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Infâncias e crianças sob o olhar de Portinari

2015, Educativa

Resumo: este trabalho tem por objetivo extrair elementos para compreender as infâncias retratadas pelo artista Cândido Portinari em duas de suas obras que datam da decada de 30: Ronda Infantil (1932) e Futebol (1935). Dentre uma imensa gama que compoe o acervo do pintor, as duas telas acima citadas capturaram o olhar das autoras. Diante disso, discutimos o olhar como objeto pulsional a partir de Lacan (1985), bem como questionamos os tracados, as cores e as nuances apresentadas pelo artista. Buscamos estabelecer relacoes entre a proposicao de Portinari nessas obras e as concepcoes de infâncias que compoem o imaginario brasileiro atual. Palavras-chave: Portinari, infâncias, criancas, olhar, brincadeiras.

ARTIGO TEMÁTICO INFÂNCIAS E CRIANÇAS SOB O OLHAR DE PORTINARI* Keyla Andrea Santiago Oliveira 1 Pollyanna Rosa Ribeiro2 Resumo: este trabalho tem por objetivo extrair elementos para compreender as infâncias retratadas pelo artista Cândido Portinari em duas de suas obras que datam da década de 30: Ronda Infantil (1932) e Futebol (1935). Dentre uma imensa gama que compõe o acervo do pintor, as duas telas acima citadas capturaram o olhar das autoras. Diante disso, discutimos o olhar como objeto pulsional a partir de Lacan (1985), bem como questionamos os traçados, as cores e as nuances apresentadas pelo artista. Buscamos estabelecer relações entre a proposição de Portinari nessas obras e as concepções de infâncias que compõem o imaginário brasileiro atual. Palavras-chave: Portinari, infâncias, crianças, olhar, brincadeiras T oda obra artística é um convite à captura do sujeito que sente seu olhar, sua escuta, sua voz e o corpo atraído para um * Recebido em 05/05/2014, aceito em 18/08/2014. 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás -UFG; Professora na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul- UEM. E-mail: <[email protected]>. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás; Professora na Pontifícia Universidade Católica – PUC Goiás; Coordenadora Pedagógica do Centro Municipal de Educação Infantil Cecília Meireles, em Goiânia. E-mail: <[email protected]>. educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 453 objeto. Assim, de pronto, a arte provoca um movimento psíquico que pode afetar e ecoar na constituição da subjetividade. Ao dirigirmos nosso olhar para as obras de Cândido Portinari (19031962), muitas de suas telas tomam nossa atenção e causam efeitos no observador, seja de encantamento, questionamento, estranhamento ou identificação. Ao passearmos sobre suas obras, percebemos diferentes temáticas que ali são retratadas, em especial a manifestação da cultura brasileira e das problemáticas sociais. Diante dessa diversidade, destacaremos um dos temas que perpassam todo seu acervo: a infância. Nesse caso, faremos ainda um recorte mais limitado, a proposta de análise de duas obras que tocam esse tema, já que nosso principal propósito aqui é identificar alguns elementos que compõem uma possível concepção de infância para Portinari. Sendo assim, sondaremos quais os indícios que suas imagens nos apresentam para a compreensão da infância? Que criança é essa que está sob o olhar de Portinari? Quais artefatos ele lança mão para a elaboração de suas obras? Por que suas pinturas atraíram os olhares das autoras? Quais as relações entre o que o artista propõe e as concepções de infância e de criança que predominam no cenário brasileiro atual? Nossa intenção aqui não é esgotar essas indagações, mas sim percorrê-las a fim de produzirmos outras mais férteis. As imagens de Portinari que aqui comentaremos, datam da década de 1930. A primeira intitula-se Ronda Infantil (1932), uma pintura a óleo em tela, de 39 x 47cm, assinada e datada na metade inferior à direita, e faz parte de Coleção particular, São Paulo, SP. A segunda foi denominada pelo autor de Futebol (1935), também uma pintura a óleo em tela, de 97 x 130cm, assinada e datada no canto inferior direito, e integra uma coleção particular, Rio de Janeiro, RJ. Por que elas foram aqui selecionadas dentre tantas que o autor retrata as infâncias? Por que para elas dirigimos mais intensamente nosso olhar? 