Sociabilidade: apenas um conceito?
Rousiley C. M. Maia*
Professota do Depto. de ComunlcacBo Soda! da UFMG
RESUMO: Diaatc de aiguns impasses da teorizacao sociologica micro c macro, o objctivo
central deste ensaio e desenvolver uma reflexao acerca da nocao de "sociabilidadc" inspirada na
acepcao de Siinmel, buscando inscreve-la entre algnmas correntes do pensamento social contemporaneo. A sociabilidade, mais que uma mera categoria tie interacao social, oferece um
frurifero ponto de partida para se examinar a dinamica da experiencia vivida e sens modus socials
de organizacao, rnostrando um confronto sempre contraditorio e agom'snco com as ordens
nonmtivas e os padroes culrurais mais amplos da sociedade.
Palavras-chave: sociabilidade, experiencia, Simniel
RESUME: I.'objectif central dc cut essai est dc devclopper unc reflexion autoiir tic la notion dc
"sociabiliti"inspiree de I'acceplion dc Simmcl, en tssttyant de I'inscrire an sein de t.fucltjues commits dc
lapemee sociale contemforamc, en raison de ccrtaines hnfitsses de It theorie micro et macro sociologiqne.
La sociability, plus iniune simple auegone ^'interaction sociale, ojjre itn fructneuxpoint de depart
pour examiner la dynamique de I'experience vecue et la maniere dont elle sorganise socialement,
pennettcintde rnettre en evidence une confrontation toujmm contradictoire el agorMtique vis-ii-VK
des onlres nonnatifs et des modeles culturels plus amples de la so dele.
MoK-cles: sodabilite, experience, Simmcl
ABSTRACT: The major task of this article is to examine the notion of "sociability" inspired oti
Siinmel's work. It is an attempt to place this notion within streams of contemporary social thought,
taking into consideration some dilemmas derived.from the micro and macro sociological theorizing.
It is argued that sociability, more than a single category of social interactions, o'fjen afruitful standpoint
for one to examine the experience of daily-life and us social modes of organization, evincing the.
usually contradictory confrontation luith normative orders and broader cultural patterns of thought,
in society.
Key words: sociability, experience, Simmel
Na acepcao de Simmel, sociabilidacte e uma "forma pura" 1 , "forma
esponranea de interacao" , livre de
qualquer interdependencia entre os individuos. Liberia do conteudo ou da
substancia, sociabilidade e a forma de
interacao social que "nao possui um
Pirn definidvo, nem conteudo, e nem
resulcado fora dela mesma" 2 . A pri- .
meira vista, causa estranheza pensar em
uma interacao social livre de conteudo
e de qualquer depenctencia. Afinal, os
indivfduos enconlram-se sempre e inevitavelmence inseridos na vida social,
com suas proprias tradicoes, padroes
culturais de pensamento e regras de
comportamento. As ordens sociais sao
historicamente constirurdas, encontram-se institucionalizadas e prececiem
os indivfduos. Os individuos, por sua
vez, sao atores socializados, assimetricamente inseridos nas estrururas socials, com habitos mais ou menos arraigados e com uma historia de vida
particular que nao pode ser abandonada por ato da mera vontade individual. Estaria Simmel convocando-nos
a abandonar o campo dos conteiidos?
Diversos autores contemporaneos tern uiilizado a nocao de sociabilidade enquanto "forma ludica da socializacao", associando-a sobretudo as experiencias que tern o carater de envretenimento, de festas ou da informalidade de conversas amenas 3 . Divergindo da preocupacao sociologica central de sens contemporaneos de vratar
cia alienacao, da domim^ao e da crescente abstra9ao cla sociedade moderna, estaria Simmel, ao cunhar o conceito de sociabilidade, propondo um
convire fortuiro para desviarmos o
olhar do poder e das desigualciades
sociais e abordarmos o liidico, o festive? Apesar de estudos contemporaneos terem mostrado o quao fruti'fero
e revelador e o estudo da dimensao
ludica para o entendimenco da vida
social, e de terem, assim, esiabeleciclo
a propriedade do tema para qualquer
investigacao sociologica, seria este o
principal prognosdco a ser extrafdo da
nocao de sociabilidade em Simmel?
Neste artigo, prerendo discutir
que a nocao de sociabilidade, concebida a partir do quadro teorico mais ample de Simmel, nao se reduz a uma
mera categoria de interacao, uma "forma" de interacao estabelecida por simples oposicao aquelas formas marcadas
pela racionalidade estrategica e pelo
calculo t e c n i c o - e f i c i e n t e . Como
Gabriel Cohn recentemente observou,
'V flificil nistentar que, no nucleo do esquema. analitico de
Simmel, esteja uma sociologia estritamente formal [...}. Uma sociologia recllmcnte formal exigiria um rompimento radical com
a perspective do conteudo e uma
completa elimina^ao das ressonancias romanticas no pensamento de Simrnel, a cornecar pela
ideia de tragedia da ad turn e pelo
sett desdobramento na ideia de
uma tensao entre format de
sociafao e as experiencias vividas
no ambito social. Mas talvez seja
nessa tlirecao, mais do que em
qualquer outra, quepossamos encontrar linhas de andlise para as
quais Simmel oferece mais do que
parece a primeira vista".'1
A men ver, e possivel extrair da
"tensao entre formas de sociacao e as
experiencias vividas no ambiro social"
uma proposta para se compreender a
inverpenetracao da acao e estrtitura,
como cornplementariedades. E dessa
perspecriva que procurarei, a seguir,
examinar o modo pelo qual a nocao tie
sociabilidade, mais que uma mera categoria interna a classificacao de tormas de interacao, oferece urn relevance p o n t o de partida para se abordar
crilicamente a dinamica das intera^oes
sociais e a sempre contraditoria articulacao destas com a ordem social e os
padroes culturais. Na primeira parte
do rexto, realize uma breve incursao
no pensamento de Simmel, com o proposito de rever a distincao que este
auror estabelece enrre forma e conteudo e o quadro analitico das formas de
sociacao. Na segunda parte, procure
inscrever a concepcao de sociabilidade
entre algumas correntes do pensamento contemporaneo, localizando-a enrre
alguns impasses do chamado debate
micro-macro da teorizacao sociologica.
* Doulora em Oencio Politico pela Univeisily
of Nottingham, Ingloteni], Este oitigo reptesento (esullodos parciois do projeto de pesquisa, "Midia e a Roabilitagio do tx|H)rtcncia: pressupostos e controveisios teoricos",
desenvolvido com apoio do CtiPq e da
FAPEMIG.
'SIMMEL, G. 'Sociubilidode - um exemplo de
sociglogjo puro ou formal'. In-. FILHO, E. M.
(Ory.). Sociologia. Soo Paulo: Atica, 1983.
p.165.
'SIMMEL, G. The Sociology of Sociability. In:
FRISBY, 0.; FEATHERSTONE, M. Siminel on
culture. London: Sage Publications, 1997.
p. 120-130, p. 126.
