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Nhô Guimarães

2017

Abstract

Trata-se de uma homenagem ao autor de Grande Sertão: Veredas. Nessa ficção, a narradora é uma sertaneja octogenária que conta as passagens de Guimarães Rosa pelos Gerais e, ao mesmo tempo, narra sua trajetória de vida, repleta de causos e aspectos do imaginário do sertão.

NHÔ GUIMARÃES, HOMEM DE VISTA ALEGRE

Aleilton Fonseca * Nhô Guimarães era de um olhar buliçoso como água de rio abeirando as pedras. Se me lembro! Ele se foi, de perto a longe, que destino de rio é viajar. Uma pessoa nasce nessas lonjuras de lugarejo, ganha os Gerais, levanta as poeiras, abraça o mundo, em seus viajares. Toda estrada é começo e fim. Uns que chegam, socam raízes; outros principiam o caminhar. Por aqui ele passava, muitomente voltando; apreciava o valor dos retornos. *Aleilton Fonseca nasceu em 21/07/1959, em Firmino Alves -interior da Bahia, e reside em Salvador. Escreve poemas, contos, crônica, crítica e ensaios. É graduado em Letras pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), tem mestrado pela Universidade Federal da Paraíba e Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo, é professor titular de Literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana. É co-editor de Iararana -revista de arte, crítica e literatura, editada em Salvador, já no número 7. Começou a publicar nos anos 80, é colaborador de diversas revistas e suplementos de jornais, com poemas, contos, artigos e resenhas. Publicou 10 livros, entre os quais: Movimento de Sondagem. (Poesia, 1981); Enredo romântico, música ao fundo. (Ensaio, 1996), Jaú dos Bois e outros contos (1997)

FICÇÃO

Nhô Guimarães, homem de Vista Alegre, lugar cidade de seu coração. Nome antigo, onde aprendeu a andar pelos ermos, sabendo avistar as alegrias. Seus olhos ficavam cheios de morros e vargens, fios d'água alisando pedras, de noite pescavam estrelas. O senhor experimente: não só enxergue as moitas e pés de pau; aprenda a ver com os olhos da alma: as bonitezas do mundo ficam para sempre no olhar da pessoa. Ele falava com a voz de dentro de si, que deixava a gente abismada de encanto.

Ele dizia como era a Gruta do Maquiné, nos seus olhos de antigo menino olhador de tudo: que era um lugar de declarada boniteza, de muito se ver e lembrar para sempre. A gruta era um lugar de estimação que ele visitava para depois trazer as notícias de suas alegrias mais profundas. Ali havia um tesouro guardado, um mundo de coisas e criaturas viradas em pedra, de tempos demais antigos, que agora a gente que lá entrasse na fundura do chão podia ver e se admirar. "A natureza sabe ser bonita", ele confirmava, "olhem tudo isso ao redor, é de vocês, tudo pertence aos olhos". A gente olhava, pronto: não era mais só aquilo que se via antes; ficava mais formoso pelo falar que ele sabia. E sua cidade? A gente queria ouvir mais belezas. Nhô Guimarães sorria de leve, olhos iluminando, olhava lá pra fora, buscando seu lugar ali perto, para além das colinas. Então em vez de encompridar a prosa, se restava caladamente, mas satisfeito, naquele seu olhar longe da pergunta, parecia que viajando, como era mesmo sua viagem.

A gente indagava: como se chega lá? Ele se concentrava, como se ia contar um segredo: falava, com pausa, olhos sorridentes, daquele jeito manso, como um gato na manha de agradar, dizendo. "Ah, é perto e longe, depende da viagem. Vai de trem, vai a cavalo, como quiser se aventurar. Da Gruta do Maquiné para lá, vai pra menos de algumas léguas, umas horas de boa caminhada, abeirando montanhas, vales e colinas, cheirando o ar puro, com aquele frescor de perfume dos matos, vai indo até que avista uma dobra do morro, lá fica minha cidadezinha, um lugar que parece enfeitado, de poucas moradas, ruazinhas quietas, gente hospitaleira. Nunca vi, como ali, chuvadas mais fortes nem mais belas. De noite, o céu mostra milhões de estrelas, nunca vi coisa igual em nenhum lugar". Ele contava esses certos aos curiosos de saberem suas origens. Nhô Guimarães tinha muito gosto de falar essas palavras, observando a gente boquiaberta, só para saber e guardar.

