Passivas Reflexivas no Português Brasileiro Popular
Deize Crespim Pereira
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo
[email protected]
Abstract. This paper presents a qualitative study of the reflexive voice with
passive meaning in Popular Brazilian Portuguese. Examining 30 interviews of
the Projects “Filologia Bandeirante” and “Português Popular em São
Paulo”, we could note: a) the variable usage of the pronoun; b) constructions
with the agent overtly expressed; c) constructions which involve a process that
does not imply an agent; d) instances where the pronoun might have the
meaning “passive” as well as the meaning “impersonal”.
Key words. Reflexive Passive; Popular Brazilian Portuguese; Linguistic
Variation; Functional Linguistics.
Resumo. O presente trabalho constitui um estudo qualitativo da voz reflexiva
de sentido passivo no português brasileiro popular. Examinando 30 inquéritos
dos Projetos Filologia Bandeirante e Português Popular em São Paulo,
pudemos notar: a) o uso variável do pronome; b) estruturas com agente
expresso; c) construções em que o processo semanticamente não implica um
agente; d) ocorrências em que o pronome pode expressar tanto o sentido de
passividade, como o de indeterminação.
Palavras-chave. Passiva Reflexiva; Português Brasileiro Popular; Variação
Lingüística; Lingüística Funcional.
1. Introdução
O presente trabalho constitui um estudo qualitativo da voz reflexiva de sentido
passivo no Português Popular Brasileiro. Os inquéritos utilizados compõem os corpora
do Projeto Filologia Bandeirante (Filoband), coordenado por Heitor Megale, e do
Projeto Português Popular em São Paulo (PPSP), organizado por Rodrigues (1987). Os
informantes do segundo projeto são adultos de baixa renda, analfabetos ou de baixo
nível de escolaridade, na sua maioria migrantes da zona rural do estado de São Paulo e
de outras regiões brasileiras, que moram em favelas e conjuntos habitacionais populares
da periferia da cidade de São Paulo. O Projeto Filologia Bandeirante, por sua vez,
contempla idosos de baixa ou nula escolaridade nascidos e criados na zona rural dos
estados de São Paulo e de Minas Gerais, na área correspondente às trilhas históricas das
bandeiras paulistas. Na presente pesquisa, foram utilizados 15 inquéritos do Projeto
Filologia Bandeirante (gravados em 1998), e 15 inquéritos do Projeto Português
Popular em São Paulo (9 deles realizados entre 1997 e 2002; e os demais, em 1987).
As estruturas de passiva de se exemplificadas em gramáticas e na literatura
lingüística compreendem geralmente um SN (sintagma nominal) de 3ª pessoa com traço
[-animado] e verbos transitivos diretos (cf. Neves, 2000; Maurer, 1951; Mira Mateus et
al., 1983; Bechara, 2001; Duarte, 2002), tal como nas ocorrências (1-2) a seguir. Apenas
alguns autores citam exemplos com SNs com traço [+humano], como em (3).
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(1)
conta pra eles aí quanto saco de porvio se ensacava aí...como que é o
movimento de porvio de vocêis (Filoband, I.6, p.79)
(2)
daquele leite lá é que se faiz a canjica (PPSP, I.H,p.25)
(3)
tive treze filhos...mais criô nove (Filoband, I.1, p.6)
Um outro critério amplamente utilizado para caracterizar a estrutura passiva é a
concordância com o argumento interno no plural (cf. Duarte, 2002; Naro, 1976; Nunes,
1991). Vista como índice de atribuição do sujeito, esta é adotada como único critério
para diferenciar o se apassivador (ex.: Vendem-se as máquinas) do se indeterminador do
agente (ex.: Vende-se as máquinas) (Duarte, 2002: 157).
Nas ocorrências dos corpora considerados, no entanto, não há um só exemplo
em que se empregue a concordância com o SN no plural. Com relação à totalidade dos
SNs encontrados, a maioria é portador do traço [+humano].
