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Cartel de São Paulo

2005, Sala Preta

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE C artel de São Paulo: um provided coletivobyartístico por uma ação(E-Journal) criativa Cadernos Espinosanos C artel de São Paulo: um coletivo artístico por uma ação criativa I van C artel de São Paulo é um coletivo de três grupos de teatro debruçados sobre as singularidades da linguagem teatral e a humanização das novas tecnologias. Um coletivo resiste à celebridade personalizada, atua em colaboração intrincada, multiplica o olhar sobre o objeto artístico e em última instância cria uma opção conjunta de interferência: Cartel de São Paulo pode estar em cartaz em vários lugares de São Paulo ao mesmo tempo. Evergree e n Evergr Nesta cultura da participação imersiva e mass media analógicos que bestializam milhares de pessoas introjetando programas sígnicos com a finalidade perversa de comercializar seus produtos, a busca por soluções rápidas para problemas como excesso de peso, ansiedade ou tristezas leva ao consumo perigoso de remédios. Mídia televisiva, jornais e sítios diversos, nos bombardeiam com modelos de corpos e comportamentos que denigrem nossa auto-estima para nos tornar consumidores ávidos. O fim da utopia e ideais políticos trazem à tona um objetivo único: a felicidade individual. Os efeitos são paradoxais, no Brasil a indústria de cosméticos, Andrade cirurgias plásticas e academias esportivas satisfazem estes desejos, enquanto nos Estados Unidos, na via oposta, ocorre uma epidemia de obesidade sem precedentes na história devido ao consumo desenfreado de fast-food e diversões sedentárias. Evergreen é uma empresa fictícia do bemestar que dá nome a dois espetáculos implicados dramatúrgica e cenicamente, abrindo uma rede ficcional que pode ainda ser estendida a outras mídias e outros criadores que se interessem pelo desenrolar da mesma fábula. Nesta primeira empreitada, assim que o espectador chega ao espaço Evergreen, ele deve escolher a parte da história que deseja acompanhar: o presente ou o futuro da empresa. Em EVERGREEN – tarja preta (criado pelo Teatro de Risco, dirigido por Ivan Andrade), o espectador é recebido por uma dupla de jornalistas que o aconselham a acompanhar os acontecimentos que estão por vir como preparativos para um show de televisão. O público assiste ao deslumbramento de Wendy na expectativa de ser coroada Princesa da Noite Evergreen e Peter Pan, o garoto-propaganda da empresa, vir buscá-la para a premiação. Os espectadores se deslocam para dentro da empresa onde são declarados novos acionistas e respon- Ivan Andrade é graduado em direção pelo Departamento de Artes Cênicas da USP. 197 s ala p reta dem a algumas perguntas cujas respostas determinam seus perfis. É feita então uma triagem e os novos acionistas, conduzidos pela produtora Sininho, são separados em grupos para conhecerem a parte da empresa que mais lhes interessar, conforme determinado pelos perfis. Doutor Gancho é o dono da empresa e recebe os acionistas convencendo-os da magnitude das novas descobertas científicas da Evergreen. Prepara-se a filmagem ao vivo da coroação de Wendy, mas, neste ínterim, uma série de acontecimentos fazem-na desistir de ser a Princesa da Noite e ela foge carregando o grupo de acionistas que por ventura também não tiverem aceitado a Nova Era proposta por Doutor Gancho. Aquele grupo que tiver aceitado a proposta do cientista continuará na empresa para discutir o futuro do negócio. O espetáculo mistura ficção pseudo-paródica do conto de fadas e a realidade do consumo, desejosa de final feliz a qualquer custo. Os personagens do livro Peter & Wendy, de James Barrie, são utlizados como uma estratégia de marketing desta empresa. EVERGREEN – 3RGON^M1C4 (criado pelo Vu-HÁ, dirigido por Ravel Cabral Jorge) contará, por sua vez, as técnicas, experiências e vicissitudes desta mesma empresa dali a cem anos. O público acompanha a rotina