454 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 Ao vermos a coletânea de Portinari, percebemos que, em geral, suas obras que retratam a infância são repletas de cores suaves, gestos lúdicos, abundância de rostos nítidos de crianças em diversas atividades, movimentos de brincadeiras e com variações de telas que enfatizam uma ou duas crianças com algumas poucas apresentando um grupo mais numeroso. Entretanto, as obras supracitadas não remetem exatamente a essa composição predominante. Então, convidamos agora o leitor a dirigir seu olhar para as imagens de suas telas buscando capturar a estética de Portinari, artista brasileiro que viveu predominantemente na primeira metade do século XX e que mergulhou no campo das artes plásticas na adolescência ganhando reconhecimento internacional ainda em vida. Nessas duas telas, prevalecem as brincadeiras, as trocas sociais, os toques e a paisagem que mescla o contexto urbano e rural, entretanto, a plasticidade do artista toca outras temáticas que não isentam as crianças da morte, do desamparo, da solidão com seu estilingue ou com um pião, da vida dura do retirante, que trabalha com os pais nas plantações de café, entrecruzando assim memórias e suas percepções sobre a infância permeada pelos sabores e dissabores de ser criança. Essa dimensão social ganhou muito espaço ao longo da elaboração do acervo do artista, que abarca múltiplos sentimentos e sentidos sobre a infância, destituindo-a do glamour e do romantismo, que muitas vezes são atribuídos às vivências das crianças no imaginário social. Mesmo a ludicidade se sobrepondo, há ainda sua parcela de dor no universo da pobreza e do sofrimento em suas telas. Fabris (1996) afirma que em seus quadros há notas que evidenciam temas do fundo de sua memória, uma dilação do sentido espacial, como se o pintor rememorasse a praça de Brodósqui com os olhos de criança e lhe conferisse dimensões quase gigantescas, acentuadas pelo sentimento de infinitude que é o verdadeiro elemento organizador da composição. Tanto as figuras dos traeducativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 455 balhadores quanto os jogos infantis fazem parte daquele grupo de obras que Portinari considera mais pessoais e menos sujeitas a uma visão convencional, por terem sido vividas anteriormente: As imagens que ali se afirmam, a bola de meia, os pés descalços, os trancos, as caneladas, a cerca de pau, tudo isso são imagens impressas na minha memória, que se reúnem e gritam a um esforço evocador, que cruzam os caminhos do meu mundo secreto [...] (FABRIS, 1996, p. 48, grifo do autor). O olhar nos primeiros contatos com a tela de 1932, Ronda Infantil (acima), é surpreendido com o entretom marrom, que parece sobrepujar às demais, o que preenche a interpretação de uma sensação quase tátil, gerando um efeito bastante peculiar, 456 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 definido pela amplitude da existência da terra como elemento pulsante da figurativização. Essa tonalidade castanha que predomina nessas pinturas não remete apenas às ruas empoeiradas de sua terra natal, ela repercute também a uma certa densidade, uma melancolia que retira a ideia de leveza, é uma massa de cor dura, compacta. Segundo Pedrosa (2004), sem existência material, a cor é bastante expressiva no tocante ao que provoca na visão humana, uma sensação cromática, um estímulo que pode projetar encantamento, magia, como também conhecimento e sentimentos. No caso do marrom aqui destacado, percebemos com o autor uma variante do cinza empregada pelo ensino acadêmico da pintura na busca pela harmonização, mas o que ocorre verdadeiramente é um resultado desastroso: se uma cor gritava (destoava) no quadro, em lugar de equacionar sensivelmente o problema, rebaixava-se tal cor adicionando-lhe ocres ou terras. Por rebaixamento ou dessaturação, terminava-se por conseguir equilibrar todos os acordes numa marcha em direção à monocromia. No final, nenhuma cor gritava, mas, por outro lado, nenhuma tinha luz própria (PEDROSA, 2004, p. 123). O que se percebe sensivelmente à primeira vista da tela, portanto, é a busca de imprimir à imagem um amortecimento, o sufocamento da vivacidade e também uma contradição, apesar da temática infantil e da referência fortemente relacionada a uma das brincadeiras mais tradicionais quando se pensa em crianças. O universo simbólico que Portinari constrói sobre as crianças e as infâncias demonstram um olhar que considera muitos recortes do real. Para a perspectiva psicanalítica, o olhar vai muito além de uma ação muito importante, o paradoxo que se apresenta é aqui o olhar não é uma atividade, e sim um objeto educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 457 pulsional. E o que isso quer dizer? Em poucas palavras, a pulsão, para Lacan, é um dos conceitos fundamentais da psicanálise, que tem como fonte o insconsciente e é um movimento, uma inquietação ou uma força que se dirige a um alvo, isto é, um destino, “algo