ARTIGO TEMÁTICO
INFÂNCIAS E CRIANÇAS SOB
O OLHAR DE PORTINARI*
Keyla Andrea Santiago Oliveira 1
Pollyanna Rosa Ribeiro2
Resumo: este trabalho tem por objetivo extrair elementos para compreender as infâncias retratadas pelo artista Cândido Portinari em duas de suas
obras que datam da década de 30: Ronda Infantil (1932) e Futebol (1935).
Dentre uma imensa gama que compõe o acervo do pintor, as duas telas
acima citadas capturaram o olhar das autoras. Diante disso, discutimos o
olhar como objeto pulsional a partir de Lacan (1985), bem como questionamos os traçados, as cores e as nuances apresentadas pelo artista. Buscamos estabelecer relações entre a proposição de Portinari nessas obras
e as concepções de infâncias que compõem o imaginário brasileiro atual.
Palavras-chave: Portinari, infâncias, crianças, olhar, brincadeiras
T
oda obra artística é um convite à captura do sujeito que sente seu olhar, sua escuta, sua voz e o corpo atraído para um
* Recebido em 05/05/2014, aceito em 18/08/2014.
1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás -UFG; Professora
na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul- UEM. E-mail: <
[email protected]>.
2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás; Professora na
Pontifícia Universidade Católica – PUC Goiás; Coordenadora Pedagógica do
Centro Municipal de Educação Infantil Cecília Meireles, em Goiânia. E-mail:
<
[email protected]>.
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objeto. Assim, de pronto, a arte provoca um movimento psíquico
que pode afetar e ecoar na constituição da subjetividade. Ao dirigirmos nosso olhar para as obras de Cândido Portinari (19031962), muitas de suas telas tomam nossa atenção e causam
efeitos no observador, seja de encantamento, questionamento,
estranhamento ou identificação.
Ao passearmos sobre suas obras, percebemos diferentes
temáticas que ali são retratadas, em especial a manifestação da
cultura brasileira e das problemáticas sociais. Diante dessa diversidade, destacaremos um dos temas que perpassam todo seu
acervo: a infância. Nesse caso, faremos ainda um recorte mais
limitado, a proposta de análise de duas obras que tocam esse
tema, já que nosso principal propósito aqui é identificar alguns
elementos que compõem uma possível concepção de infância
para Portinari.
Sendo assim, sondaremos quais os indícios que suas imagens nos apresentam para a compreensão da infância? Que
criança é essa que está sob o olhar de Portinari? Quais artefatos
ele lança mão para a elaboração de suas obras? Por que suas pinturas atraíram os olhares das autoras? Quais as relações entre o
que o artista propõe e as concepções de infância e de criança que
predominam no cenário brasileiro atual? Nossa intenção aqui
não é esgotar essas indagações, mas sim percorrê-las a fim de
produzirmos outras mais férteis.
As imagens de Portinari que aqui comentaremos, datam da
década de 1930. A primeira intitula-se Ronda Infantil (1932), uma
pintura a óleo em tela, de 39 x 47cm, assinada e datada na metade
inferior à direita, e faz parte de Coleção particular, São Paulo, SP.
A segunda foi denominada pelo autor de Futebol (1935), também
uma pintura a óleo em tela, de 97 x 130cm, assinada e datada no
canto inferior direito, e integra uma coleção particular, Rio de
Janeiro, RJ. Por que elas foram aqui selecionadas dentre tantas
que o autor retrata as infâncias? Por que para elas dirigimos mais
intensamente nosso olhar?
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Ao vermos a coletânea de Portinari, percebemos que, em
geral, suas obras que retratam a infância são repletas de cores
suaves, gestos lúdicos, abundância de rostos nítidos de crianças
em diversas atividades, movimentos de brincadeiras e com variações de telas que enfatizam uma ou duas crianças com algumas
poucas apresentando um grupo mais numeroso. Entretanto, as
obras supracitadas não remetem exatamente a essa composição
predominante.
Então, convidamos agora o leitor a dirigir seu olhar para as
imagens de suas telas buscando capturar a estética de Portinari,
artista brasileiro que viveu predominantemente na primeira metade do século XX e que mergulhou no campo das artes plásticas
na adolescência ganhando reconhecimento internacional ainda
em vida.
