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Anatomia de
um relógio
Wellington Marçal de Carvalho*
P
Resumo
retende-se resgatar fragmentos do fato histórico da partilha do continente
africano por meio de excertos do conto “O relógio”, do escritor angolano
Manuel Rui, publicado na obra Sim Camarada!. A leitura do conto visará
demonstrar que o conceito de reciclagem estética, de Klucinskas e Moser
(2007), mostra-se excelente chave de leitura do texto e das estratégias
de encaixe construídas pelo escritor para compor uma narrativa que,
dialogando com recursos da oralidade, opera deslocamentos sígnicos,
rasura os limites entre realidade e ficcionalidade, e recicla elementos de
outras formas de manifestação artística.
Palavras-chave: Literatura angolana. Crítica e interpretação. Tradição
oral. Reciclagem estética
Às vezes o enredo de um texto literário é tecido de maneira a
dotar os detalhes mínimos irrelevantes. E é normal que assim ocorra
mesmo. Mas o autor criativo semeia aqui e ali, sugestões camufladas,
encobertas, que um olhar mais arguto poderá fazer delas diferentes
entradas, pois se mostram no texto como se fossem marcas d’água.
Como ilustração dessa hipótese verificar-se-á no conto “O
relógio”, do angolano Manuel Rui Monteiro, que o fato histórico
denominado “A partilha da África” parece estar presente em alguns
excertos da trama narrativa, sempre ressignificado.
Entre o leque de coisas que o narrador irá contar, em que os
assuntos estão todos misturados, podem-se perseguir vários veios.
Nesse momento, o ponto central a ser observado diz respeito à
configuração do feitio e circulação do relógio. Ainda que subjacente
ao conto, o processo de colonização e descolonização está presente na
trama narrativa, em vários trechos.
Ratifica-se a assertiva de Mackenzie de que já houve muito
debate sobre a importância da África como fonte de matérias-primas.
(MACKENZIE, 1994, p. 49-50). O continente africano foi durante
séculos, provavelmente, mais valioso como supridor de produtos do que
como mercado para manufaturados. No entanto, as matérias-primas
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Anatomia de um relógio
Doutorando pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais – PUC Minas.
Bolsista CAPES/PROSUP-II. Agradeço
à Professora e Orientadora Dra. Maria
Nazareth Soares Fonseca pelas elucidativas
conversas acerca da humanidade do relógio
no percurso de elaboração deste artigo.
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vinham sendo extraídas na África por muitos anos sem a necessidade
de controle político. A simples existência dessas matérias-primas não
pode explicar plenamente porque os europeus consideraram necessário
partilhar o continente, embora não haja dúvida de que nesse período
o ritmo de extração de matérias-primas se tornava mais rápido e
os temores dos europeus e esperanças dos africanos, mais fortes. A
presença do colonialismo, a despeito de tudo o que acarretava, não
conseguiu apagar inteiramente os signos culturais e toda a complexa
constituição simbólica fundadores da alteridade africana.
Sob essa perspectiva é que se focaliza o conto “O relógio”,
que trata, grosso modo, da contação de estória, feita pela personagem
camarada Comandante, ex-combatente nas fileiras da luta armada,
para um grupo de miúdos, à sombra dos coqueiros na areia da praia.
O que se encena nessa contação é a estória de um relógio, estória essa
que, mesmo de “domínio público”, posto os que “moravam na praia
sabiam-na de cor e repetiam-na cada um de sua maneira e talento”
(MONTEIRO, 1977, p. 21), adquiria muito mais prazer, para a
miudagem, quando podiam-na receber de forma “doce e pachorrenta
da boca do camarada Comandante”. (MONTEIRO, 1977, p. 10).
É interessante sublinhar a maestria com que o leitor é
transportado para a ambiência da roda de contação, tão bem esta é
representada no texto por Manuel Rui Monteiro:
Ele sentava-se cauteloso. Juntava as muletas no chão. Acomodava
bem o tronco na cadeira de encosto, desabotoava a camisa e
estatelava-se qual seu quanto de contemplativo antes de avançar
com a estória. Ficava a meninada estarrecida, de lindeza nos olhos e
orelhas de fome para um silêncio de atenção. (MONTEIRO, 1977,
p. 22).
