DOI: 10.1590/s0103-4014.2019.3397.019
Marx e a literatura
em O capital
SANDRA SOARES DELLA FONTE I
E
M GERAL, a história do pensamento ocidental é marcada por vários eventos
que ilustram a supremacia do conceitual sobre o expressivo, como a proposta de expulsão do artista da república idealizada por Platão (1997) e a
própria constituição da Estética no século XVIII como campo filosófico particular e inferior (Baumgarten, 1993). A partir da modernidade, essa supremacia
ganha sua formulação máxima na sujeição da imaginação ao ideal da ciência
objetiva, defendida pelo mais eminente representante do positivismo do século
XIX: “[...] a subordinação constante da imaginação à observação foi unanimemente reconhecida como a primeira condição fundamental de toda especulação
científica sadia” (Comte, 1978, p.49).
Essa história ganha determinadas nuances quando adentra relações de
campos específicos. Ao compor o estudo e a avaliação de uma obra literária ficcional particular ou ao eleger como objeto de estudo a natureza e os atributos
gerais da arte das palavras, os discursos filosófico e científico se arrogam uma posição de superioridade; seu apanágio em relação à arte literária fala dessa sujeição
do expressivo ao trabalho do pensamento.
Desviar-se desse modus operandi tem sido um desafio; afinal, requer folhear o revés de uma tradição em busca de inspiração para a construção de novos
modos de diálogo não hierarquizados entre essas dimensões do existir e do conhecer humano.
Dentro desse esforço, a opção neste artigo é explorar a obra de Karl Marx,
autor cuja importância teórica e prática para a contemporaneidade é reconhecida. Diante das preocupações apresentadas, contudo, essa escolha pode soar
um tanto incomum. Alguns filtros de leitura da obra marxiana têm colaborado
para rarefazer pesquisas nesse horizonte. Chamam a atenção duas orientações
elaboradas por gerações marxistas. Uma delas caracteriza a constituição da obra
marxiana por um encontro tripartite entre filosofia alemã (Hegel e Feuerbach),
Economia Política e socialismo utópico. Essas seriam as fontes ou partes constitutivas do marxismo (Kautsky, s. d.; Lenin, 1986). A outra orientação distingue
um período na obra marxiana de uma problemática ideológica, na qual Marx
seria um pré-marxista de uma outra fase de ruptura epistemológica, a partir da
qual suas reflexões se tornam científicas e, de fato, ele se apresentaria como o
Marx propriamente dito (Althusser, 1979).
Muitas restrições podem ser endereçadas a essas duas orientações. Interes-
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sa, no momento, observar os limites que ambas impõem para se acolher ou se
discutir a formação literária de Marx e a presença desse aspecto formativo em
sua obra, seja porque a literatura ficcional não se caracteriza como um tema específico privilegiado por Marx, seja porque ela se torna periférica ou sem sentido
quando o estatuto de cientificidade se torna critério de avaliação da maturidade
ou potencialidade de suas reflexões.
Entretanto, relatos indicam que, em sua vida cotidiana e familiar, Marx
tinha apreço pelas manifestações artísticas, em especial pela literatura; tal hábito foi cultivado desde tenra idade e se estendeu aos seus estudos universitários
(Marx, 2011; Lafargue, 1974). Ademais, os juízos estéticos de Marx não se
circunscreveram ao âmbito dos seus gostos pessoais; eles chegaram a penetrar
seus trabalhos e a nutrir, em parte, suas reflexões sobre a estética e também suas
argumentações filosóficas e científicas em geral.
A questão da arte nos textos marxianos pode ser abordada, pelo menos,
por duas vias. Na primeira – a perspectiva mais explorada pela produção acadêmica existente –, evidenciam-se suas reflexões (muitas vezes, em parceria com
Friedrich Engels) sobre os problemas estéticos e, de modo específico, os artísticos (Lifschitz, 1976; Vázquez, 1978; Gunnarson, [19__]; Lukács, 2012; Sodré,
1968; Cotrim, 2012; 2013; Frederico, 2005). A estética e a arte aparecem como
objeto da reflexão e Marx apresenta-se como um teórico e crítico de arte. Na
segunda via, o discurso figurativo e artístico adentra o texto conceitual e se faz
presente nele.