Nessas duas telas, prevalecem as brincadeiras, as trocas
sociais, os toques e a paisagem que mescla o contexto urbano e
rural, entretanto, a plasticidade do artista toca outras temáticas
que não isentam as crianças da morte, do desamparo, da solidão
com seu estilingue ou com um pião, da vida dura do retirante,
que trabalha com os pais nas plantações de café, entrecruzando assim memórias e suas percepções sobre a infância permeada
pelos sabores e dissabores de ser criança. Essa dimensão social
ganhou muito espaço ao longo da elaboração do acervo do artista, que abarca múltiplos sentimentos e sentidos sobre a infância,
destituindo-a do glamour e do romantismo, que muitas vezes
são atribuídos às vivências das crianças no imaginário social.
Mesmo a ludicidade se sobrepondo, há ainda sua parcela
de dor no universo da pobreza e do sofrimento em suas telas. Fabris (1996) afirma que em seus quadros há notas que evidenciam
temas do fundo de sua memória, uma dilação do sentido espacial, como se o pintor rememorasse a praça de Brodósqui com os
olhos de criança e lhe conferisse dimensões quase gigantescas,
acentuadas pelo sentimento de infinitude que é o verdadeiro
elemento organizador da composição. Tanto as figuras dos traeducativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014
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balhadores quanto os jogos infantis fazem parte daquele grupo
de obras que Portinari considera mais pessoais e menos sujeitas
a uma visão convencional, por terem sido vividas anteriormente:
As imagens que ali se afirmam, a bola de meia, os pés descalços, os trancos, as caneladas, a cerca de pau, tudo isso são
imagens impressas na minha memória, que se reúnem e gritam a um esforço evocador, que cruzam os caminhos do meu
mundo secreto [...] (FABRIS, 1996, p. 48, grifo do autor).
O olhar nos primeiros contatos com a tela de 1932, Ronda Infantil (acima), é surpreendido com o entretom marrom, que
parece sobrepujar às demais, o que preenche a interpretação de
uma sensação quase tátil, gerando um efeito bastante peculiar,
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definido pela amplitude da existência da terra como elemento
pulsante da figurativização. Essa tonalidade castanha que predomina nessas pinturas não remete apenas às ruas empoeiradas
de sua terra natal, ela repercute também a uma certa densidade,
uma melancolia que retira a ideia de leveza, é uma massa de cor
dura, compacta.
Segundo Pedrosa (2004), sem existência material, a cor é
bastante expressiva no tocante ao que provoca na visão humana,
uma sensação cromática, um estímulo que pode projetar encantamento, magia, como também conhecimento e sentimentos. No
caso do marrom aqui destacado, percebemos com o autor uma
variante do cinza empregada pelo ensino acadêmico da pintura
na busca pela harmonização, mas o que ocorre verdadeiramente
é um resultado desastroso:
se uma cor gritava (destoava) no quadro, em lugar de equacionar sensivelmente o problema, rebaixava-se tal cor adicionando-lhe ocres ou terras. Por rebaixamento ou dessaturação, terminava-se por conseguir equilibrar todos os acordes
numa marcha em direção à monocromia. No final, nenhuma
cor gritava, mas, por outro lado, nenhuma tinha luz própria
(PEDROSA, 2004, p. 123).
O que se percebe sensivelmente à primeira vista da tela,
portanto, é a busca de imprimir à imagem um amortecimento,
o sufocamento da vivacidade e também uma contradição, apesar da temática infantil e da referência fortemente relacionada
a uma das brincadeiras mais tradicionais quando se pensa em
crianças.
O universo simbólico que Portinari constrói sobre as crianças e as infâncias demonstram um olhar que considera muitos
recortes do real. Para a perspectiva psicanalítica, o olhar vai
muito além de uma ação muito importante, o paradoxo que se
apresenta é aqui o olhar não é uma atividade, e sim um objeto
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pulsional. E o que isso quer dizer? Em poucas palavras, a pulsão, para Lacan, é um dos conceitos fundamentais da psicanálise, que tem como fonte o insconsciente e é um movimento,
uma inquietação ou uma força que se dirige a um alvo, isto é, um
destino, “algo que tem caráter irreprimível mesmo através das
repressões” (LACAN, 1985, p.154). O objeto da pulsão nunca é
totalmente apreensível, pois como armação ou montagem ela é
constituída pela falta, portanto, tem um papel fundamental em
nosso funcionamento inconsciente, na forma como agimos, repetimos e estamos no mundo.