A partir de então, o leitor, ao embarcar com os integrantes
dessa roda de contação em parte da “biografia” do relógio, perceberá
que esse objeto vai adquirindo um outro estatuto, deslocando-se por
vários espaços de significação. Pelo artifício da fala, da oralidade, ou
ainda, do discurso coletivo, pois nesse jogo de narrar todos são autores
e não apenas passivos ouvintes, operacionaliza-se a corporificação da
personagem principal. A humanização do relógio está registrada, por
exemplo, nos trechos:
Só ele [o relógio] mesmo é que podia dizer o que foi o tempo!
Aquele tempo!
O miúdo perguntou com vivacidade. A pressa de atingir o ponto
para ele mais alto “da vida do relógio. Relógio que também era
quase gente na estória, só faltando falar.” (MONTEIRO, 1977, p.
47 - destaques nossos).
Note-se que o curioso, “o mais engraçado é que os miúdos riam.
Participavam no fingimento, nesse sentir de que entre o real vivido e o
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real recriado não havia fronteira.” (MONTEIRO, 1977, p. 24). Todos,
naquela encenação, sublimavam-se na aventura, na epopeia que era a
vida daquele relógio “e a aventura que ia em seu devir.” (MONTEIRO,
1977, p. 46). E o leitor, ao aceitar o jogo proposto, é então guiado por
um vasto espectro de narrativas encaixadas na narrativa central, a da
estória do relógio, mecanismo típico da oralidade, da tradição oral.
Interessa, particularmente, neste trabalho, recortar uma dessas
narrativas encaixadas, a qual, hipoteticamente, trata dos deslocamentos
perpetrados por esse relógio. Nos excertos apresentados a seguir,
orquestrados num arranjo em quatro blocos distintos, verticalizase o olhar para perscrutar as várias nuances desse deslocamento da
personagem relógio/objeto/organismo vivo.
No primeiro bloco é apresentado o nascimento do relógio, cujo
fabrico se efetiva em um lugar longe, na Europa, por meio de mão de
obra infantil:
Ele sentava-se cauteloso. Juntava as muletas no chão.
O comandante abria sempre da mesma maneira:
- O relógio foi fabricado na Suíça e a marca era Omega.
- E onde está a Suíça?
- Muito longe. Não é uma pessoa. É um país, muito longe, na Europa
e lá faz muito frio.
- E o camarada Comandante já esteve nessa Suíça?
- Só de passagem.
- E depois? O relógio?
- Sim, foi feito na Suíça. Lá, meninos como vocês, ajudam trabalho
de montar, desmontar e concertar relógios. (MONTEIRO, 1977,
p. 22-23).
Adiante, a jornada desse relógio avança com a sua arrancada da
Suíça, pelas mãos de Fritz, para Portugal, com o atravessador senhor
Silva Lisboa para, enfim, chegar a Luanda. Em peripécias o camarada
Comandante dá a entender que na estória incutiu-se a História:
...o camarada Comandante continuava:
- Um dia o relógio foi com outros relógios viajar vendido pra
Portugal.
- E quem foi que vendeu o relógio para Portugal?
- Foi um senhor que era dono da fábrica e se chamava Fritz. Da
Suíça.
Não se prendia tanto pelo hoje. Arquitectava-se mais no amanhã.
Fôra essa maneira de encarar a vida que o fizera incluir-se nas fileiras da luta armada.
- E para quem é que lhe mandou relógios em Portugal?
- Foi para um tal senhor Silva Lisboa que também vivia de negócio
com relógios. (...)
- Um dia, o Senhor Silva mandou para Angola muitos relógios que
lhe havia vendido o homem da Suíça...
- Que se chamava?
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- Fritz. E veio para Luanda o relógio desta estória que não é bem
estória porque os factos aconteceram. (MONTEIRO, 1977, p. 2324).
Não se prendia tanto pelo hoje. Arquitectava-se mais no
amanhã. Fôra essa maneira de encarar a vida que o fizera incluir-se nas
fileiras da luta armada.
- E para quem é que lhe mandou relógios em Portugal?
- Foi para um tal senhor Silva Lisboa que também vivia de negócio
com relógios. (...)