que tem caráter irreprimível mesmo através das repressões” (LACAN, 1985, p.154). O objeto da pulsão nunca é totalmente apreensível, pois como armação ou montagem ela é constituída pela falta, portanto, tem um papel fundamental em nosso funcionamento inconsciente, na forma como agimos, repetimos e estamos no mundo. Ainda de forma bastante breve e sintética, podemos dizer que todo sujeito é atravessado ou divido por elementos que compõem sua subjetividade e que dão mostras incessantes de que o real do nosso corpo e nossa atividade psíquica são mobilizados pelo vigor libidinal. Para Freud, a libido ultrapassa a ideia comum de impulso em busca exclusivamente de prazer, ao contrário, a sexualidade humana impõe uma dinâmica em que prazer está indissociado do desprazer, da tensão, da dor e do sofrimento. Para a psicanálise, a libido torna-se então um movimento de investimento sexual ou vital na relação do sujeito com objetos que vão se deslocando ao longo da vida, os quais são escolhidos insconcientemente. A forma como nos relacionamos com os objetos libidinais, seja dando relevo a partes do corpo (o que Freud chamou de pulsão oral e anal), seja destacando o objetivo ou alvo, é uma forma sempre parcial, não atinge o alvo, porque nos remete a aquilo que nos falta e que predomina na relação do sujeito com o mundo, já que a relação do sujeito com o objeto estrutura o desejo. Para Lacan (2003), nesse enodamento sujeito e objeto, Professa-se que, para o sujeito analisável, ela domina sua relação com o real, e que os objetos oral ou anal são aí promovidos em detrimentos de outros, cujo status, embora manifesto, continua incerto. É que, se os primeiros repousam diretamente na relação da demanda, muito propícia à intervenção corretiva, os outros 458 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 exigem uma teoria mais complexa, já que nela não pode ser desconhecida uma divisão do sujeito, impossível de reduzir pelos simples esforços da boa intenção – por se tratar da própria divisão em que sustenta o desejo. Esses outros objetos, nominalmente o olhar e a voz (se deixarmos para depois o objeto em jogo na castração), fazem corpo com essa divisão do sujeito e presentificam, no campo mesmo do percebido, a parte elidida como propriamente libidinal. Como tais eles fazem recuar a apreciação da prática, intimidada por eles serem encobertos, através da relação especular, pelas identificações do eu [moi] que se pretende respeitar. Esse lembrete é o bastante para justificar que tenhamos insistido preferencialmente na pulsão escópica e em seu objeto imanente: o olhar (LACAN, 2003, p.224) O olhar, que é uma das diversas bordas do corpo, serve de contorno à pulsão, não é pura e simplesmente uma zona de prazer, todavia, ela engendra um conjunto de artifícios que tem função na estruturação do desejo, validando um curso que sempre deixa escapar a satisfação. As obras aqui selecionadas de Portinari apresentam uma tensão que convida-nos a percorrer o olhar com vais vagar porque as cenas por ele pinceladas não estão evidentes, óbvias ou clarificadas, pelo contrário. Ao dirigirmos nosso olhar para a primeira tela de Portinari aqui revelada, nos deparamos com vários pontos embaçados e indefinidos, como vários rostos das crianças. Essa nebulosidade que para alguns pode causar estranhamento, para nós é uma convocação ao exercício imaginativo. Os rostos indefinidos de Portinari podem ser uma alusão à condição humana de desmaterialização, descorporificação ou até de morte. Apostamos que ali ele não retrata a si mesmo ou exatamente um ou outro amigo com quem brincava, não se trata de uma criança, somos todos nós, o humano que muitas vezes se mostra despersonificado, mas que fala de todas as pessoas. A infância é esse retorno do\ao adulto marcado ao impossível de educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 459 se reviver, mas que é acessado pelas memórias, cenas, imagens e narrativas montadas, recortadas, reconstruídas, deturpadas e entrecruzadas. Essas faces embaçadas e descaracterizadas representam mais que uma criança, é a relação vida e morte encarnada que perpassa a infância. No núcleo inferior da primeira imagem estão crianças, suas nuances circulares formam uma roda que movimenta a paisagem, a qual é composta por casas em um contexto arborizado, o que lembra uma vila interiorana. As ruas são de terra e a ronda infantil torna-se circundada por uma cor mais clara, próxima do amarelo pálido, como se levantasse poeira. No canto direito inferior aparecem duas figuras um tanto isoladas, uma criança, com as mãos nos bolsos, observa a brincadeira de roda e