
sido originário a partir de um indivíduo, adquire
qualidade de projeção e, posteriormente, se vem
consubstanciar numa entidade autônoma que
sobrevive ao sujeito no qual fundamentou sua
gênese, partilhando com ele uma certa
identificação. Nesta perspectiva, o duplo é uma
entidade que duplica o eu, destacando-se dele,
autonomizando-se a partir desse desdobramento.
Gera-se a partir do eu para de imediato dele se
Bahia, S. & Andrade, R.
compreensão, pode-se depreender a
dialética e a ambiguidade presentes na
relação das famílias e herdeiras.
Na família de D. Zica, a
sexualidade foi contida em sua essência
inicial, conforme se observa no
depoimento a seguir: – [...] era presa
demais, não podia frequentar os lugares 8 .
Hoje, uma parte dessa família
tornou-se evangélica e não frequenta o
Samba, preferindo assistir às chulas —
dança oriunda de Portugal, apropriada
pelos
escravos.
Atualmente,
com
manifestações diferentes, encontradas no
Rio Grande do Sul, na Bahia e no Rio de
Janeiro, sendo mas específica de grupos de
sambistas tradicionais, da chamada velha
guarda — e, rodas de sambas específicas.
Aí o conhecimento sistemático, o cursar
uma faculdade, um “vir a ser alguém”
foram as perspectivas. Era como uma
resposta à sociedade organizada para além
do morro, por isso a adesão a um modelo
moderno de fazer samba. Ser embaixadora,
representar a comunidade para fora dela,
foi a tônica. A própria ação social
desenvolvida – ensinar as crianças a tocar
violino e flauta doce – espelha o desejo de
superação e a busca da igualdade de
oportunidades na construção de um sujeito
transcendental próprio da ideologia
iluminista moderna. Ter um nome para
individualizar e adquirir existência própria. A sua
coexistência com o eu de que é originário, contudo,
nem sempre é pacífica. Podem ocorrer duas
modalidades: aquelas de características positivas,
sendo resultante de um processo de identificação,
ou aquelas de características negativas, resultantes
de um processo de oposição, pela constatação de
uma não correspondência de traços ou
características afins.
8
Depoimento de Nilcemar Nogueira, neta de
Cartola e de dona Zica.
75
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além do morro parece ser a marca dessa
busca.
Na família de D. Neuma, servir
e ajudar a todos era uma obrigação
familiar; o estudo ficou de fora. A
sobrevivência, tendo um emprego e
trabalhando duro, foi a marca dessas
evidências, conforme se observa a seguir:
Só depois é que consegui
adiantar meus estudos. Depois de
velha, é que consegui concluir o
meu segundo grau. Todas as
sobrinhas e netas fazem trabalhos
para a comunidade – professoras,
dirigentes
de
centros
de
recuperação. Mas eu tenho vontade
de fazer o mestrado também 9 .
A sexualidade aqui é tida como
normal e necessária, ainda que os herdeiros
mais novos sejam orientados a quebrar o
círculo da repetição. Há um sacrifício para
que alguns evoluam. O sentido de coletivo
sobrepuja a individualidade.
A religiosidade é ambígua na
família de Dona Neuma; ninguém assume
diretamente ser ligado à Umbanda, ainda
que essa tendência tenha sido sentida, mas
há uma crítica forte às igrejas evangélicas:
[...] São engraçados... Esses caras querem
tomar o dinheiro do pobre. Só conheço
gente da pesada que, depois de aprontar
muito se arrepende, se diz evangélico.
Minha religião é a Mangueira 10 . Tal fala é
quase uma reprodução exata da fala
materna, de D. Neuma “[...] cuidado com
um tal de Edir Macedo Macedo”, dizia ela.
Há uma preocupação nesse
segmento em formar continuadores –
aqueles que cuidarão dos outros.
Representam líderes internos, líderes de
9
Depoimento de uma das netas de dona Neuma.
Depoimento de Chininha, filha de Dona Neuma.
10
A Trama da Trança
resistência, pois serão alguém para os de
dentro; alguém que protegerá e dará
segurança. A ordem é seguir a tradição.
O mais interessante nessa
tensão existente, entretanto, é a
representação simbólica da residência
dessas famílias.
Moram numa casa
geminada, com usos e destinos diferentes.