- Um dia, o Senhor Silva mandou para Angola muitos relógios que
lhe havia vendido o homem da Suíça...
- Que se chamava?
- Fritz. E veio para Luanda o relógio desta estória que não é bem
estória porque os factos aconteceram. (MONTEIRO, 1977, p. 2324).
Na cena adiante o sinal dado pelo sobrolho franzido do
camarada Comandante deixa transparecer a tentativa de justificar que
o motivo de não serem feitos relógios em Angola escamoteia questões
mais complexas. O fato da ausência, em Angola, de maquinário
adequado à fabricação de relógios demonstra a condição de exploração
do país e o funcionamento do modo capitalista de se ver o mundo. A
fala do Comandante parece aludir à falta da expertise das pessoas e ao
fato de que, mesmo havendo o maquinário, as pessoas desconheceriam
como operá-lo. Não pode ser desprezado o ardil verbal extremamente
irônico que permeia as explicações do Comandante ao incutir, na
estória, estilhaços da perversa situação em que foi colocado o país. Por
meio da estratégia da contação evidencia-se uma lição histórica e de
formação de cidadania nos ávidos miúdos. Eis a cena:
- Mas porquê que os relógios tinham de vir de Portugal?
- Bem. Os relógios tinham vindo da Suíça. E da Suíça para Portugal
e de Portugal vieram para Luanda porque em Luanda ainda não se
fazem relógios.
- Mas porque é que em Luanda ainda não se fazem relógios?
O Comandante franziu o sobrolho. Pigarreou. Meteu os dedos
da mão direita na barbicha, ensaiou um caracol e estacionou um
estantinho afundado na descoberta da melhor explicação.
- Para fazer relógios é preciso ter muitas máquinas e em Angola ainda
não há essas máquinas. E é preciso também pessoas que aprenderam
a trabalhar com as máquinas. É verdade que muitas coisas para
fazer relógios vão daqui e... – ia avançar um esclarecimento mais
detalhado mas sentiu-se impotente temendo perguntinhas miúdas
que, de certeza, a garotada ia propor. (MONTEIRO, 1977, p. 29).
Por fim, o relógio assenta-se, por um tempo, na Relojoaria
Paris, em Luanda. Esse retorno permite o registro da desvalorização
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da cultura angolana e, por extensão, da africana; além disso, reafirma
a exploração capitalista através do consumismo e solapamento, subreptício, da identidade angolana. Não seria descabido pensar que o
Comandante, por alusões e metáforas, estava narrando aos meninos
trechos da ocupação do país:
- Então porque é que se chama Paris a tal casa de relógios aqui em
Luanda?
- São nomes que se põem nas lojas para parecerem melhores. Essa
“Relojoaria Paris” colocava relógios na cantina da tropa tuga aqui em
Luanda. (MONTEIRO, 1977, p. 30).
Vistos esses quatro blocos, convida-se a pensar em que medida
eles dizem muito acerca da presença, no subconsciente africano e, no
caso em exame, no conto de Manuel Rui Monteiro, do fato histórico
da partilha daquele continente.
Relance – as partilhas da áfrica
A Disputa da África, também conhecida como a Corrida da
África ou a Partilha da África, foi um processo de invasão, ocupação,
colonização e anexação do território africano pelas potências europeias
durante o período do Novo Imperialismo, entre 1881 e a Primeira
Guerra Mundial, em 1914.
Para o haitiano René Depestre, o cubano José Marti tomou
explicitamente o partido dos negros e expressou-se quanto a este fato
histórico nestes termos: “as potências coloniais repartiam entre si três
continentes e se davam o direito de confiscar e de administrar, como
feitorias ou simples balcões de comércio, as realidades, os sonhos, a vida
e a história dos “povos bárbaros e senis”. (DEPESTRE, 1980).
As considerações de Uzoigwe, nigeriano, especialista em história
da África Oriental, sintetizam bem esse tema, como nos informa
Boahen:
[Uzoigwe] explica a partilha levando em consideração tanto os
fatores europeus como os africanos e, assim procedendo, acredita
que se completam dessa forma as teorias eurocêntricas... com a da
dimensão africana. Rejeita a ideia de que a partilha e a conquista
eram inevitáveis para a África, como dado inscrito na sua história.