Que menino tinha sido esse Nhô Guimarães, capaz de usar bodoques, caçar preás, pegar passarinho? Ora, nem queira nisso pensar: Em menino fazia brincadeiras ajuizadas, sem perigo de cometer bobagem. Armava alçapão para pegar sanhaço, era bom. Depois soltava o bicho, apreciando o vôo renovado entre os galhos das plantas. Era sabido em inventar brinquedos para meninos quietos. Um fio d'água virava ribeirão, um chãozinho virava cidade. Assim inventava um sertão.

Nhô Guimarães aprendia e ensinava coisas de espantar. O senhor avalie: a gente avista a natureza ao derredor, o que ela nos diz? Os matos, os rios, os pássaros, as colinas, os bichos... tudo isso é a natureza conversando com a gente. Já observou a satisfação de um arvoredo carregado de frutos? Uma pé-de-flor sorri para quem passa, balançando os galhos no vento pra chamar atenção. Já percebeu o desânimo dos arbustos nos tempos secos? O que custa prestar atenção e prosear um pouco com as criaturas? Se o senhor conversa com a planta, ela se sente mais viva, cria folhas bem verdes, bota flores perfumadas, deita boas raízes. Ela pega viço e floresce mais formosa pelo bom trato e pela amizade. O senhor faça um esforço para entender essa experiência. Não pense que são doidices ou tratos de gente sem-o-que-fazer. Há coisas que, tendo vontade e capricho, se aprende e depois se ensina.

Nhô Guimarães pedia silêncio, apurava os ouvidos, apontava o dedo para cima: "escutem, sintam os barulhinhos lá fora; isso é a vida acontecendo a todo instante desde que existe o mundo e daqui para os séculos sem fim. A gente faz parte desse mistério mesmo sem saber os segredos. Tem coisa mais linda do que o céu de noite? E as cores dos campos ao amanhecer?" Ele ensinava como escutar a toada da chuva, perceber as mãos da água alisando as árvores, tateando as casas. A zoada da água deslizando nas pedras era o rio cochichando uns versos. E sentia o murmúrio da brisa, passeando pelas trilhas e pelos morros, acarinhando as folhagens.

Era farto de saberes e bondades. Ele guardava essas conversas, nas palavras lá dele, desde muito moço. O que lhe diziam as águas da serra? De olhos atentos, perguntava e ouvia as águas soltas entre os dedos da montanha cantando nas pedras... E era uma canção de só existir. Daí contava um segredo, quase num cochicho de pé-deouvido só aos amigos mais chegados. Apertava os olhos, puxava pela memória, e buscava de lá de longe nos anos, uns versos seus que confirmavam: "Há uma hora certa, no meio da noite, uma hora morta, em que a água dorme. Todas as águas dormem: no rio, na lagoa, no açude, no brejão, nos olhos d'água, nos grotões fundos. E quem ficar acordado, na barranca, a noite inteira, há de ouvir a cachoeira parar a queda e o choro, que a água foi dormir".

A gente apreciava as explicações. Ele atiçava nossa curiosidade de testar os saberes. E Iara existe? E caboclo d´água existe? E caipora existe? Ele então explicava: "Tudo existe. Se está na imaginação da pessoa, é coisa existente, existida, existindo a todo instante". E por que às vezes o senhor parece triste? "Muitas vezes, por não saber o segredo de tanta coisa do que existe no mundo. Dá tristeza de não saber; mas há o consolo de imaginar, inventando um entendimento". E de novo lembrava de uns versos: "O mato está cheio de caminhos frescos, que eu não posso enxergar".

Era bom observador da vida, porque amava as belezas do mundo. Gostava de prosear, ora cabisbaixo, às vezes quase marejava os olhos, com seus próprios pensamentos. Gostava de sentir emoção, mas às vezes era tão forte que sofria, ficava meio aflito. Daí a pouco, serenava, voltava a sorrir, encabulado. Tinha sempre um jeito escabreado, com receio de não ser apreciado, de ouvir dichotes sobre sua pessoa. De repente, Manu revelava: "a gente lhe quer muito bem ao senhor". Ele então sorria, mais encabulado ainda, com uns fiapos de lágrima escondidos atrás dos óculos.

Recebido em abril de 2006

Aprovado para publicação em junho de 2006