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Desafios do Empreendedorismo Comercial Imigrante: o caso de Lisboa

2020, Comércio, Consumo & Governança Urbana

Comércio, Consumo & Governança Urbana Desafios do Empreendedorismo Comercial Imigrante: o caso de Lisboa Marina Carreiras1; Pedro Guimarães2 ..Introdução Inerente ao carácter privado que caracteriza o sector comercial está a sua significativa capacidade de transformação, provocando alterações nas paisagens comerciais urbanas (Guimarães, 2019). De forma crescente, ao longo das últimas décadas, o aumento dos fluxos económicos e de pessoas tem influenciado o tecido comercial existente, em especial em contexto urbano. Por um lado, tem permitido que diversas empresas de grande dimensão internacionalizem as suas marcas, homogeneizando uma parte significativa da estrutura comercial das cidades ocidentais. Por outro lado, a escala da micro e pequena empresa permite que imigrantes com motivações económicas abram o seu próprio negócio. No presente artigo pretendemos analisar esta última situação focando os desafios associados a este processo, privilegiando-se a visão dos imigrantes. Ademais, a presença e visibilidade dos pequenos negócios de imigrantes permite reflectir sobre: i) os efeitos socioespaciais destes estabelecimentos, sendo que os contributos a nível local poderão ser acompanhados de tensões, em especial num contexto de profunda transformação dos centros históricos; ii) o pouco destaque dado a estes grupos nas estratégias públicas de atração de imigrantes empreendedores. A cidade de Lisboa é o caso de estudo desta investigação. Ao longo dos últimos anos verificou-se um aumento do número de residentes de nacionalidade estrangeira, uma crescente diversidade desta população e maior número de estabelecimentos pertença de imigrantes. A procura preferencial por uma localização no centro tradicional da cidade coexiste com uma dispersão geográfica de negócios que incidem noutros tipos de atividades e na captação de outros públicos. Se o consumo é um elemento chave para a competitividade das cidades, para a organização da vida quotidiana e para a criação de estilos de vida e de identidades, também a diversidade étnica e cultural surge enquanto maisvalia na imagem das cidades. Assim, o comércio e os serviços étnicos apreCentro de Estudos Geográficos, Rua Branca Edmée Marques, 1600-276 Lisboa, [email protected]. 2 Centro de Estudos Geográficos, Rua Branca Edmée Marques, 1600-276 Lisboa, [email protected]. 1 155 sentam-se enquanto um nicho potencialmente inovador e atractivo para públicos específicos, reveladores de um território culturalmente diverso e inclusivo. A interculturalidade é valorizada na agenda política local e apresentada enquanto indicador de uma cidade integradora. Adicionalmente, a inserção dos imigrantes no mercado de trabalho surge como uma questão central no âmbito da integração dos imigrantes na sociedade de acolhimento. Não obstante, o reconhecimento de contributos dos imigrantes na atividade empresarial, nomeadamente na economia, na criação de emprego, na dinamização urbana e promoção de interculturalidade, no fornecimento de novos produtos e serviços e na implementação de novas estratégias comerciais, os imigrantes continuam a ter dificuldades específicas na abertura e manutenção do seu negócio. O apoio e valorização da actividade do imigrante empreendedor, pouco qualificado ou semiqualificado, que muitas vezes cria um posto de trabalho para si, para a sua família e/ou para outros conterrâneos tendo em vista a inserção no mercado de trabalho (Oliveira, 2016), remete para um amplo conjunto de desafios que não se esgota no apoio à criação do negócio. Note-se que o aparecimento de novos negócios detidos por imigrantes é por vezes acompanhado de reacções negativas, sobretudo porque temporalmente ocorrem em simultâneo com o declínio de parte do comércio dito tradicional e com profundas transformações urbanas. Por outro lado, as políticas de imigração e de atração de estrangeiros em Portugal quando visam atrair imigrantes empreendedores valorizam elevados níveis de qualificação e avultados valores de investimento , ou seja, não contemplam a população imigrante aqui referenciada. O empreendedorismo imigrante é entendido no âmbito deste estudo de forma generalista remetendo para a população imigrante que implementou e desenvolve um ou vários negócios na sociedade de acolhimento, visão comum no âmbito de estudos que incidem sobre imigrantes empreendedores (Kerr & Kerr, 2016; Kloosterman & Rath, 2003) e que não pressupõe uma estratégia caracterizada pela inovação e risco, ainda que possa incluir estas vertentes. Neste estudo focam-se imigrantes, proprietários de um ou mais estabelecimentos independentes de comércio de rua localizados na cidade de Lisboa, que encontraram no empreendedorismo uma estratégia de inserção na economia portuguesa. Este tipo de empreendedorismo permite ao imigrante contornar dificuldades relacionadas com competências linguísticas, reconhecimento de qualificações, legalidade do estatuto de imigrante, discriminação, desconhecimento e/ou escassez de ofertas de emprego (Irastorza, 2010), sendo particularmente relevante em momentos de retracção económica (Malheiros, 2010; Esteves et al., 2017). A compreensão das dinâmicas associadas ao empreendedorismo imigrante é concretizada através de um abordagem exploratória, na qual se debatem as estratégias dos imigrantes e os principais constrangimentos que os afectam 156 aquando do processo de abertura e manutenção de uma atividade comercial de os pequena ou micro escala. São questões centrais da investigação: e is os desafios e principais desafios dos imigrantes vantagens associados ao comércio imigrante na cidade de Na secção seguinte iremos considerar a presença imigrante na cidade e nas atividades comerciais, debater o interesse e apetência de alguns grupos imigrantes por este sector e a atratividade dos territórios multiculturais e com estratégias de competitividade entre cidades. A terceira secção é dedicada à explanação da metodologia que suportou o caso de estudo, apresentado com maior detalhe na secção quatro. Por fim, iremos discutir os resultados e delinear algumas notas conclusivas. 