UNIVERSIDADES PÚBLICAS
AGONIZAM PELA FALTA DE RECURSOS
Coluna publicada em 19.9.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-set-19/
contas-vista-universidades-publicas-agonizam-falta-recursos>
A crise financeira que assola o país está se assemelhando a um verdadeiro
“furacão” que não para de produzir vítimas. E mostra como a má gestão pode produzir resultados muito piores do que desastres naturais de grandes proporções.
Enquanto “Irma” destelhou casas, causou danos materiais e até mortes, por aqui
alguns anos de administrações que foram um verdadeiro desastre, e nada natural,
provocaram a destruição de nossas universidades públicas que levaram décadas
para serem construídas.
Nas últimas semanas chamou especial atenção o caso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, que está “agonizante”, asfixiada por falta de recursos, tendo recebido até uma “extrema unção” do governo federal, que insinuou
deva ser extinta.1
Mas não é a única. A Universidade de São Paulo – USP já teve o auge de sua
crise há pouco tempo, e ainda sofre com o orçamento apertado. As universidades
federais também estão em colapso. A Universidade Federal de Sergipe – UFS ameaçou suspender as atividades, a Universidade de Brasília – UnB anunciou um déficit
acumulado de R$ 10 milhões de reais no ano e o desligamento de funcionários
terceirizados, a Universidade Federal de Santa Maria – UFSM demitiu funcionários e suspendeu obras em andamento e a Universidade Federal do Rio de Janeiro
1
O Parecer Conjunto 1/2017/CORFI/COREM/COPEM/COAFI/COINT/SURIN/STN/
MF-DF propõe a extinção de mais empresas públicas e revisão do papel do Estado, e entre as
medidas de ajuste sugere “a revisão da oferta de ensino superior” (Parecer do Ministério da
Fazenda sugere o fim da UERJ. Jornal do Brasil, 5 de setembro de 2017; Tesouro sugere “revisão da oferta” de universidades públicas do Rio. Portal UOL, 5 de setembro de 2017).
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Levando o Direito Financeiro a sério: a luta continua
– UFRJ ameaça suspender os pagamentos das bolsas de iniciação científica.2 Um
cenário desolador, como registra Sabina Righetti em percuciente análise do tema.3
Em resumo, a crise financeira instalou o caos no ensino público superior. E uma
crise que não escolhe ente federado, haja vista que abrange várias universidades
federais e também estaduais.
A questão do financiamento das universidades é bastante interessante sob o
ponto de vista do Direito Financeiro, e há várias questões que merecem abordagem
e melhor reflexão.
Nosso federalismo cooperativo fica bem evidente no âmbito da educação, em
que a Constituição distribui as receitas e encargos entre os entes federados, estabelecendo um regime de cooperação para a prestação desse serviço público fundamental para o desenvolvimento do país. E onde se vê uma distribuição que procura
respeitar critérios de eficiência alocativa, deixando a cada ente federado a responsabilidade para atender a necessidade em matéria educacional que melhor se ajusta às
suas características. É o que justifica a atribuição prioritária aos municípios da responsabilidade pelo ensino fundamental e educação infantil (CF, art. 211, b), onde
a mobilidade do usuário é baixa. Já no ensino superior, em que o usuário tem facilidade de locomoção, os níveis mais próximos do governo central mostram-se mais
adequados sob o ponto de vista federativo, evitando as distorções do “efeito-carona” (free-rider effect).4
Daí por que a maior parte das universidades públicas integra a administração
pública federal, e apenas alguns Estados financiam o ensino público superior, mantendo universidades próprias.
Nossa Constituição dá especial destaque ao ensino superior e às universidades, assegurando-lhes “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão
financeira e patrimonial” (art. 207, caput). A autonomia financeira de órgãos que
integram o ente federado, à semelhança dos poderes, ainda que fixada constitucionalmente, é sempre relativa, até porque a capacidade arrecadatória de que dispõem
2
3
4
Acabou o dinheiro: universidades públicas estão perto do colapso, por Gabriel Castro, Gazeta
do Povo, 8 de agosto de 2017.
RIGHETTI, Sabine. Crise nas universidades, Ciência e Cultura, vol. 69, n. 2, São Paulo,
abr./jun. 2017.
Falei sobre o tema em O orçamento público e o financiamento da educação no Brasil. In:
HORVATH, Estevão; CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. (Org.). Direito Financeiro, Econômico e Tributário. Homenagem a Regis Fernandes de Oliveira. São Paulo: Quartier
Latin, 2014. p. 481-496.
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Universidadespúblicasagonizampelafaltaderecursos ••
é muito pequena, insuficiente para fazer frente às vultosas despesas nas quais incorrem, como as relativas ao pagamento de pessoal.