Pelo contrário, considera-as a consequência lógica de um processo de
devoração da África pela Europa, iniciado bem antes do século XIX.
Admite que foram motivos de ordem essencialmente econômica
que animaram os europeus e que a resistência africana à invasão
crescente da Europa precipitou a conquista militar efetiva. Parece,
de fato, que a teoria da dimensão africana oferece um quadro global
e histórico que explana melhor a partilha do que todas as teorias
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puramente eurocêntricas. (UZOIGWE apud BOAHEN, 2010, p.
31).
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Com essas informações, propõe-se o redirecionamento do
olhar para o conto “O relógio” focando os trechos em que nele estão
ressignificadas as múltiplas partilhas do continente africano.
Última mirada – o relógio repartido e reciclado
Como o conceito de reciclagem estética, de Klucinskas e Moser
(2007), pode ajudar a entender o processo de construção do texto
literário, mesmo que, aparentemente, esses textos não deixem claras as
tensões que permeiam o conceito?
Muito embora já tendo sido dito, reitera-se, nesse momento,
que a literatura pode, também, encenar uma situação social. Na
trama narrativa, as estórias em encaixe acentuam o imbricamento de
estratégias discursivas próprias à oralidade e alguns deslocamentos
sígnicos, em processo de rasura, transitam da esfera do real em direção
à ficção.
Klucinskas e Moser (2007) caracterizam a reciclagem por
deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-culturais,
abarcando um processo que consiste em várias fases de um gesto que
comporta ao mesmo tempo repetição e transformação. Essas diversas
etapas de deslocamento induzem a um processo de metamorfose que
pode ser resumido no conceito de reciclagem estética.
A proposta é que, ao se alargarem os sentidos que o fato histórico
da partilha infligida ao continente africano assume, torna-se possível
percebê-lo em um processo de reciclagem e ressignificá-lo a partir do
que Klucinskas e Moser consideram. Fica então plausível o deslocamento
espaço-temporal do fato histórico transmutado em objeto estéticocultural, num processo multi-fásico de repetição e transformação. Por
medida de segurança, utilizar-se-á um fato específico para ilustrar um
momento particular e emblemático para a historiografia: a Conferência
de Berlim sobre a África Ocidental.
A conferência de Berlim aconteceu no período de 15 de
novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885. É interessante a leitura
realizada por Brunschwig: “A África não era aí senão uma parada mais
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Lembrança encobridora: recordação cujo
valor reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos de uma
data posterior cujo conteúdo está ligado
a ela por elos simbólicos ou semelhantes.
(FREUD, 1976).
O que se quer dizer, exatamente, é que a narrativa em que
prevalece a humanização do relógio, analisada na primeira parte deste
trabalho, permite trazer à baila resquícios de um fato histórico específico,
qual seja, o da “Partilha da África”. Obviamente, não se deve ser assaz
ingênuo e afirmar que o escritor conscientemente o tenha feito. Tal
resultado pode ter sido obtido muito mais em função de algo que é
imanente na imaginária africana, algo que compõe mesmo parte de sua
ancestralidade; a sabedoria passada pelas estórias contadas. Ou daquilo
que Freud (1976) denomina de lembrança encobridora,¹ transposta
para a obra literária, de forma inconsciente, por aquele tipo de escritor
por ele denominado criativo. Manuel Rui pertence a esse grupo.
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ou menos cobiçada nessa partida arbitrada por Bismarck, e a maioria
das quatorze potências não julgaram útil enviar para aí seus melhores
jogadores.” (BRUNSCHWIG, 2004, p. 41 - destaque).
A lucidez da análise empreendida por Uzoigwe sobre a
Conferência fala por si só e justifica a necessidade de ser resgatada,
por mostrar, inclusive, que existem outras matrizes de pensamento tão
válidas quanto aquelas advindas da escola eurocêntrica:
... as potências europeias se arrogavam o direito de sancionar
o princípio da partilha e da conquista de um outro continente.
Semelhante situação não tem precedentes na história: jamais um
grupo de Estados de um continente proclamou, com tal arrogância, o
direito de negociar a partilha e a ocupação de outro continente. Para
a história da África, esse foi o principal resultado da conferência.