de uma família que habita um ambiente inóspito e isolado ao passo que os personagens revelam-se estranhos e condicionados a uma força superior. Este grupo de pessoas na verdade faz parte de uma experiência da Evergreen num projeto de família feliz e apaziguamento dos conflitos humanos, tendo sido todos geneticamente modificados com este fim. Esses super-humanos, no entanto, apresentarão defeitos elementares de relacionamento e sua convivência com os homens se revelará bizarra e descabida, principalmente pelos afetos mecanizados e programados destas criaturas. Em tom de quadrinhos e ficção científica, o espetáculo lança uma reflexão sobre os caminhos da busca pela perfeição alimentada pela tecnologia e o domínio da ciência sobre a vida. 198 Rompendo a cronologia preestabelecida, Wendy e o grupo de acionistas fugitivos do primeiro espetáculo, invadem a Evergreen futurista na procura de novos horizontes, mas, seduzida pelo discurso de soluções imediatas para suas inquietações na perspectiva pós-biológica apresentada pela empresa, aceita ser cobaia para a experiência do ser humano perfeito que gerará a família acima descrita. Fecha-se o ciclo e a idéia de escapar do sistema revela-se uma mera ilusão. Essa criação, conectada entre dois grupos e seus respectivos espetáculos, é a tentativa de uma visão múltipla e reflexiva do tema abordado, trazendo às artes cênicas a possibilidade de rede. A fábula ganha inúmeros pontos de vistas, trazendo complexidade à narrativa, e o espectador retorna ao espetáculo para desvendar novas possibilidades. Quem desvendará e como será contado o passado da Evergreen? Como destruir a Evergreen? A rede tem potencial para novas conexões. Dramaturgia Potencial Potência, segundo Pierry Lévy, é o que exprime possibilidades. Trata-se do poder de que se pode dispor. Assim, o potencial estaria no plano do virtual, isto é, uma série de latências à espera de serem atualizadas (para Pierry Lévy, o virtual se opõe ao atual, e não ao real). Uma Dramaturgia Potencial seria trazer à esfera da teatralidade a potência que percebemos em um mundo inserido numa gama variada de novas tecnologias e de recriação do tempo. Segundo Diana Domingues (Criação e Interatividade na Ciberarte, 2002), “as tecnologias (...) marcam a passagem da arte da representação para uma arte mais comportamental. O paradigma da representação, idéia do belo, a contemplação de uma imagem ou de um objeto é trocada pela idéia de um processo a ser vivido. Não interessa um objeto em si como algo acabado, mas o campo de relação que se estabelece durante o processo de vivência com a obra-dispositivo”. C artel de São Paulo: um coletivo artístico por uma ação criativa Umberto Eco, em A obra aberta (1965), inaugurou uma nova abordagem do texto literário. Este passou a ser concebido como depositário de uma multiplicidade de sentidos, podendo haver a coexistência de significados em um significante. Sem negar esta tese, a Dramaturgia Potencial viria agregar a troca de informações com esta obra, desestimulando a dicotomia sujeito-objeto tendo em vista este mundo que cada vez mais permite a interatividade. Arlindo Machado, no entanto, salienta que “[...] o termo interatividade se presta hoje às utilizações mais desencontradas e estapafúrdias, abrangendo um campo semântico dos mais vastos, que compreende desde salas de cinema em que as cadeiras se movem até novelas de televisão em que os espectadores escolhem (por telefone) o final da história. Um termo tão elástico corre o risco de abarcar tamanha gama e fenômenos a ponto de não poder exprimir mais coisa alguma” (Arlindo Machado, in Domingues, 1997). Portanto, para não tornar o espectador refém de uma idéia de modernização estúpida e coercitiva, a interação com um espetáculo pode acontecer das mais variadas maneiras e graus. A abertura de que fala Umberto Eco se dá no plano da interpretação e da prática significante que a crítica impõe ao objeto estudado. A Dramaturgia