Ainda de forma bastante breve e sintética, podemos dizer
que todo sujeito é atravessado ou divido por elementos que compõem sua subjetividade e que dão mostras incessantes de que o
real do nosso corpo e nossa atividade psíquica são mobilizados
pelo vigor libidinal. Para Freud, a libido ultrapassa a ideia comum
de impulso em busca exclusivamente de prazer, ao contrário, a
sexualidade humana impõe uma dinâmica em que prazer está
indissociado do desprazer, da tensão, da dor e do sofrimento.
Para a psicanálise, a libido torna-se então um movimento
de investimento sexual ou vital na relação do sujeito com objetos
que vão se deslocando ao longo da vida, os quais são escolhidos
insconcientemente. A forma como nos relacionamos com os objetos libidinais, seja dando relevo a partes do corpo (o que Freud
chamou de pulsão oral e anal), seja destacando o objetivo ou alvo,
é uma forma sempre parcial, não atinge o alvo, porque nos remete a aquilo que nos falta e que predomina na relação do sujeito
com o mundo, já que a relação do sujeito com o objeto estrutura
o desejo. Para Lacan (2003), nesse enodamento sujeito e objeto,
Professa-se que, para o sujeito analisável, ela domina sua
relação com o real, e que os objetos oral ou anal são aí promovidos em detrimentos de outros, cujo status, embora manifesto,
continua incerto.
É que, se os primeiros repousam diretamente na relação
da demanda, muito propícia à intervenção corretiva, os outros
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exigem uma teoria mais complexa, já que nela não pode ser
desconhecida uma divisão do sujeito, impossível de reduzir
pelos simples esforços da boa intenção – por se tratar da própria
divisão em que sustenta o desejo.
Esses outros objetos, nominalmente o olhar e a voz (se deixarmos para depois o objeto em jogo na castração), fazem corpo
com essa divisão do sujeito e presentificam, no campo mesmo
do percebido, a parte elidida como propriamente libidinal. Como
tais eles fazem recuar a apreciação da prática, intimidada por
eles serem encobertos, através da relação especular, pelas identificações do eu [moi] que se pretende respeitar.
Esse lembrete é o bastante para justificar que tenhamos
insistido preferencialmente na pulsão escópica e em seu objeto
imanente: o olhar (LACAN, 2003, p.224)
O olhar, que é uma das diversas bordas do corpo, serve de
contorno à pulsão, não é pura e simplesmente uma zona de prazer, todavia, ela engendra um conjunto de artifícios que tem função na estruturação do desejo, validando um curso que sempre
deixa escapar a satisfação.
As obras aqui selecionadas de Portinari apresentam uma
tensão que convida-nos a percorrer o olhar com vais vagar porque as cenas por ele pinceladas não estão evidentes, óbvias ou
clarificadas, pelo contrário. Ao dirigirmos nosso olhar para a primeira tela de Portinari aqui revelada, nos deparamos com vários
pontos embaçados e indefinidos, como vários rostos das crianças. Essa nebulosidade que para alguns pode causar estranhamento, para nós é uma convocação ao exercício imaginativo.
Os rostos indefinidos de Portinari podem ser uma alusão
à condição humana de desmaterialização, descorporificação ou
até de morte. Apostamos que ali ele não retrata a si mesmo ou
exatamente um ou outro amigo com quem brincava, não se trata
de uma criança, somos todos nós, o humano que muitas vezes
se mostra despersonificado, mas que fala de todas as pessoas. A
infância é esse retorno do\ao adulto marcado ao impossível de
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se reviver, mas que é acessado pelas memórias, cenas, imagens
e narrativas montadas, recortadas, reconstruídas, deturpadas e
entrecruzadas. Essas faces embaçadas e descaracterizadas representam mais que uma criança, é a relação vida e morte encarnada que perpassa a infância.
No núcleo inferior da primeira imagem estão crianças,
suas nuances circulares formam uma roda que movimenta a paisagem, a qual é composta por casas em um contexto arborizado,
o que lembra uma vila interiorana. As ruas são de terra e a ronda
infantil torna-se circundada por uma cor mais clara, próxima do
amarelo pálido, como se levantasse poeira. No canto direito inferior aparecem duas figuras um tanto isoladas, uma criança, com
as mãos nos bolsos, observa a brincadeira de roda e um pequeno
animal.