Dizer, ao contrário da opinião geral, que ela não retalhou a África
só é verdade no sentido mais puramente técnico. As apropriações
de territórios deram-se praticamente no quadro da conferência, e
a questão das futuras apropriações foi claramente levantada na sua
resolução final. De fato, em 1885, já estavam traçadas as linhas da
partilha definitiva da África. (UZOIGWE, 2010, p. 35).
... as potências europeias se arrogavam o direito de sancionar
o princípio da partilha e da conquista de um outro continente.
Semelhante situação não tem precedentes na história: jamais um
grupo de Estados de um continente proclamou, com tal arrogância, o
direito de negociar a partilha e a ocupação de outro continente. Para
a história da África, esse foi o principal resultado da conferência.
Dizer, ao contrário da opinião geral, que ela não retalhou a África
só é verdade no sentido mais puramente técnico. As apropriações
de territórios deram-se praticamente no quadro da conferência, e
a questão das futuras apropriações foi claramente levantada na sua
resolução final. De fato, em 1885, já estavam traçadas as linhas da
partilha definitiva da África. (UZOIGWE, 2010, p. 35).
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Figura 1 – A Conferência de Berlim sobre a África Ocidental (1884-1885).
Fonte: OZOIGWE, 2010, p. 34.
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A partilha foi um acontecimento tão vultoso que reverbera, desde
então, nos mais diferentes espaços. Aqui, neste trabalho, apresentase uma exígua parcela da materialização desse episódio esteticamente
reciclado. Na Figura1, a cena foi pitorescamente retratada:
O deslocamento sígnico magistral, operacionalizado no texto de
Manuel Rui, ao deslindar a anatomia da “personagem” o relógio, ao dissecar
a estrutura desse objeto humanizado se vale de alusões, sub-reptícias, à
partilha do continente negro, que contaminam positivamente o conteúdo
do texto literário. O relógio personificado, metonimizado, metaforizado,
ressignifica, também, a própria história de constituição do povo angolano
e, mais concretamente, representa a história daquilo que a colonização
impediu que esse povo fosse. Ao mesmo tempo, como já dito, ele é
detonador de um motivo africano, o da contação de estórias, naturalizado
pelo griot Comandante no universo daquela plateia de crianças.
Considere-se que o tempo histórico da Conferência de Berlim
é diferente daquele encenado no conto, pois o Comandante pertence a
uma época mais afeita ao término do século XX, ao período das lutas pela
independência angolana. Todavia, se considerar-se a partilha como um
acontecimento mais elástico, o fenômeno das várias partilhas da África,
onde cada Metrópole dividiu o território do continente, culminando com
a Conferência, que foi oficializada nos domínios europeus, pode-se ler
o conto a partir das consequências desse fenômeno e, por conseguinte,
resvalar em problemas de todos os espaços africanos. O modo como a
Europa esteve presente na África ocasionou uma série de interferências
nas representações imaginárias, contribuindo para sufocar as tradições
locais.
Se enfocadas as partilhas como uma necessidade de marcar mais
fortemente a bandeira da colonização na África, observa-se que, no conto,
habilmente, o Comandante reduz o fato histórico e suas várias versões em
explicações aos miúdos com o objetivo de formar as mentalidades dessas
crianças. Ao retomar as tradições africanas e a presença do colonizador,
o Comandante recicla-os a partir do próprio lugar ocupado por ele;
dessa forma, prepara as crianças para um novo tempo, para o projeto de
construção do futuro.
É aprazível o esforço que o conto realiza ao colocar em diálogo a
tradição e os elementos externos a essa cultura, representados na figura do
relógio, desta feita inserido na esfera da cultura angolana. O Comandante
faz do relógio um motivo para o resgate de uma tradição, a da contação
de estórias, e desloca o seu papel de ex-combatente para assumir-se como
um griot africano.
Por fim, esse processo de retomada que se evidencia no conto de
Manuel Rui Monteiro pode ser posto em diálogo com o trabalho do artista
anglo-nigeriano Yinka Shonibare, radicado em Lagos, na Nigéria aos três
anos de idade, que:
Durante a última década, se tornou bem conhecido por sua exploração
do colonialismo e pós-colonialismo dentro do contexto contemporâneo
de globalização. O trabalho de Shonibare explora esses temas,
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em paralelo com temas como raça e classe, por meio de pinturas,
esculturas, fotografias e, mais recentemente, filmes e apresentações.