Potencial supõe que além da leitura múltipla, o próprio objeto seja um octaedro em que cada leitor possa acessar um dos vários pontos de vista possíveis, tendo não só uma percepção singular da experiência teatral, como experimentando, ele próprio, a possibilidade de acessar uma entrada particular na obra e transitar pelo hipertexto do espetáculo. EVERGREEN – tarja preta, por exemplo, suporta diversas linhas narrativas nas quais o espectador imergirá quando separado em grupos específicos, de modo que, no fim, sejam desenvolvidos oito pontos de vista distintos em torno dos mesmos acontecimentos. Essa é apenas uma forma, entre outras, de se criarem estes prismas de leituras. Os pilares desta dramaturgia estão em constante reconfiguração, já que atualizam as possibilidades do universo perceptivo-cognitivo do homem contemporâneo e seus impactos não se restringem apenas à dramaturgia mas a todo universo cênico. De imediato evidencia-se a extrema presentificação do ato teatral, o uso de linguagens e mídias heterogêneas e a oscilação entre ficção e realidade. Busca-se, enfim, o máximo de proximidade com o real, ao mesmo tempo em que se dá um embate crítico com o simulacro. O ator deve ser capaz de acessar e recombinar textos de acordo com o encontro com o espectador, e a medida da verossimilhança não dialoga necessariamente com o mundo externo. O personagem existe apenas no contato com o espectador porque não habita um universo fechado e pode ganhar vida própria para escapar do universo ficcional para que fora inicialmente criado. O conceito de potência aplicado à estrutura dramatúrgica deve ser um conceito líquido para se adaptar a novos formatos exigidos, afinal, ao que parece, habita uma linha paradoxal – estruturar um acontecimento real e simultaneamente criar uma história junto aos receptores prevendo o improviso. Esta dramaturgia consistiria num conjunto de regras bem intrincadas que serviriam ao jogo entre atores e espectadores: o contar da fábula, linear ou não, com fim predeterminado ou não; situações e textos previstos para serem aplicados conforme exigido pelo contato com aquele público específico; a demarcação de um espaço lúdico com variados fluxos de informações. A imersão é outra característica da Dramaturgia Potencial e a atitude crítica pedida pelo sistema brechtiano ganha presença à medida que as situações propostas exigem respostas imediatas do espectador, transformando a trajetória ou a posição deste espectador em relação à história. Estas respostas que alteram o curso da dramaturgia podem até ser inconscientes, verbais ou não, individuais ou em grupo. Com características tão voláteis, cabe perguntar se este espetáculo tem o estatuto de obra acabada. De fato é premissa desta dramaturgia, à maneira da performance, a super-efemeridade 199 s ala p reta e total instantaneidade, de modo que a Dramaturgia Potencial valoriza mais a cena que o texto e, dependendo, da proposta, será impossível de ser escrito. Essas características não implicam em esvaziamento de um discurso bem articulado ou manipulação intencional de significantes e significados, mas um sistema cibernético, que à maneira do vídeo-game, permitiria o mergulho intenso do espectador na experiência teatral. A participação imersiva constituiria a possibilidade de uma agonística com respeito à comunicação em massa. Os conceitos da tecnologia aplicados ao teatro devem ser uma resistência mutante ao autoritarismo e ao desmantelamento do sujeito, num anarco-culturalismo que visa provocar distúrbios no organismo social vigente. Cartel de São Paulo Na falta de utopias, resistir significa criar distúrbios que, absorvidos pelo sistema, podem se reorganizar em novas frentes de ataque. À maneira do vírus, o anarco-culturalismo deve utilizar os instrumentos criados pelo próprio sistema para esgotá-lo, assim, a pirataria, o plágio, a comunicação em rede, hackers, micro-transmissões (rádios de bairro, TVs comunitárias), interferências