1. Empreendedorismo comercial imigrante: estratégias, potencialidades e dinâmicas no espaço urbano As questões de investigação apresentadas no presente artigo são enquadradas pela relação entre cidade, imigração e comércio. Os processos de urbanização e de imigração estão intrinsecamente interligados. Os territórios são cada vez mais diversos no que diz respeito às características das suas populações e utilizadores. Os novos padrões de mobilidade e de movimentos migratórios (King, 2010; Sheller & Urry, 2006) originam uma progressiva diversidade étnico-cultural nas cidades, que poderá ser mais ou menos valorizada a nível das estruturas políticoadministrativas (Loukaitou-Sideris, 2012; Hall, 2015). A mistura cultural e o carácter cosmopolita dos territórios que captam e reúnem grupos populacionais de diversas origens geográficas e culturas são destacados enquanto aspetos positivos, pelo potencial de transformação do espaço urbano, de promoção da diversidade e de competitividade das cidades e pela mitigação da discriminação. No entanto, simultaneamente, a coexistência multiétnica remete para desafios, nomeadamente no que diz respeito à coesão social e interacção interétnica (Amin, 2002; Fonseca, McGarrigle, & Esteves, 2013; Mendes, 2012). Os movimentos migratórios muito expressivos a nível mundial (OECD, 2017) inserem-se e participam num sistema globalizado, urbanizado e enquadrado pela interdependência entre mobilidades de pessoas, informações e objetos. O número de migrantes em todo o mundo tem um valor significativo e tendência para aumentar. Neste processo, os imigrantes têm um papel transformador, assinalável na economia, demografia, diversidade cultural, dinâmicas culturais, para além das repercussões nas dinâmicas urbanas. Para além disso, os imigrantes contribuem para o crescimento e diversificação étnica, principalmente das cidades e grandes metrópoles. A dimensão económica é porventura a mais referenciada quando se abordam os impactos das migrações, não obstante a pertinência de uma compreensão integrada dos impactos. Note-se que as razões para o movimento migratório são 157 genericamente associadas a melhores condições socioeconómicas e que o controlo e categorização legal e administrativa dos imigrantes prosseguida pelos Estados-nação é essencialmente suportada pela relação do imigrante ao mercado laboral e duração da estadia (Carreiras, 2017). Assim, as consequências sociais de uma leitura das migrações mediante uma perspetiva económica poderão levar à recusa e repulsa dos imigrantes, em especial quando se entende a presença imigrante enquanto encargo para a sociedade de acolhimento. Nesse sentido, o estudo do empreendedorismo imigrante acrescenta uma visão mais autónoma da inserção laboral do cidadão estrangeiro. O empreendedor imigrante ao ser responsável pelo seu negócio ainda poderá enriquecer sectores da economia menos explorados e fomentar a criação de novos empregos. Em vários estudos que se centram nos contributos dos imigrantes na economia (OECD, 2014; Peixoto & Iorio, 2011) tem sido salientada a percentagem de população ativa entre os estrangeiros e o predomínio do trabalho como meio de vida entre estes cidadãos. Também são enunciadas as dificuldades de inserção destes no mercado laboral, cujos constrangimentos são exponenciados pelas situações de discriminação, barreiras linguísticas, problemas relacionados com as equivalências de qualificações e pela crise económica (Valadas, Góis, & Marques, 2014; Esteves et al., 2017). O somatório de desvantagens que os imigrantes tendem a apresentar, parece ser argumento para um maior prejuízo destes nos períodos de desaceleração económica e perante o aumento das taxas de desemprego (Cabral & Duarte, 2011; Malheiros, Esteves, Rodrigues, Estêvão, & Mapril, 2013). Em Portugal, o recurso ao emprego próprio por parte dos imigrantes foi assumido como estratégia de atuação face ao desemprego e à crise económica e tem aumentado, verificando-se, nas duas últimas décadas, uma taxa de variação do número de empregadores estrangeiros superior à taxa de crescimento de empregadores portugueses (Oliveira, 2014). Ainda que um conjunto de circunstâncias (dificuldades de acesso a emprego, crise económica, etc.) tornem mais apetecível ou mesmo necessário a abertura de um negócio próprio, são vários os fatores que potenciam e permitem o surgimento do empreendedorismo imigrante. Relativamente a estas questões, Oliveira (2016) identifica e demonstra a interferência de vários determinantes no desenvolvimento de estratégias empresariais de imigrantes, dando especial destaque a três dimensões explicativas: 1- Características e recursos pessoais dos imigrantes: alguns indivíduos revelam especial interesse e competências facilitadoras para a abertura de negócios, sendo também necessário ter a capacidade para reunir e gerir recursos humanos, financeiros e materiais. Em muitos casos a atividade do negócio é-lhes familiar, diminuindo assim o risco do investimento. 2- Características e recursos do grupo de pertença dos imigrantes: algumas comunidades demonstram uma forte apetência pelo negócio próprio, sobretudo 158 no sector do comércio e serviços, e redes de apoio tanto à escala local como supra nacional, i.e., face a dificuldades encontradas no país de acolhimento, quer ao nível dos constrangimentos, de comunicação, entre outros, quer ao nível do conhecimento das redes de distribuição, algumas comunidades imigrantes criaram redes de diferentes graus de informalidade que permitem suprir estas dificuldades. 