Sendo assim, a regra é dependerem de dotações orçamentárias, com recursos
oriundos essencialmente do sistema próprio de arrecadação do ente federado, e que
se soma a outras fontes de naturezas diversas, como as arrecadações próprias, transferências, contratos, doações e outros. E são valores expressivos.
No âmbito federal, há inclusive um volume do anexo da lei orçamentária de
2017 (vol. V) especificamente destinado a detalhar as despesas do Ministério da
Educação, que congrega as instituições de ensino superior federais. Prevê para
este exercício de 2017 um montante superior a 100 bilhões de reais (R$
107.517.408.946,00), distribuído entre dezenas de universidades, institutos, fundações e hospitais.5
Nos Estados que mantêm instituições de ensino público superior, a situação
não é diferente. Em São Paulo, destacam-se as três universidades públicas estaduais: USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas) e Unesp (Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho), cujas dotações orçamentárias para o exercício financeiro de 2017 são, respectivamente,
R$ 5.052.466.860,00, R$ 2.711.717.611,00 e R$ 2.497.059.952,00, perfazendo
um total, para as três universidades, superior a 10 bilhões de reais. A UERJ foi
contemplada com dotação orçamentária superior a 1 bilhão de reais para o exercício financeiro de 2017.6
Alguns instrumentos importantes para assegurar a autonomia financeira das
universidades públicas podem ser encontrados, como nos Estados acima citados, e
colaboram para torná-las mais independentes sob o ponto de vista da gestão financeira, o que, como se pode constatar, parece não ter sido suficiente para evitar as
crises pelas quais têm passado.
No Estado de São Paulo criou-se um compromisso político de se destinar às
três universidades estaduais um porcentual (9,57%) da arrecadação do ICMS, o
que se materializa juridicamente pela inserção de tal determinação nas leis de diretrizes orçamentárias, que se renovam anualmente, criando o que André Carvalho
denomina “vinculação simbólico-institucional”.7
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6
7
Lei Orçamentária Federal de 2017 (Lei 13.414, de 10 de janeiro de 2017, vol. V).
R$ 1.113.007.786,00, cf. Lei Estadual-RJ n. 7574, de 17 de janeiro de 2017, vol. II, p. 370,
Unidade orçamentária 4043 – Fundação Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
CARVALHO, André Castro. Vinculação de receitas públicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
p. 43.
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Levando o Direito Financeiro a sério: a luta continua
O Rio de Janeiro optou por dar uma garantia constitucional à UERJ, fazendo
constar de sua Constituição a destinação do porcentual mínimo de 6% da receita
tributária líquida.8
No entanto, apesar de todas essas garantias, vê-se que não se conseguiu evitar esse colapso financeiro. Disso é importante extrair algumas lições. Uma delas
é de que as vinculações (entendidas em seu significado “lato sensu”, abrangendo
aquelas que importam na destinação de receitas específicas a determinados gastos, as despesas mínimas obrigatórias e outros instrumentos do gênero) não são
uma panaceia para os problemas financeiros.9 Nos casos citados em que elas estavam presentes, vê-se que o fato de a recessão econômica provocar a redução das
receitas tributárias (hipótese do Rio de Janeiro) e do ICMS (no caso de São
Paulo) fez com que houvesse uma queda nos recursos destinados às universidades
públicas, e estas, sem margem para reduzir suas despesas, viram-se diante de
uma situação de insustentabilidade financeira difícil de reverter. Outra lição é
que as universidades padecem da falta de gestores preparados, como ressaltou
José Matias-Pereira, professor de finanças públicas da UnB, que considerava esse
colapso uma “tragédia anunciada”.10 Aperfeiçoamentos na gestão dos recursos
públicos são cada vez mais necessários em toda a administração pública, e na
área da educação a situação não é diferente.11 Em se tratando de áreas prioritárias
como a educação, as vinculações são mais do que bem-vindas, e colaboram para
evitar que gestores despreparados reduzam os recursos que deveriam lhe ser destinados, realocando-os para setores menos relevantes. Mas não podem ser mal
aplicados, especialmente em épocas de crise financeira, em que os recursos ficam
cada vez mais escassos, e portanto mais valiosos.
Há muitos hospitais universitários entre as unidades orçamentárias que integram o ensino superior do Brasil hoje. Agora que as universidades públicas
estão verdadeiramente na UTI, é hora de elas mostrarem sua utilidade, antes
que nos próximos orçamentos passemos a encontrar funerárias no orçamento da
educação...
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Art. 309, § 1º: O poder público destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ, dotação definida de acordo com a lei orçamentária estadual nunca inferior a
6% da receita tributária líquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente.
Como já foi abordado em Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas, nesta
edição, p. 207-210.
Acabou o dinheiro: universidades públicas estão perto do colapso, texto já citado anteriormente.
Ver Nem só com royalties se melhora qualidade da educação, nesta edição, p. 55-58.
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