O plano da tela é recortado em quatro partes por ruas que
fazem uma intersecção, formando uma cruz, cujo centro ou ponto de conexão está na parte esquerda superior da tela, sugerindo
em sua materialidade horizontal e vertical a continuação do cenário. Além disso, há uma cruz à direita e uma igreja ao fundo.
Há um céu nublado, com nuvens que pressagiam chuva e ventos
com cores que se misturam e reforçam tons azuis, lilases e brancos acinzentados. Linhas sinuosas distinguem-se no desenho
das figuras e da paisagem, o que mostra um terreno acidentado,
uma pequena cidade circundada por morros e descampados sem
ocupação.
Dez crianças formam o total de componentes da brincadeira, com exceção da que se encontra fora da roda, talvez por
ter perdido o jogo que a brincadeira propõe. Talvez esta criança
tenha sido a primeira a ser destituída do direito de permanecer
em círculo, com as demais, o que lembra as regras da maioria
das brincadeiras de roda, nas quais aos poucos, os participantes
são eliminados para que o jogo prossiga até que haja um único
restante, ou não foi aceita pelo grupo por outra razão que nunca
saberemos, pois a imagem é composta por signo que nos impele
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à profusão de interpretações.Talvez nessa obra Portinari traga
à tona uma outra ideia de infância bem distante da que paira
predominantemente no cenário social. A criança sozinha retrata
que a infância está repleta de solidão, de agonia, de amargura,
de desconsolo, de exclusões e de desamparo. Ela está ali, fora
do agrupamento, ignorada, invisível e inaudível pelos demais. A
ideia do desamparo é o desdobramento dessa relação imbricada
de vida e morte, com uma correlação muito mais forte com o desespero, com o horror, sendo um efeito da angústia.
Ao olharmos a tela, os olhos se embalam em diversos pontos. Por mais que tentemos aqui apreender muitos elementos
apresentados na obra de arte, não é possível afirmar quais crianças são essas sob o olhar de Portinari, porque o olhar é algo que
se perde e se reencontra. Inclusive, foram nas pinceladas enfumaçadas dos rostos das crianças que encontramos muitas dúvidas. Lacan, discorrendo sobre a estruturação psíquica no contexto clínico do exibicionismo, afirma que “o que se olha é aquilo
que não se pode ver” (LACAN, 1985, p.173).
Sabendo disso, continuamos insistindo em buscar uma leitura das produções do artista. Ao nos deleitarmos ou inquietarmos sobre a tela de Portinari, a apreciação que se faz da obra,
está relacionada com a subjetividade de cada um, com suas possibilidades e seus limites, com suas propriedades, sentimentos,
por isso, não se pode apreender a plenitude da obra artística. É
justamente por ela ser repleta de nebulosidades que arrebatou
nosso olhar para além da implicação de cada um naquela cena.
São essas névoas – as quais trazem lacunas para a tessitura textual de nossa interpretação – que tanto nos provocam na
busca por pistas a fim de depreender qual(is) concepção (ões) de
infância(s) Portinari sinaliza. Suas telas funcionaram para nós
como significantes textuais que nos capturam e produzem demanda de interpretação, como um texto escrito. A fim de subtrairmos mais elementos na formação dessa cadeia de texto que
estamos aqui traçando, recorremos à observação mais aprofuneducativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014
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dada da segunda tela em que o autor retrata as crianças na década de 30.
Em Futebol (1935), podemos identificar novamente a opção por cores dominadas também pela coloração marrom, que
insiste em atingir a tela quase toda, numa abundância de elementos que integram paisagem e personagens que atuam na
cena marcada pela temática da brincadeira/jogo entre crianças.
Como o próprio nome indica, a imagem não deixa imprecisões quanto à movimentação presente na figurativização das
formas destacadas. Do mesmo modo, existe o contraste entre céu
e terra, marcado justamente pela oposição de cores que se suavizam um pouco, pois, agora, o firmamento não prenuncia chuva
ou tempo fechado.
Uma cerca baixa, feita de madeira e arame, circunda o campo de terra em que as crianças jogam, dividindo o espaço entre
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esse campo e uma vegetação rasteira, que ocupa quase toda a
metade superior da tela limitada apenas pelo início da representação do céu.