um pequeno animal. O plano da tela é recortado em quatro partes por ruas que fazem uma intersecção, formando uma cruz, cujo centro ou ponto de conexão está na parte esquerda superior da tela, sugerindo em sua materialidade horizontal e vertical a continuação do cenário. Além disso, há uma cruz à direita e uma igreja ao fundo. Há um céu nublado, com nuvens que pressagiam chuva e ventos com cores que se misturam e reforçam tons azuis, lilases e brancos acinzentados. Linhas sinuosas distinguem-se no desenho das figuras e da paisagem, o que mostra um terreno acidentado, uma pequena cidade circundada por morros e descampados sem ocupação. Dez crianças formam o total de componentes da brincadeira, com exceção da que se encontra fora da roda, talvez por ter perdido o jogo que a brincadeira propõe. Talvez esta criança tenha sido a primeira a ser destituída do direito de permanecer em círculo, com as demais, o que lembra as regras da maioria das brincadeiras de roda, nas quais aos poucos, os participantes são eliminados para que o jogo prossiga até que haja um único restante, ou não foi aceita pelo grupo por outra razão que nunca saberemos, pois a imagem é composta por signo que nos impele 460 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 à profusão de interpretações.Talvez nessa obra Portinari traga à tona uma outra ideia de infância bem distante da que paira predominantemente no cenário social. A criança sozinha retrata que a infância está repleta de solidão, de agonia, de amargura, de desconsolo, de exclusões e de desamparo. Ela está ali, fora do agrupamento, ignorada, invisível e inaudível pelos demais. A ideia do desamparo é o desdobramento dessa relação imbricada de vida e morte, com uma correlação muito mais forte com o desespero, com o horror, sendo um efeito da angústia. Ao olharmos a tela, os olhos se embalam em diversos pontos. Por mais que tentemos aqui apreender muitos elementos apresentados na obra de arte, não é possível afirmar quais crianças são essas sob o olhar de Portinari, porque o olhar é algo que se perde e se reencontra. Inclusive, foram nas pinceladas enfumaçadas dos rostos das crianças que encontramos muitas dúvidas. Lacan, discorrendo sobre a estruturação psíquica no contexto clínico do exibicionismo, afirma que “o que se olha é aquilo que não se pode ver” (LACAN, 1985, p.173). Sabendo disso, continuamos insistindo em buscar uma leitura das produções do artista. Ao nos deleitarmos ou inquietarmos sobre a tela de Portinari, a apreciação que se faz da obra, está relacionada com a subjetividade de cada um, com suas possibilidades e seus limites, com suas propriedades, sentimentos, por isso, não se pode apreender a plenitude da obra artística. É justamente por ela ser repleta de nebulosidades que arrebatou nosso olhar para além da implicação de cada um naquela cena. São essas névoas – as quais trazem lacunas para a tessitura textual de nossa interpretação – que tanto nos provocam na busca por pistas a fim de depreender qual(is) concepção (ões) de infância(s) Portinari sinaliza. Suas telas funcionaram para nós como significantes textuais que nos capturam e produzem demanda de interpretação, como um texto escrito. A fim de subtrairmos mais elementos na formação dessa cadeia de texto que estamos aqui traçando, recorremos à observação mais aprofuneducativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 461 dada da segunda tela em que o autor retrata as crianças na década de 30. Em Futebol (1935), podemos identificar novamente a opção por cores dominadas também pela coloração marrom, que insiste em atingir a tela quase toda, numa abundância de elementos que integram paisagem e personagens que atuam na cena marcada pela temática da brincadeira/jogo entre crianças. Como o próprio nome indica, a imagem não deixa imprecisões quanto à movimentação presente na figurativização das formas destacadas. Do mesmo modo, existe o contraste entre céu e terra, marcado justamente pela oposição de cores que se suavizam um pouco, pois, agora, o firmamento não prenuncia chuva ou tempo fechado. Uma cerca baixa, feita de madeira e arame, circunda o campo de terra em que as crianças jogam, dividindo o espaço entre 462 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 esse campo e uma vegetação rasteira, que ocupa quase toda a metade superior da tela limitada apenas pelo início da representação do céu. Uma casinha modesta figura acima das três crianças mais isoladas do jogo. O telhado tem a cor de terra, as paredes tons pastéis e a porta é colorida por um matiz próximo ao lilás, que também colore duas pequenas janelas localizadas na