Sob o foco da primeira via, ressalta-se que os problemas estéticos não ganharam um lugar especial em seu trabalho a ponto de serem tratados em uma
obra sobre o assunto. Pelo contrário, suas ideias estéticas estão pulverizadas
em toda sua produção “[...] numa forma certamente concisa e desarticulada”
(Vázquez, 1978, p.11) e também de modo irregular. Por mais que a hegemonia
de um marxismo cientificista tenha contribuído para que a elaboração marxiana
sobre esse tema permanecesse ignorada ou depreciada, alguns autores identificam que, apesar de poucas, as reflexões de Marx sobre problemas estéticos e
artísticos envolvem aspectos centrais e não são acidentais no seu corpo filosófico (Lifschitz, 1976, 2012; Vazquez, 1978; Lukács, 1979, 2012; Gunnarson,
[19__]). Em outros termos, há uma vinculação de suas reflexões estéticas com o
conjunto de seu pensamento. Mészaros (2006, p.173-4) chega a afirmar que as
considerações estéticas marxianas estão:
[...] tão intimamente ligadas a outros aspectos de seu pensamento que é
impossível compreender adequadamente até mesmo sua concepção econômica sem entender suas ligações estéticas. [...] Desnecessário dizer, assim
como não é possível apreciar o pensamento econômico de Marx ignorando
suas opiniões sobre a arte, é igualmente impossível compreender o significado de seus enunciados sobre as questões estéticas sem levar em conta as
suas interligações econômicas.
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Na segunda via de tratamento da arte na obra marxiana, trata-se de perquirir um movimento diverso no qual o conhecimento artístico adentra o universo conceitual e passa a compô-lo. Em outros termos, examina-se o lugar do
elemento expressivo na sua teorização.
De alguma maneira, Marx cultivou certa preocupação com o caráter expressivo de sua prosa conceitual. No posfácio da segunda edição de O capital
de 1873, Marx (1985) caracteriza o seu método dialético por dois momentos
distintos e complementares: o método de pesquisa e o de exposição. Enquanto
o primeiro consiste na investigação dos pormenores de um fenômeno e da conexão íntima desses pormenores, o segundo equivale a descrever o movimento
do real, trazer, para o plano da idealidade, “[...] a vida da realidade pesquisada”
(Marx, 1985, p.16). De alguma maneira, Marx sinaliza a articulação entre o que
é pesquisado e a sua forma de exposição, momento no qual o texto propriamente conceitual emerge.
Essa perspectiva também aparece em carta a Engels de 31 de julho de
1865, quando Marx lhe comunica que ainda falta redigir o que, para ele, seria
o quarto livro de O capital: “Mas não posso fazer nada antes de concluir tudo.
Whatever shortcoming they may have, o mérito dos meus escritos é que constituem um todo artístico e isso só se pode lograr com o meu método de não
publicá-los enquanto não os tenha terminado” (Marx; Engels, 2012, p.88). A
leitura rápida pode levar à suspeita de uma identidade entre o texto conceitual e
o artístico. Porém, há aqui uma ampliação do sentido artístico a todo texto que
não apenas afasta o sentido parcelar e adquire coesão, mas também que tenha,
por essa razão, sofrido o polimento em sua estrutura enunciativa antes de ser
entregue ao público. Qualificar seus textos de um “todo artístico” é um reconhecimento da dimensão estética de sua teorização. Marx atribui a seus escritos
conceituais uma dimensão expressiva.
Essa indicação pode, com as devidas mediações, aproximar-se de um conjunto de esforços teóricos contemporâneos (Adorno, 2009; Benjamin, 1984;
Duarte, 2008; Gagnebin, 2004) que têm insistido que a forma de apresentação
ou exposição é uma questão relevante para o trabalho do pensamento, pois o
estilo narrativo não é externo à prosa conceitual (seja científica, seja filosófica). A
reflexão conceitual precisa de arquitetura narrativa para poder se dizer.