3 Ver: MAFFESOLI, M. A sombra de dionisio contribui^ao para uma sociologia da orgia.
Rio de Janeiro: Graal, 1985.; e MAFFESOLI,
M. A conquista do presenle. Rio de Janeiro:
Rocco,1984.
Simmel e a sociologia formal
A contraposicjao que Simmel estabelece entre a ideia de "vida" e a de
" f o r m a " e f u n d a n t e do quadro
conceitual deste autor. A vida e envendida como fluxo concrete de eventos
dorado de carater intrinsecamente criador, sendo os individuos sempre os
sens portadores. Formas tern sua genese na propna vida. No entanto, urna
vez reahzadas, as formas tendem a contrapor o sen carater acabado, (echado,
a existencia concreta dos sujeitos.
Como afirma Gabriel Cohn,
"a ideia bdsica [do esquema analitico de Simmel] e a de que determinados padroes de interact) destacam-se dos conteudos (sentimentos, impulses) que de certo modo
Ikes davam vida e passam a operar for sua propria conta, como
receftdculos para relates que se
ajustem it eles".^
5COHN,
G. As Diferencas Finos-, de Simmel a
Luhmann, RBS, v. 13, n, 38, p.53-62,
1998,p. 57.
'Ver FRISBY, D. Georg Simmel. Mexico: Fondo
de Culture Economical 984.; COSEIU. (Ed.)
Georg Simmel - makers of modem social science.
New Jersey: Pretince-Hall, 1965.; ALEXANDER,
J. 'Formal Sociology1 is not multidimensional:
breaking the 'code' in Parsons's fragment on
Simmel'. In:
, Neofunctionolism
and otter. Massocliuseffs: Blackwell, 1998.
p. 104-117. Examine a controversia ocerca
do melodo/estilo de Simmel de modo mois
detalliado em "Forma e Experiencia: a visoo
ambivolente de Simmel", Logos, Ano 5, n. 10,
1999.
N, G. Simmel e a Depuracjio dos Formos. In:
_. Critico e resignacjio fundomentoTJa sociologio de Max Weber.
Soo Poulo: T.A Queiroz, 1979: p. 33-50. p.
38-39; COHN, G. As Diferencjs Finos: de
Simmel a Luhmann, RBS, v. 13, n, 38,
p.53-62,1998. p. 57.
"COSER, L. (Ed.) Geotg Simmel - makers of
modern social science. New Jersey: PretinceHoll, 1965. p. 10.
6
Simmel reconhece que as constela^Ses de individuos interagindo uns
com os ouifos geram fenomenos supra-individuais que sao condensados ou
cristalizados em formas distinuvas. Dai
o paradoxo: os individuos nunca podem realizar-se plenamente em sua
a u t o n o m i a e i n d i v i d u a l i d a d e , posto
que nao possuem urna subjerividade
autonoma e enconrram-se necessariameate imbricados num transcurso que
os ultrapassa. Nesse senrido, e bem
conhecida a descricao de Simmel do
modo pelo qual o fluxo das expenencias h u m a n a s i n e l u t a v e l m e n t e se ve
aprisionado em formas fixas, das quais
o proprio individuo se discancia.
A discincao entre forma e conteudo em Simmel nem sempre e clara
e tern sido foco de continuada dispuca
entre os esmdiosos do autor. Cn'ticos
tern apontado que tais termos recebem
diterentes definicoes e que o tratamento de certos topicos mostra-se, por vezes, inconsistente 6 . Para nossos proposiros, a nocao de "forma" em Simmel
pode ser entendida a p a r t i r de duas
defini^oes principals . Forma clesigna,
n u m a primeira acepcao, "moclelos
heuristicos", no sentido de "constru-
GERAES - Revisto de Comunko^oo Sociol n. 53 - 2001
mentals que permrtcm ao pesquisador ordeuar e anahsar a realidade
social. N u m a seguuda acepcao, "lormas" podem ser compreendidas como
produtos da interacao social, dizem
respeito as "estruturas recorrentes" que
s u b l i n h a m os conteudos sempre
iTuitantes das inceracpes sociais.
Simmel recusa-se a conceber a
societlade de maneira holistica, como
Lima estrurura ou um c o u j u n t o bem
ordenado de parv.es, com atvibutos persistentes. Mostra-se suspeito vanibem
das teorizacSes que procuram explicar
as interacoes sociais de maneira mecanica, de tal modo que as pradcas locais, no ambito micro, reproduzem, de
m a n e i r a coerente e serena, a ordem
social gen:.!. Diante de tal perspectiva,
Simmel nao toma a invc-stigacao da
sociedade apenas sob um porno de vista
macro-sociologico. Propoe, ao inves
disso, a compreensao da experiencra da
vida de modo nao toralizado, salicntancio as fragmencacoes, as dispersoes
e as migvacoes que ocorvem nos ambitos micro-cosmicos da vida social.
As formas em Simmel, enquanto modelos heuristicos, nao sao conceitos gerais aos quais se chega atraves
da generalizacao e da abstracao. Elas
visam oferecer, antes, Lima maneira
peculiar de conceber e examinar a realidade social. Esse autor procura pensar a sociedade nao diretameme como
urn conjunto de inreracoes em fluxo,
mas como um conjunto de (ormas padronizadas. Com este esquema analitico em men re, o observaclor social
pode indagar, por um lado, a respeno
da relacao das proprias formas entre si
(por exemplo, como se relaciona a divisao de trabalho com a competicao e
esra corn o conflito, e assim por dianre) e, por outro, da relacao entre as formas e os conteudos que as preenchem
no deseurolar da vida social'. Tal como
o "tipo ideal" weberiano, que permire
ao pesquisador apreender o modo pelo
qual um renomeno concrete se aproxima ou se afasta do tipo, tambem a forma simmeliana pode ser vista como um
instrumemo para captar uma combina^ao tipica que marca uma dada relacao e as suas diversas modulacocs 8 .
Contuclo, enquanto Weber perseguc o
significado at raves de conceitos formulados de modo rigoroso e sistematico,
Simmel procura construir de maneira
analogica as i n u m e r a s formas que
emergem como categorias o r g a n i zadoras da vida social. Persegue incansavelmence a correlagiio entre formas e
procura localizar congrttencias sistemdticas entre elas, no intuito de inferir
desse exerctcio aigo que nao e diretam e n r e observavel n a r e a l i d a d e
empirics'.
Partindo da crenca de que nao e
possi'vel apreencler o codo ou a rotalidade nela mesma, mas que qualquer
fragmento de estudo pode levar a visl u m b r a r o todo, S i m m e l p r e t e n d e
mostrar o modo pelo qual cada fenom e n o social s e m p r e possui u m a
multiplicidade de processes formats.
Apenas um numero limhaclo de formas pode ser extraido da diversidade
complexa dos conteiidos sociais. Alem
disso, cacta forma (independentemente do objeto a que se refere) e sempre
uma parte que demanda uma
complementacao por outras. Uma vez
que um grancle numero de formas opera
na sociedade e cada uma limita a realiza^ao das outras, nunca podemos reconstruir a realidade pela mera combinacao das formas 10 .