Sabemos que a casa representa
não apenas um local de habitação, mas
também espelham épocas históricas
diferentes, assim como expressam o modo
como se vive e se considera o viver na
coletividade. No caso do presente estudo,
não há como prescindir da interpretação
dada por Lessa (2000), [...] ter um
endereço de porta reconhecido é deixar de
ser favelado, é ganhar uma inscrição social
[...], o que permite um reconhecimento;
adentra-se também a um lugar diferenciado
frente ao outro de fora do morro. Segundo
Perrone (2005),
A forma de uma habitação não é
casual. É produto da história do
local onde ela nasceu, reverberando
todas
as
contingências
socioculturais de seu momento, não
sendo imune às contaminações de
valores expressos pelo "gosto". A
moradia, que como propriedade é
isolada, tem trocas culturais
permanentes com seu meio
ambiente. Mas, além de ser
resultado, a arquitetura da moradia
contém um projeto ou mesmo um
desejo de cidade, sendo a fachada
outdoor das relações dos moradores
com o urbano. (p. 4)
A
Casa
Geminada
da
Mangueira chama a atenção por ser distinta
das demais construções do local, pela sua
forma imponente, o que representa a
sinalização dessa genealogia para o
restante da comunidade. Nela, as herdeiras
moram, se encontram e disputam
simbolicamente as modelizações e
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mediações para a comunidade. É o local da
cultura e da gestação das sucessões.
Em que pese a literatura e a
historiografia fazerem referências à senzala
como morada dos negros e como lugar de
sofrimento, intelectuais como Gilberto
Freyre, Caio Prado Júnior e Florestan
Fernandes, por diferentes perspectivas,
abordaram esse tema. Mais recentemente,
ao se estudar os cortiços e os quilombos,
tentou-se resgatar as senzalas como espaço
de resistência e solidariedade entre os
negros. O que se destaca no presente
estudo é que essa forma de solidariedade
presente na moradia da Casa Geminada da
Mangueira guarda aspectos relevantes para
os seus moradores, assim como se constitui
num lugar de referência para o repasse da
memória e dos afetos dos moradores.
No lado esquerdo da Casa,
moram as herdeiras de Dona Neuma. Esse
lado funciona como uma moderna
comunidade de base, uma senzala
revisitada, abrigando ao todo 28 pessoas –
filhas, netas e agregados da antiga
proprietária. Contém espaços internos de
socialização – sala, cozinha, varandas e
alpendres são espaços comuns, onde se
partilham comida e alegria, onde se
depuram comportamentos e decisões. Aí se
reproduz a cultura. Contém acessos e
“rotas de individualização e fuga”. São
espaços privados (pequenos cômodos e
quartos), onde cada um pode ter sua vida
pessoal longe dos olhos dos demais. O
projeto de parentalidade ganha forma e
contornos definidos.
No lado direito, a casa da
família de Dona Zica, fechada e protegida
do olhar de curiosidade dos demais,
espelha a personalidade do próprio Cartola
enquanto artista fugidio e cheio de
artimanhas ao lidar com o público, uma
mistura de gênio criador e caboclo
ressentido; resvala para o mundo através
do olhar desconfiado de suas herdeiras e
sucessoras.
Bahia, S. & Andrade, R.
CONCLUSÃO
Dito e entendido de outra
forma, é possível se reconhecer, nesses
modos de viver, na configuração que essas
casas possuem e nas formas como a vida aí
é vivida, não só o espelhamento das
personalidades dessas duas grandes
matriarcas mangueirenses, mas também o
resgate das senzalas enquanto espaço de
socialização e resistência de uma cultura.
O esforço de união dessas duas mulheres,
D. Zica e D. Neuma, em suas diferenças,
diferenciações e tensões, servem para o
equilíbrio e união em prol da sobrevivência
de uma população e de um ideal: fazer da
nação mangueirense uma comunidade e
abrigo de amigos. Hoje, seus nomes
extrapolam a comunidade e são nomes das
vias de acesso ao morro. O viaduto de
entrada, chamado Neuma, e aquele acesso
de saída, denominado de Zica, simbolizam
exatamente a ação que suas descendentes
exercem hoje naquele espaço. Uma acena
para fora, a embaixatriz; a outra, líder da
resistência, protege o local, o para dentro.