Uma casinha modesta figura acima das três crianças mais
isoladas do jogo. O telhado tem a cor de terra, as paredes tons
pastéis e a porta é colorida por um matiz próximo ao lilás, que
também colore duas pequenas janelas localizadas na parede lateral mais exposta na pintura.
Explorando as tonalidades que Portinari elege para essa
tela em sua totalidade, em especial os tons pastéis, que são sombrios, podemos afirmar que trazem uma carga de pesar, de tristeza, de um certo abatimento. Esses tons retiram a vivacidade,
o vigor e a vibração que muitas vezes são atributos tidos como
próprios às crianças, e essa ideia é desconstruída por Portinari da
mesma maneira que o afirmamos na leitura da imagem anterior.
Essas cores remontam e retratam o movimento de expressão da
memória do artista, seu fluxo de lembranças e também de esquecimentos.
A casa é rodeada por uma cerca de cor idêntica à da porta
e das janelas. Outro mastro, bastante alto e em formato de cruz,
surge na frente do cemitério, uma seta fina o trespassa na parte superior, justamente onde a cruz se forma. Ela aponta para o
céu, formando uma diagonal, e o que parece uma pequena escada está paralela a ela, apoiada nas pontas esquerda e superior da
cruz em questão.
O cemitério não está aí retratado por mero acaso. A vida e
o movimento são retratados por Portinari e, concomitantemente, a morte está à espreita na imagem. O jogo e a brincadeira ali
ultrapassam a morte. O pintor apresenta essa cena como se o
cemitério fizesse parte da brincadeira, não só no imaginário das
crianças, mas a sua concretude, a morte está ali sendo simbolizada. A morte está ali, bem presente na vida. Ela mora ao lado, ao
lado da brincadeira, é o real que ultrapassa a vida. Vida e morte
não são retratadas como extremos opostos, e sim em uma simuleducativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 453-470, jul./dez. 2014
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taneidade evidenciando a morte como algo que se presentifica
fortemente na infância. A morte, implicada na vida infantil, é
uma vicissitude, um destino, uma faceta imperativa, que evidencia nossa condição humana.
As sombras projetadas no chão terroso são outro indicativo do tempo pela incidência da luz, sugerindo, ainda, a reprodução de uma tarde ensolarada. No plano inferior do terreno, há
outra vez animais e os meninos jogam bola, espalhando-se pelo
centro da figura, exceto três deles, que estão posicionados mais
à direita, no canto superior da tela. São onze meninos, um time
de futebol completo, mas a postura deles não denuncia como se
deu a divisão para o jogo tradicional, nem mesmo as regras, já
que o gol não pode ser limitado com clareza. Tocos de árvores,
ali presentes, poderiam fazer as vezes de traves, mas há três desses tocos, o que deixa a questão no ar se realmente eles exercem
uma função de alvo ali.
Pela questão que foi representada, podemos supor que a
bola lembra as de meia, feitas de forma artesanal e que possuem
tamanho menor do que as bolas industrializadas. Os meninos estão todos descalços, parecendo se movimentar com vigor, apesar
das várias pedras ao alcance de seus pés, característica própria
do jogo, que muitas vezes rende safanões, empurrões e contato
físico permanente entre os jogadores.
Reiteradamente os rostos das crianças não apresentam nitidamente olhos, nariz e boca sobrepujando a linguagem corporal do movimento brincante deixando as expressões faciais em
segundo plano. Isso pode ser um indicativo que, nesse momento
de produção, o artista enalteça mais a ideia de infância do que
criança. Por que será que os olhos foram omitidos? Quais implicações há nesse jogo de ausência e presença do olhar? Está
obvio em suas telas que a infância não está dissociada de criança,
ao contrário, elas são as estrelas das cenas. Diante dessa observação, podemos dizer que, para nós, há fortes indícios que ele
retratou infância(s), pois embora os pequenos ali representados
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tenham roupas e contornos corporais únicos, seu foco não foi
evidenciar a subjetividade de cada uma.