Alem disso, Simmel mostra-se
sobretudo preocttpado com a observacao das formas em sua realizacao conc r e t a e i n d i c a que os dados
macroscopicos so sao compreensiveis
por meio de uma analise capaz de atingir o nivel micro. Embora possainos
fazer previsoes atraves do uso das formas, tal recurso e limitado. Nao se pode
conhecer especificamente a contribuicao particular de qualquer forma e a
realidade historica jamais se encerra
exclusivamente em nenhuma delas. A
elucidacao analogica e a apreciacao de
formas de uma ordem nao totalizada
sao entendidasf assim, como os elemencos basicos do metodo/estilo de
Simmel. Embora nao seja possi'vel dizer que Simmel tenha fundado um
paradigma de analise social, alguns autores tern defendido que o formalismo
de Simmel pode ser visto corno uma
proposta "estetico-expressiva" de apreensao "pluralista nao sistematica" da
realidade 1 1 .
Com rela^ao a segunda noijao de
"forma" na obra de Simmel - padroes
de interacao que sublinham os conteiidos sempre m u t a n t e s das interacoes
sociais - , o relacionismo de Simmel
evidencia que a vida social irnplica uma
formalizacao da realidade, ja que a a9ao
de model izacao e realizada pelos proprios atores sociais. Forma, nesta perspectiva, passa a designar cada vez mais
a nocjio weberiana de " t i p o ideal de
orientacoes reciprocas", ao inves de
conceitos abstratos ou generalizaveis.
Simmel, tal como Weber, parte sempre do p r i n c f p i o de que uma analise
sociologica deve remontar as a^oes e
reaches dos individuos na situagao em
qne se encontram. Embora Simmel nao
tenha utilizado o rermo "estrutura" em
seu estudo das formas de sociacao, "forma" aqui pode ser entendida como
papeis, status, posi^ao e normas, vistos
como reciprocidades, tal como ocorrem nos complexos historicos. O estudo e desenvolvido em termos de padroes cle comportamento rectproco.
No qttadro teorico de Simmel,
o problema da forma rorna-se, pois,
particularmente evidente no contexto
da interacao. As formas nao podem ser
reduzidas a processes cjue ocorrem no
interior dos individuos envolvidos, uma
vez que transcendent as motivacoes
subjetivas, os interesses, as intencoes e
os impulsos puramente internes dos
agentes. Tenbruck defendeu tal proposta de Simmel:
'WEINSTEIN, 0.; WEINSTEIN, M.
Postmodem(ized) Simmel. London: Routledge,
1993. p. 9-28.
IO FRISBY,0 Georg Simmel.Mexico: Fondode
Culture EconomicaJ 984.; IENBRUCK,F.H.
'Formal Sociology1. In: COSER, L Georg Simmel
-makers of modem social science. New Jersey:
Pretince-Hall; W5. p. 77-96. p. 96.
"WEINSTEIN, D.; WEINSTEIN, M.
Postmodern(ized) Simmel. London: Routledge,
1993. p. 12.
"So e passive! que as formas operem para os individuos porque os
atores 'entendem a situagao. As
formas sao as reciprocidades latentes de situdfoes tipicas. E o 'eritcndlmento' da situacao - isto e, a
apreensao de suas caracteristicas tipicas e essenciais -, nao e, para
Simmel, restrita aquelas situafoes
que a cultura revelou para os atores como sendo tipicas. A sociologia formal se baseia na suposigao
de que a a^ao com sentido pode se
originar nos individuos. E e essa
suposifao que permits urn entendimento peculiar da sociedade, na
qital o homem e simultanearnente
objeto e sujeito, um entendimento
que upreende a sociedade ao mamo tempo em sens aspectos estdticos e dinamicos".1'
12 TENBRU(I,F.H.'Formal Sociology'.
In: COSER, L Georg Simmel - makers of modern
social science. NewJersey: Prefince-Hall, 1965.
p. 77-96. p. 95.
I3 TENBRUCK,F.H.'Formal Sociology1. In: COSER, L Georg Simmel - makers of modern
social science. NewJersey: Prelince-Hall, 1965.
p. 77-96. p. 94; COSER, 1996:10-14)
Em suas interacSes, os individuos se defrontam, nao como entes puramente singulares, mas sim como individuos ja socializados e que devem
se definir mutuamente na relacao. Assim, as formas podem ser compreendiclas como a modelagem mutua de
um niunclo comum em meio a uma
acao conjugada. Elas oferecem aos parceiros da interacao uma pre-compreensao da situacao, uma estmtura de expectacivas reciprocas e a possibilidade
de construir de maneira coordenada o
GERAES - Revislo de Comunicoc,oo Social n. 53 - 2001
desenrolar da acao. E a inclusao reciproca em cerias categorias, congruenres
com a situacao, que permite aos parceiros ir delimitando m u t u a m e n t e a
matgem de escolhas possiveis, e definindo o curso da conduta. Estabelecese uma cumplicidade coordenada, de
tal modo que ha uma correspondencia
entre as restricSes reciprocas a autonomia da a9ao.
Simmel chama atencao especial
para o fa to de que as formas se desenvolvem na interacao. E isso significa
nao apenas que a forma se origina no
processo de interacao e subseqiientemente restringe e estrutura o comportarnento do a tor, mas, tambem, que
os atores modificam e recriam os elementos presentes nas formas
estabelecidas. Para Simmel, o ator n u n ca perde a sua espontaneidade e a possibilidade de exercer influencia sobre
as lormas. Isso quer dizer que os individuos, ainda que sigam prancas sociais r o t i n i z a d a s e padroes i n s r i tucionalizados de comportamento, colocam conteudos particulares e variaveis nas formas gerais, os quais podem
escapar do conttole administradvo, da
regulamentacao legal ou do alcance
politico. As formas assim possuem um
carater dual, sao superiores aos atores
e, ao mesmo tempo, a eles submissas.
As formas operam sobre os atores e os
atores operam sobre elas' J .
Seria um equivoco fazer supor,
nesta perspectiva, que a referencia a
forma signilique um convite para abandonar o campo dos conteudos. Os funda mentos da sociacao ou dos processes pelos quais nos tornamos membros
da sociedade tern uma localizacao espaco temporal. Neste aspecto, "um dos
objetivos mais ambiciosos de Simmel",
como David Frisby e Mike
Featherstone expressaram, foi, exatarnente, "o estudo das precondicoes formais para a possibilidade e a existencia das formas de interacao social" 1 ''.
Nessa perspectiva, o relacionismo de
Simmel inspirou diferentes escolas
americanas e europeias da fenomenologia e do interacionismo simbolico. A riqueza de detalhes com que
Simmel retrata a vida cotidiana exerceu influencia em correntes da Teoria
Critica e dos Estudos Culcurais, de
uma maneira muito mais solida do que
ate entao se havia acreditado15. De tal
modo, Simmel tern sido reconhecido
tanto como "um dos grandes pioneiros da sociologia da acao" 16 "quanto
um dos pioneiros", que "buscou analisar o espaco social como uma dimensao crucial da interacao social e, tambem, das formacoes culturais" 1 7 .