Na medida em que as estruturas prototípicas de passiva reflexiva acima
exemplificadas são pouco numerosas em nossos corpora, não adotamos os critérios
mencionados para coletar as ocorrências. Limitamo-nos apenas a recolher estruturas de
voz reflexiva de sentido passivo, isto é, que compreendessem verbos de processo com
sujeito paciente, com ou sem pronome explícito, em todas as pessoas do discurso. Para
identificar estas construções, baseamos nossa análise em Borba (coord.1991). Segundo
o autor, o verbo de processo indica um evento que afeta um sujeito paciente,
experimentador, ou beneficiário. O argumento paciente de um verbo de processo é o
afetado por aquilo que o verbo expressa; é o que sofre uma mudança de estado,
condição ou posição.
2. A questão do sintagma agentivo
Há na literatura lingüística certa controvérsia quanto à possibilidade de
construções passivas reflexivas terem ou não um agente expresso, bem como quanto à
questão de implicarem necessariamente um agente.
Said Ali (1966:98) estabelece que “admitir um sentido passivo é admitir a
possibilidade de um agente ou ‘complemento de causa eficiente’ tanto oculto como
expresso”. Assim, o autor questiona a interpretação passiva de orações como A pedra
desprendeu-se da montanha e precipitou-se pelo vale abaixo (1966:95). Dutra
(1981:76) da mesma forma ressalta que uma oração como Abriram-se as rosas exclui a
interpretação passiva As rosas foram abertas.
Para outros autores, no entanto, é possível que sentenças como As maçãs se
conservam, As peras se estragam facilmente (Maurer 1951:51) exprimam apenas
passividade, sem implicarem um agente. Maurer (1951) estabelece que a construção
passiva é utilizada quando se quer salientar antes o objeto que sofre a ação do que o
agente que a realiza. O centro da oração passa a ser portanto o paciente; e o agente tem
um papel secundário, podendo ou não vir a ser expresso como complemento adverbial.
Bechara (2001:223) observa que no português contemporâneo a voz reflexiva de
sentido passivo dispensa o agente, notando contudo que há casos em que este pode vir
expresso (ao gol em si, que se deixou fazer por Pelé (Drummond, in: Bechara,
2001:223)). Naro (1976) afirma que a passiva de se no português moderno não admite a
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expressão do agente, apontando porém que seu uso era comum no português antigo (O
mar remoto navegamos, que só dos feos focas se navega (Camões, in: Naro 1976:781)).
Para Hopper & Thompson (1980), há dois tipos de construção passiva: 1) Ofocus: é passiva porque um SN que não é agente é promovido para um status especial,
mas é diferente da passiva prototípica, porque tende a ocorrer com agente expresso.
Estas construções são altamente transitivas, já que o agente tende a estar presente e o
objeto é definido e [+referencial]; 2) passivas prototípicas: construções em que o agente
ocorre raramente ou não ocorre; tais estruturas têm um baixo grau de transitividade,
tipicamente têm um só argumento e este não exerce controle sobre o evento denotado
pelo verbo.
Segundo Jacob (2004), é a reanálise da situação de correferência expressa pelo
pronome reflexivo, como ausência do argumento externo, que provoca o surgimento de
construções passivas. Estas seriam de três tipos: 1) médio-passiva: o argumento externo
não é indicado, porque o processo semanticamente não implica um agente, exs.: A terra
se move, A porta se abriu, Meu namorado fala alguma coisa eu me machuco; 2) passiva
reflexiva: o argumento externo não é indicado, porque é desconhecido, ou não se quer
mencioná-lo, ou trata-se de uma predicação geral, sem um referente particular, exs.:
Alugam-se apartamentos, Isso se vê muito; 3) passiva reflexiva indeterminada: o se é
reanalisado como marca de indeterminação, o argumento interno ocupa sua posição
original de complemento direto, exs.: Aluga-se apartamentos, se dança (2004:54-56).
Mira Mateus et al. (1983) define a estrutura passiva como um processo de
escolha marcada do sujeito, que se caracteriza pela despromoção do argumento
candidato preferencial a tal posição. De acordo com a autora, tal construção é utilizada
quando o argumento agente tem referência indeterminada, ou quando não é relevante
para a continuação do discurso, e quando o objeto ou paciente é contextualmente
definido e tem um alto grau de topicalidade.