Na filosofia contemporânea de legado marxista, Theodor W. Adorno
(2009, p.21) observa que “[...] para a filosofia a sua apresentação não é algo
indiferente e extrínseco, mas imanente à sua ideia. Seu momento expressivo
integral, mimético-aconceitual, só é objetivado por meio da apresentação – da
linguagem”. Portanto, pressupõe-se a “[...] a não-exterioridade entre o conteúdo do filosofema e a sua forma de apresentação [Darstellungsform] convergentes
na própria expressão” (Duarte, 1997, p.178).
No caso específico de Marx, o trabalho do conceito se faz como exposição
do objeto. Nas palavras de Chagas (2011), o método dialético em Marx articula
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investigação e exposição crítica do objeto. No entanto, em que consiste essa
criticidade que articula o conteúdo conceitual e sua forma de exposição?
Ao pinçar algumas reflexões de Adorno (2009), é possível entrever certos
aspectos dessa articulação pautados em uma racionalidade ampliada. Sua radicalidade crítica se dá a partir da dialética que, longe do afoite de sínteses apressadas, esgarça o seu momento de negatividade. Por isso, essa dialética negativa
se move como antissistema e tem como primado a contradição. Enquanto “[...]
uma forma de representação de uma totalidade para a qual nada permanece
exterior [...]” (Adorno, 2009, p.29), o sistema se edifica a partir da autarquia
do conceito e da pretensão de fazer coincidir imediatamente a ordem das coisas
com a das ideias. Como coisificação da consciência humana, ele é índice, no âmbito do conhecimento, da imposição da objetividade social capitalista. A troca
tudo iguala; nela impera a violência contra a experiência e as suas determinações
particulares. Por isso, sua razão se funda na identidade: “Enquanto princípio
de troca, a ratio burguesa realmente assimilou aos sistemas com um sucesso
crescente, ainda que potencialmente assassino, tudo aquilo que queria tornar
comensurável a si mesma, identificar consigo, deixando sempre cada vez menos
de fora” (Adorno, 2009, p.28).
Adorno (2009) aponta para a renovação da teoria que, sem abrir mão dos
momentos de verdade do conceito, furta-se a seu desejo de ser absoluto. Se
pensar não é uma faculdade meramente formal, o conceito visa a algo além de
si; logo, para Adorno (2009), lhe é constitutivo não se satisfazer com sua própria conceptualidade. Não há identidade linear entre conceito e coisa. Portanto,
assegurar-se do não conceitual no conceito é condição para que o conceito não
seja, segundo Adorno (2009), nulo e se mantenha como conceito de algo. Nas
suas palavras, “Ante a intelecção do caráter constitutivo do não-conceitual no
conceito dissolve-se a compulsão à identidade que, sem se deter em tal reflexão,
o conceito traz consigo” (Adorno, 2009, p.19). Quando reconhece isso, a filosofia (e, poder-se-ia pensar no trabalho teórico de modo geral) “[...] arranca a
venda de seus olhos” (ibidem).
O reconhecimento disso por parte de uma teorização renovada a partir
da lógica dialética faz a atividade conceitual incorporar como sua atitude aquilo
que ela esquece:
O conceito não consegue defender de outro modo a causa daquilo que reprime, a da mimesis, senão na medida em que se apropria de algo dessa mimesis em seu próprio modo de comportamento, sem se perder nela. Dessa
forma, o momento estético, ainda que por uma razão totalmente diversa
do que em Schelling, não é acidental para a filosofia. (Adorno, 2009, p.21)
Para a presente pesquisa, toma-se como pressuposto o caráter irrevogável
do elemento expressivo na atividade teórica e, a partir disso, opta-se pela via que
privilegia a presença de elementos figurativos no texto marxiano. Essa tendência
de pesquisa é embrionária e tem como marco o livro de Ludovico Silva (2012)1
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no qual o estilo literário de Marx é investigado em termos de metáforas, alegorias e ritmo prosódico. No esforço de contribuir com essa frente de estudo,
agrega-se a essa análise a figuração artística, com o foco na literatura, tendo em
vista que há “[...] alusões impressionantemente eruditas de Marx à literatura
mundial” (Eagleton, 1993, p.7) que acompanham sua obra.