Ao buscar o entendimento de
tal configuração na teoria dos papéis de
sustentação das dinâmicas dos grupos em
Pichon-Riviére (1972), é possível afirmar
que os grupos elegem papéis que lhes dão
suporte e continuidade. Destaca-se , assim,
que há os porta-vozes e líderes de mudança
– aqueles que representam o grupo em sua
ação, são os idealizadores e atuam no
intuito de trazer o novo e incentivar a
renovação; há também aqueles que atuam
segundo o critério de realidade, fazendo
uma avaliação mais real das possibilidades
dessa ação, são os líderes de resistência. E,
acrescenta Pichon-Riviére, uma boa
liderança só se faz numa ação
complementar entre esses dois tipos de
papéis. Isso promove o equilíbrio grupal e
comunitário. Dessa complementaridade é
que surge uma estrutura capaz de fazer o
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funcionamento do grupo e capaz de
desenvolver suas potencialidades. Por isso
pode-se afirmar terem sido D. Zica e D.
Neuma ocupantes de tais papéis na
dinâmica da comunidade mangueirense e,
hoje, suas herdeiras e seus familiares
reproduzem esses mandatos preservando a
memória e a identidade no Morro da
Mangueira.
Do ponto de vista da
genealogia, observa-se não só um padrão
de reprodução na herança intrafamiliar,
mas também, no tocante à composição da
genealogia da comunidade, um padrão
cruzado na assunção dos estilos de ser,
permeada pela rivalidade fraterna. Para
quem não era letrado, seus herdeiros
buscam o conhecimento formal suprindo a
falta. Buscam ter um nome – nominação.
Para quem era expert, seus filhos se tornam
reféns de solidariedade. De alguma forma,
o espelho desse lugar é a janela do vizinho,
através da qual se aprende a ser alguém. É
um espelho sem reflexo para o si mesmo e
só funciona pelo olhar do outro.
Do ponto de vista de suas
constituições familiares, na família de
Dona Zica a nominação se tornou
prioridade para o projeto de vida familiar,
visto que a personalidade de Cartola supre
seus imaginários como figura de sucesso e
êxito. Daí a personalização e a
individualização como busca constante e
absorção contínua do novo como
perspectiva de sucesso e sobrevivência.
Evidencia-se também nessa família uma
crise de parentalidade, a qual só pode ser
superada pela busca de originalidade, o
que foi feito através de projetos mais
individualizados, tendo, por isso, o
conhecimento e a frequência de outros
grupamentos que funcionam como novas
referências para esses sujeitos. Destaque-se
que o desenvolvimento de uma narrativa
pessoal assume o que reafirma a questão
apontada por De Gaulejac (2005, p. 61),
observando-se
tal
perspectiva
no
A Trama da Trança
depoimento a seguir: [...] Por isso foi
importante mergulhar na minha história, de
uma forma melhor, fazer um exercício de
protagonismo de minhas ações. As pessoas
têm que mergulhar em suas histórias. 11
Já na família de Dona Neuma, o
projeto de parentalidade é o foco. O papel
materno sobrepuja todos os demais
possíveis papéis e projetos de vida.
Constituindo-se simplesmente como filhas
e herdeiras, a originalidade só aparece na
hora do desfile. Esse é o único lugar
possível para aparecer. Nessa direção,
sobressai nessa família a identidade
proveniente do lugar que ocupa na
comunidade.
É
uma
identidade
comunitária, compacta, e que, muitas
vezes, as impede de acessar a liberdade, ou
buscar uma autonomia. Confirma-se tal
perspectiva no depoimento abaixo:
Era preciso dar continuidade. Nós três
assinamos tudo. Tudo que ela comprava
ela dava. Às vezes, a gente fazia mercado
e, quando chegava aqui, ela já tinha dado
tudo. Que é que se vai fazer? Foi criado
assim, e até continuamos com isso. 12
A complementaridade presente
nessas famílias permite que todos os
lugares de liderança sejam ocupados,
explícita e implicitamente, nos seus
imaginários e no da comunidade, havendo,
num cruzamento ajustado com a
horizontalidade de seus papéis na
comunidade, com a verticalidade de suas
histórias de vida, o que lhes institui líderes
na comunidade, exemplos a serem
seguidos
engendrando
formas
de
11
Depoimento de Nilcemar Nogueira, neta de dona
Zica e de Cartola.
¹² Depoimento de Cecy, filha caçula de Dona
Neuma, que pode ser confirmado pelos
depoimentos de suas outras filhas.
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subjetividade dentro da Comunidade da
Mangueira.
Por fim, só resta afirmar que a
sucessão e a herança na Mangueira se dão
pela ação das mulheres. O feminino
constitui-se como o gerador e o gestador
da memória e da cultura, ainda que
retratem modelos diferenciados de ação,
seja pelo acolhimento e reprodução, seja
pela autonomização e novas formas de
tornar-se mulher.
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**Nota: E-mail –
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