Sendo assim, retomamos a indagação presente no início
deste texto: qual concepção de infância(s) podemos extrair dessas
obras de Portinari? Sem dúvida, poderíamos apontar diversas tendências: a infância pouco supervisionada pela figura do adulto, a
infância rodeada pela natureza, a infância articulada com os festejos e eventos religiosos, contudo, saltam também aos nossos olhos
a infância da coletividade, das brincadeiras, da criação a partir de
poucos recursos, a infância que ocupa as ruas e que traz o tráfego
de possíveis cantos, gritos, saltos, corridas, rodas, risos e choros.
Para a psicanálise a infância não se encerra quando a criança cresce, a lógica ressoa e se presentifica na vida e na constituição da personalidade, da história, das escolhas inconscientes,
enfim, da subjetividade. A infância é um tempo de resistência,
não é um tempo de felicidade, de despreocupação e de pura alegria. Ao contrário, apesar da castração, do Édipo, do desamparo,
das angústias e todo sofrimento que não cessa de se incidir, a infância torna-se sinônimo de resistência, que embora repleta de
barreiras e entraves, ainda assim, se recobra, supera os infortúnios e move o sujeito a seguir adiante. É uma recusa à inércia que
o sofrimento provoca. Mesmo diante de tantas adversidades, a
criança vive, tenta suplantar os desafios, então ela brinca. Dessa
forma, a brincadeira é uma escapatória, é uma simbolização que
transforma as situações em ludicidade e trocas sociais.
São os registros dessas infâncias, assim mesmo no plural,
que Portinari pincela. Para nós, Portinari convida o leitor de seus
signos visuais que, em conjunto, formam uma imagem, a explorar
a ideia da brincadeira como algo fundante, indispensável para a
constituição subjetiva, o caminho para a descoberta do corpo, do
movimento embalado pela expressão da criança, de remontagem
da cultura a partir de suas percepções. Há uma sensibilidade para
a exposição de infâncias que encontra ressonância nas palavras
de Friedmann (2005), que salienta a
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[...] importância que o jogo adquire dentro de uma sociedade
sem fronteiras, especialmente os jogos cooperativos, os jogos em família, o resgate dos jogos tradicionais, a criação de
espaços de jogo nos inúmeros ambientes nos quais a criança
convive, a grande incidência e repercussão de publicações sobre o lúdico, os vínculos propiciados pelo brincar, assim como
o jogo nas diversas manifestações e expressões: música, dança, estética, cotidiano, arte, etc (FRIEDMANN, 2005, p. 93).
Mas será que na contemporaneidade encontramos comumente essas infâncias das trocas e das brincadeiras com diferentes idades pelas ruas das cidades? Cadê a convivência das crianças
em grandes e pequenos grupos no espaço público? E o posicionamento das crianças que Portinari retrata – de mãos dadas, com
regras, inclusões e exclusões, em jogos com bolas em grupos, o
que certamente implicavam das disputas e das negociações, na
aprendizagem de regras e da criação outras de acordo com a intenção de cada um, entre outros que a brincadeira propõe – em
que se parece com o das crianças na contemporaneidade?
Atualmente, percebemos que o predominante nas brincadeiras das crianças de nosso contexto urbano brasileiro em que
estamos situados é a quietude do videogame ou dos jogos virtuais; o olhar vidrado em telas diversas de TV, monitores ou nos
tablets que capturam o olhar da criança no acompanhamento do
bombardeio de imagens. Corpo estático, olhar vidrado, unidirecional, olhar alheio, petrificado, inerte e inexpressivo diante de
uma tela que abstrai o outro, ou melhor, destitui o outro sujeito.
Assim, a prostração impera em detrimento da interlocução e das
trocas sociais com outros sujeitos.
Além disso, temos ainda a ideia que circula no imaginário
social que a brincadeira só acontece com a manipulação de um
brinquedo industrializado, geralmente plastificado ou emborrachado, que a mídia bombardeia a fim de seduzir as crianças. A
hegemonia do consumo afeta o modo como a criança está cir466
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cunscrita na cultura atualmente, alterando os cenários das infâncias, em que a brincadeira torna-se mais esvaziada de laço social e mais voltada a manipulação de artefatos industrializados.
As infâncias atuais estão seguindo essa outra lógica, que
tem como ritmo o bombardeio de luzes; sons automatizados em
que a brincadeira só se torna presente se houver a manipulação de objetos frutos da publicidade, ou ainda, ocorre a partir
da suposta troca social mediante meio virtual, por meio da TV,
do acompanhamento dos desenhos animados musicados que incentivam a reprodução de gestos coreográficos e que encolhem
as tentativas de criação.