Nesse sentido, demarcam-se as seguintes questões problema desta investigação: como se dá a presença de menções literárias ficcionais em sua obra magna
O capital e quais papeis cumprem no contexto de sua argumentação? Em que
medida essa forma de diálogo contribui para fomentar vínculos não hierárquicos
entre o texto conceitual e o literário ficcional?
Tendo em vista esse conjunto de questões, o livro de Prawer (2011) Marx
and world literature (publicado em inglês em 1976 e relançado em 2011)2 é referencial em sua preocupação de construir um mapa evolutivo cronológico do que
Marx disse sobre a literatura e do emprego que dela fez. Considerando a proximidade deste artigo com a pesquisa de Prawer, cabe registrar em que medida a
presente investigação não será uma versão alongada do capítulo específico sobre
O capital escrito por Prawer. Por certo, compartilha-se a preocupação de Prawer
com o uso que Marx realizou de obras literárias ficcionais. Porém, afasta-se de
suas motivações. Dentre os incômodos desse autor, encontra-se o fato de que as
compilações sobre a questão estética em Marx correm o risco de criar confusão
ao misturar seus pronunciamentos realizados em momentos distintos de sua vida.
Em contraste com essa preocupação, realiza-se um distanciamento evidente da
intenção de sublinhar as ideias estético-artísticas de Marx e da natureza diacrônica do estudo de Prawer. Avizinha-se, desse modo, de uma produção acadêmica
nacional incipiente referente a dois artigos (Queiroz; Costa, 2012; Silva, 2015)
e uma dissertação (Melo, 2014) que delineiam a presença da ficção literária no
discurso marxiano a partir de algumas obras específicas, em especial de O capital.
Ademais, o pano de fundo que impulsiona a presente pesquisa reside em
um dos aspectos de seu objetivo geral. Se, por um lado, pretende-se sugerir
aprofundamentos e/ou novos caminhos de abordagem da obra de Marx de
modo a dissipar simplificações e preconceitos; por outro, almeja-se contribuir
para a construção de relações tensas e complementares entre a prosa conceitual
e a prosa/poética literária. Por mais que haja notas em Prawer que tangenciem
essa problemática, o pôr em xeque a supremacia do conceitual sobre o expressivo não é o seu norte.
Em um olhar apressado, as menções marxianas a obras literárias ficcionais
em O capital podem assumir apenas o caráter de epigrafar, finalizar ou ilustrar
o seu argumento. Porém, suspeita-se que, afora esse uso ornamental, a apropriação de menções literárias ficcionais não aparece apenas instrumentalizada na
prosa conceitual marxiana; ela também possui papel relevante na configuração
de seu pensamento. Isto é, em vários momentos, a figura artístico-literária serve
de corpo visível de sua reflexão.
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Assim, há, no texto marxiano, um movimento duplo entre a prosa conceitual e o discurso figurativo-artístico que se expressa nas menções literárias
ficcionais. Por um lado, o texto conceitual recorre a essas menções para sujeitá-las à função explicativa ou, nos termos adornianos, à comunicação. Sendo O
capital um texto conceitual par excelence, sua linguagem visa à transparência e à
precisão. Essa natureza de sua prosa tende, então, a tragar as menções literárias
ficcionais a partir desse objetivo maior. Entretanto, ao mesmo tempo que faz
isso, a prosa conceitual vê-se diante de seu limite ao tentar dizer, de modo transparente, o mundo. Assim, há momentos em que seu suporte reflexivo reside no
imaginário figurativo.
Aceita-se, desse modo, a indicação de Silva (2012): a ossatura conceitual
marxiana possui uma musculatura expressiva. Não se trata, segundo ele, de uma
organização extrínseca dos conceitos e estruturas do conteúdo dado, mas aquilo que engendra a reflexão propriamente dita; não é meio de exposição, mas a
própria genética graças à qual o trabalho do pensamento se produz como tal.
Situam-se as menções literárias em O capital também dentro do campo da
linguagem figurativa destacado por Ludovico Silva. Ao recorrer ao figurativo-literário, Marx sinaliza que a transparência radical da prosa conceitual ou a sua
pretensão não é absoluta. Algumas menções literárias abrem facetas do mundo, geralmente opacas; tornam sensíveis conteúdos objetivos do mundo. Nesse
momento, a clareza do texto conceitual recua diante da imaginação literária.