Revisitando a no^do de
sociabilidode
Ao revisitar o quadro anah'tico
de Simmel acerca das f o r m a s de
sociacao, mais do que perseguir a controversia em torno'da disdncao forma/
conteiido, parece-me particularmente
elucidative buscar entender o modo
pelo qual tal distincao evidencia a tendencia problematica da integracao
normativa, primeiramente do indivfduo no conjunto social e, tarnbem, da
dinamica das irueracoes simples com
as ordens normativas e poh'ticas mais
amplas.
Simmel confere especial atencao
a dimensao da espontaneidade na vida
social. Ao focar sua atencao nos "detalhes", nas "falas descompromissadas",
nas "banalidades" da vida social, este
autor procura fazer ver que nenhuma
regulamentacao normativa on coercao
institucional pode substituir inteiramente os sentimentos que nascem li-
vrernente nos homens em suas aproxima^oes e afastamentos recfprocos. E,
assim, caractenstica marcante nos escritos de Simmel, o exame das formas
em sua emergencia (em sen status
nascendi, como ele mesmo afirma) nas
interacoes diarias entre os individuos,
apesar de quao efemeras estas possam
ser. Neste sentido, a referenda
simmeliana de que as formas representam a sociedade em sen status nascendi,
diz respeito a emergencia das formas,
nao no rempo historico, mas na continua espontaneidade atraves da qual elas
se s u s t e n t a m nas i n t e r a c o e s interpessoais.
Embora nao possamos tomar as
formas independentemente do conreudo, a sociabilidade, diz S i m m e l , e lsDivetsos oulotes opontom que o relodonismo
de Simmel, difundido nos Estodos Unidos por
"como se fosse" um "actus punts" en- Pork e Burguess, continuou inspirando boa
contrado na "vitalidade dos indivfdn- ports da segunda geta^ao da Escolo de Chios reals, na sensibilidade e nas afinida- cago, parlicularmenie Ross, Merton, Watner,
Homans, Moreno, Riesman, Caplow. E afirdes deles, na integridade de suas con- mam que uma nova gera^ao de intelectuais,
viccoes e impulses" 18 . Afirmando ser tais corno Coser, Eevine, Hughes, Tenbruck,
este "um fenomeno sociologico siii tern se incurnbido de Ihe reotuolizar a obra
nos mais diversos aspectos. Na Europe, o
generis", Simmel parece centralmente forrmdismosirrimelionofoiprindpolmentedefazer referenda ao processo associative senvolvido por seguidores como G. Lukdcs, E.
em si, isto e, a forca gregaria que tine Bloch e S. Kracauer. Trabalhos recentes tern
buscado onciiisor o modo pelo qual a obra do
os individuos. Apesar de nao desenvol- autor desempenha um popel constitutive) na
ver de modo detalhado tal questao, sociologio do culture, no Expressionismo AleSimmel da a ver que nao e de ma o, nos Estudos Culturais e em coirentes do
pos-modernismo. Para uma revisao da influinrerdependencia que se trata, mas de encia
da obra de Simmel, ver: Filho, E. 1983:
reciprocidade. Como forma ludica de 19-32; Frisby, D.I 990:227-249; Frisby, D.
socializacao, marcada pela oriemacao e M. Fealherstone, 1997: 1-31; Weinstein,
voluntaria e livre, a "sociabilidade e um ; A e A. Weinstein, 1993:1-49; Coser, 1965:
23-28; Alexander, 1998,110-117.
jogo no qual as pessoas, na verdacle,
.; BOURRICALID, F. Diciondrio
jogarn/desempenham 1 9 a sociedade" 20 . aiticodesociologio Soo Paulo- Atica, 1993.
Como um jogo social, a sociabilidade p. 503.
pode tomar miiitas formas, clesde as "FRISBY, D.; FEATHERSTONE, M. Simmel on
mais universais presentes no "instru- culture - selected writings. London: Sage
Publications, 1997. p. 11.
rnento mais abrangente da vida co18 S!MMEL,G. The Sociology of Sociability. In:
FRISBY, D.; FEATHERSTONE, M. Simmel on
mum da humanidade - a conversaLondon: Soge Publications, 1997.
cao" 2 ' , ate as mais especificas, tal como culture
p. 120-130, p. 128.
no jogo erotico do flerte, ou da sedu- "Como se sabe, o termo ingles "play" designn
cao. O elemento de "jogo" sugere o indistintamente: (1) entregor-se ao jogo, ou
modo complexo pelo qual os indivi- fazer paite dele; (2) brincar, diverti(-se
duos podem se identificar e se inserir ludicamente ou fazei brincodeiro; (3) desempenhai, monejai com destreza distintas comnas categorias socialmeme construidas; binai;6es de um script; execular hobilmente
aquilo a que se estavo obrigodo, sejo um
abre questoes acerca do modo pelo qual
podemos nos apresentar para outras papel sejo uma fun^ao.
pessoas e manejar nossa propria apre- WSIMMEL, G. The Sociology of Sociability. In:
FRISBY, D.; FEATHERSTONE, M. Simmel on
sentacao, e indica, ainda, o carater ine- culture. Loadori: Sage Publications, 1997.
p. 120-130, p. 125.
vitavelmente construi'do das convencoes, e, portanto, da propria realidacle 2ISIMMEL, G. The Sociology of Sociability. In:
FRISBY, 0.; FEATHERSTONE, M. Simmel on
social.
culture. London.- Sage Publications, 1997.
Contudo, atento para a persis- p. 120-130, p. 126.
Oeparlomento de Comunicacpo Social - FAFICH/UFMG - GERAES
V
"SIMMEL, 6. The Sociology of Sociability. In:
FRISBY, D.; fEATHERSTONE, M. Simmel on
culture. London: Sage Publications, 1997.
p. 120-130, p. 128.
"ALEXANDER, J. Twenty lectures - sociological
theory since world war II. New York: Columbia
University Press, 1987- HABERMAS,J.'Actions,
Speech Acts, Linguistically mediated
Interactions and the lifeworld'. In: COOKE,
M. On the pragmatics of communication.
Cambridge: MIT Press, 1998(a). p. 215-256.
2< COHN, 6. As Diferen^as Firms: de Simmel a
Luhmann, RBS, v. 13, n, 38, p.53-62,
1998. p. 55.; LEVINE,0.'Some Key Problems
in Siramel's Work. In: COSER, L. (Ed.) Georg
Simmel - makers of modern social science.
New Jersey: Pretince-Hall, 1965. p. 97-115.
p. 110-115.
"MAFFESOLI, M. A sombta de dionisio - contiibuicjio para uma sociologia da orgia. Rio
de Janeiro: Graal, 1985. p. 17.