3- Estrutura de oportunidades: especificidades do contexto de receção que incluem apoios e permissão à atividade imigrante empreendedora a nível económico, legal e institucional. Para além da disponibilidade de oportunidades será relevante a transparência da informação e dos apoios. Tendencialmente, como Oliveira (2016) expõe, existe maior destaque dos recursos pessoais e da comunidade e menos da estrutura de oportunidades, situação decorrente do reduzido número de apoios institucionais ao empreendedorismo imigrante. Independentemente do protagonismo de um tipo de recursos, esta sistematização de dimensões chave no fomento do empreendedorismo favorece uma leitura holística do empreendedorismo imigrante que contempla o dinamismo dos vários processos e interligações entre estes. A participação direta dos imigrantes nas atividades comerciais introduz transformações e inovações nomeadamente no aumento de flexibilidade do mercado laboral, e no desenvolvimento de nichos na economia, seja através do fornecimento de novos produtos e serviços (e.g. restauração, lazer, música, sector da beleza) como através da inovação nas estratégias e formatos comerciais (e.g. alargamento dos horários do pequeno comércio). Existe ainda um efeito catalisador da iniciativa comercial imigrante pela criação de emprego, pela introdução de diversidade cultural e novas dinâmicas urbanas, questão que será debatida de seguida. O investimento imigrante no sector comercial é elemento de revitalização e animação de áreas urbanas (Gésero, 2014; Shaw & Bagwell, 2012; Simon, 2010). Os estabelecimentos comerciais compõem, transformam e caracterizam a paisagem urbana e remetem para a integração dos imigrantes na sociedade de acolhimento, seja no mercado de trabalho como ao nível das sociabilidades (Hall, 2015). A presença de imigrantes num determinado território é frequentemente acompanhada de espaços comerciais e de serviços que refletem a sua cultura que podem aproximar os diversos (gastronomia, música, produtos étnicos, grupos que utilizam esse território. A diversidade étnica da atividade comercial, de eventuais produtos e serviços exóticos disponibilizados pode despertar estranhezas, mas irá igualmente despertar curiosidade, aproximar culturas, facilitar a socialização e é testemunho recorrente de contextos de superdiversidade (Vertovec, 2007). 159 São vários os modelos e estratégias desenvolvidas pelos imigrantes, nomeadamente no tipo de negócio e no público-alvo do negócio. Nalguns casos o imigrante procura como público-alvo os seus conterrâneos, noutros a população autóctone ou ainda um misto dos dois. E ainda que bens e serviços étnicos possam maioritariamente ser procurados por membros da própria comunidade, o mais comum é estes serem atrativos a um público diverso que inclui residentes, turistas e outros frequentadores da cidade. A diversidade étnica e cultural nos centros urbanos é cada vez mais incontornável e uma temática exaltada. O progressivo interesse pela interação e convivência entre diversas culturas é utilizada como recurso na acompanhado pela capitalização da promoção turística e económica das cidades. Repare-se na inter-ligação entre turismo, migração e lugar (Hall & Rath, 2007). A imagem e o produto étnico têm uma forte componente de atratividade para o turista e para o utilizador da cidade. Ao mesmo tempo, o aumento da oferta comercial de iniciativa imigrante tem sido acompanhada por uma intensificação da procura de novas experiências culturais e gastronómicas, seja por turistas, estudantes e trabalhadores imigrantes de várias proveniências mas também pela população autóctone. Já não são somente os bairros étnicos a revelarem-se enquanto locais de contacto intercultural e símbolos de civismo e de turismo (Loukaitou-Sideris & Soureli, 2012). Os negócios das comunidades imigrantes, dispersos na cidade, são evidenciados enquanto contributos para a sociedade onde se inserem pelos poderes político-administrativos. Adicionalmente, a valorização da multiculturalidade favorece o investimento imigrante no sector comercial e uma diversificação da abertura de negócios, pois sendo verificada a aceitação da oferta de produtos e serviços exóticos, torna-se mais segura a replicação dessas ações noutros territórios. Não obstante, a complexificação dos processos que no presente moldam os centros de um grande número de cidades a nível global traz novas leituras sobre a forma como os negócios das comunidades imigrantes se integram e quais os contributos para o centro de comércio onde se localizam. A replicação do modelo de negócio resulta em estabelecimentos muito semelhantes não apenas numa só cidade mas também entre cidades de diferentes países, originando sistemas comerciais pouco distintivos (ver Warnaby, 2009). Para além disso, face ao crescente peso do turismo urbano, a processos de turistificação (Barata-Salgueiro, Mendes & Guimarães, 2017) e à evolução do tecido comercial, parte dos estabelecimentos detidos por imigrantes são percepcionados a nível local como parcialmente responsáveis pelo declínio do comércio dito tradicional. O empreendedorismo comercial imigrante, os determinantes para a abertura do negócio, as características do empreendimento (tipo de atividade, escala, publico alvo, localização, etc.) expressam modos de integração dessas comunidades nos países de acolhimento assim como estratégias de apoio à iniciativa imigrante. Em suma, permitem uma reflexão em torno da imigração através de uma abordagem 160 multidimensional que contempla a compreensão de aspetos estruturais (dinâmicas migratórias e económicas e políticas urbanas), contextos locais (estrutura espacial, programas e medidas de nível local, características da oferta comercial) assim como as características dos indivíduos e comunidades em análise (recursos pessoais e financeiros, competências, redes de contacto e de apoio). 