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MATERNIDADE CONTEMPORÂNEA
SER E FAZER NA MATERNIDADE CONTEMPORÂNEA
BEING AND DOING IN CONTEMPORARY MOTHERHOOD
Tania Mara Marques GRANATO1
Tânia Maria José AIELLO-VAISBERG2
RESUMO
O psicoterapeuta acolheu o pedido de Margarida, grávida de oito meses, de
que se fizesse uso de flores em seu primeiro encontro terapêutico, como
sua maneira singular de agir no mundo. Cedo percebemos que seu estilo
de fazer estava profundamente marcado pelas inúmeras cirurgias e
tratamentos corretivos de uma profunda fenda palatina, com a qual nascera
e da qual emerge uma “guerreira”, pronta para travar qualquer batalha que
se lhe apresentasse como solução para seus problemas físicos.
Paradoxalmente, ou não, Margarida “esqueceu-se” das flores, ousando
fazer uma pausa em seu caminhar pelo território do fazer, para se deixar
acompanhar pela psicoterapeuta, através do ser, que lhe apontava um
“defeito” intrínseco a sua natureza. O parto a apavorava e a integração entre
o feminino e o masculino, o ser e o fazer, o corpo e a psique era premente.
Por meio de Margarida testemunhamos a desafinação entre o ser e o fazer
da mãe contemporânea.
Palavras-chave: maternidade contemporânea, gestação, clínica
winnicottiana.
ABSTRACT
Daisy’s request, an light-month pregnant woman, for using flowers during her
first therapeutic encounter, was received by the psychotherapist as a very
singular way of realizing in the world. Soon we noticed that her doing was
profoundly marked by several surgeries and clinical treatments to correct a
(1)
(2)
Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Coordenadora da Ser e
Criar: Atendimento Psicológico à Gestante e à Mãe do Instituto de Psicologia da USP.
Correspondência com o Editor: Rua Barão do Triunfo, 550 conj. 82 Brooklin - 04602-002 São Paulo - SP - Fone/fax: (11)
5096-4159 - E-mail:
[email protected]
Professora livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Ser e Fazer:
Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP e Orientadora do trabalho de
Doutorado da autora acima citada.
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cleft lip and palate, noted after she was given birth. After this life event Daisy
became a “warrior”, who was always ready to fight any battle, since they were
seen as a solution for her physical problem. Paradoxically, or not, Daisy has
“forgotten” the flowers and dared to take a break during her way through
doing domain, in order to be accompanied by the therapist through being.
Delivery frightened her, because the integration between male and female
elements, being and doing, body and psyche was required. We have testified,
through Daisy, the lack of tuning between the mother’s being and doing in
the present.
Key words: contemporary motherhood, pregnancy, winnicottian clinic.
Margarida procura ajuda para a crescente
ansiedade que vem experimentando desde que
iniciou a licença médica, no oitavo mês de
gestação de seu primeiro filho. Diz-se uma
pessoa ativa, sociável e dedicada a tudo que se
propõe a fazer. Costumava passar suas horas de
lazer em companhia do marido e familiares ou se
dedicando a uma das inúmeras atividades
artesanais que domina com grande habilidade.
Descobre nosso telefone3 pela internet e se
interessa pelo trabalho com arranjos florais,
relatando o prazer de confeccioná-los para
presentear amigos e parentes, de modo que
insiste em que escolhamos esta modalidade
para trabalharmos. De minha parte aceito e
observo que Margarida colocava, já neste primeiro
contato ao telefone, duas tendências ou duas
vertentes da comunicação pessoal: a verbal,
expressando-se com fluência e espontaneidade
sobre o que estava vivendo, e a “artesanal” da
qual costumava extrair grande satisfação. Agendo
nosso primeiro encontro, solicitando-lhe que
trouxesse o material necessário, já que ela
mostrava grandes conhecimentos na área e
(3)
(4)
disposição para transformar esse fazer numa
atividade terapêutica.
Margarida chega muito animada, engajando-se imediatamente numa conversação, sem
trazer ou fazer qualquer referência ao material
combinado. No final de nosso primeiro encontro,
quando falamos de sua necessidade de estar
sempre em contato com pessoas, ela faz uma
pequena associação com imaginar o trabalho
manual como algo a ser feito na companhia de
outrem. Interessante notar como Margarida
“esqueceu-se” dos arranjos florais desde esse
momento e encontrou no espaço terapêutico
uma oportunidade para falar de si, de forma a
encontrar sentido para o que estava vivendo
como sofrimento naquele momento. Além disso,
o que mais a afligia é que dispositivos, antes
utilizados para ocupar seu tempo e debelar a
ansiedade emergente, tinham perdido sua
eficácia, deixando-a em total desamparo. Não
conseguia bordar, costurar, tricotar, fazer arranjos, pintar, etc. Não sentia vontade, disposição
ou aquele seu já conhecido impulso para caminhar
em direção às coisas que lhe davam prazer4.
“Ser e Criar”: Atendimento Psicológico à Gestante e à Mãe. Serviço pertencente ao “Ser e Fazer”: Laboratório de
Saúde Mental e Psicologia Clinica Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, coordenado pela
Profa. Dra. Tânia Maria José Aiello-Vaisberg.
Pensamos não ser sem fundamento nossa recordação, neste ponto do relato de Margarida, sobre a distinção que
Winnicott (1971b) desenvolve entre o “brincar” e a “brincadeira”, situando o primeiro como fenômeno transicional
(Winnicott, 1969) que tem lugar num espaço e tempo determinados e que espelha o ser, comunicando-o caso seja
recebido por outra pessoa. Winnicott destaca o brincar da área da motivação instintiva, como Klein o fazia,
acomodando-o no diálogo entre o eu e o mundo externo, tornando-o fazer que se alicerça no ser - situação que
parece ter sido perdida por Margarida, o seu “brincar” não é mais fonte de satisfação, mas de ansiedade, porque
tomado pela angústia daquele momento. Ela pede então que “brinquemos” juntas, pode até ser a brincadeira verbal
da psicanálise, mas que fiquemos juntas.
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Margarida não estava se reconhecendo e solicitava
um “interlocutor” nessa nova experiência, pois
parecia estar perdendo a si mesma e se
transformando em um outro alguém5.
Margarida é de origem interiorana e está
em São Paulo há três anos. Apesar de adaptada
à vida na cidade grande, nota algumas diferenças
básicas: vem de uma família de sete filhos,
morava numa casa grande com jardim e quintal
numa cidade bem pequenina, onde todos se
conheciam e ela era reconhecida pelo nome em
todos os lugares que freqüentava. Estava
acostumada com o movimento de sua casa,
enfatizando o contínuo fazer de sua mãe, a
vegetação que envolvia sua casa e o silêncio da
natureza, que se contrapunham ao ruído, à
poluição e ao reduzido espaço de seu
apartamento em São Paulo. Estranhava também
as pessoas, tendo uma certa dificuldade em
confiar nelas, já que costumavam não se
cumprimentar no elevador, nos corredores ou na
rua. Tal atitude lhe parecia muito suspeita.
A história de Margarida foi repleta de
cirurgias e tratamentos, desde os dois meses de
idade, em conseqüência de uma grave fenda
palatina, que a impossibilitou de sugar o seio ou
a mamadeira, alimentando-se por meio de
colherinhas. As cirurgias corretivas (onze ao
todo) eram seguidas de tratamentos
fonoaudiológicos e ortodônticos, consultas
médicas e acompanhamento permanente em
clínica especializada. Desse percurso não guarda
como lembrança o sofrimento, a vergonha ou a
desesperança; traz o holding6 (Winnicott, 1967)
familiar como a marca mais profunda deixada
em si, ao longo desses anos, que lhe fornecera
a base para suas batalhas diárias contra o
preconceito social e as limitações físicas que a
natureza lhe impusera. Não há o menor traço de
revolta no relato de Margarida, ela se transformou
numa guerreira, a cada adversidade escolhia a
ferramenta apropriada e seguia rumo a uma
melhor qualidade de vida.
Grávida, há pouco mais de um mês da data
prevista para o parto, não dispunha de armas
para lidar com o vazio de sentido que se abria na
experiência do novo7 . Da atividade em que se
lançava, costumeiramente, para a solução de
seus problemas, via-se lasciva ao dormir uma
tarde inteira, saboreando o “não fazer nada”.8
Parece que o ambiente que a preparara adequadamente, durante a infância, para o excessivo
uso do fazer a deixara órfã no território do ser.
Margarida lembra da ansiedade que a acompanhava no período pré-operatório, amansada
pelo efeito do analgésico e pelo sono que se
Margarida parecia dominar um fazer que lhe tornava familiares as intempéries da vida. Assusta-se quando tal
dispositivo perde o poder confortador que tinha, esperando poder retomá-lo com a ajuda da terapeuta. Porém, cedo
percebe que procurava um outro fazer, diferente daquele que dominava com as mãos. O que é fundamental
ressaltar, aqui, não é o fato do fazer de Margarida ser ou não realizado manualmente, mas sua necessidade de que
qualquer atividade fosse preenchida de sentido, distanciando-se da situação anterior, em que vazios de sentido
eram preenchidos por atividades. Pensamos aqui estar a diferença entre passar o tempo (o passatempo) e viver
o tempo (realizações).
(6)
Holding é o conceito winnicottiano utilizado para a descrição do cuidado que uma mãe dispensa a seu bebê
quando o envolve com seus braços, dando-lhe sustentação tanto no sentido físico como psicológico e fornecendolhe assim a oportunidade para que os processos inatos de integração encontrem livre expressão no sentido de
organizar os elementos de self em torno de uma unidade identitária, o eu.
(7)
Com “vazio de sentido” queremos nos referir à imprevisibilidade da experiência de dar à luz um filho, sentido como
algo inaugural e, portanto, sem referência passada. Por mais que tentasse, Margarida não encontrava um ponto de
apoio em seu passado que a retirasse do estado de alerta, pelo contrário, tudo a levava a se “armar até os dentes”
e, ainda assim, sentir-se despreparada. Não há preparo para o novo, só nos resta a confiança (tema recorrente em
toda a obra de Winnicott, como a situação atingida a partir de uma boa adaptação materna às necessidades do
lactente) no ambiente que nos rodeia.
(8)
Chamamos aqui a atenção para o fato de Margarida ter revelado, quando do primeiro contato telefônico, que não
sabia ficar parada e precisava estar sempre fazendo alguma coisa. E como naquela época precisou parar de
trabalhar, estava em busca de algo para fazer, já que a ansiedade se apossava dela numa situação como essa.
“Não fazer nada” para Margarida era como “não existir”.
(5)
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seguia à anestesia. Depois de cada cirurgia, a
recuperação era imediata e o fazer retomado em
todos aqueles detalhes que a mantinham ocupada
até nova cirurgia, quando nova adaptação era
requerida. Temos aqui a hipertrofia do que
Winnicott (1966) chamaria de elemento
masculino do self, em que sua atividade impulsiva
característica, porque se realiza no contexto da
vida instintiva, parecia eclipsar as expressões
do elemento feminino, propiciador das experiên=cias de fusão, de indiferenciação, de deleite
narcísico, que formam a base da identidade ou
do sentimento de ser.
O ser não é algo etéreo, é um psiquesoma, como diria Winnicott (1949); poderíamos
também chamá-lo de corpo-alma ou, ainda, de
corpo habitado e é no corpo de Margarida que
tantas intervenções se sucedem para corrigir
algo que estava “errado”. Muito se faz sobre seu
ser, numa tentativa desesperada de aproximá-lo
ao máximo da perfeição e, neste momento em
que pouco falta para esse propósito, Margarida
escolhe parar para viver a gestação e a
maternidade: “ainda tem um escape do ar pelo
nariz e a voz ainda não está boa, já melhorou
bastante, mas agora deixa pra depois...”
Tal mudança de ponto de vista nos leva a
crer no processo de Margarida rumo à
preocupação materna primária9 (Winnicott, 1956)
cujo desenvolvimento, de um lado, a assustava
levando-a para os confins do ser e, de outro, a
preparava para a tarefa materna que se baseia na
adaptação sensível da mãe a seu bebê,
envolvendo todo o seu ser e o seu fazer. Como
mãe, Margarida precisará contar com a inteireza
de si, ou seja, com elementos masculinos e
femininos do eu para propiciar ao filho suas
primeiras experiências de existir, de sentir-se
(9)
vivo e real. Aqui é fundamental que a mãe
desenvolva uma espécie de identificação com
seu bebê, somente possível sobre a base do
ser, para que possa imaginar o que ele precisa
em um dado momento, colocando-se em seu
lugar. Nesse momento de satisfação, as
experiências de ser e de fazer estão entretecidas
de uma tal forma, que quase não se pode
distinguir uma da outra, tamanha a sintonia que
nasce da intimidade entre esses dois processos.
A afinação saudável entre o ser e o fazer,
entre o feminino e o masculino tem como
resultado a integração do eu, a inter-relação
psicossomática e a capacidade de realização
no mundo (Winnicott, 1945), na qual a dicotomia
eu/não-eu é resolvida pela criação de uma
parceria autêntica, em que cada termo se carrega
de possibilidades para o outro, sem submissão.
De volta à Margarida e sua angústia, que passa
então a se focalizar no momento do parto,
pudemos perceber que, contrariamente as suas
experiências cirúrgicas, havia um elemento
que, particularmente, a preocupava: ela estaria
acordada. Margarida só experimentara a rendição
sob o uso dos anestésicos, reassumindo o
controle da situação assim que “acordava”.
Porém, o que o parto requer da mulher é que abra
mão do controle de si, no sentido de se deixar
levar pelo processo, como quem aproveita o
movimento das ondas do mar para chegar à
praia, em vez de lutar contra a corrente na
tentativa desesperada de se agarrar a um barco
mais distante.
Margarida, paralisada pelo enigma que se
impunha, não imaginava como poderia se render
a algo estando acordada, ou seja, estando no
controle; de outro lado, não poderia dormir, já
que sua participação era aguardada em tal
experiência.
A preocupação materna primária é um processo no qual a mãe experimenta, nos estágios finais de sua gestação
e nos primeiros meses após o parto, um estado que, do ponto de vista do observador ingênuo, se assemelha a uma
doença regressiva, onde todos os seus interesses anteriores são deslocados para uma única preocupação
naquele momento: seu bebê. Ela parece absurdamente absorvida por tal tarefa, chegando a preocupar seus
familiares, que vêem seu comportamento como uma forma muito estranha de egoísmo e isolamento social. Com o
passar do tempo, que acompanha o desenvolvimento do bebê rumo à independência, a mãe tende a “desadaptarse”, retomando gradualmente sua vida anterior e deixando ao bebê a oportunidade de começar a lidar com seus
relacionamentos pessoais.
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M- Eu não sei como vai ser, já li de tudo, já
visitei o hospital, já enchi meu médico de
perguntas, já sei tudo o que vai acontecer. Eu só
não sei o que vai acontecer comigo!
T- Como você vai se comportar...
M- É, porque meu marido, eu não sei, ele
nunca teve essa experiência, não tem criança na
família dele, e se ele desmaiar? O médico já
avisou que se o marido desmaia, ele fica lá no
chão até acordar! Então vou ter que me preocupar
com ele também? Acho melhor ele não entrar na
sala de parto.
Quando a terapeuta lhe pergunta sobre a
possibilidade de contar com alguém naquela
situação, já que não terá o apoio das pessoas
que sempre estiveram a seu lado, ela responde:
“O meu médico, ali vai ser ele e eu!”
Margarida soube então que estaria
acordada e só, naquele momento de sua vida,
e por mais ajuda que tivesse, ninguém poderia
vivê-lo em seu lugar. Se reencontrasse no fundo
de seu ser o “colo” do passado, aí sim poderia se
soltar, relaxar e se deixar levar, aproveitando a
brecha que se abriria entre o sono e a vigília,
entre o controle e o descontrole, talvez algo
como um sonhar ainda que acordada. Porque
o sonhar é da mesma ordem do viver (Winnicott,
1971a), e, ainda que separados no tempo, estão
a enriquecer-se mutuamente, preenchendo-nos
de sentido e emprestando valor à vida. Já o
fantasiar paralisa, no sentido de que retira o
indivíduo da possibilidade de agir, de ser no
mundo, oferecendo como alternativa desesperada, a existência virtual, a vida onde não há
vida, múltiplas ações onde não há sobre o que
agir, enfim uma vida mental dissociada do psiquesoma. Pensamos que esse não é o caso de
Margarida, mas ela tende a isso, à medida que
“escorrega” da unidade psicossomática, conti(10)
(11)
nuamente interrompida pela série de cirurgias e
tratamentos em busca de nova unidade. Tantas
reestruturações físicas podem tê-la distanciado
do contínuo diálogo entre psique e corpo, entre ser
e fazer, entre o sonhar e o viver e, aqui, ela buscava
restaurar tal parceria. Margarida pressente que o
parto inserir-se-á na fenda que separa - ao
mesmo tempo que une - o sonho da vida.
Para encerrar, gostaríamos apenas de
sinalizar alguns detalhes fornecidos pelo
psicoterapeuta que se propõe a trabalhar com
gestantes e puérperas da mesma maneira com
que uma mãe se dedica ao cuidado de seu bebê.
Ele não imagina que sua paciente tenha se
tornado um bebê, isto seria um engano terrível,
mas concebe o respeito ao movimento e ao
ritmo com que se desenvolve o processo de
maternidade daquela mulher em particular, como
única possibilidade de crescimento emocional,
tornando-se ele mesmo um facilitador. Do
psicoterapeuta “sábio” (Winnicott, 1961)
rumamos para o psicoterapeuta sensível às
demandas de seu paciente, colocando-se mais
livre para circular pelos territórios do ser e do
fazer10 , permitindo-se atravessar e ser atravessado pelas vivências emocionais daquele que tem
diante de si, sabendo-se coadjuvante de uma
história que não lhe pertence, o autor ainda é o
paciente.
Uma outra questão que, além de Margarida,
tantas outras mulheres têm nos apresentado se
refere ao fato de as relações interpessoais atuais,
tanto quanto as profissionais, estarem tão
intensamente embebidas de elemento
masculino, que rouba o espaço para experiências
no campo do ser, relegadas e delegadas por
mulheres e homens. As mulheres de hoje demandam dos homens uma apropriação maior do
elemento feminino, para que elas também
possam viver o lado mais ativo11 da realização no
Notar como a terapeuta se abre diante da possibilidade de fazer uso ou não do material mediador, no caso os
arranjos florais, permitindo que Margarida se “espreguice” num espaço mais amplo. Aliás, ela não estava a se
queixar do espaço apertado de São Paulo?
Com isso não queremos dizer que o elemento masculino não possa incluir a passividade ou que o elemento
feminino refira-se a uma atitude passiva, ele também é ativo. Os elementos feminino e masculino se referem a
diferentes formas de estar no mundo das relações interpessoais (ativas ou passivas), remetendo-se a áreas
diversas da experiência intersubjetiva: no primeiro caso estamos lidando com relações de objetos subjetivos
(Winnicott, 1962) e no segundo, sujeito e objeto já se encontram em processo de diferenciação.
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mundo do trabalho. Muitas delas têm se queixado
de como é difícil se restringir, ainda durante a
licença-maternidade, à vida doméstica e aos
cuidados de uma ou mais crianças, ansiando
pelo dia em que voltarão ao trabalho, pois estão
se sentindo “inúteis” ou deprimidas, enquanto
cuidam de seus bebês. De outro lado, os homens
parecem se equilibrar numa “corda bamba”, pois
já não sabem mais o que suas mulheres esperam
deles: ora são exigidos na maternagem de seus
filhos e esposa, ora lhes é requerida uma
assertividade contundente. Temos a impressão
de que a complementaridade entre o feminino e
o masculino foi perdida nesses novos tempos e
os dados foram novamente lançados nesse jogo
de integração entre o feminino e o masculino
dentro de cada um de nós. Este tem sido um
jogo incômodo para homens e mulheres, pois a
construção de um novo sentido estimula nossa
criatividade tanto quanto nos assusta, fazendonos recuar a padrões antigos, ainda que
obsoletos. Estamos testemunhando um rearranjo
de elementos femininos e masculinos que, se
produz confusão e sofrimento, também inaugura
a possibilidade de configurações sequer
imaginadas e nos conduzem a questionamentos
éticos, tais como: Com quem deixo meu filho?
Somente serei boa mãe se amamentar meu
filho? O que importa é a quantidade ou a
qualidade? Não quero trabalhar! Ou ainda: Eu
preciso trabalhar! Não quero sentir dor! Homem
tem que participar! Eu tenho que ficar 24 horas
com ele? Não sei se serei boa mãe...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WINNICOTT, D. W. (1945). Desenvolvimento
Emocional Primitivo. In: Textos Selecionados:
Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1988.
(1949) A Mente e sua Relação
com o Psique-Soma. In: Textos Selecionados:
Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1988.
(1961) Varieties of Psychotherapy.
In: Home is Where we Start From. New York,
W.W. Norton, 1986.
(1962) A Integração do Ego no
Desenvolvimento da Criança. In: O Ambiente
e os Processos de Maturação. Porto Alegre,
Artes Médicas, 1990.
(1966) A Criatividade e suas
Origens. In: O Brincar e a Realidade. Rio de
Janeiro, Imago, 1975.
(1967) O Papel de Espelho da
Mãe e da Família no Desenvolvimento Infantil.
In: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro,
Imago, 1975.
(1969) Objetos Transicionais e
Fenômenos Transicionais. In: O Brincar e a
Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
(1971a) Sonhar, Fantasiar e
Viver: uma História Clínica que descreve uma
Dissociação Primária. In: O Brincar e a
Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
(1971b) O Brincar: Uma Exposição Teórica. In: O Brincar e a Realidade. Rio
de Janeiro, Imago, 1975.
Recebido para publicação em 6 de janeiro de 2003
e aceito em 18 de fevereiro de 2003.
Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 20, n. 2, p. 71-76, maio/agosto 2003