parede lateral mais exposta na pintura. Explorando as tonalidades que Portinari elege para essa tela em sua totalidade, em especial os tons pastéis, que são sombrios, podemos afirmar que trazem uma carga de pesar, de tristeza, de um certo abatimento. Esses tons retiram a vivacidade, o vigor e a vibração que muitas vezes são atributos tidos como próprios às crianças, e essa ideia é desconstruída por Portinari da mesma maneira que o afirmamos na leitura da imagem anterior. Essas cores remontam e retratam o movimento de expressão da memória do artista, seu fluxo de lembranças e também de esquecimentos. A casa é rodeada por uma cerca de cor idêntica à da porta e das janelas. Outro mastro, bastante alto e em formato de cruz, surge na frente do cemitério, uma seta fina o trespassa na parte superior, justamente onde a cruz se forma. Ela aponta para o céu, formando uma diagonal, e o que parece uma pequena escada está paralela a ela, apoiada nas pontas esquerda e superior da cruz em questão. O cemitério não está aí retratado por mero acaso. A vida e o movimento são retratados por Portinari e, concomitantemente, a morte está à espreita na imagem. O jogo e a brincadeira ali ultrapassam a morte. O pintor apresenta essa cena como se o cemitério fizesse parte da brincadeira, não só no imaginário das crianças, mas a sua concretude, a morte está ali sendo simbolizada. A morte está ali, bem presente na vida. Ela mora ao lado, ao lado da brincadeira, é o real que ultrapassa a vida. Vida e morte não são retratadas como extremos opostos, e sim em uma simuleducativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 463 taneidade evidenciando a morte como algo que se presentifica fortemente na infância. A morte, implicada na vida infantil, é uma vicissitude, um destino, uma faceta imperativa, que evidencia nossa condição humana. As sombras projetadas no chão terroso são outro indicativo do tempo pela incidência da luz, sugerindo, ainda, a reprodução de uma tarde ensolarada. No plano inferior do terreno, há outra vez animais e os meninos jogam bola, espalhando-se pelo centro da figura, exceto três deles, que estão posicionados mais à direita, no canto superior da tela. São onze meninos, um time de futebol completo, mas a postura deles não denuncia como se deu a divisão para o jogo tradicional, nem mesmo as regras, já que o gol não pode ser limitado com clareza. Tocos de árvores, ali presentes, poderiam fazer as vezes de traves, mas há três desses tocos, o que deixa a questão no ar se realmente eles exercem uma função de alvo ali. Pela questão que foi representada, podemos supor que a bola lembra as de meia, feitas de forma artesanal e que possuem tamanho menor do que as bolas industrializadas. Os meninos estão todos descalços, parecendo se movimentar com vigor, apesar das várias pedras ao alcance de seus pés, característica própria do jogo, que muitas vezes rende safanões, empurrões e contato físico permanente entre os jogadores. Reiteradamente os rostos das crianças não apresentam nitidamente olhos, nariz e boca sobrepujando a linguagem corporal do movimento brincante deixando as expressões faciais em segundo plano. Isso pode ser um indicativo que, nesse momento de produção, o artista enalteça mais a ideia de infância do que criança. Por que será que os olhos foram omitidos? Quais implicações há nesse jogo de ausência e presença do olhar? Está obvio em suas telas que a infância não está dissociada de criança, ao contrário, elas são as estrelas das cenas. Diante dessa observação, podemos dizer que, para nós, há fortes indícios que ele retratou infância(s), pois embora os pequenos ali representados 464 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 tenham roupas e contornos corporais únicos, seu foco não foi evidenciar a subjetividade de cada uma. Sendo assim, retomamos a indagação presente no início deste texto: qual concepção de infância(s) podemos extrair dessas obras de Portinari? Sem dúvida, poderíamos apontar diversas tendências: a infância pouco supervisionada pela figura do adulto, a infância rodeada pela natureza, a infância articulada com os festejos e eventos religiosos, contudo, saltam também aos nossos olhos a infância da coletividade, das brincadeiras, da criação a partir de poucos recursos, a infância que ocupa as ruas e que traz o tráfego de possíveis cantos, gritos, saltos, corridas, rodas, risos e choros. Para a psicanálise a infância não se encerra quando a criança cresce, a lógica ressoa e se presentifica na vida e na constituição da personalidade, da história, das escolhas inconscientes, enfim, da subjetividade. A infância é um tempo