2. Metodologia A análise empírica incidente sobre a cidade de Lisboa é suportada, em grande medida, em dados de carácter quantitativo recolhidos no âmbito do projeto DELI - Diversity in the Economy and Local Integration (Malheiros et al., 2016). A caracterização da população imigrante em Lisboa foi realizada tendo como base dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e permite dar resposta a questões sobre as condições de inserção económica e envolvimento no mercado de trabalho. Para este fim foi ainda significativo o recurso ao diagnóstico da população imigrante na cidade de Lisboa elaborado no âmbito do Plano Municipal para a Integração de Imigrantes de Lisboa, 2015-2017 (Câmara Municipal de Lisboa, 2015). Nos casos em que se recorreu a cartografia para representação dos respetivos dados, a mesma foi elaborada em software específico de Sistemas de Informação Geográfica. A recolha de dados primários no âmbito da temática do empreendedorismo tornou-se essencial dado o défice de informação e dificuldades associadas ao dinamismo do sector que remete para uma constante alteração das tipologias de negócio, ramo de atividade e sua localização. A recolha de informação relativa ao comércio imigrante em Lisboa, desafios e constrangimentos sentidos por imigrantes empreendedores, foi realizada através da aplicação presencial de 62 inquéritos a imigrantes com pequenos negócios do sector comercial em funcionamento na cidade. Trata-se de uma amostra por conveniência, sem valor probabilístico, ou seja, sem garantia de representatividade do universo em estudo, mas que permitiu capturar dados sobre os negócios de imigrantes com maior visibilidade no espaço urbano. A recolha de informação foi realizada em territórios onde a perceção de concentrações de comércio imigrante coincide com a presença residencial de determinadas nacionalidades estrangeiras. Fatores como a acessibilidade à clientela, nalguns casos de origem imigrante, a difusão de informação e a geração de sistemas de apoio e entreajuda baseados na etnicidade, justificam alguma coexistência entre os principais locais de residência das comunidades estrangeiras e os espaços de concentração dos seus negócios, sobretudo no caso de atividades de pequena dimensão do comércio e serviços. Nos contactos para realização de inquéritos ocorreram diversas interações com imigrantes empreendedores e trabalhadores em comércios geridos por imigrantes. Procurou-se complementar os dados adquiridos através dos 161 questionários, com dados obtidos por meio de conversas informais e observação direta. 3. Caso de estudo Imigrantes em Lisboa, seu enquadramento profissional e distribuição espacial De acordo com os dados de 2018 do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, residiam no município de Lisboa 79.700 cidadãos com nacionalidade estrangeira. Este valor situar-se-á entre os 14,6% do total de residentes na cidade, considerando-se a contagem de população em 2011 através de recenseamento (547.7333). Lisboa é juntamente com Sintra (31.807), também na Área Metropolitana de Lisboa, um dos municípios no país com maior volume de não nacionais, sendo de realçar que, segundo dados do SEF, no município de Lisboa o crescimento da população de nacionalidade estrangeira entre 2009 e 2015 contraria a tendência geral de diminuição verificada no país e nos anos recentes (2016 a 2018) a taxa de variação desta população no município tem excedido significativamente os valores nacionais (ver Tabela 1). Tabela 1. População estrangeira residente em Portugal e no concelho de Lisboa, 2008-2018 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 Total PT Nº Tx. var. 440.277 454.191 3,2 445.262 -2 436.822 -1,9 417.042 -4,5 401.320 -3,8 395.195 -1,5 388.731 -1,6 397.731 2,3 421.711 6 480.300 13,9 Lisboa Nº Tx. var. 43.527 44.548 2,3 44.784 0,5 45.626 1,9 45.915 0,6 46.426 1,1 50.047 7,8 51.690 3,3 55.212 6,8 63.967 15,9 79.700 24,6 Fonte: SEF, estatísticas. http://sefstat.sef.pt/ Torna-se assim clara a atratividade que o município de Lisboa, caracterizado por um maior dinamismo económico e social e por uma oferta de emprego mais ampla e diversificada no contexto nacional, exerce junto da população estrangeira. Estes números refletem-se no empreendedorismo imigrante que aqui encontra mais condições para se instalar e desenvolver, inclusivamente devido à presença de uma maior clientela potencial, imigrante e não imigrante. 3 Note-se no entanto que o número de estrangeiros registado pelo SEF para Lisboa tende a exceder o apresentado por outras fontes, como os Censos de População. 162 De acordo com dados do Censos 2011 entre o total de residentes em Lisboa, 5,8% é de outra nacionalidade que não a portuguesa (tabela 2). Destes, os brasileiros são o grupo mais expressivo com 10.288 cidadãos (32,3% de todos os imigrantes), seguido dos Cabo-Verdianos (2.499 cidadãos), Chineses (2.072 cidadãos) e Angolanos (1.805 cidadãos). A análise da estrutura etária deixa visível que o padrão difere entre os portugueses e os imigrantes. Estes últimos são caracterizados por uma elevada percentagem de jovens adultos e, inversamente, por percentagens diminutas de população com idade igual ou superior a 65 anos. Os grupos estrangeiros não comunitários destacam-se pela sua maior proporção de jovens, designadamente Brasileiros, Indianos, Bangladeshis e Nepaleses mas também os Romenos (Tabela 2). Tabela 2. Residentes em Lisboa, por nacionalidade e por estrutura etária, em 2011 Total Portugal Estrangeiros UE (15 sem PT) UE (27 sem PT) Roménia Ucrânia PALOP