Ana Raylander Mártis dos Anjos - Série Trabalhos Escolares, 2018
Expediente
Lucía
Revista Feminista de Cultura Visual e Tradução
Ano: 2021
Periodicidade: anual
Volume I
Número I
Corpo Editorial
Editoras
Daniella Avelaneda Origuela e Fernanda Grigolin
Identidade visual
Caio César Paraguassu
Manual de estilo e revisão
Lígia Marinho
Capa de Lucía e capa das seções
Ana Raylander Mártis dos Anjos - Série Trabalhos Escolares, 2018
Conselho
Angela Roberti (Uerj)
Denise Camargo (UnB)
Fausto Gracia (UAQ/México)
Paola Marugán (UAM/México)
Laura Fernández Cordero (Cedinci/Argentina)
Luciana Carvalho Fonseca (USP)
Maria de Fatima Couto Morethy (Unicamp)
Maria Teresa Mhereb (USP)
Val Sampaio (UFPA)
Pareceristas
Alejandra Gorráez Puga
Carla Borba
Catalina Pérez Melendez
Charlene Bicalho
Claudia Mayer
Elenildes Dantas
Ingrid Souza Ladeira de Souza
Rafaela Jemmene
Silvia Ferreira Lima
Wander Wilson Chaves Junior
Tenda de Livros
@tendadelivros
[email protected]
EPISTEMOLOGIA RUMINANTE [1]
Lucrecia Masson Córdoba [2]
Tradução de Sigrid Beatriz Varanis Ortega [3]
Revisão de Poppy Carpio [4]
“Ao ritmo de mil vacas pastando […]”
Andrea Nunes Brións
O ruminante é, para mim, uma vaca. Sempre digo que durante minha infância
socializei mais com vacas do que com pessoas. Eram os anos 1980 na pampa seca
Argentina, uma região árida muito fria no inverno e muito quente no verão, uma
zona de extremos, apesar de apresentar uma geografia inquietantemente entediante. Aos meus olhos de criança, tudo era imenso e tudo era igual a tudo. Deve ser por
isso que se diz que a infância é pura espacialidade, que não existe tempo.
As vacas pastavam, a cada dia faziam o mesmo. Eu pensava se um dia me
aconteceriam coisas, se um dia teria uma vida excitante como a vida das pessoas da
televisão, televisão que só podíamos ver se tivesse vento suficiente para carregar as
baterias (na pampa seca a luz elétrica era um luxo de alguns), enquanto isso, minha
tarefa, a cada dia e seguindo essa mesma ideia de repetição na imensidade, era ir
buscar as vacas para que ficassem perto do curral e assim meu pai pudesse ordenhá-las. O andar das vacas ficou guardado nas minhas retinas, andam lento, andam
juntas.
Também “vaca” é um insulto que sempre, como gorda, temi. Que paradoxo
que animais que me pareciam tão lindos, e eram minhas amigas, fossem justamente
um nome que eu jamais quis escutar sobre o meu corpo! Era o insulto gordo. Franz
Fanon disse que a linguagem colonial desumaniza o colonizado, propriamente falando, o animaliza. E que, na realidade, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem zoológica, que se refere constantemente ao bestiário. “[…]
esses rostos dos que há desaparecido toda a humanidade, esses corpos obesos que
não se parecem com nada, essa multidão sem cabeça nem pescoço, essas crianças
que parecem não pertencer a nada, essa preguiça desdobrada ao sol, esse ritmo
1 Epistemologia Ruminante foi escrito por Lucrecia Masson (Ombucta, 1981) em 2015 e publicado em 2017 pela
Pensaré Cartoneras, também foi publicado no Chile pela FEA Feminista (Feminismo, Estrías, Autogestión) e no
México pela Ediciones Inestables.
2 Lucrecia Masson é escritora, artista e pesquisadora transdisciplinar. Ativista antirracista e transfeminista,
trabalha com a temática de corpos dissidentes (gordura/beleza/funcionalidade, feminismos e decolonialidade).