Dik, por fim, faz uma distinção entre dois tipos de processo: os induzidos e os
não induzidos. O autor reserva a função semântica de paciente a entidades afetadas por
um processo induzido por um agente, posicionador, ou força (ex.: The door was slowly
opened by Peter). A entidade afetada por um processo não instigado, por sua vez,
recebe a função semântica de “processed” (ex.: The door slowly opened) (Dik,
1989:75,101-103). No primeiro caso, mesmo se o agente não for especificado, a
construção é interpretada como envolvendo um agente; já o segundo não implica um
agente. Este segundo tipo é analisado como uma construção derivada em que o verbo
sofre redução de valência, isto é, o verbo de dois lugares passa a ter somente o segundo
argumento. O pronome reflexivo é visto como uma marca que indica a redução do
primeiro argumento agente (Dik, 1997:12-13). Esta redução de valência pode ser
acompanhada por um outro processo, através do qual o segundo argumento “usurpa os
direitos do primeiro argumento” (“argument shift”), produzindo construções como a
seguinte, em que o segundo argumento passa a ocupar a posição do primeiro: (It)
catches-R butterflies > Butterflies catch-R (em que R é a marca de redução do primeiro
argumento, podendo ser representada pelo pronome reflexivo, por um afixo, ou por
zero).
Com base nas informações fornecidas por todos estes autores, examinamos as
ocorrências encontradas nos corpora do português popular. Pudemos constatar a
presença de três estruturas:
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I) O processo semanticamente não implica um agente. Exemplos:
(4)
ói na na épuca tô falanu pu sinhor...queu era moçu...queu era: :: tava si
formanu im a...im a: :: comu diz? im adultu (Filoband, I.9, p.122)
(5)
também se entrosamo com a comunidade do (Cova) (PPSP, I.d, p.2)
(6)
Doc. E quanto tempo aguentava a carne assim? / Inf. ah guenta muito tempu ...
guenta muito tempu qui ela bem sargada ela num perde (Filoband,I.9, p.127)
(7)
era u lobisomi (...) depoi que eli transforma eli nu qué sabe u que qui é né?
(Filoband,I.9, p.132)
(8)
as veiz cê pegava traíra... só nu dava bagre que o bagre nu é de criá esse tipo
de água (Filoband, I.9, p.128)
II) O processo implica um agente que não é mencionado no discurso. Exemplos:
(9)
porque o Extra né? inaugurô essa semana (PPSP, I.D,p.23)
(10) a luiz do terraço acendia clareava também a rua um poco (PPSP, I.z,p.11)
(11) a senhora não vê a avenida São João como alargô? (PPSP, I.z,p.13)
(2)
daquele leite lá é que se faiz a canjica (PPSP, I.H,p.25)
(12) lá no hospital São Paulo muito tempo que ela se trata lá (PPSP, I.y,p.41)
III) O processo implica um agente (SN [+animado]), ou um causativo (SN [-animado]),
que vem expresso no discurso. Exemplos:
(1)
conta pra eles aí quanto saco de porvio se ensacava aí...como que é o
movimento de porvio de vocêis (Filoband, I.6, p.79)
(13) o médico começô “você num pode tê filho vai tê que operá” (PPSP, I.E,p.51)
(14) quando o cachorro latiu ele se intimidô co cachorro (Filoband, I.2, p.21)
(15) a rua Alba vem a enchê de água devido a trans/ a transbordação do córrego
(PPSP, I.I,p.36)
(16) eu qui cuidei dele (...) tinha que levantá ele sentá ele num caxoti ( ) punha
umas (barra) di fogu numa lata preli isquentá (Filoband,I.14, p.208)
As estruturas mais comuns são aquelas em que o processo semanticamente não
implica agente (57% do corpus). Em segundo lugar, vêm as que implicam um agente de
referência indeterminada (27% do corpus), e, por último, as que explicitam o agente
(16%).
3. Passividade e indeterminação
Com base em uma distinção entre predicado sintático e semântico, Reinhart &
Reuland (1993) estabelecem que, ainda que o argumento agente não seja realizado
sintaticamente, este pode ser depreendido pelas características semânticas do verbo ou
pelo próprio contexto discursivo (conferir também Dik,1989). Nas ocorrências (9), (10),
(11), (2) e (12) do item anterior, vimos que há processos que implicam necessariamente
um agente, que não é mencionado no discurso. Tais estruturas podem sugerir tanto a
idéia de passividade, quanto a de indeterminação. Em (9), por exemplo, o SN “o Extra”
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pode ser interpretado tanto como sujeito (construção passiva), quanto como um objeto
direto topicalizado (estrutura indeterminada).
(9) porque o Extra né? inaugurô essa semana (PPSP, I.D,p.23)
(9a) O Extra foi inaugurado.
(9b) (Agente) inaugurou o Extra.
Vários são os autores que mencionam a estreita relação entre o se apassivador e
o se indeterminador do agente, notando ainda que estes valores podem se manifestar
simultaneamente em uma mesma oração (cf. Maurer, 1951; Schmidt-Riese, 2002;
Dutra, 1981; Ilari et al., 1996). Estruturas com SN no singular são normalmente
excluídas de estudos que contemplam estes dois tipos de se (cf. Nunes, 1991; Duarte,
2002), uma vez que estes tomam a concordância como critério para distinguir os dois
tipos de construção. Schmidt-Riese (2002) ressalta, porém, que este critério sintático
nem sempre é inequívoco como índice de atribuição do sujeito: a ausência de
concordância não serve para romper a indecisão sintática entre o se apassivador e o se
indeterminador. Maurer (1951:58), por sua vez, observa que “a idéia de agente pessoal
indefinido pode surgir em uma frase passiva, mesmo quando ela tem sujeito, desde que
não se enuncie o agente” (exemplos: Consertam-se relógios, Vendem-se flores).
Tais construções devem ser analisadas não só de um ponto de vista sintático,
mas também de uma perspectiva semântica e discursiva. É possível que o falante não
mencione o agente, simplesmente porque não o considera relevante para seus propósitos
comunicativos.
4. O argumento paciente
Com relação às características semânticas, sintáticas e discursivas dos SNs que
exercem a função de paciente, pudemos notar que predominam nos corpora estruturas
com SN: (i) [+humano]; (ii) anteposto ao verbo, ocupando a posição prototípica de
sujeito; (iii) tópico discursivo, no sentido de ser o referente que está no foco de atenção,
o assunto de que se está tratando; (iv) com traço [+definido] – quando o sujeito se refere
à 1ª pessoa do discurso (eu, nós, a gente), inclui o falante, tratando-se portanto de um
referente presente na situação. Quando se refere à 2ª pessoa (você), normalmente
também representa o falante, em narrações em discurso direto (ver exemplo 13). Na 3ª
pessoa, o referente geralmente também é definido, como em (17), havendo
pouquíssimos casos de referente indefinido, como em (18).
(17) não por mim pelo meus filho sabe? eu não quero que eles cria (...) não quero
que eles cria aqui não (PPSP, I.y, p.29)
(18) acho que de tanto o pessoal sofrê se torna artista né? (PPSP, I.H, p.15)
Este conjunto de características confirma a idéia de que a estrutura passiva
reflexiva é utilizada quando o argumento paciente é tomado como ponto de vista, centro
de atenção, correspondendo à entidade mais importante no contexto discursivo em que
aparece (cf. Maurer, 1951; Mira Mateus et al., 1983).
5. Omissão de se x comprometimento da informação
Vimos que nas ocorrências de passiva reflexiva encontradas no português
popular, há variação no uso do pronome, que ora vem explícito, ora implícito – o índice
geral de realização do pronome é de apenas 32% (49/154).