Brasil China India Nepal Bangladesh Residentes em Lisboa Nº % 547.733 100 499.702 91,23 31.833 5,81 4.532 0,83 6.547 1,2 1.426 0,26 1.454 0,27 6.423 1,17 10.288 1,88 2.072 0,38 888 0,16 754 0,14 476 0,09 Estrutura etária (%) 0-19 17,3 17,2 14,9 11,2 12,9 17,5 14,3 17,2 15,9 18,3 11,4 3,8 12,2 20 - 39 27,0 25,3 50,3 39,4 44,8 55,3 38,2 43,3 57,5 46,2 54,3 84,1 68,1 40 - 64 31,8 31,9 30,4 33,8 31,3 26,7 46,3 33,4 25,7 33,5 32,0 11,8 19,3 23,9 25,6 4,4 15,6 11,0 0,5 1,2 6,1 0,9 1,9 2,4 0,3 0,4 Fonte: INE, Censos 2011 A estrutura etária da população estrangeira residente em Lisboa é coincidente com a percentagem de população ativa. Quando se analisam os indicadores estatísticos relativos à população residente em Lisboa verifica-se que a percentagem de população ativa entre os estrangeiros é superior à dos cidadãos portugueses (Tabela 3). A elevada percentagem de população ativa entre os estrangeiros face aos cidadãos nacionais atesta a relevância dos imigrantes e o seu contributo para a economia dos locais onde mais se encontram representados. Entre as comunidades com maiores proporções de ativos, destacam-se as que estão associadas a vagas de imigração mais recentes como o Nepal (84,0%), a Ucrânia (81,2%), a Roménia (79,3%) e a China (76,3%), para além do Brasil (83,4%). Relativamente à condição da população estrangeira residente em Lisboa face ao trabalho verifica-se que a percentagem da população desempregada é mais elevada para os estrangeiros, o que poderá ser reflexo da 163 maior vulnerabilidade dos imigrantes na inserção laboral e de uma maior fragilidade das relações laborais. Tabela 3. População residente em Lisboa com 15 ou mais anos activa e inactiva, segundo nacionalidade e condição face ao trabalho, em 2011 População activa (%) População Total inactiva (%) Pop. Pop. (Nº) Total Empregada desempregada Total 477.239 54,6 48,1 6,5 45,4 Portugal 435.659 53,0 46,9 6,1 47 Estrangeiros 28.811 73,5 62,7 10,8 26,5 UE15 (s/PT) 4.114 63,9 60 3,9 36 UE27(s/PT) 5.891 68,4 62,1 6,3 31,6 Roménia 1.242 79,3 66,7 12,6 20,7 Ucrânia 1.331 81,2 68,7 12,5 18,9 PALOP 5.839 61,2 43,1 18,1 38,8 Brasil 9.251 83,4 73,2 10,2 16,6 China 1.815 76,3 74,4 1,8 23,7 Índia 824 69,7 60,6 9,1 30,3 Nepal 738 84,0 69,4 14,6 16 Bangladesh 429 77,1 68,5 8,6 22,8 Fonte: INE, Censos 2011 Note-se ainda que a situação dos imigrantes no mercado laboral foi agravada durante o período inicial da crise económica do final da primeira década do novo milénio. Se em 2011 apenas 3,9% da população originária da UE (a 15) estava desempregada, no mesmo ano 18,1% dos nacionais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) encontravam-se na mesma situação. No caso dos guineenses, quase um quarto da população estava desempregada (24,4%). Por apresentarem menores valores referentes a desemprego, merecem destaque os indianos e os bangladeshi. Esta situação poderá ser explicada pelo maior número de empresários com negócio próprio nestas comunidades. Quando se analisa a população residente em Lisboa por segmento socioprofissional (Tabela 4) verifica-se a relevância do sector do comércio e serviços para a população ativa de nacionalidade estrangeira. Entre esta população, 29% no dos indivíduos inserem- Esta distribuição aponta para uma inserção polarizada e assimétrica dos imigrantes no mercado de trabalho. O confronto do grupo socioprofissional com a nacionalidade do residente revela entre os nacionais dos PALOP uma predominância (mais de 60%) de trabalhadores administrativos do comércio e serviços, não qualificados (25,8%), empregados administrativos do comércio e serviços (22,2%) e operários 164 qualificados e semiqualificados (20,7%). Entre os profissionais intelectuais e científicos destacam-se os cidadãos com nacionalidade pertencente à União Europeia (43.5% dos cidadãos com nacionalidade pertencente à UE15 e 31,5% dos cidadãos UE28). Tabela 4. População residente activa em Lisboa por segmento socioprofissional e por nacionalidade, em percentagem (%) A B C D E F G H I J K L Total 4,5 25,6 2,3 5,8 12,4 2 5 23,5 6,8 7,5 1,3 3,2 Portugal 4,5 26,9 2,1 5,8 13,2 1,8 5,3 23,1 6,4 6,6 1,1 3,1 Estrangeiros EU15(s/PT) EU27(s/PT) Roménia Ucrânia PALOP Brasil China India Nepal Bangladesh 3,7 8,5 6,6 2,4 3,2 2,6 3,8 1,7 1,2 3,1 0,9 10,9 4,8 43,5 2,6 31,5 2,1 3,6 1,4 5,7 1,8 4,1 1,7 6 3,8 2,7 27 5,1 5,7 0,6 6,8 1,5 14,8 4,6 8,3 7,1 5,5 4,7 2,4 4,8 4,8 2,4 1,5 2,1 4,8 11,9 9,4 2,6 3,6 2,9 4,3 0,9 1,9 1,6 1,8 4,2 1,3 2,7 6,6 5,6 3,2 5,4 4,7 2,6 1 4,8 1,8 8,1 5,7 0,1 0 0,7 1 0,4 0,3 0 0 29 11,7 13,6 17,3 12,9 22,2 36,7 49,9 29,6 67,1 61,3 11,4 1,3 8,4 26,1 24,4 20,7 8,8 0,6 16,7 0,5 0,6 17,1 1 8,5 25,9 30 25,8 20,6 2,5 5,7 10,6 5,7 3,8 0,4 1,9 5,7 4,6 6,5 1,8 3,1 24,9 0,3 1,2 3,9 1,5 2,4 2,8 3,4 7,3 3 1,9 3,7 6,9 5,1 Fonte: INE, Censos 2011 Nota: (A) Proprietários de negócios; (B) Profissões científicas e intelectuais; (C) Pequenos empregadores do comércio e serviços; (D) Outros pequenos empregadores / outros trabalhadores independentes / pequenos empresários e organizações; (E) Quadros administrativos e técnicos intermediários técnicos, intermediários independentes; (F) Comerciantes independentes; (G) Cargos de direção de médias e grandes empresas; (H) Empregados no comércio e serviços; (I) Trabalhadores qualificados e semiqualificados; (J) Trabalhadores não qualificados do comércio e serviços; (K) Trabalhadores não qualificados; (L) Outros No que respeita aos residentes estrangeiros inseridos nas categorias relativas a ante no âmbito do presente estudo, destacam-se claramente os cidadãos chineses e bangladeshis com 27% e 14,8%, respetivamente, correspondendo aos valores mais elevados de todas as nacionalidades constantes na tabela 4. No caso dos chineses, este valor poderá ser explicado pela ambição pessoal de ser proprietário do seu próprio negócio, evidência retratada por Yijing (2015:71) que concluiu que este é um dos principais fatores que leva à emigração da população chinesa. Refira-se que, entre os nepaleses (6,8%) e os indianos (5,7%), as proporções de pequenos patrões envolvidos nesta atividade são também superiores ao total e ao registado pelo conjunto da população estrangeira (4,6%). Por último, devem ainda mencionar-se as percentagens claramente superiores à média apresentada pelos cidadãos dos países da União Europeia na categoria A população asiática em Lisboa, em especial os grupos nacionais que temos vindo a destacar (China, Índia, Nepal e Bangladesh), sobre-representada nas 165 actividades comerciais, aumentou significativamente, quer em termos relativos quando se considera a totalidade de população estrangeira, quer em termos absolutos (figura 1). Fonte: SEF Figura 1. Evolução do stock de imigrantes de países asiáticos em Lisboa, 2008-2018 Através de dados do INE, Censos 2011, é possível avaliar a distribuição espacial da população estrangeira por local de residência referenciada às freguesias de Lisboa vigentes aquando da implementação do recenseamento. Nesta análise considerou-se a concentração da população estrangeira por freguesia: percentagem de residentes estrangeiros face ao total de residentes por freguesia. Para além da distribuição espacial da totalidade da população estrageira foi observada a distribuição da população por nacionalidades mais representativas na cidade. Num retrato geral dos estrangeiros residentes em Lisboa (figura 2), verifica-se uma maior presença no Centro histórico e sua envolvente, com destaque para o prolongamento oriental ao longo do eixo da Rua da Palma Almirante Reis e, também, nas freguesias de Ameixoeira e Charneca. Quando se analisa a distribuição geográfica dos estrangeiros em função dos grupos nacionais registam-se algumas variações sendo que em termos gerais, algumas populações apresentam maiores níveis de dispersão geográfica (Brasil, UE 27) do que outras (PALOP, China e Índia) que surgem em situação de maior concentração. Em termos residenciais, os cidadãos dos PALOP estão mais presentes na coroa interna periférica de Lisboa, nomeadamente nas antigas freguesias de Ameixoeira-Charneca, Carnide e Marvila. Para estes cidadãos registam-se ainda sobre-representações nalguns espaços da envolvente do centro, como São Paulo ou Socorro. Os cidadãos brasileiros, mais dispersos, constituem a maioria dos estrangeiros em áreas como Benfica e São Domingos de Benfica, mas aparecem sobre-representados em espaços mais etnicizados como as áreas de ArroiosAnjos. Os asiáticos, de que são exemplo os chineses, nacionais da India, do Nepal e do Bangladesh aparecem mais concentrados e sobre representados na 166 envolvente oriental do Centro Histórico, com destaque para a área do Martim Moniz e da Almirante Reis. Fonte: INE, censos 2011. Tratamento próprio Figura 2. Concentração da população estrangeira por freguesia, 2011 É no centro histórico e nas freguesias limítrofes do concelho que se verificam concentrações mais significativas da população estrangeira oriunda de países terceiros. A área central de Lisboa surge como uma porta de entrada social na cidade sendo amplamente reconhecida e valorizada pela presença de diversidade étnico-cultural. Este território é ainda apontado como um ponto de encontro, como local de referência em termos de diversidade cultural, gastronómica e interculturalidade. Em contraponto, as freguesias limítrofes e as áreas mais periféricas onde se concentram algumas populações imigrantes, nomeadamente certos bairros de habitação social, são percebidos como locais marginais onde também se verifica menor concentração de comércio. Ao nível da distribuição dos estabelecimentos comerciais, ao contrário do que se verifica em outras cidades europeias, como Barcelona onde uma Chinatown tem vindo a consolidar-se (Martínez-Rigol et al., 2017), em Lisboa o comércio explorado por imigrantes não se encontra tão concentrado espacialmente. A principal exceção a este padrão é a Praça do Martim Moniz e alguns eixos como a Rua da Palma e a Rua do Benformoso com uma concentração superior à que se verifica no resto da cidade. Acompanhando a evolução da cidade, sobretudo o 167 aumento do número de turistas na área central histórica, um conjunto significativo de estabelecimentos dedicado à venda de produtos turísticos tem-se disseminado. Esta evolução não deixa de ser algo contraditória porque, num período em que o centro da cidade se encontra extremamente valorizado com elevados valores de arrendamento, aquelas lojas, muitas das quais geridas por imigrantes, subsistem através da venda de produtos de baixo valor. Regulação e apoio ao empreendedorismo Atualmente a regulação da atividade comercial em Portugal encontra-se liberalizada e, até certa medida, relativamente desburocratizada. Em 2006 foi criado o programa nacional Simplex. Decorrente da entrada em vigor deste programa, em 2011 foi publicado o Decreto-Lei 48/2011, de 01 de Abril. Com este decreto-lei é regulada a iniciativa licenciamento zero, simplificando o processo de instalação, modificação e encerramento de estabelecimentos comerciais. Com esta iniciativa passa a ser apenas necessário a apresentação de documento de identificação (cartão do cidadão, passaporte ou autorização de residência) para a abertura de empresas do sector comercial. Para os estabelecimentos de restauração os procedimentos também estão simplificados. Com a entrada em vigor do licenciamento zero é apenas necessário uma declaração de início de atividades atestando que o respetivo estabelecimento segue os regulamentos específicos daquela atividade, como as questões sanitárias. Esta declaração é preenchida num balcão online designado por Balcão do Empreendedor. Segundo esta regulação atualmente em vigor não existe nenhuma componente diretamente discriminatória para proceder à abertura e gestão de um estabelecimento comercial por parte de um imigrante legalmente estabelecido em Portugal. De forma geral, não existe nenhum elemento administrativo formal que discrimine os imigrantes face aos nacionais. Desafios e constrangimentos Os questionários, aplicados a uma amostra de cidadãos estrangeiros empreendedores na cidade de Lisboa, permitiram recolher informação sobre as características do empresário, da empresa (ano de fundação, dimensão, etc.), dos trabalhadores e dos clientes, bem como das expectativas face ao futuro, dos constrangimentos e das oportunidades percebidas. Através da nossa amostra ficou visível que algumas nacionalidades estão mais associadas a determinadas tipologias comerciais. Por exemplo, as mercearias, frutarias, internet cafés e loja de telecomunicações são, maioritariamente, geridas por imigrantes asiáticos (originários do Bangladesh, Nepal, Paquistão. Em contrapartida, os salões de beleza e estabelecimentos de venda de produtos de beleza são geridos por nacionais do Brasil e África. Note-se que no conjunto de estabelecimentos sujeitos a inquérito não existe uma predominância de comércio étnico, sendo este tipo de venda mais comum em negócios de 168 imigrantes oriundos de África (venda de tecidos, mercearias com produtos específicos usados em gastronomia africana, produtos de beleza específicos para cabelos africanos). Na amostra ocorre uma sobre representação de inquéritos aplicados a empresários com negócios no centro histórico de Lisboa, que coincide com a sobre representação de imigrantes neste território (Figura 2). Relativamente às tipologias dos negócios, a maioria (27) são pequenos estabelecimentos que têm por principal atividade a venda a retalho de produtos alimentares incluindo maioritariamente produtos alimentares embalados e produtos horto frutícolas e, em diversos casos, a venda de tabaco (ver figura 3). Estes estabelecimentos que conciliam mercearia, frutaria e tabacaria assinalam que a sua mais-valia advém pela conjugação das seguintes características: (i) tipo de produto vendido, (ii) pelo horário de abertura que se estende, de forma bastante comum, ao fim da tarde e ao período noturno; (iii) e pela sua localização na cidade (não apenas cingida a áreas centrais da cidade mas a áreas mais periféricas e residenciais). uma forma de aquisição de produtos na proximidade residencial ou fora do horário de abertura da generalidade das mercearias e supermercados portugueses. Tabela 5. Número de inquéritos de acordo com a tipologia de negócio Tipologia de negócio Comércio alimentar Comércio não especializado não alimentar Restauração Telecomunicações Setor da beleza/cabeleireiros Outros Nº de inquéritos 27 13 7 7 5 3 Fonte: Inquéritos realizados pelos autores (2016) Nos inquéritos realizados procurou-se confrontar as dificuldades sentidas pelos imigrantes empreendedores no momento de abertura do negócio e no momento de aplicação do questionário. Na fase inicial de abertura do estabelecimento (ver tabela 6) ficou evidente que a principal dificuldade sentida foi a língua. Com poucos ou nenhuns conhecimentos da língua portuguesa e, por vezes, sem contactos em Portugal referenciam o desafio de ultrapassar alguns dos obstáculos em que era necessário falar português. Neste aspeto destacam-se os procedimentos administrativos (no qual se inclui o processo Simplex, já descrito) e informações genéricas sobre a abertura de negócios que, existindo apenas em português, afigura-se como um elemento de difícil transposição. Os inquiridos destacaram a dificuldade em encontrar um local para a abertura do respectivo estabelecimento, sendo que esta situação se poderá ter agravado nos últimos anos dado o crescente aumento do valor imobiliário, especialmente 169 acentuado em Lisboa. Adicionalmente, a obrigatoriedade de um fiador pode ser um obstáculo, potenciado pela menor rede de contactos do imigrante no país de acolhimento. Alguns imigrantes ainda se sentem alvo de discriminação tendo presenciado situações de recusa de arrendamento de espaços, mesmo apresentando um fiador. De forma geral, as dificuldades apresentadas estão relacionadas com a língua, questões burocráticas e também com algum sentimento discriminatório. Perante o pedido de indicação de dificuldades sentidas atualmente, a maioria (36) dos inquiridos não indicam dificuldades. Entre as dificuldades sentidas pelos restantes inquiridos, a falta de clientes foi a mais referenciada (tabela 6). Não obstante, a grande maioria dos inquiridos não tem por intenção encerrar o estabelecimento. Apesar de suplantadas algumas das dificuldades iniciais, os inquiridos ainda enfrentam alguns obstáculos relacionados com a língua portuguesa e com o facto dos documentos legais e burocráticos possuírem apenas versão em português. No mesmo sentido, permanecem barreiras no acesso a financiamento bancário e os sentimentos discriminatórios. Para além das dificuldades apontadas através do inquérito, alguns imigrantes empreendedores demonstraram preocupação quanto ao aumento da abertura de estabelecimentos de sectores semelhantes, o que poderá aumentar a concorrência e diminuir o número de clientes. Tabela 6. Principais dificuldades sentidas pelos imigrantes empreendedores no início do negócio e aquando da realização do inquérito No início do negócio Tipo de dificuldade Língua Procedimentos administrativos Falta de clientes Local para estabelecimento Financiamento Falta de informação Diferenças culturais Sentimento de rejeição social Acesso a conta bancária Outros Nº de respostas Nº % 36 58,1 25 40,3 14 22,6 13 21,0 12 19,4 12 19,4 8 12,9 5 8,1 4 6,5 2 3,2 Aquando da realização do inquérito Nº de respostas Tipo de