Nesse recuo, revela-se a sua fragilidade, mas também sua chance de redenção.
Como afirma Adorno (2009), a liberdade do pensamento reside naquilo que
ele resiste e repele: o impulso expressivo. Sua liberdade consiste em ser capaz de
experimentar-se determinado e, portanto, não livre.
Tal parece ser o caso da inserção de excerto de A divina comédia, de
Dante, no final do prefácio à 1ª edição de O capital. Marx (1985) registra que
acolherá críticas científicas com satisfação, mas em relação aos “preconceitos da
chamada opinião pública”, seguirá a máxima do grande Florentino: “Segui il
tuo corso, e lascia dir le genti!” [Segue teu rumo e não te importes com o que os
outros digam!] (Marx, 1985, p.7). À primeira vista, a menção aparece como um
floreio que finaliza o texto. Porém, chama atenção que o conselho a ser dado ao
cientista é retirado da literatura ficcional. Algo semelhante ocorre quando Marx
recorre também à citação de Dante no final do prefácio de Para a crítica da
economia política: “Mas na entrada para a Ciência – como na entrada do Inferno – é preciso impor a exigência: Qui si convien lasciare ogni sospetto/ Ogni viltà
convien che sai morta” [Que aqui se afaste toda a suspeita/ Que neste lugar se
despreze todo o medo] (Marx, 1987a, p.32). Em ambos os casos, a obra de arte
literária mostra-se conselheira do cientista.
Por vezes, as citações literárias compõem o estilo narrativo irônico. O
exemplo é novamente do prefácio da 1ª edição de O capital. Nessa obra, Marx
tem como objeto de pesquisa “[...] o modo de produção capitalista e as corres-
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pondentes relações de produção e de circulação” (Marx, 1985, p.5); por essa
razão, tomou Inglaterra como principal ilustração. No entanto, como a primeira
publicação do livro foi em sua língua materna, Marx observa que o leitor alemão
pode ficar indiferente ou tranquilizar-se com a ideia de que, na Alemanha, as
coisas não são tão ruins. Contra isso, Marx (1985, p.5) o adverte: “De te fabula
narratur!” [A história é a teu respeito]. Marx não coloca referência, mas se trata
de trecho de Horário em Sátiras (I, 1, 69-70) é: “De que ris? Mudado o nome,
a narrativa fala de ti”. Ao tentar sensibilizar o leitor alemão, Marx insiste que
a situação social na Alemanha é muito pior que a da Inglaterra. Mesmo sendo
precária, a estatística social na Alemanha “[...] chega para descerrar o véu, o
suficiente para que se pressinta, atrás dele, um rosto de Medusa” (Marx, 1985,
p.5). Os alemães ficariam petrificados diante da constituição de comissões de
inquérito para apurar, por exemplo, a exploração do trabalho de mulheres e de
crianças. Seguindo a mitologia, Marx sabe que a ameaça de Medusa só pode ser
contida por Perseu, seu decapitador. Então, para mostrar a gravidade da situação, ele lembra que Perseu tinha capacete para se tornar invisível e perseguir
monstros: “Nós, de nossa parte, nos embuçamos com nosso capuz mágico,
tapando nossos olhos e nossos ouvidos, para poder negar as monstruosidades
existentes” (Marx, 1985, p.5-6). Como se percebe, o estilo irônico de Marx
não apenas chama atenção para uma situação nefasta, mas também “[...] pode
ser considerada como uma importante ferramenta de crítica social” (Venâncio,
2009, p.11).
Além de alimento para as ironias textuais, as alusões literárias compõem
alegorias e metáforas. Afirma Marx (1985, p.95): cada mercadoria vê na outra
o manifestar do seu próprio valor: “Igualitária e cínica de nascença, está sempre
pronta a trocar corpo e alma com qualquer outra mercadoria, mesmo que esta
seja mais repulsiva do que Maritornes”. Em suas relações de troca, as qualidades
dos objetos não contam, mesmo sendo a mais repulsiva, promíscua tal como a
empregada, também uma espécie de prostituta, que trabalha na primeira hospedaria em que Don Quixote se hospeda, pensando ser um castelo.
Em outro momento, Marx (1985, p.92) pontua: o economista, como “o
intérprete da alma da mercadoria”, não percebe que o valor-de-troca de pérolas
ou diamantes não se deve à propriedade física desses objetos, mas se constitui
num atributo social. Os economistas agem tal como uma personagem da peça
de Shakespeare Muito barulho por nada: “[...] Dogberry, ensinando ao vigilante
noturno Seacoal: ‘Ser dotado de um belo físico é uma dádiva das circunstâncias,
mas ler e escrever é um dom da natureza” (ibidem, p.93). Nessa referência,
Marx usa Dogberry como a figura que personifica a lógica dos economistas
políticos; ele toma o ler e o escrever como naturais, assim como os economistas
tomam os diamantes e pérolas como um valor inerente e natural.
O recurso à prosopopeia não é pertinente apenas para explicar o fetichismo
da mercadoria; torna-se também crucial para abordar o capital. Nesse processo,
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a literatura ficcional tem lugar de destaque quando Marx o associa a algumas
figurações, como vampiro, monstro, diabo. Ele afirma: “O capital é trabalho
morto que, como um vampiro, se reanima sugando o trabalho vivo e quanto
mais o suga, mais forte se torna” (ibidem, p.263). Por isso, “Se o dinheiro,
segundo Augier, ‘vem ao mundo com uma mancha natural de sangue numa de
suas faces’, o capital, ao surgir, escorrem-lhe sangue e sujeira, por todos os poros
da cabeça aos pés” (ibidem, p.878-9). A distensão da jornada de trabalho para
limites extremos responde à demanda de exploração sem fim do capital: “O prolongamento do trabalho além dos limites diurnos naturais, pela noite adentro,
serve apenas de paliativo para apaziguar a sede vampiresca do capital pelo sangue
vivificante do trabalho” (ibidem, p.290).3
O capitalista incorpora força de trabalho viva à materialidade morta dos
elementos que ele comprou; ao fazer isso, “[...] transforma valor, trabalho pretérito, materializado, morto, em capital, em valor que se amplia, um monstro
animado que começa a ‘trabalhar’, como se tivesse o diabo no corpo” (ibidem,
p.219-20). Além da imagem sensível do capital como monstro, a expressão
“como se tivesse diabo no corpo” vem de uma modificação de verso de Fausto
de Goethe, como salienta Prawer. No romance goetheano, a expressão original
é “como se tivesse amor no corpo”. O contexto é o de um rato envenenado que
se debate, corre, sobe e desce até morrer. Essa cena antecipa a entrada de Mefistófeles. O caráter diabólico do capital deriva, em larga medida, de discursos de
Mefistófeles ou possui alguma conexão direta com ele (Prawer, 2011).
Cotejar o capital a um vampiro, monstro ou diabo é recurso expressivo
que possibilita dar a esse fenômeno uma imagem concreta, o rosto de um ser
animado, incontrolável, cujo valor se expande desmesuradamente: “A escolha
da metáfora é, assim, importante filosófica e politicamente: através dela, Marx
pretende expor um aspecto substantivo do mundo social” (Neocleous, 2003,
p.674).
Além disso, permite que alguns estudiosos olhem para a obra magna de
Marx como uma espécie particular de “romance de formação” do capital, sob
inspiração da literatura gótica de horror do século XIX (Wheen, 2007) ou de
romances da era inglesa vitoriana (Kornbluh, 2010; Wheen, 2007).
Aqui também o universo artístico adentra a estrutura narrativa marxiana
de modo que sua análise dos fenômenos sociais gera não apenas uma metáfora
para o capital, mas assume a composição peculiar de um drama alegórico que
revela como o valor, forma social particular existente inclusive em sociedades
comerciantes antigas, desenvolve-se como valor gerando valor e se torna estruturante da vida social, sua ossatura, matriz que rege a totalidade e a capilaridade
da vida no capitalismo, sujeito da história que vive como parasita com poderes
monstruosos: “O capital é a história do Capital tornando-se sujeito, da implacável autoconstituição, da “valorização do valor” que impulsiona este modo de
produção. O artifício do tropo da personificação chama a atenção para o artifício
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e a instabilidade deste sujeito, para as fissuras e crises em seu curso de tornar-se,
em sua aventura de Bildung” (Kornbluh, 2010, p.24).
Segundo Mehring (1974, p.247), a alegoria não é, para Marx, um enfeite
ou um meio para facilitar a compreensão: “A alegoria, tal como Marx a emprega, é a mão física dos pensamentos, que recebe dela o seu fôlego vital”.
Em um nível um tanto paradoxal, a obra de arte literária parece oferecer
a Marx figurações que migram do campo artístico e ganham um conteúdo filosófico. O neologismo robinsonada que a crítica literária deriva da personagem
Robinson Crusoé e foi inicialmente atribuído às imitações desse gênero literário
ganha novos contornos ao chegar ao texto marxiano com tom bastante irônico.
Em Introdução de Para a crítica da economia política, ao declarar: “O caçador
e o pescador, individuais e isolados, de que partem Smith e Ricardo, pertencem
às pobres ficções das robinsonadas do século XVIII” (Marx, 1987a, p.3). Isso se
repete em O capital: “A economia política adora imaginar experimentos robinsonianos” (Marx, 1985, p.85).
Para Marx, as ficções de robinsonadas têm correlatos no campo filosófico.
O romance não é somente uma alegoria do individualismo moderno. O sentido
é que o ser humano abstrato, desprendido de suas relações sociais, ilustra não
apenas o coração da sociedade civil, esfera regida pelos interesses particulares,
mas é transformado em modelo da gênese da humanidade, um ponto de partida
natural da história e não o seu resultado. Ao tomar emprestada a expressão robinsonadas, Marx extrai do âmbito estético-literário uma figuração que é explorada com algum grau de liberdade e ampliada de modo a ganhar um conteúdo
filosófico: a naturalização da história.
Diante dos exemplos citados, seguimos a orientação de Silva segundo a
qual o conteúdo teórico das reflexões de Marx pode ser percebido na arquitetura
textual e essa tarefa é assumida intencionalmente por Marx. Sua crítica conceitual se articula com a “[...] luta contra toda parcimônia ou pobreza linguística”
(Silva, 2012, p.17) e, assim, desafia a linguagem científica em sua formalidade e
obscurantismo. Nas palavras de Wheen (2007, p.11),
Na época em que escreveu O capital, Marx superava a prosa de convenção
com sua radical colagem literária – justapondo vozes e citações de mitologia
e literatura, relatório de inspetores de fábrica e contos de fada, nos moldes
dos Cantos, de Ezra Pound, ou de A terra desolada, de Eliot. O Capital é
tão dissonante quanto Schoenberg, tão angustiante quanto Kafka.
Por isso, “[...] o tecido teórico [de Marx] foi urdido com fios literários
concretos. O sistema científico está sustentado por um sistema expressivo” (Silva, 2012, p.11). De alguma maneira, as menções a obras, personagens e autores
da literatura ficcional contribuem nesse processo. Portanto, em sua obra magna,
há atravessamentos entre a denotação e a conotação, como indica Kornbluh
(2010, p.21): “[...] algumas das sugestões mais prementes do texto encontram
sua formulação mais potente de modo performativo. O capital diz o que quer
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dizer não apenas por meio de referência denotativa, mas através de formas conotativas, associativas e artísticas que a linguagem faz operar”.
Essas cesuras e costuras entre o conotativo e o denotativo, o conceitual e o
não conceitual permitem compreender o texto marxiano como uma experimentação guiada pelo esforço de aproximar-se da dinâmica capitalista, orientada pela
contradição, que põe sob suspeita qualquer absolutização conceitual. Seu tecido
textual traz índices de uma nova racionalidade que, de modo peculiar, assume o
impulso mimético ao trabalho do pensamento.
Ainda dentro do corpo hipotético deste artigo, considera-se que essas formas de “invasão” literária no texto conceitual podem significar uma possibilidade, entre outras, de fortalecer a proposição de uma relação não hierárquica
entre a linguagem conceitual e a expressiva, na qual o conhecimento conceitual
pode adensar sua autoridade e rigor no diálogo com a literatura. Como afirma
Adorno (2009, p.24),
[...] expressão e acuro lógico não são possibilidades dicotômicas. Eles necessitam um do outro, nenhum dos dois é sem o outro. A expressão é liberada de sua contingência por meio do pensamento, pelo qual a expressão
se empenha exatamente como o pensamento se empenha por ela. O pensamento só se torna conclusivo enquanto algo expresso, somente por meio
da apresentação linguística; o que é dito de modo frouxo é mal pensado.
Por intermédio da expressão, o acuro lógico é conquistado laboriosamente
para o que é expresso.
O rigor não decorre da hipostasia do conceitual, mas do reconhecimento
de suas potencialidades e de seus limites. Por isso, nessa forma renovada de fazer teoria, a expressividade como o não conceitual é seu aspecto incontornável.
Marx absorve em seus escritos essa contradição. De modo mais preciso, a composição textual marxiana representa uma experimentação da lógica dialética; ela
testemunha a lembrança do que Adorno (2009) chama de verdade e não verdade do exercício conceitual e, portanto, de sua relação tensa e complementar
com o expressivo.
Sugere-se que esse posicionamento vai além de um avanço teórico. Mais
precisamente, esse avanço tem, em Marx, uma base política. Vincula-se à luta
contra a estreiteza e a unilateralidade do desenvolvimento humano decorrente
da divisão social do trabalho no capitalismo que fratura e hierarquiza capacidades e faculdades humanas. Carrega em si a utopia de um saber renovado que não
se submete à força da identidade do princípio do valor.
Notas
1 Publicado em língua espanhola em 1971. Utiliza-se a sua tradução para o português.
2 Ainda sem tradução para o português.
3 “Sabemos que Marx gostava de ler histórias de horror, e sabemos que o vampiro era
uma forma literária popular no século XIX. Enquanto o romance mais conhecido do
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gênero, Dracula de Bram Stoker, só foi publicado em 1897, após a morte de Marx, o
vampiro em geral tinha tido muita cobertura antes disso. Varney, o vampiro de James
Malcolm Rymer, por exemplo, foi serializado um ano antes da publicação do Manifesto
do Partido Comunista, e estendido a 220 capítulos em 868 páginas” (Neocleous, 2003,
p.673).
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– A partir da reflexão adorniana sobre o caráter irrevogável do elemento expressivo na atividade teórica, indaga-se como se dá a presença de menções literárias
ficcionais em O capital e quais papeis cumprem em sua argumentação; e em que medida
essa forma de diálogo contribui para fomentar vínculos não hierárquicos entre o texto
conceitual e o literário ficcional. A composição textual marxiana representa uma experimentação da lógica dialética; ela testemunha a lembrança do que Adorno chama de
verdade e não verdade do exercício conceitual e de sua relação tensa e complementar
com o expressivo. Essa posição vincula-se à luta contra a estreiteza e a unilateralidade do
desenvolvimento humano decorrente da divisão social do trabalho no capitalismo que
fratura capacidades e faculdades humanas. Carrega em si a utopia de um saber renovado
que não se submete à força da identidade do princípio do valor.
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
Marx, Obra de arte literária, O capital.
– From Adorno’s reflection on the irrevocable character of the expressive
element in theoretical activity, one wonders about the presence of fictional literary allusions in Marx’s work, Capital, and what roles they perform in his argumentation; and
also to what extent this form of dialogue contributes to foster non-hierarchical links
between the conceptual text and the literary fiction. Marx’s textual composition represents an experimentation of dialectical logic and bears witnesses to what Adorno calls
the truth and non-truth of the conceptual exercise and of its tense and complementary
relationship with expression. This position is associated with the struggle against the
narrowness and onesidedness of human development resulting from the social division
of labor in capitalism that fractures human capacities and faculties. It carries within itself
the utopia of a renewed knowledge that does not submit to the force of the identity of
the principle of value
ABSTRACT
KEYWORDS:
Marx, Literary work of art, Capital.
Sandra Soares Della Fonte é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Espírito Santo e Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Humanidades do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
(campus Vitória). @ –
[email protected] /
[email protected] /
https://orcid.org/0000-0002-9514-7202
I
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil.
Recebido em 12.11.2018 e aceito em 10.12.2018.
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