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Todos os verbos que foram incluídos neste estudo têm contraparte transitiva, isto
é, podem ser empregados como verbos de ação-processo com dois argumentos de
referência distinta. Na medida em que a omissão do pronome se encaixa num processo
mais amplo de apagamento do objeto, perguntamo-nos se nos casos de não-realização
do pronome reflexivo haveria comprometimento da informação. Em outras palavras, se
o pronome é o índice de processividade (Borba, coord. 1991), que marca a redução de
valência do verbo (Dik, 1997), indicando que o único argumento tem a função
semântica de Paciente, como sabemos que as estruturas com omissão de se têm sentido
passivo?
Retomemos alguns exemplos:
(7)
era u lobisomi (...) depoi que eli transforma eli nu qué sabe u que qui é né?
(Filoband,I.9, p.132)
(8)
as veiz cê pegava traíra... só nu dava bagre que o bagre nu é de criá esse tipo
de água (Filoband, I.9, p.128)
(16) eu qui cuidei dele (...) tinha que levantá ele sentá ele num caxoti ( ) punha
umas (barra) di fogu numa lata preli isquentá (Filoband,I.14, p.208)
(13) o médico começô “você num pode tê filho vai tê que operá” (PPSP, I.E,p.51)
(11) a senhora não vê a avenida São João como alargô? (PPSP, I.z,p.13)
Vemos que o contexto discursivo e o semântico elucidam que estes verbos
correspondem a um processo e têm um só argumento paciente. Em (7), sabemos que o
referente lobisomem não transforma algo, mas sofre uma transformação. No exemplo
(8), o SP (sintagma preposicionado) “nesse tipo de água” aparece sem a preposição em.
Sintaticamente, isto dá a impressão de uma estrutura ativa com sujeito, verbo e objeto
direto. Mas, pelo contexto discursivo, depreende-se que se trata de uma estrutura de
passiva reflexiva. Em (16), poderíamos interpretar a forma “preli inquentá” como para
ele esquentar a comida, o café; o entorno discursivo, contudo, esclarece que o referente
do verbo é uma pessoa doente que não está em condições de praticar essas atividades, e
que a forma só pode ser interpretada como esquentar-se, aquecer-se. No exemplo (13),
a interpretação como passiva reflexiva é favorecida pelo próprio item lexical. Ainda que
o argumento agente não figurasse no discurso, sabemos que uma pessoa não opera a si
mesma, mas é operada. Em (11), por fim, o referente [-animado] não é capaz de alargar
algo, mas sim ser submetido ao processo designado pelo verbo.
6. Considerações finais
Neste trabalho, ocupei-me da análise das estruturas de passiva reflexiva no
português brasileiro popular, optando por uma noção de “voz reflexiva de sentido
passivo” mais abrangente, que englobasse não só as construções tipicamente descritas
como passivas, mas também todas aquelas que envolvessem verbos de processo com
sujeito paciente. Retomei algumas descrições das estruturas passivas, retiradas da
literatura lingüística e de gramáticas, e com base nelas, analisei as ocorrências
encontradas nos corpora.
Constatei a presença de três estruturas principais: (i) as que envolvem um
processo que semanticamente não implica um agente; (ii) as que implicam um agente
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que não é mencionado; (iii) aquelas nas quais o agente, ou o causativo, vem expresso no
discurso.
O argumento agente parece ocupar um papel secundário nas construções de
passiva reflexiva. Ele pode vir expresso no discurso, mas em grande parte dos casos,
tem referência indeterminada. Daí a possibilidade de algumas estruturas expressarem
tanto o sentido de passividade, quanto o de indeterminação.
As características semânticas, sintáticas e discursivas dos SNs que exercem a
função de paciente, por sua vez, confirmam as formulações de Maurer (1951) e Mira
Mateus et al. (1983), de que o falante utiliza a estrutura passiva quando é o argumento
paciente que tem um papel central no contexto discursivo em que figura.
A variação no uso do pronome, por fim, não constitui um impedimento para a
transmissão da informação, já que o entorno discursivo e as próprias características
semânticas do verbo tendem a auxiliar na interpretação das estruturas como passivas
reflexivas.
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