dificuldade Nº % Administrativos 15 24,2 Financeiros/ financiamento 15 24,2 Clientes 26 41,9 Abastecimento 5 8,1 Burocracia/aspetos legais 16 25,8 Problemas de logística 0 0 Equipamento 3 4,8 Diferenças culturais 6 9,7 Trabalhadores 1 1,6 Formação profissional 4 6,5 Fonte: Inquéritos realizados pelos autores (2016) 4. Discussão e notas finais No presente artigo tivemos como objetivo abordar o empreendedorismo imigrante em Lisboa. Procurou-se destacar contributos da atividade empreen- 170 dedora imigrante no meio urbano e desafios e constrangimentos sentidos pelos empreendedores de pequenos negócios, quer num momento inicial de abertura do estabelecimento, quer num momento posterior. De forma geral, são diversas e significativas as inter-relações entre os movimentos migratórios e o desenvolvimento urbano. Existe ainda um consenso institucional, particularmente evidente a nível local, face à intensificação e diversificação das atividades associadas à interculturalidade, dos impactos da presença de imigrantes e suas actividades no tecido urbano e na economia urbana. A implementação de novas estratégias comerciais e fornecimento de novos produtos e serviços são associadas a espaços urbanos cosmopolitas e a mais-valias económicas e turísticas. O estudo apresentado parece confirmar as dimensões explicativas da abertura de negócios próprios por parte das imigrantes explanadas por Oliveira (2016). O contexto português gerou uma estrutura de oportunidades, que, de um modo geral, não tem sido desfavorável aos imigrantes empreendedores, seja pelo cenário crescente da imigração, pelas políticas de integração de imigrantes premiadas a nível internacional, e pelas oportunidades de negócio, ainda que em parte despoletadas pela recessão económica. Os constrangimentos do mercado uma estratégia face ao desemprego e no âmbito dos requisitos para a abertura de negócios não existe qualquer distinção do requerente (desde que em situação regular) de acordo com a nacionalidade. Ademais a economia portuguesa caracterizada por deficiências estruturais (Santos & Reis, 2018), proporciona aos pequenos empreendedores espaços de actuação à margem dos atores económicos mais fortes. A motivação pessoal e a apetência para o empreendedorismo parecem ser mais fortes nalgumas comunidades, mais propícias para a criação de novos negócios como os chineses, bangladeshi e os nepaleses. Não é incomum a abertura de um negócio ser vista por indivíduos destas comunidades como uma das razões para a própria emigração. De facto, no pequeno comércio imigrante em Lisboa, e tendo presente a amostra abordada, denota-se a relevância dos recursos pessoais (o desejo de abertura de um negócio próprio e a capacidade de aproveitamento de oportunidades) que nalguns casos se mesclam com os recursos das comunidades de pertença, sendo evidente o protagonismo de nacionais asiáticos em pequenos negócios comerciais. Não obstante a aparente manutenção ou mesmo florescimento dos negócios de imigrantes, são diversas as dificuldades sentidas pelos empreendedores, seja na abertura, como no desenvolvimento do seu empreendimento, em especial quando não compreendem a língua portuguesa. A abertura do estabelecimento exige a utilização de documentos legais e burocráticos em português, o que criaram obstáculos na fase inicial do negócio junto de metade dos inquiridos. 171 Ademais, ainda que possam estar inseridos numa comunidade, algumas questões burocráticas sobressaíram, nomeadamente a dificuldade de obter fiador para o arrendamento de um espaço e o complexo acesso a financiamento bancário que acaba por ser um elemento crucial no fomento do empreendedorismo, por parte dos imigrantes que não tenham um suporte familiar no país de origem que financie o seu negócio. O número de clientes quando reduzido, é uma dificuldade que não sendo específica dos grupos imigrantes poderá comprometer a sustentabilidade do negócio e ser um indício do seu encerramento. Seguindo a nova tendência de valorização do multiculturalismo e interculturalismo enquanto recursos passíveis de serem utilizados para promoção da cidade, a existência de negócios explorados por imigrantes no setor comercial em Lisboa é elemento fundamental na construção de uma imagem cosmopolita da cidade e de dinamização económico espacial. No caso concreto de Lisboa, o aparecimento de novos estabelecimentos comerciais, num período em que os efeitos da touristification ainda não se faziam sentir nesta cidade, ajudou a minimizar os impactos do declínio do comércio dito tradicional dos centros desta cidade, inclusive em bairros não turísticos. Apesar de explorados por imigrantes, a maioria dos estabelecimentos geridos por imigrantes não estão direcionados para determinados grupos comunitários, o que beneficia a população local. Neste aspeto destaca-se o aparecimento e forte disseminação de pequenas mercearias exploradas por Bangladeshi que, de alguma forma, supriram o declínio do comércio alimentar de proximidade. Por outro lado, a replicação de estabelecimentos e tipologias comerciais semelhantes geridas por grupo de imigrantes, o risco de concorrência descontrolada e a disseminação destes estabelecimentos pela cidade poderá comprometer o sucesso de alguns negócios. Este é um empreendedorismo frágil, pautado por uma inovação pouco tecnológica que se sustenta em recursos pouco qualificados, mas que gera sucesso enquanto estratégia de inclusão de grupos vulneráveis num mercado laboral com poucas oportunidades. Como tal, teve ser tido em consideração seja nas estratégias que visam regular e promover o comércio assim como nas medidas de integração das populações imigrantes. Referências bibliográficas Amin, A. (2002). Ethnicity and the multicultural city: living with diversity. 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