de resistência, não é um tempo de felicidade, de despreocupação e de pura alegria. Ao contrário, apesar da castração, do Édipo, do desamparo, das angústias e todo sofrimento que não cessa de se incidir, a infância torna-se sinônimo de resistência, que embora repleta de barreiras e entraves, ainda assim, se recobra, supera os infortúnios e move o sujeito a seguir adiante. É uma recusa à inércia que o sofrimento provoca. Mesmo diante de tantas adversidades, a criança vive, tenta suplantar os desafios, então ela brinca. Dessa forma, a brincadeira é uma escapatória, é uma simbolização que transforma as situações em ludicidade e trocas sociais. São os registros dessas infâncias, assim mesmo no plural, que Portinari pincela. Para nós, Portinari convida o leitor de seus signos visuais que, em conjunto, formam uma imagem, a explorar a ideia da brincadeira como algo fundante, indispensável para a constituição subjetiva, o caminho para a descoberta do corpo, do movimento embalado pela expressão da criança, de remontagem da cultura a partir de suas percepções. Há uma sensibilidade para a exposição de infâncias que encontra ressonância nas palavras de Friedmann (2005), que salienta a educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 465 [...] importância que o jogo adquire dentro de uma sociedade sem fronteiras, especialmente os jogos cooperativos, os jogos em família, o resgate dos jogos tradicionais, a criação de espaços de jogo nos inúmeros ambientes nos quais a criança convive, a grande incidência e repercussão de publicações sobre o lúdico, os vínculos propiciados pelo brincar, assim como o jogo nas diversas manifestações e expressões: música, dança, estética, cotidiano, arte, etc (FRIEDMANN, 2005, p. 93). Mas será que na contemporaneidade encontramos comumente essas infâncias das trocas e das brincadeiras com diferentes idades pelas ruas das cidades? Cadê a convivência das crianças em grandes e pequenos grupos no espaço público? E o posicionamento das crianças que Portinari retrata – de mãos dadas, com regras, inclusões e exclusões, em jogos com bolas em grupos, o que certamente implicavam das disputas e das negociações, na aprendizagem de regras e da criação outras de acordo com a intenção de cada um, entre outros que a brincadeira propõe – em que se parece com o das crianças na contemporaneidade? Atualmente, percebemos que o predominante nas brincadeiras das crianças de nosso contexto urbano brasileiro em que estamos situados é a quietude do videogame ou dos jogos virtuais; o olhar vidrado em telas diversas de TV, monitores ou nos tablets que capturam o olhar da criança no acompanhamento do bombardeio de imagens. Corpo estático, olhar vidrado, unidirecional, olhar alheio, petrificado, inerte e inexpressivo diante de uma tela que abstrai o outro, ou melhor, destitui o outro sujeito. Assim, a prostração impera em detrimento da interlocução e das trocas sociais com outros sujeitos. Além disso, temos ainda a ideia que circula no imaginário social que a brincadeira só acontece com a manipulação de um brinquedo industrializado, geralmente plastificado ou emborrachado, que a mídia bombardeia a fim de seduzir as crianças. A hegemonia do consumo afeta o modo como a criança está cir466 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 cunscrita na cultura atualmente, alterando os cenários das infâncias, em que a brincadeira torna-se mais esvaziada de laço social e mais voltada a manipulação de artefatos industrializados. As infâncias atuais estão seguindo essa outra lógica, que tem como ritmo o bombardeio de luzes; sons automatizados em que a brincadeira só se torna presente se houver a manipulação de objetos frutos da publicidade, ou ainda, ocorre a partir da suposta troca social mediante meio virtual, por meio da TV, do acompanhamento dos desenhos animados musicados que incentivam a reprodução de gestos coreográficos e que encolhem as tentativas de criação. É um exercício tentar não perder de vista essa cadência que ganha força com a primazia da esfera privada nos liames sociais. A brincadeira em nosso contextual atual é repleta de limites espaciais, temporais e relacionais, pois geralmente os adultos, importantes portadores da cultura para as crianças, oferecem mais brinquedos fabricados e reduzem a promoção das trocas sociais lúdicas corporais e também com os elementos da natureza. Tornaram minguadas a possibilidade de invenções com pedras, gravetos, folhas, tecidos, frutas, dentre tantos outros elementos simples e acessíveis que incitam a movimentação lúdica. Podemos considerar a ludicidade ou a brincadeira como algo que convoca a ressignificação; a transformação de uma situação ou de um objeto em uma outra coisa; a atribuição de um novo sentido pela via da imaginação e do inconsciente, o qual, muitas vezes, não se deixa ser visto. Desse modo, as novas construções simbólicas que a brincadeira promove, permitem o trânsito e o deslocamento do sujeito em uma ampla pluralidade de perspectivas. É bem possível que Portinari lance por meio de suas pinturas um olhar que rememore sua infância no interior paulista na região de Brodowski tomada, dentre tantos ares, também pelo clima da ludicidade e da terra vermelha. Suas vivências infantis expressas nas telas aqui ressaltadas são permeadas por educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 467 brincadeiras coletivas, de roda, de jogos com a bola, recorrendo a elementos que marcam sua passagem pela terra arenosa e pelo povoado. Trazemos aqui também um tom de nostalgia em que também temos memórias de infâncias remanescentes com as ruas, praças e espaços públicos, tomadas por brincadeiras, pelo entrecruzamento de olhares, cinestesias de muitas crianças em meio às brincadeiras repletas de alegrias, encrencas, rixas, partilhas, desentendimentos e vínculos afetivos norteados pelas relações com os diferentes pares. A gênese da força criativa das brincadeiras está justamente na convivência e no laço social, por isso aqui registramos nossa preocupação com as infâncias atuais tão restritas à esfera privada orientada pela lógica do capital. Esta lógica que abarca as instituições sociais de maneira geral, incluindo aqui a escola, muitas vezes apaga de maneira disfarçada os olhares infantis. A escola ainda é um dos poucos espaços coletivos em que a brincadeira enaltecida por Portinari traz seus sopros de vida, contudo sabemos que há muitas ressalvas e distinções que freiam esse potencial criativo da ludicidade no contexto escolar. As imposições, as restrições e o excesso de um olhar supervisor tipicamente escolar promovem certo apagamento na dinâmica das brincadeiras que Portinari nos permitiu ver em suas telas. O perigo deste olhar impositivo e pedagogizante está justamente no reverso do que a brincadeira pode e deve propiciar para as crianças: ao invés de potencializar o crescimento, e um fortalecimento do sujeito no social, com seu pares,gera um dissipar das individualidades em favor de regras supostamente sociais e interativas. O que nos traz um alento é que, mesmo diante de tantos entraves, a brincadeira ainda nos parece uma aposta em que muitos reconhecem como importante investimento para as crianças, mesmo que não saibam o porquê. Nesse sentido, ela resiste como um dos emblemas das infâncias e, mais que isso, para nós, a brincadeira não é só relevante, mas uma condição para a 468 educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 constituição da subjetividade humana. Resta saber para onde os olhares das crianças serão direcionados, quais são os efeitos e os tons que as marcas culturais contemporâneas desenharão nas novas infâncias. Childhood and children under the gaze of Portinari Abstract: This work aims to extract elements to understand the childhood portrayed by the artist Candido Portinari in two of his works dating from the 30s: Child Ronda (1932) and Football (1935). Among a huge range that makes up the painter’s collection, the two aforementioned paintings captured the look of the authors. Therefore, we discuss the look as drive object from Lacan (1985), as well we question the strokes, colors and nuances presented by the artist. We seek to establish relations between the proposition of Portinari in these works and the childhood conceptions that make up the current Brazilian scenario. Keywords: Portinari, childhood , children, look , play. REFERÊNCIAS BUORO, Anamelia Bueno. Olhos que pintam: a leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: EDUC; FAPESP; Cortez, 2003. FABRIS, Annateresa. Cândido Portinari. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. ______. Portinari, amico mio: Cartas de Mário de Andrade a Portinari. Org., introdução e notas Annateresa Fabris. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras; Autores Associados. Projeto Portinari, 1995. FRIEDMANN, Adriana. O universo simbólico da criança: olhares sensíveis para a infância. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. OLIVEIRA, Keyla A. S. A concepção de infância retratada nas obras de Cândido Portinari. Dissertação de Mestrado. Goiânia: FE/UFG, 2007. educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014 469 PEDROSA, Israel. O universo da cor. 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