3 radução livre para português por Sigrid Beatriz Varanis Ortega (Campo Grande, 1997), estudante de História
na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e é fundadora do projeto As Mina na História.
4 Revisão por Poppy Carpio (Venezuela, 1998), artista independente e estudante de Artes Visuais na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
122 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
vegetal, tudo isso forma parte do vocabulário colonial” [5].
Entendo o corpo gordo como um corpo colonizado, um corpo visto como inferior em uma cultura onde a magreza foi imposta triunfantemente. Um corpo para
o fracasso, para o desaparecimento, um corpo errôneo, errado. Porém, e seguindo
Fanon, o colonizado ri quando se descobre animal nas palavras do colono. Então
digo: Sou a vaca.
Busco na animalidade minha própria enunciação. Sou um ruminante e ouso
desafiar os limites que foram (im)postos ao meu corpo e à minha humanidade.
5 FANON, Franz, Os condenados da Terra, p. 20.
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
123 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
lentitude / animalidade / o estigma vaca / a carne / o não saber como dizer, porém
ir ruminando
Os ruminantes, como os bovinos, têm um complexo sistema de digestão que
os permite aproveitar eficientemente os nutrientes dos alimentos, inclusive os de
baixa qualidade nutricional. A ruminação deve ser feita em um lugar cômodo, plano,
com sombra, para poder deitar-se. O ruminante procurará contar com as condições
necessárias para ruminar comodamente. Buscará, então, as condições de possibilidade, um lugar cômodo e seguro, entre semelhantes que o assegurem.
Muitas vezes a carne desse ruminante dói. Sabe que há dores que se encarnam, que se tornam carne e tecidos, tecidos sangrentos.
O ruminante é irreverente e iconoclasta.
Não acredita em ideias próprias, não é original. Sabe que sempre que fala,
traduz.
O ruminante aposta por um exercício de invenção política que é coletivo, sempre. Procura dar para si e para sua comunidade, ferramentas, e entende que essas
ferramentas não são algo ao qual se chega, mas que está em constante construção.
Em sua ação de ruminar, concede tributo ao processo, e não ao produto acabado.
O ruminante é precário, e, como precário,
O futuro não é nosso. Não existe futuro. Não existe tempo.
desafia
o
futuro.
O ruminante é lento.
Uma vez escutei que Tolstói tirava fotos dormindo. E dizem que fazia isso para
mostrar sua distância a respeito dessa sociedade que “avança”, que está indo para
frente, que se faz produtiva, rápida. Os que querem trabalho, progresso, e enriquecimento, serão os ganhadores. Tolstói preferia descansar. Isso me contou uma vez
um amigo. Eu procurei referências e não encontrei nada. Talvez não seja verdade,
talvez seja um mito. Mas não estou preocupada com a verdade. Penso, junto com o
movimento antropofágico [6], que a verdade é uma mentira muitas vezes repetida.
A epistemologia ruminante não rende tributo à visão linear da história. O
ruminante se faz ruminar, e muitas vezes também a dormir. Não privilegia o estado
consciente. Gosta de sonhar.
6 O movimento antropofágico é uma corrente artística da primeira metade do século XX no Brasil. Esse movimento tem como metáfora a atividade canibal desenvolvida pela comunidade Tupinambá, que consistia em
devorar seus inimigos com a intenção de incorporar, ao ingeri-los, certas características deles, como a bravura, a
força, a coragem e o conhecimento de sua comunidade. Se decidiam que o inimigo capturado não contava com
essas características, não o comiam. Trata-se de devorar e devorar-se, de incorporar o outro para fazer com ele
um novo corpo.
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
124 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
Qual é o corpo do feminismo? Pode a vaca falar? Pode o ruminante nomear
a si mesmo? Que corpos podem nomear a si mesmos? Quem tem a possibilidade de
falar sobre a verdade das coisas? Há sujeitos com a possibilidade de produzir verdade, de gerar um relato onde se conta a verdade sobre o mundo, e outros são atores
nesse relato. Quem pode pensar a totalidade sempre ocupa os lugares hegemônicos.
Como podemos, nós, as ruminantes, também ser produtoras de verdade?