urbanas etc. são terrorismos poéticos que fazem frente não só à sociedade de controle de Michel Foucault (1972) como também à sociedade do espetáculo antecipada por Guy Debord (1964). O corpo eletrônico é o corpo sem órgãos de Antonin Artaud. Cabe agora descobrir como o teatro pode suportar estas (re)significações. Cartel de São Paulo é um coletivo de três grupos de artistas da cena – Vu-HÁ, Síncope Sociedade Anônima e Teatro de Risco – focado na exploração das intersecções entre arte, teoria crítica e tecnologia. A Casa das Caldeiras, uma antiga fábrica dos Matarazzo na Barra Funda, serviu de suporte para os primeiros espetáculos investigativos do coletivo (EVERGREEN – tarja preta, EVERGREEN – 3RGON^M1C4 200 e 5PSA – O Filho) em temporadas no fim de 2004 e durante o ano de 2005. 5PSA – O Filho, da Síncope Sociedade Anônima, dirigido por Cainan Baladez, trata dos conflitos religiosos. Os personagens ultrapassaram a cena e ganharam vida na Internet, isto é, cada personagem mantém um diário online no blog do espetáculo na web <www.5psa. blogspot.com>, possuem perfis e participam de comunidades do Orkut, agregando espectadores em diferentes grupos virtuais. Durante o espetáculo, por sua vez, o espectador escolhe com qual personagem vai acompanhar a fábula, escolhendo normalmente aquele com quem já havia estabelecido contato on-line, formando suas seitas para o desenrolar dos conflitos. Cada apresentação é relatada no site logo depois de terminada e o espectador-internauta pode interferir na dramaturgia com sugestões e comentários. Além de divulgação com resultados excelentes, furando o filtro autoritário da crítica e da mídia formal dos jornais, este modelo cria o choque entre tradições e meios de comunicação modernos. Desbravando a experiência da Dramaturgia Potencial, o público escolhe quem deve ser eleito o filho, ou seja, qual seita deve reinar neste universo ficcional, tendo conseqüências inesperadas para o desfecho da intriga. Além de espetáculos que se complementam, como EVERGREEN – tarja preta e EVERGREEN – 3RGON^M1C4, e espetáculos que utilizam a rede virtual como extensão da própria apresentação, como 5PSA – O Filho, os grupos apóiam-se mutuamente para a criação cênica na era digital. São trocas de informações e experiências, colaboração de divulgação e produção, projetos que incluem um único espetáculo dirigido pelos três diretores ou três espetáculos que dialoguem tematicamente e, aprofundando o primeiro experimento, apresentações que interfiram efetivamente uma na outra. São infinitas possibilidades de trocas e retroalimentação no contato entre os grupos. No Cartel de São Paulo personagens e cenas criados para um espetáculo podem reaparecer em espetáculo de outro grupo, num plágio au- C artel de São Paulo: um coletivo artístico por uma ação criativa torizado e sistematizado. A migração de elementos de um grupo para o outro é possível, numa contaminação benéfica. A partir de uma rotina de encontros, são discutidas temáticas da contemporaneidade que fomentam expressões cênicas relacionadas, numa diluição acordada das autorias visando a discussão perene entre ética e estética. Nesta anarquia bem gerenciada, outras mídias vêm se acoplar à cena, de modo que propostas trazidas por elementos do enorme grupo enriqueçam a experiência do todo. É evidente que esta reunião visa também criar estruturas que driblem as condições terrí- veis de produção num país de política cultural pífia e pouco incentivo ao pensamento. O Cartel de São Paulo vislumbra também o diálogo com outros trabalhos, mantendo em seu sítio <www.nucleocarteldesaopaulo.com.br> textos atualizados sobre outros espetáculos em cartaz, não na intenção da crítica que estereotipa no jornal um ponto de vista único, mas na tentativa de propiciar um bom debate estético em que outros artistas e espectadores sejam incentivados a se pronunciar, mais uma vez escapando da comunicação unilateral e desestabilizando as estruturas de poder. 201