Usando esse amplo espectro, Shonibare examina em particular a
construção da identidade e a emaranhada inter-relação entre África
e Europa e suas respectivas histórias econômica e política. (YINKA,
2011, tradução nossa).
As criações deste artista anglo-nigeriano podem ser analisadas
como um esforço de retomada dos vários conflitos africanos e/ou
em África e, inclusive, funcionam bem como um contraponto com
a estória do relógio. A instalação demonstrada na Figura 2, a seguir,
de Yinka Shonibare, representa catorze manequins em tamanho real,
sem cabeça, ao redor de uma enorme mesa em cujo centro abre-se um
mapa do continente africano:
Figura 2 – The scramble for Africa (2003)
Fonte: <http://churchofchai.tumblr.com/page/3>. Acesso em: 12 jun. 2011.
Os manequins decapitados representam as catorze nações que
se arvoraram a decidir, ao sabor de seu prazer, o melhor destino a ser
“ofertado” ao continente africano. É a transposição, ressignificada, da
história para a ambiência espaço-temporal das artes plásticas através de
uma instalação artística.
Assim como Manuel Rui, Shonibare recicla os dados da história
e da realidade, ressignificando-os em suas obras. Os manequins
degolados rasuram o processo de dominação da África, de que a
partilha é um dos elementos. O fato de os manequins estarem vestidos
com tecidos de estamparia africana aparentemente já demonstra uma
crítica de Yinka ao momento colonialista, o da Partilha da África,
motivo de sua instalação, e, inclusive, a determinados líderes africanos,
como se eles estivessem também assentados à mesa das negociações.
Na instalação, os deslocamentos do dado factual, o da
Partilha da África, ilustram o processo multi-fásico de repetição e
transformação. No conto de Manuel Rui Monteiro, por mecanismos
detonadores de significação, engendram-se elementos do processo da
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reciclagem estética. Como se procurou demonstrar, o Comandante, ao
contar a história de um relógio produzido na Suíça que chega a Angola
seguindo rotas de comércio abertas e impostas pela colonização, o
faz dentro da tradição africana, a da contação de estórias. Por isso,
no conto, operam-se deslocamentos sígnicos que rasuram os limites
entre realidade e ficção, e o narrador despoja-se da postura de excombatente para assumir-se como um griot africano.
Abstract
The aim is to recover fragments of the historical fact of division of the African
continent through excerpts from the story “O relógio”, the Angolan writer Manuel
Rui, published in the work Sim Camarada!. The reading of the story will aim to
demonstrate that the concept of aesthetic recycling of Klucinskas and Moser (2007),
shows an excellent key to reading the text and strategies for fitting constructed by
the writer to compose a narrative, and dialogue with features of orality, operates
signic displacements, erasing the boundaries between reality and fiction, and recycles
elements from other forms of artistic expression.
Keywords: Angolan Literature - Criticism and interpretation. Oral tradition. Recycling
aesthetics.
Referências
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Perspectiva, 2004. 128 p. (Coleção Khronos, 6).
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Nazareth Soares Fonseca [e] Ivan Cupertino. Disponível em: <http://
www.ufrgs.br/cdrom/depestre/depestre.pdf>. Acesso em: 20 maio
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imperialismo europeu no século XIX. São Paulo: Ática, 78 p. (Série
Princípios, 237).
MONTEIRO, Manuel Rui. O relógio. In: MONTEIRO, Manuel Rui.
Sim camarada! Lisboa: Edições 70, 1977. p. 19-55.
THE SCRAMBLE for Africa. [Instalação de Yinka Shonibare]. 2003.
Disponível em: <http://churchofchai.tumblr.com/page/3>. Acesso
em: 12 jun. 2011.
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UZOIGWE, Godfrey Nee. Partilha europeia e conquista da África:
apanhado geral. In: BOAHEN, Albert Adu. (Ed.). História geral da
África. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. v. 8, cap. 2, p. 21-50.
YINKA Shonibare. [Informações biográficas]. In: Wikipedia: a
enciclopédia livre. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/
wiki/Yinka_Shonibare>. Acesso em: 20 jun. 2011.
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