Necessitamos novos modos de nomear, arrebatar a possibilidade do relato de
quem conta nossa história. Assim, a epistemologia ruminante aposta que é possível
pensar e gerar relatos desde outros lugares. Desde a fronteira.
A epistemologia ruminante tudo engole, tudo mastiga, come de tudo. O ruminante é poligástrico, e tudo passa por seus quatro estômagos.
sangue de vaca / o corpo pulverizado / o campo / a vaca e o campo / o campo de
batalha / a vaca e o aramado / o aramado como política de cercamento / o aramado como primeiro dispositivo que dá lugar propriedade privada / a vaca louca / o
medo / o contágio / a carne humana
Quebrar o mapa da carne vital é um ato de vandalismo [7]. E o ruminante é
um vândalo.
O ruminante pensa mais no espaço do que no tempo. Mais na geografia do
que na história, e gosta sobretudo das geografias da carne.
O ruminante transborda, é excessivo. Sua gordura derrama, dá asco.
7 FLORES, Valeria, Deslenguada, p. 65.
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
125 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
O ruminante é a vaca, não a cadela. Não é esbelta nem de movimentos quentes, seu movimento é talvez o menos sexy, porém a vaca também “ir hasta abajo” [8].
Nesse feminismo gordo que imagino, ninguém duvida de ser feliz com os
transbordamentos e as estranhezas e ninguém teme os espelhos. Penso nesse corpo gordo e ruminante como um corpo que excede o humano e que se aproxima da
máquina e se aproxima da animalidade, embora seja mais animal do que máquina.
É contra a ideia de eficiência que o ruminante é menos máquina e mais animal.
O ruminante devora o que afeta o seu corpo em sua potência vital.
Deve se permitir ser afetado o mais fisicamente possível, tragar o
outro como uma presença viva, absorvê-lo no corpo, de modo que
as partículas do seu olhar e a desejada diferença sejam incorporadas na alquimia da alma, e assim se estimule ao refinamento, a
expansão e o tornar a si mesmo [9].
É assim que o ruminante tem uma concepção devorativa da vida, é antropofágica. Busca deixar-se afetar o mais fisicamente possível pela outra, até devorá-la,
para se compor com ela.
Com o começo do século XX, a eficácia e a vivacidade se redefinem. O manifesto futurista o deixa claro. Esse manifesto, de 1908 e escrito por Marinetti, é uma
ode à velocidade, à força, ao temer, ao ser forte e ser jovem. Fala de corações que não
sentem fadiga alguma, de um valor, de uma velocidade, de vencer.
Nós afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu com
uma nova beleza, a beleza da velocidade. Um carro de corrida com
seu capô decorado com grossos tubos parecidos a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a
metralha, é maisbelo que a Vitória de Samotrácia [10].
Nosso ruminante não se apura, resiste à velocidade, e tão pouco quer vencer.
O método ruminante é:
grande, excessivo, de couro muito
lento, preguiçoso, pouco produtivo, pouco
duro, pouco delicado, pouco refinado, caminha lento, é ocioso, deixado, abandonado em suas formas
O ruminante rejeita a concepção do tempo e da história baseada no progresso. Rejeita a ideia de um tempo cronológico, unilinear e medível.
O ruminante não acredita em metas.
8 “Ir hasta abajo” é o movimento de maior habilidade e sensualidade do perreo no reggaeton
9 ROLNIK, Suely. Antropofagia Zombie, p. 2.
10 Manifesto Futurista, ponto 4.
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
126 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
Não pensa que os finais devem ser necessariamente agradáveis, nem felizes.
Não pensa no orgasmo como uma consumação exitosa de um encontro sexual, nem
na orgia como um espaço último onde os corpos se liberam e se entregam aos prazeres.
Sabe que se o metrô está indo, não vai correr para pegá-lo. Quando se trata
de se salvar nadando, se afogará. Que se correr da polícia, seguramente receberá
um esporro.
O pensamento ruminante tem estrias que são rachaduras onde habitam suas
contradições. É a carne dividida. As marcas ficam, e as estrias cortam a pele.