É um exercício tentar não perder de vista essa cadência que
ganha força com a primazia da esfera privada nos liames sociais.
A brincadeira em nosso contextual atual é repleta de limites
espaciais, temporais e relacionais, pois geralmente os adultos,
importantes portadores da cultura para as crianças, oferecem
mais brinquedos fabricados e reduzem a promoção das trocas
sociais lúdicas corporais e também com os elementos da natureza.
Tornaram minguadas a possibilidade de invenções com pedras,
gravetos, folhas, tecidos, frutas, dentre tantos outros elementos
simples e acessíveis que incitam a movimentação lúdica.
Podemos considerar a ludicidade ou a brincadeira como
algo que convoca a ressignificação; a transformação de uma situação ou de um objeto em uma outra coisa; a atribuição de um
novo sentido pela via da imaginação e do inconsciente, o qual,
muitas vezes, não se deixa ser visto. Desse modo, as novas construções simbólicas que a brincadeira promove, permitem o trânsito e o deslocamento do sujeito em uma ampla pluralidade de
perspectivas.
É bem possível que Portinari lance por meio de suas
pinturas um olhar que rememore sua infância no interior paulista
na região de Brodowski tomada, dentre tantos ares, também
pelo clima da ludicidade e da terra vermelha. Suas vivências
infantis expressas nas telas aqui ressaltadas são permeadas por
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brincadeiras coletivas, de roda, de jogos com a bola, recorrendo
a elementos que marcam sua passagem pela terra arenosa e pelo
povoado. Trazemos aqui também um tom de nostalgia em que
também temos memórias de infâncias remanescentes com as
ruas, praças e espaços públicos, tomadas por brincadeiras, pelo
entrecruzamento de olhares, cinestesias de muitas crianças
em meio às brincadeiras repletas de alegrias, encrencas, rixas,
partilhas, desentendimentos e vínculos afetivos norteados pelas
relações com os diferentes pares.
A gênese da força criativa das brincadeiras está justamente
na convivência e no laço social, por isso aqui registramos nossa
preocupação com as infâncias atuais tão restritas à esfera privada orientada pela lógica do capital. Esta lógica que abarca as
instituições sociais de maneira geral, incluindo aqui a escola,
muitas vezes apaga de maneira disfarçada os olhares infantis.
A escola ainda é um dos poucos espaços coletivos em
que a brincadeira enaltecida por Portinari traz seus sopros de
vida, contudo sabemos que há muitas ressalvas e distinções que
freiam esse potencial criativo da ludicidade no contexto escolar.
As imposições, as restrições e o excesso de um olhar supervisor
tipicamente escolar promovem certo apagamento na dinâmica
das brincadeiras que Portinari nos permitiu ver em suas telas. O
perigo deste olhar impositivo e pedagogizante está justamente
no reverso do que a brincadeira pode e deve propiciar para as
crianças: ao invés de potencializar o crescimento, e um fortalecimento do sujeito no social, com seu pares,gera um dissipar
das individualidades em favor de regras supostamente sociais e
interativas.
O que nos traz um alento é que, mesmo diante de tantos
entraves, a brincadeira ainda nos parece uma aposta em que
muitos reconhecem como importante investimento para as
crianças, mesmo que não saibam o porquê. Nesse sentido, ela resiste como um dos emblemas das infâncias e, mais que isso, para
nós, a brincadeira não é só relevante, mas uma condição para a
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constituição da subjetividade humana. Resta saber para onde os
olhares das crianças serão direcionados, quais são os efeitos e
os tons que as marcas culturais contemporâneas desenharão nas
novas infâncias.
Childhood and children under the gaze of Portinari
Abstract: This work aims to extract elements to understand the childhood
portrayed by the artist Candido Portinari in two of his works dating from
the 30s: Child Ronda (1932) and Football (1935). Among a huge range
that makes up the painter’s collection, the two aforementioned paintings
captured the look of the authors. Therefore, we discuss the look as drive
object from Lacan (1985), as well we question the strokes, colors and nuances presented by the artist. We seek to establish relations between the
proposition of Portinari in these works and the childhood conceptions that
make up the current Brazilian scenario.
Keywords: Portinari, childhood , children, look , play.
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