10
GERAES - Revisto de Comunico^o Sociol n. 53 - /
tencia das formas culturais atraves do
tempo e do espaco, Simmel afirma que
as configuracoes da sociabilidade podem se cornar ossificadas num conjunto
de regras que estabelecem vi'nculos formais, que correm o risco de se cornarem "caricaturas" delas mesmas. Temse af o paradoxo da cristalizacao das
formas objetivas que se confrontam
com os homens como encidades estranhas a eles e que podem se esgotar no
momento em qire os individuos, poi:
sua vez, nao se reconhecem mais nelas. Diz Simmel, "no momento em que
as formas sociais se toniam um fim
nelas mesmas, a sociabilidade se desintegra" 2 2 .
Apesar das limitacoes do apararo conceptual proprio do contexto no
qual estava operando, Simmel aponta
que cada processo de integracao social
e s i m u l t a n e a m e n t e - u m processo de
socializacao para sujeitos que sao formados nesse processo, e que, por sua
vez, eles renovam ou estabilizam a sociedade, como o conjunto de relacoes
interpessoais 23 . As ordens sociais permanecem dependences da atualizacao
que os proprios individuos operam em
situacoes concretas, nos m u l t i p l e s
intersn'cios e nichos microscopicos da
vtda social. Este autor indica, assim, a
possibilidade de urn conjunto sempre
renovado de formas de sociacao; as formas sociais duradouras e os comeudos
Tugidios da vicla mental se unem sem
jamais se fundirem. A tensao constante entre o mundo das interacoes diarias simples ou do e n t e n d i m e n r o
intersubjetivo e suas expressoes na ordcm social e na cultura parcce incviiavel. A coordenacao entre vida e forma
e raramente tornada harmonica.
Alem disso, Simmel tragicamente evidencia a dificuldade de se assegurar a reciprocidade das acoes nas sociedades modernas, ja que o desenvolvimento das formas da cultura e sempre acompanhado por varios m'veis de
diferenciacjao, funcionalizacao, abstra930 e dominacao. Simmel faz notar que
as sociedades modernas prodtrziram
uma rede intrincada de relacoes, corn
progressiva diferenciacao social. Por um
laclo, a rnulciplicacao das relacoes sociais colocou os homens em maior pro-
ximidade ;;ns dos outros, atraves de
contacos mars freqiientes. Por oucro
lado, a diferenciacao social introduziu
novas fontes de d e s i g u a l d a d e s e
assimetrias, e, assim, dihculrou os gestos e os s e n c i m e n t o s recrprocos*"'.
Como se assegurar, na vida social, a
continuidacle da acao espontanea?
Uma rererencia f u n d a m e n t a l
para fazer avancar a nocao de sociabilidade e encontrada nos trabalhos de
Michel Maffesoli (L987, 1996). Este
a u t o r e n t e n d e a s o c i a l i d a d e como
"uma expressao cotidiana e tangi'vel da
solidariedade de base, vale dizer, do
societal em ato" 2> . A sociabilidade apresenca-se como um aspecto fundamental do estar-junto, de relacoes de partill'ia entre individuos livres para iclentificacoes sucessivas. Permanece em
Maffesoli a susperta simmeliana em
relacao as reorizacoes totalizacloras da
sociedade e o descontemamento com
as explicacoes m e c a n i c i s t a s das
interacoes sociais, segundo as quais as
rotinas locals e rnicro-sociais rep rod uzem t r a n q t i i l a m e n t e a ordem social
geral. Maffesoli questiona as grandes
tovalizacoes, ITUIS nao a potencia das
interacoes pessoais e da experiencia.
Apesar das grandes metropoles apresentarem ambientes absrracos, plurals
e " d e s t e r r i t o r i a l i z a d o s " , redes i n t e r a t i v a s se estabelecem de f o r m a
reticular a p a n i r de grupos de amizade eletiva, de tribos, de relacoes de vizmlianca em nichos microcosnncos,
t o r n a n d o o espaco t i r b a n o reterritorializado. Maffesoli enfatiza a
qualidade "afetiva" das interacoes ("a
pufsao grcgiiria", "o estai'-corn") prcsentes em formas de vida paniculares,
as qtiais constituem tim "mundo comum" e o sentido de uma realidade
comparrilhada. Admitindo que o mundo social encontra-se eferivamente fragmentado nas sociedades complexas e
altamente diferenciadas, Maffesoli busca. evidenciar o vitahsmo das mrerac5es
locals, em comunidades especificas,
moveis, permeaveis ou mutantes. Tais
interacoes simples asseguram o semimenco de pertencimento dos individuos nas redes de experiencia da vida
cotidiana, proporcionando o sentimento de familiaridade e um ripo de segu-
ranca de base, num mundo social que
desafia o e n t e n d i m e n c o e excrapola
qualquer ordem "cornurn" coledva.
A preocupacao teorica com a
sociabilidade coloca cm relevo o universo simbolico que envolve os individuos nas diversas formas de interacao
social. E esse universo simbolico que
se apresenta como o cimento mais profundo, que permite a fusao de subjetividades: o "esrar-com", o "ser-com".
Para Maffesoli, essa atmosfera simbolica que envolve os indivlduos, justamente por ser subterranea, "existenre
em potenda" (e, nesse sentido, implicita e imaginada) pode garantir a solidariedade em comunidades especi'ficas,
na ausencia de crencas comuns. Entende-se que a "realidade social" e uma
consdtuicao subjedva e, como tal, nao
existe externa ou independentemente
do entendimento mesmo dos indivlduos. Assim sendo, o universo simbolico depende de constanre atualizacao
por pane dos indivlduos e de pradcas
interadvas concretas. Ao mesmo tempo em que as relacoes cotidianas sao
rodnizadas, elas sao tambem marcadas
pela pluralidade e diversidade, podendo s e m p r e ser v i v i f i c a c l a s pela
cdadvidade do novo.
Maffesoli oferece uma renovada
contribuicao para a interpretacao da
vitalidade das interacoes simples, i.e.,
do dinamismo da relacao dos indivlduos uns com os ourros e com o mundo social que os rodeia 26 . Para fazer
avancar tal argumento, podemos buscar eruencler com maior especificidade
a nocao de vitalidade das interacoes sociais aqui presence. E possivel dizer que
tal nocao de vitalidade/dinamismo sugere que as interacoes individuais nao
podern ser tomadas como resultantes
de uma determinacao mecanica e iniefliata, dacla pela historia, pelo sistema
ou pela classe social. Isso implica num
afastamento, por tun lado, das abordagens orcodoxas do materialismo hiscorico, nas quais as reiacoes sociais sao
percebidas como simples reflexo da
realidade material e da dialetica estrutural matxista, a qual orienta-se por
pressupostos que, embora nao neguem
a dimensao subjetiva das interacoes
sociais, Ihe atribuem um carater ptira-
mente residual.
Em segtmdo lugar, a nocao de
vitalidade em questao distancia-se da
que esta presente nas teorias que supoem serem as acoes motivadas por
formas estritas de racionalidade tecnico-eficiente. Como se sabe, nas perspectivas coletivistas racionaliscas, as
estruturas coletivas sao retratadas como
externas aos indivlduos e tomadas como
impermeaveis as vontades destes. Nessas abordagens, as instituicoes poh'dcas e economicas sao tratadas como
unidades capazes de conrrolar os indivlduos de fora, qtier eles queiram ou
nao, atraves de sancoes positivas ou
negativas. Tende-se a sacrificar o stijeito, reduzindo-o a um ente calculaclor
de meio-fins, prazer-dor. Ja a reoria
coletivista, que admite a acao nao-racional, percebe os atores sendo guiados pot ideals e pela emo^ao. O mundo interne da subjetividade, inicialmente estrtiturado por objetos externos, passa a incorporar, por esse processo mesmo de socializacao, as estruturas extra-individuais. No entamo, a
subjetividade so se. totna um topico da
teoria coletivista se esse fenomeno da
interioriza^ao e aceito. Deste modo,
uma atencao ainda secundaria e atribuida a interacao entre os indivlduos,
a qual fica reduzida a um tipo de negociacao interpessoaF 7 .
A nocao da vitalidade das relacoes interadvas em pauta parece tambem atastar-se da radicalidade com que
a perspectiva durkbeimeana assume a
integracao normativa do indivi'duo no
conjunto social e a ptimazia da 'consciencia coletiva" sobre a consciencia
individual. Por certo, Durkheim
tematizou que a realidade existe'ranto
"deiuro" quanvo "fora" do indivi'duo e
que a solidariedade nao pode ser garantida somente pela forca, mas requer
consenso e consentimento. Como se
sabe, Durkheim, contrariando a tradicao de pensainento racional inciividualista, parte da premissa de que a
racionalidade h u m a n a (qualquer que
seja sen tipo) esta assentada sobre bases emocionais e, portanto, nao racionais. Durkheim busca evidenciar as
bases nao c o g n i t i v a s da p r o p r i a
cogni^ao e enfadza o carater fundante
mniorio das correiites sociologicos, seyundo o
quo!, o "estar-jun!o" [I'eite-ensemble], ele
alega, podio openos ser compieendido sob
um hotizonte polilico de umo atitude projetiva:
o o0o, o fuluro, o rembto. Maffesoli busca
opor o poradignio politico o urn porodigma
estetico associodo 6 abotdagem de Simmel
com o intuito de revelar "expressoes diveisas
do socialidade conlemporaneo". Menciona que
tnis expressoes (formas esponlaneos de DSSOdo^oo, as quais sao relotivomente aulonomos do Estado) tendem o ser consideradas
anomicos do ponto de visto da imcigina^ao
do rnoralidode politico. MAFFESOLI, M. 0
tempo dos tribos - o declinio do individual
mo nos sociedades de masse. Rio de Janeiro:
Forense, 1987. MAFFESOLI, M. No fundo das
opnrencios. Petropolis: Vozes, 1996.
"Ver MOUZELIS, N. 'Reificatioii: ignoring
the balance between social and system
integration'. In:
. Sociological theory:
what went wrong? London: Roulledge, 1995,
p. 117-136.; ALEXANDER, J. 'Formal
Sociology1 is not multidimensional: breaking
the'code1 in Parsons's fragment on Simmel'.
In:
_ _ . Neofunctionolism and after.
Mass'achusetFs: Blackwell, 1998. p. 163-209.
Deparlamento de Comunicoijio Social -FAFICII/UFMG- GERAES
11
28 P(]f[iculormen!e
em suo sociologin da religiao, Duikheim husca explidtar o modo pelo
qual Q rclkjiao urticula simbolos e rituals quo,
independentemente do conteudo que apresentom, tern o efeito de criar, entte os individuos, afinidades sentimentais que constituem a bose de ctossificajoes e representagoes
coletivalTais formulates proporcionamftutiferos insights para uma sofisticada teorio
de coesao social, para se tratar "o que" mantern os individuos unidos e os faz agir coletivamente. No entanto, as proposicoes da
"matro-sociologia" de Durkheim conauzem a
explicates distinlas, com suas conhecidas dificulilades para trotar da mudan^a social, do
dinamismo da orclem e do conflito nas sociedades modernas, seculores e segmenladas.
Ver: PRATES, A.A.A et ok Temas contemporaneosdesociologia classica. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1991; COHEN, I. J.'Theories of
Action and Praxis'. In: TURNER, B. (Ed.) The
blackwell companion to social theory. Oxford:
Blackwell,1998.p.ll-142.
1 2
de sentimentos comparrilhados, sentimentos esses que sao pre-contratuais
e apresentam-se como a base para qualquer'ieta^D cnitetual". No em-amo,
Durkheim, em sua "macro-sociologia",
acaba por enfatizar que as encidades
coletivas possuem um status de realidade externa e que os rates socials, extra-individuals, devem somente ser explicados por ontros fatos socials.
As perspectivas teoricas de inspiraijao simmeliana pretendem, ao contrario, sustentar a centralidade da negocia^ao individual nas interacoes socials e a contingencia da ordem social.
Pensaclores de cor re nr.es norte-americanas modernas ( i n s p i r a d o s no
pragniatismo de Mead e no proprio
Simmel) ofereceram convincentes ex-
GERAES - Revisto de Comunicacoo Social n. 53 - 2001
plicacoes para se compreendcr como a
realidade individual compoe e confere
sentido a realidade social e a sociedade. Em perspectivas como a de LMunici 1 ,
o que define as atitudes individuals nao
e a mera interiorizacao das normas, mas
a relevancia da sicuacao imediata, sendo que o significado e dererminado
pela negociacao individual, on rnelhor,
pela reacao dos ourros ao ato do indivr'duo. Goffman enhuiza os desejos do
individuo de manipular a apresentacao do "eii" em relacao aos papeis socialmente estrururados, ese esforca para
explicar o comporramenro instinicional
como originaclo na interacao lace a
face. D e r i v a n d o - s e da sociologia
funcionalista tanro quanto da
fenomenologia
de
Schutz, a
etnometodologia busca explicar a dinamica das relacoes interpessoais e a
integtacao normativa do indivi'duo em
contexcos institucionalizados, preservando a dinamicidacle entre estrutura,
cultura e acao. Nesse senrido, esia
abordagem acolhe a centralidade da
internaliza^ao de normas e busca salie n t a r a prerrogativa do processo
cognitivo, atraves do qual os atores concebem e atribuem sentido as regras e
as incorporam nos contextos praticos
da vida coiidiana. Sustenta-se, assim,
o earater necessariamente construido das
normas, isto e, ressalta-se nao apenas
como elas sao especificadas no processo cognitivo, mas, tambem, como sao
mudadas e criaclas.
Essas corrcnces teoricas americanas contribiunrfn para desenvolver o
nso preferencial do conceito de socializacao (ao inves do de sociedade), contemplando, com isso, a flexibilidade da
vida social, que deriva da enfase dada a
motivacao da acao e do processo das
relacoes interpessoais. Desenvolvem a
nocao simmeliana de papel social e o
jogo, freqiientemente suril, entre individualidade e papel desempenhado
e as diversas estrategias de acao disponiveis para o indivi'duo num contexto
de filiacoes grupais mtiltiplas e nem
seinpre c o m p a t i v e i s e n t r e si 2 9 .
Enfatizando a dimensao interativa das
relacoes, esses estudos tomaram nma
base decididanientc e m p i r i c a e, apesar das polemicas melodologicas associadas a eles, convenceram a mtiitos
pesquisadores de que abordagens mais
individtialistas podiam ofetecer um
melhor acesso ao entendimento das
praticas socials,
A Sociabilidade e alguns
percursos da sintese micromacro
A perspectiva simmeliana, ao
fazer clivergir nossa atencao do centra
institucional da sociedade e das regras
socialmente reconhecidas, nos revela a
dimensao plural, mutante, pulsante da
vida do dia a dia nos micro-ambientes
sociais. Tal perspectiva cleixa-nos atentos p a r a o i n t r i n c a d o jogo e os
descompassos entre as acoes dos homens e suas objetificacoes, num dado
campo cle interacoes. Mostra-nos a necessidade de recusar, em nossos modelos mterpretativos e explicativos, os elemenros determinantes das relacoes sociais ja dados cle antemao, com poder
de estruturar-se fora do ambito das
interacoes corrences. No entanto, se
essa recusa for levada muito adiante,
pocle ser comprometedora. Privilegiar
a dimensao da espontaneidacle da sociabilidade, num tipo de "jogo" totalmente descompromissado, pode levar
a diversos eqm'vocos.
Primeiro, se ignorarmos as instituicoes, as tradicoes, "os padroes regulates de comportamentos e de expectativas", estaremos atribuindo ao
ator uma soberania absolura, concebendo-o como um criadot indeterminado,
capaz, contndo, de determinat tudo no
mundo. Teremos, assim, perdido os
recursos cruciais para apreciar o moclo
pelo qual os individuos organizam as
demandas praticas da existencia na sociedade hierarquicamente organizada
e as transfonnam; como telacoes de
poder arravessam os gtupos sociais e
formas de dominacao e de subordina530 sistemicas se impoem. Neste quadro, stm, estan'amos arremessados num
continuum de aparencias em monotona t r a n s f o r m a c a o , sem q u a l q u e r
vinculacao com significacoes das estrnturas historico-sociais ou de conPiguracoes culturais. Seqtier seria possivel
compreendet o modo pelo qual os individuos constioem o sentido do mundo mais ample ao redor, interpretam
as igualdades/direrencas entre os sujeitos sociais; tornam inteligiveis as oportunidades e os constrangimentos da
vida em sociedade. E exatameme nesse ponto que as teorias "micro" das tela^oes sociais, descoladas da pteocupacao com as normas institucionais mais
amplas, ou da analise do desenvolvimento histotico-social, se mostram
instificientes para dar conta desses problemas.
Segundo, ao rratat a nocao da
sociabilidade, e precise evitat os riscos
de recaida na oposicao estrututa/acao.
Pot certo, os individuos no dia a clia
estabelecem tnecanismos atraves dos
Social Theory1. In: TURNER, B. (Ed.) The
blockwell companion to social theory. Oxford:
Blackwell, 1998. p.223-251.; ALEXANDER,
J. 'Formal Sociology1 is not multidimensional:
breaking the'code'in Parsons's fragment on
Simmel1. In: _
. Neofunctionalism
and offer. Mossocfiusefts: Blackwell, 1998.
p. 182-185.
13
'"ALEXANDER, J. 'From Reduction to Linkage:
the Long View of the Micro-Macro Debate'.
In: __
. Action and its environment toward a new synthesis. New York: Columbia
University Press, 1988. p. 222-256; COHEN,
I. J. 'Theories of Action and Praxis'. In:
TURNER, B. (Ed.) The Blackwell companion to
social theory. Oxford: Blackwell, 1998.
3IMOUZELIS, N. Reification; ignoring the
balance between social and system
integration. In: Sociological theory: what went
wrong? London: Routledge, 1995. p. 100126.; ALEXANDER,]. 'From Reduction to
Linkage: Ihe Long View of the Micro-Macro
Debate'. In:
__. Action and its
environment - towarJa liiiiw synthesis. New
York: Columbia University Press, 1988. p.
257-298.
32 Teoricos adeplos de (radices neo-marxista
ou funcionalisto (tois como P. Bourdieu, A.
Giddens, A. Touraine, R. Collins, 1, Habermos),
alcoves de reinterpreta^oes doscldssicos, tern
modificado seus quadras teoricos, buscando
inspiraijoo na hermeneutica ou na
fenomenologia, ver: ALEXANDER, J. 'From
Redaction to Linkage: the Long View of the
Micro-Macro Debate'. In:
. Action
and its environment - towafrfa new synthesis.
New York: Columbia University Press, 1988.,
MOUZELIS, N. 'Impasses of Micro-sociologial
Theorizing'. In:
. Sociological theory:
who! went wrong? London: Routledge, 1995.
p. 100-126.
14
quais se aproximam on se afastam uns
dos outros por razoes que escapam ao
controls de qualquer piano geral, superior, n'gido. E isso porque a dinamica, mesma, de tais interacoes, na rede
simbolica dentro da qua! os indivi'duos interagem, sempre produz novos
sentidos, que escapam ao controle administrative do Estado, da regulamentacao normativa ou da tutela de subsistemas funcionais. Contudo, nao hca,
assim, resolvida a questao de como os
atores sociais produzem .novos arranjos institucionais ou modificam os padr5es sociais de pensamento, numa
cultura majoricaria.
O chamado d e b a t e " m i c r o macro" mostra a necessidade de se superar o antagonismo gerado pelas rradic5es teoricas individualistas (como
c o r r e n t e s da f e n o m e n o l o g i a e do
interacionismo simbolico) e coletivistas
(como correntes do neo-marxismo e do
funcionalismo) 30 . Nas tradicoes teoricas individualistas, os fenomenos coletivos sao explicados por situacoes, orientacoes e crencas ou cognicoes de atores individuals, a suposicao sendo a de
que a realidade social e constituida por
orientacoes subjerivas de atores individuals, os unices atores capazes de formtilar objetivos e agir intencionalmente. Embora tais teorias freqiientemente
reconhecam que existam estruturas
extra-individuals na sociedade e que
nela ha padroes inteligiveis, insistem
em que esses padroes sao o resultado
da negociac5es individuals, e que podem sempre set alterados a cada momento sucessivo, no tempo hiscorico,
de acordo com desejos individuals.
Porcanto, as explicacoes baseadas em
coletivos como "classe social", "sociedacle", "Estado" sao descartaveis como
reificacoes nao redutiveis as escolhas
individuals. Ja nas reorias de rradicao
coletivisca, as variaveis explicarivas sao
buscadas ou nas leis que governam o
sistema ou nas determinacoes estruturais e funcionais que afetam os individuos, segundo a suposicao de que os
sistemas e as estruturas sociais possuem p t o p r i e d a d e s i n e r e n t e s que
independent da orientacao ou da vontade de sens componences individuals,
de modo que esses nao podem set de-
GERAES - Revista de Comunka0o Social n. 53 - 2001
rivados de principles individuals. Nesta perspecriva, nao se concebe a ordem
como produce cle consideracoes puramente instantaneas ou momentaneas,
mas cada a cor individual e "conduzido" na direcao de unia estrutura preexistente, segundo a combinacao de
cercas variaveis ou probabilidades.
A oposicao radical en ere as dimensoes micro e macro, ou, rnesmo, a
tentativa de uma hicil resolucao do
confhto rendem a subestimar a sempre presente tensao entre o indivi'duo
socializado e sen ambiente. Conforme
Simmel tragicamenre p r o b l e m a t i z a ,
nao'se pode mrmmizar ral tensao no
domi'nio da teorizacao sociologica, nem
pretender cjue tal suposta estabilizacao
se de no ambito da vida social. Se faI h a r m o s em estabelecer u m a
circulandade inicial enrre a cor e sistema, a analise encontra-se presa n u m
impasse insuperavel. Ha novamenre
que se escollier encre voluntarismo ou
d e t e r m i n i s m o . Essas dimensoes
"micro" e "macro" nao sao dimensoes
analfticas exclusivas, mas devem, ao
inves disso, ser tratadas de modo interligado e complemenrar 3 1 . Em outras palavras, nao se ctata de abolir as
distincoes e n t r e a micro e a macro
teoriza9ao sociologica nem de ignorar
as stias diTerencas obvias, mas de encontrar ferramentas concehuais apropnadas para apreender o modo pelo
qual as dimensoes do "micro" se relacionam com as do ' macro".
Gi-'ande parte do m o v i m e n t o
teorico contemporaneo tern buscado
urn principio de compatibilizacao das
intetacoes sociais simples, no nivel do
cotidiano, com procedimentos poliricos e normativos mais amplos . A discussao acerca da dualidade da esirutnra e da reflexividade, em Giddens, por
exemplo, busca exatameme evidenciar
o modo pelo qual as proprias instituic5es modernas, organizadas por regras
internas, auto-referenciais, modificam
os ambientes de conhecimento e de
acao - sendo que esses, po^ sua vez, refletem a e s t r u r u r a , ao mesmo tempo
em que a modihcam, numa "hermeneutica clupla". Seguindo explicacoes
pos-funcionalistas da integracao social, Habermas trabalha com o conceito
de sociedade descentrada. Sustenta que
a regulamencacao das sociedades modernas opera atraves cle uma integracao
sistemica, segundo recursos representaclos pelo poder economico e administrative e, tambem, pela solidarieclade social gerada pelo poder comunicarivo. O aucor busca entender o Esiado
e os sistemas funcionais (com suas instituicoes tipicas) como necessariamente
articulados - e eni"indissociavel tensao
- com o munclo da vida, o campo da
organizacao social, em que o consenso
normative e gerado a partir das escniruras da acao comunicativa 33 . No quadro teorico desue autor, explicates
micro sociologicas adicionais, seguindo as tradicoes da hermeneutica e da
pragrruitica, fomecem um quadro teorico amplo para o desenvolvimento de
cliversas aboixtagens analiticas que expi icam o modo pelo qual as relacoes
e n t r e os niveis macro e micro sao
esrabelecidas.
A guisa de conclusao
A sociabilidade, entendida a
partir do quadro teorico niais amplo
de Sirnmel, nao pode ser vista apenas
como uma "categoria" de interacao relacoes informais, ludicas, em oposicao as relacoes formais, racionais. A
clistincio que Simmel estabelece entre
as diversas "formas" de imeraeao e importance para se apreender a variedade
e as especiftcidades das relacoes, bem
como a complexidade de suas diversas
niuincas e modulates. Contuuo, a
tcorr/.a^uo de Simniel sobrg u socJabiSidade vai alem de um suplemento fiiosofico sobre a "espontaneidade" das
interacoes socials.
Simmel, ao rejeitar uma visao
bolfstica ou centralizada da sociedade
como uma estrucura docada de atribucos persistences, coloca enfase na "vitalidacle" das interacoes simples, na
"potencia" dos processes comunicativos sempre permeaveis e dinamicos. A
noqiio de sociabilidade da relevo especial as interacoes pessoais, do face a face,
com tocla sua contingencia e dispersao, e, assim, resisce a rendencia de
cercas abordagens macro-sociologicas
de reificar a vicla social. Na dinamica
da interacao social, faz indagar a respeito da atmosfera simbolica que envolve a presenca viva do "eu" e do "outro", a situacao e o contexto em que as
interacoes socials ocorrem. E possfvel
extrair dai um apontamento para uma
abordagem pragmatica das intera95es
socials. Assim, o interesse teorico e
empirico nas praticas concretas de
interacao social torna-se niais serio e
exph'cito.
,
Nao obscante, tal perspecriva
nao pode cecler a tendencia de ignorar
as macro-estruturas ou reduzf-las ao
e n t e n d i m e n t o i n t e r s u b j e t i v o dos
micro-atores. Ao tomar a vicla cotidiana como um campo privilegiado de
analise, o proprio Simrnel reconhece a
centralidade do signiflcado coletivamente e s t r u c u r a d o das formas. Se a
"cultura" e vista como fonte geradora
de sentido para a experiencia do dia a
dia, e preciso evitar o "espontanei'smo",
propalado por alguns dos seguidores
de Simmel. Ha a necessidade de reconbecer a dimensao historica dos sentidos, buscando entende-los segundo
praticas culturais, que estabelecem distincoes que suscentam as hierarquias
socials. Sob tal perspectiva, as
assimetrias escruturais, os conflitos sociais e as tensoes culturais nao podem
ser desprezados nos estudos sobre a sociabilidade.
Propor que as e s t r u t u r a s socials
precisam estar ligadas aos a to res nao
qtier dizer, evideutemente, que estudos especificos nao devam estar voltados para o exame da diiiieiisao macro
on m i c r o da sociedade. C o n l o r m e
Simmel permite apreender, saltar de
um nfvel ao outro 6 que nao pode ser
uma tarefa automatica e isenta de tensoes como a dicotomia indivi'duo/socieclade implica. A contraditoria articulacao das interacoes interpessoais
com a ordem social e o balanceamento
delicado entre a autonomia relativa dos
sujeitos e a persistencia das formas,
bem como as qualidades emergentes da
vida social, devem ser seriamente levadas em considera^ao. A vida ern sociedade i n s t a u r a i n e v i t a v e l m e n t e Lima
complexidade e um dmamismo qtie a
teoria nao deve evitar.
Combtidoe: MIT Press, 1998 a . p. 239-251
DepartomentodeComunicopo Socio! -FAflOI/UFMC-GERAES
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