É ruminante porque rumina, porque tarda em digerir. Não é segura, nem
rápida, nem eficaz. Precisa olhar as condições para sua digestão, sabe que as
condições não lhe são favoráveis, por isso mastiga e mastiga.
O ruminante tem intuições e as segue. Frente à grandiloquência de uma declaração de intenções, nossa vaca propõe uma declaração de intuições.
Aposta pelas visões parciais e pelas vozes titubeantes. O ruminante pode ser
também tartamudo.
A epistemologia ruminante rejeita os rígidos discursos de salvação. E acredita que há muitos relatos possíveis. Existem tantas histórias gordas quanto gordas
existem.
O ruminante busca pôr abaixo a suspeita do orgulho e das políticas de reconhecimento. Assumindo o orgulho como uma forma de felicidade heroica, se propõe
a questionar essa ideia de que toda felicidade ou desfruto do corpo passa necessariamente por estágios de superação.
O ruminante não é um super-herói, nem poderá ser, jamais. Já viu alguma vez
um super-herói gordo?
O pensamento ruminante ativa a máquina de engolir umedecendo a boca
com saliva. Prepara a língua e tudo engole. O ruminante devora. O ruminante mastiga. O ruminante devolve à boca o que já passou por seus quatro estômagos, e hoje,
regurgita.
O ruminante não consome. O consumo tem a ver com velocidade, com como
se percebe e se vive o tempo. O ruminante rompe com as lógicas de produtividade
e velocidade. E aqui está sua resistência. Sabe que existe algo de prazer na lentidão
que nos salva. O ruminante não consome, porém é cruelmente consumido, e o feed
lot representa seus pesadelos [11].
11 O feed lot é a técnica pecuária mais efetiva até o momento de exportação de animais de gado. As vacas se
encontram em filas e vão comendo, sem possibilidade de se mover, de comedouros alongados dos quais cada
uma deve comer sem parar a fim de engordar para serem vendidas ao maior peso possível. Sirva essa imagem
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
127 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
O ruminante tem um ritmo e ritualiza seu ritmo.
O ruminante bisbilhota. Conhecer é comer e mastigar. Ruminamos coletivamente. Temos um ritmo, lento, sempre, de ruminar.
O ruminante incorpora ao seu método a percepção corporal, e se a tempestade for brava, sabe que só se salvará se reunindo com o resto das vacas, agrupando-se. As vacas afrontam a tempestade em movimento e aguardam juntas. Meu pai,
que trabalha com vacas desde que eu tenho memória, me contou que elas preveem
as tempestades de granizo, que são as tempestades mais duras, que destroem semeados se estão muito altos. As vacas sabem que vão cair pedras e começam a correr pelo campo, elas geralmente não correm, porém, quando cairá pedra, sabem o
que têm que fazer. Correm desesperadas pelo campo, de uma ponta a outra, explica
meu pai. Dessa maneira todas estão inteiradas do que vem. No momento em que as
pedras estão quase caindo, se agrupam em um círculo, resguardando as cabeças,
um círculo de vacas que abaixam a cabeça e colocam o lombo para suportar as pedras. Assim as vacas se salvam, juntas, e seus lombos duros suportam as pedras. Se
se encontram, nenhuma morrerá. Os lombos se machucam, mas resistem.
O ruminante acredita nos feminismos que se abrem para as possibilidades de
transformar a própria vida.
O ruminante é também um ferreiro. Forja ferramentas, essas se forjam no
fogo e esmagando. Com essa técnica, nosso ruminante busca se fazer uma série de
artefatos/utensílios/ferramentas políticas e coletivas, com as quais sobreviver.
Somos ruminantes selvagens e nos escondemos atrás das árvores, pastando
e aguardando o momento, algum momento.
O ruminante,
sua carne,
seu couro,
sua língua,
sua gordura,
e seus quatro estômagos,
reivindicam soberania.
La Bordeta, agosto de 2015.
de metáfora para indicar as técnicas de normalização às quais nossos corpos são submetidos.
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
128 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
Yos Erchxs Piña
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021
-
129 -
ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia