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Intertextualidade, Sentido e Subjetividade

2015, Eventos Pedagogicos

RESUMO DO ARTIGO No campo da Lingüística Textual, é freqüente apontar-se como um dos fatores de textualidade a referência-explícita ou implícita-a outros textos. Há, no entanto, um trabalho de reconstrução do texto citado, o qual é intencionalmente recolocado pelo sujeito numa outra situação concreta. Sem a percepção dos intertextos feitos e sem o domínio da referência lingüístico-cultural dos mesmos, o efeito de sentido buscado pelo autor do texto não será compartilhado pelo leitor.

INTERTEXTUALIDADE, SENTIDO E SUBJETIVIDADE Neusa Inês Philippsen1 RESUMO DO ARTIGO No campo da Lingüística Textual, é freqüente apontar-se como um dos fatores de textualidade a referência – explícita ou implícita – a outros textos. Há, no entanto, um trabalho de reconstrução do texto citado, o qual é intencionalmente recolocado pelo sujeito numa outra situação concreta. Sem a percepção dos intertextos feitos e sem o domínio da referência lingüístico-cultural dos mesmos, o efeito de sentido buscado pelo autor do texto não será compartilhado pelo leitor. PALAVRAS-CHAVE Textualidade, Intertextualidade, Sujeito, Efeitos de Sentido, Intencionalidade. 1 INTRODUÇÃO Contrariamente à Lingüística Textual tal como é conhecida e praticada hoje, que destoa radicalmente de teorias formalistas, às quais, dada a sua visão imanentista, não era permitido responder questões que se referissem a domínios transfrásticos, ela teve que passar por vários momentos, até que viesse a obter clareza do seu objeto de trabalho. Passada a fase inicial, em que se pensava a textualidade apenas em sentido estrito, por meio das noções de coesão e coerência textuais, chegou-se ao objeto ‘texto’, encarado, hoje, como um produto lingüístico, histórico e social, que se relaciona a outros textos armazenados na memória textual coletiva. Para se compreender melhor a inter-relação do texto com a história, é necessário que se conheça os elementos que concorrem para o seu resultado e significação, bem como as operações envolvidas na obtenção da textualidade. Na tentativa de mostrar como o processo de textualização é obtido, a Lingüística atual tem cada vez mais recebido contribuições de outras áreas de estudos compatíveis, a partir de um diálogo fecundo, que pretende sanar deficiências da disciplina no que tange à tarefa que se lhe impõe. Um dos mecanismos de coerência textual, a intertextualidade, a partir da qual se procura explicar a significação de alguns textos e se é possível pleitear ou não um sujeito ativo, será o alvo da análise deste trabalho, o qual estará voltado, em especial, para os deslocamentos de sentido dos intertextos (que conservam parte do seu material estrutural 1 O texto a seguir é resultado de conclusão do curso de especialização realizado no segundo semestre de 1999 em Língua Portuguesa: teoria e prática, da Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon, sob orientação do professor João Carlos Cattelan. primitivo), quando os mesmos são aplicados a diferentes contextos. A percepção da intencionalidade do autor só será compreensível, na grande maioria das vezes, por quem puder recuperar a fonte das expressões citadas e perceber o seu reaproveitamento. 2 SOBRE A LINGÜÍSTICA DE TEXTO A Lingüística Textual é uma das correntes modernas de estudos lingüísticos (década de 60). Apesar de ser um ramo de estudo muito recente, a Lingüística de Texto trouxe importantes contribuições para a Lingüística atual. Face às diversas correntes que surgem paralelamente (Lingüística da Enunciação, Pragmática, Análise do Discurso, etc.), cabe papel de destaque à Lingüística Textual como precursora da investigação sobre os textos. Esta investigação se forjou a partir da constatação de que os recortes de análise que permitiam responder às questões da dimensão da ordem da imanência textual (ao nível da extensão da frase) não davam conta de explicar os sentidos textuais na sua totalidade2. Tem-se, porém, nesse campo de análise muitas questões em aberto e novos postulados que flexivelmente recebem contribuições de outras áreas de estudo (Psicologia, Sociologia, etc.), aproximando-se cada vez mais de disciplinas afins. 2.1 Tarefa da Lingüística Textual A Lingüística de Texto, inicialmente, se dedicou a pontos de observação mais interiores ao texto, aos mecanismos de coesão textual. Com o passar do tempo e amparada em estudos da Psicologia Cognitiva (modelos globais de cognição), ela desenvolveu estudos colocados sob a abrangência da coerência textual, num primeiro momento pensada em sentido estrito, mas, percebida a impossibilidade de se explicar os sentidos apenas pela imanência, ela teve que recorrer ao extralingüístico e contextual. Eis a proposta de Marcuschi (1983, s.d.): Proponho que se veja a Lingüística do Texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos ou orais. Seu tema abrange a coesão superficial ao nível semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e implicações a nível pragmático da produção do sentido no plano de ações e interações. Em suma, a Lingüística Textual trata o texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Por um lado, deve preservar a organização linear, que é o tratamento estritamente: lingüístico abordado no aspecto da coesão e, por outro, deve considerar a organização reticulada ou tentacular, não linear, portanto, dos níveis de sentido e intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas. 2 É a partir da década de 80 que os pesquisadores se atêm radicalmente ao novo objeto de estudos da linguagem, o texto, tomado como a unidade básica de manifestação da linguagem. Face a isso, a Lingüística Textual vai destinar-se à tarefa de buscar explicar como o processo de textualização é obtido. Cabe a ela investigar as estratégias de construção de sentido nas diferentes situações de interação verbal e explicitar que tipo de mecanismo cognitivo ou de outra natureza faltou e impediu que a textualidade fosse obtida. 2.2 Texto e Textualidade Pode-se definir que texto é uma unidade de sentido numa dada situação comunicativa e é através da interação comunicativa ( material lingüístico, processos interlocutivos e associações extralingüísticas (cognitivas e pragmáticas)) que se pode apreender o sentido global e determinar quais os elementos ou fatores responsáveis pela textualidade. Entre estes fatores, pode-se citar a coesão, a coerência, a situacionalidade, a intencionalidade e a intertextualidade. O conceito que normalmente temos de texto é empírico. Diante de uma série de enunciados não inter-relacionados dentro desses princípios lógico-semânticos, numa dada situação de uso da língua, sabemos que não estamos diante de um texto. Para que identifiquemos como texto uma série de enunciados encadeados, é preciso que a seqüência de enunciados forme um todo significativo, constitua uma unidade de sentido, nas circunstâncias de uso em que ocorrem ( MARQUES, 1990). Por outro lado, a textualidade se refere ao fato de uma determinada manifestação de linguagem, de qualquer tipo, produzir um sentido interacional. Assim, o texto seria a contraparte lingüística, verbal, da textualidade. 3 ACERCA DA COERÊNCIA Alguns estudiosos da Lingüística Textual, a exemplo de Koch e Travaglia (1989), ampliam o conceito de coerência, considerando-a condição fundamental para a construção do texto. Apresentam a coerência como decorrente de fatores das mais diversas ordens: lingüísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais, tomando-a como sinônimo de textualidade. Textualidade ou textura é o que faz de uma seqüência lingüística um texto e não uma seqüência ou um amontoado aleatório de frases ou palavras. A seqüência é percebida como texto quando aquele que a recebe é capaz de percebê-la como uma unidade significativa global. Portanto, tendo em vista o conceito que se tem de coerência, podemos dizer que é ela que dá origem à textualidade. Deste modo, sentido, coerência e textualidade são termos que recobrem um ao outro e que pretendem explicitar os mecanismos latentes ou explícitos responsáveis pelo fenômeno texto. Nesse processo, não só estão envolvidos os fatores imanentes ao texto: elementos lingüísticos, consistência, focalização, informatividade e intertextualidade, mas também os usuários, com seu conhecimento de mundo e partilhado, além dos fatores de ordem pragmática, como as inferências, a aceitabilidade e a intencionalidade. No decorrer deste trabalho, as atenções irão se voltar mais especificamente para o fator intertextualidade, defendida por muitos teóricos como um dos domínios cruciais para que o sentido e a legibilidade textual se façam. 3.1 Intertextualidade O conceito de intertextualidade, tal como é concebido, pressupõe a existência de um texto anterior e subjacente a um outro texto (oral, escrito, visual, etc.) e que se lê (textualmente) ou se decifra sob a estrutura deste. O conceito foi introduzido por Bakhtin e explorado, posteriormente, por Julia Kristeva nos seus estudos de semiótica. Com isso, a autora constitui a chamada dimensão heterogênea da linguagem, o que até então nunca fora possível exprimir, ante o enclausuramento da teoria lingüística tradicional. Trata-se de abrir, na e para além da cena das representações lingüísticas, modalidades de inscrições psíquicas pré ou translingüísticas, que poderíamos chamar semióticas, ao encontro do sentido etimológico do grego semeion, traço, marca, distintividade. No fundamento da filosofia, antes que nosso modo de pensamento se fechasse no horizonte de uma linguagem entendida como tradução de uma idéia, Platão lembrando-se dos atomistas, falou no Timeu de uma cora-arcaico, móvel, instável, anterior ao um, ao Pai, e mesmo à sílaba, metaforicamente designada como alimentar o maternal. ( 1987, p.14) A abordagem de Kristeva mandaria a Lingüística para fora do seu fascínio prevalente pelas estruturas monolíticas e monogêneas, para uma análise da linguagem como processo heterogêneo, complexo, num estado de fluxo constante. A redefinição de objeto proposto pela autora modifica radicalmente a concepção do estruturalismo ortodoxo, que levava à negação do “autor” e do “leitor”, pois dava ênfase primordial às estruturas formais do texto e negava um “sujeito em processo”, com possibilidades de criação e de sublimação. Este era posto como sujeito às leis da cultura humana. Ao se assumir, pois, uma postura favorável ao sujeito onipresente, que se constitui pelo discurso do outro, mas que age, manobra e constrói marcas inventivas só suas, é necessário também partir-se do pressuposto de que a intertextualidade presume um universo cultural muito amplo e complexo, pois implica identificação e reconhecimento de remissões a obras ou a textos mais ou menos conhecidos, além de exigir do interlocutor que ele interprete a ‘função’ daquela citação ou alusão em questão, isto é, identifique a intencionalidade do sujeito/locutor nas referências literalmente citadas ou modificadas. Koch (1998, p.46), citando Barthes, afirma que “O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos, que existiram ou existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variados, sob formas mais ou menos reconhecíveis.” A partir do uso de Barthes realizado pela autora, há que se conceber uma intertextualidade em sentido amplo e outra em sentido estrito. A intertextualidade ampla ou “interdiscursividade” é condição para que o discurso exista. Nenhum discurso vem ao mundo solitário ou ainda não dito. Ele sempre será construído sobre um outro discurso já proferido e com relação a ele tomará posição, reorganizando os termos principais ou destruindo seus argumentos. Sendo assim, todo texto já é naturalmente um intertexto, visto que qualquer texto pode ser considerado como uma espécie de colagem absorvida e transformada de um outro texto. A intertextualidade estrita se dá no momento em que um texto retoma outro efetivamente produzido e do qual conserva elementos que materialmente vem se instalar dentro do novo texto, quer seja fazendo menção explícita a sua origem, quer deixando-a implícita, requerendo que tal retomada fique a cargo da percepção do leitor que se depara com o texto. Pode-se, então, dizer que um texto remete a outro para defender as idéias nele contidas ou para contestá-las. Para se definir diante de determinado assunto, o autor do texto leva em consideração as idéias de outros “autores” e com eles dialoga no seu texto. 4 LÍNGUA – DISCURSO – CONSTITUTIVIDADE Acreditando num sujeito ativo, que a cada nova produção desloca ou modifica um já dito, pretende-se reiterar tal forma de percepção, mostrando-a como recorrente em estudos mais recentes sobre a aquisição da linguagem – visão sócio-interacionista – e ainda naquelas que procuram conceber as atividades dos falantes, não como de apropriação, mas como ações que se fazem “sobre” a língua. De acordo com Possenti ( 1988, p. 49), No domínio do que seria a lingüística das formas, há uma indeterminação das estruturas sintáticas e semânticas, de tal forma que mesmo as categorias, as relações e os sentidos se constituem efetivamente nos processos discursivos e de constituição das línguas. A realidade não apresenta uma língua estruturada, embora mantendo alguns lugares destinados, por oposição aos outros, a marcar a presença do sujeito. Apresenta-a, ao contrário, como tendo por traço relevante a própria atividade do sujeito, atividade esta de natureza constitutiva e não apropriadora. Esta outra concepção de sujeito, que tem no discurso a instância concreta da sua existência, no entanto, não pretende um corte radical com a lingüística das formas, assim como o pretendiam as teorias do contexto, mas uma simultaneidade das duas atividades, pois a atividade de constituição não pode ser efetuada sem a língua, e sim sobre e através da língua, tal como o autor acima professa. A significação resultaria, assim, da composição entre o extra-lingüístico e a materialidade lingüística. O sentido final da atividade do sujeito, que se utiliza dos recursos mais adequados (marcas de subjetividade) ao seu discurso, deve ser avaliado no “acontecimento”, visto a partir da recuperação da situação histórica da língua, construída pelos homens num processo de interação. É o que nos leva a crer na impossibilidade de desvincular um texto de seu contexto histórico. Dizer que o falante constitui o discurso significa dizer que ele, submetendo-se ao que é determinado ( certos elementos sintáticos e semânticos, certos valores sociais) no momento em que fala, considerando a situação em que fala e tendo em vista os efeitos que quer produzir, escolhe dentre os recursos alternativos que o trabalho lingüístico de outros falantes e o seu próprio, até o momento, lhe põe a disposição, aqueles que lhe parecem mais adequados. ( Id. Ibid, p. .59) Tendo em vista que a língua se constitui através do trabalho discursivo dos sujeitos, aqui pensados como agindo a partir da retomada do discurso de outrem, pretende-se mostrar produções de texto constituídas a partir de procedimentos de intertextualidade estrita, buscando corroborar o postulado do sujeito ativo, o que parece ser definido com relação aos casos em que um texto se articula sobre outro, sem esquecer, é claro, que a unidade do texto demanda um leitor cooperativo que reconheça as fórmulas aludidas. 5 O TRABALHO INTERTEXTUAL Escolheu-se, para análise, três textos imagéticos que mostram um sujeito ativo, o qual se vale de ingredientes culturais relativamente bem disseminados no domínio público, o que facilita a compreensão do leitor com relação ao sentido pretendido por ele, facilitação que é dada pelo fato de os leitores irem buscar textos que são bem difundidos e que permitem, com mais facilidade, a recuperação do sentido intencionado pelo autor. 5.1 Branca de Neve e os Sete Anões Os três textos que serão analisados a seguir realizam uma intertextualidade explícita com o conto tradicional “A Branca de Neve e os Sete Anões”. Este conto, originalmente escrito pelos Irmãos Grimm, faz parte comum da tradição popular histórica, é conhecido e difundido pelas gerações, em vários contextos situacionais; portanto, não é necessário aqui retomá-lo em sua integridade. Deve-se dar atenção fundamentalmente às duas personagens principais da história, as quais (como na grande maioria dos contos de fada) personificam as forças contrárias do bem, corporificado pelo branco e belo ( Branca de Neve - bondosa, educada, solidária), e do mal, representado pelo negro e feio ( Rainha Má - invejosa, vaidosa, ambiciosa). A narrativa mostra o conflito que se estabelece entre as duas personagens, tendo como clímax o momento revelador do suposto “espelho mágico” que informa à Rainha Má que ela não é mais o centro de beleza do mundo, dado que a personagem o interrogava diariamente com a questão: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” Com não obtinha a resposta esperada, atribuída a beleza suprema a Branca de Neve, esta passa a ser vista pela Rainha Má como alvo de aniquilação. 5.2 Fernando Henrique Cardoso Revista Época, 07/09/98 Neste texto, que foi veiculado durante a campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardoso pela sua reeleição como presidente do Brasil, logo após sair uma pesquisa de opinião na qual o candidato aparecia ganhando a eleição já no primeiro turno, o articulista traz à tona o conto da Branca de Neve e os Sete Anões. Cabe ao leitor proficiente, que dispõe do conhecimento intertextual, fazer as associações necessárias para que o sentido possa ser apreendido. Por exemplo, ele deve poder atribuir a FHC os traços da Rainha Má, o que lhe é possível por meio da pistas fornecidas pelo autor – o espelho (e nele refletido o rosto do presidente: sorriso largo, mostrando a sensação do reinado absoluto e único da sua vaidade, o que permite assumir uma postura de superioridade e convicção, quanto de afetação e presunção) – e, principalmente, os elementos lingüísticos: “Espelho meu: alguém aí quer saber o que a última pesquisa deu?” Importante que se observe que tal efeito de sentido, propositadamente intentado pelo articulista, pode ser uma posição contrária aos interesses políticos do governante, e, dado que a classe política sofre comumente de desprestígio nacional, a crítica pode ser generalizada para os políticos em geral. Tema este, aliás, muito explorado pela mídia nos últimos anos. Vê, pois, um sujeito que trabalha e desloca o já sabido. 5.3 Jô Soares Revista Manchete, 16/06/97 Assim como no anterior, este texto, veiculado pela Revista Manchete, se constrói a partir da intertextualidade que realiza com o conto da Branca de Neve. Aqui, o objeto da comicidade é Jô Soares, um apresentador de tevê e humorista muito conhecido no meio artístico e popular, que é considerado, inclusive, como um dos melhores humoristas brasileiros. Ele tem se destacado por um programa de entrevistas aplaudido pela crítica. Novamente observadas as marcas que remetem ao texto aludido que, como se viu, não só se aplicam à verbal, mas também à outras formas de linguagem, como a recorrência do espelho, tem-se um novo deslocamento do sentido do texto original. Neste caso, o articulista se vale da popularidade do artista para, implicitamente, denunciar a posição que, por excelência, o personagem pensa ter e que lhe permite colocar-se acima dos demais. É bom lembrar que Jô Soares explora uma das suas características físicas (ser gordo) como marca integrante do seu sucesso e, ironicamente, o autor estabelece uma forte carga pejorativa entre o seu estado físico, “gordo” , e ser “sexy”. Ao se observar as marcas que o texto fornece, vê-se a ênfase do autor nesta condição narcisicamente criada: “Diga, espelho meu, existe na TV algum gordo mais sexy do que eu?”, ao que o espelho responde: ‘Antônio Fagundes”, que incorpora a personagem da charge a Branca de Neve. O nome citado pelo espelho é o de outro artista televisivo de grande renome, ator, protagonista de produções artísticas de destaque nacional e internacional, o que leva a verificar um desmerecimento do personagem do texto com relação ao outro que é mencionado. Todos estes dados pressupõe duas linhas de análise (sentidos): uma delas se atem à sátira de um artista específico do meio humorístico; a outra volta-se à crítica do autor, que intenciona mostrar ao leitor o narcisismo característico de todos os artistas de televisão, que tencionam alcançar o grau máximo da popularidade e simpatia, podendo se colocar num pedestal que lhes dá uma posição superior aos demais. Novamente, é possível pleitear o trabalho de um sujeito autor, que, valendo-se do já sabido e já dado historicamente, constrói o novo, forjando um novo efeito de sentido e uma nova fala. 5.4 Paulo Maluf Revista Época, 15/04./99 Podemos ver aqui mais uma referência intertextual ao texto anterior. Aqui, especificamente, o alvo do articulista do texto é uma autoridade política bem conhecida nacionalmente, por ter sido já candidato à presidência da república, mas principalmente por seus constantes envolvimentos com episódios de corrupção na cidade e estado de São Paulo, em que foi consecutivamente prefeito e governador. Para se discernir o efeito de sentido pretendido neste texto, é necessário considerar os fatos recentes ocorridos na câmara de vereadores e prefeitura municipal de São Paulo, fatos administrativos que revelam uma sucessão de escândalos políticos, nos quais o nome de Maluf está presente, bem como grande parte dos seus sucessores e seguidores: é o caso do prefeito em gestão Celso Pita que teve a campanha eleitoral assessorada por ele. O intertexto recorre enfaticamente à linguagem não verbal, na qual as imagens em evidência resgatam a narrativa da Branca de Neve. Veja-se, por exemplo, o espelho refletindo a protagonista do conto, vestida tradicionalmente como no original, mas com o rosto do político Pita, enquanto que Paulo Maluf personifica a Rainha Malvada. Atente-se para o detalhe da coroa, que sugere a supremacia de um líder, o dos “desonestos”. No entanto, tanto no contexto, como no texto citado, surge alguém (o prefeito atual) que consegue superar o ‘mestre’ corrupto, Pita, mais Maluf do que Maluf. Tem-se, novamente, um uso deslocado de um texto anterior, provocando, dada a sua nova situação de uso, um efeito de sentido diferente, derivado da marca de autoria exercida sobre o texto inicial, e remetido para um ambiente que não aquele a que o texto original3 pertence. Com relação aos postulados, que se apresentam necessários para que as leituras procedentes possam ser realizadas, pode-se identificar o conhecimento prévio do texto 3 Há que se verificar, neste conto, a presença com o intertexto do mito de Narciso, jovem belo que acaba apaixonando-se pela própria imagem refletida na água, por castigo de uma ninfa desprezada por ele. originário, as recorrências à linguagem não verbal e, imprescindivelmente, o trabalho de construção do sujeito/autor do novo texto. Note-se que ele não os copia meramente, ou seja, não os reproduz simplesmente, sujeitando-se aos limites estabelecidos e aos efeitos de sentido trabalhados: o locutor do texto desloca, fragmenta, aproveita traços, encaminha para uma outra situação de aplicação, usa à sua maneira o texto citado. Confirma-se que, do ponto de vista da construção dos sentidos, todo texto é perpassado por vozes de diferentes enunciadores, ora concordantes, ora dissonantes, o que faz com que se caracterize o fenômeno da linguagem humana como essencialmente dialógica e, portanto, polifônica. (Koch, 1998, p. 57) 6 CONCLUSÃO Pela prática e análise de textos, ainda que fragmentária neste trabalho, pode-se perceber que os processos discursivos serão sempre legíveis numa perspectiva intertextual, pois fazem parte de um conjunto de trajetos significativos pré-existentes e orientam a compreensão do leitor. Por outro lado, se a legibilidade é efetuada através do fenômeno da intertextualidade, necessita-se, como fator essencial, um olhar atento, estruturado e informado, sem o qual o trabalho do sujeito/autor não seria perceptível, reconhecível. A recontextualização de um texto original, que o recoloca numa outra situação, fazendo em cada uma um deslocamento de sentido, é evidência de que há um sujeito ativo que constrói, que realiza uma atividade e produz efeitos de sentido distintos com um material, deixando marcas da sua presença. É por meio destes recursos ou traços subjetivos que se pode ver refletida a historicidade do sujeito. Mostrar o trabalho desse “eu” que se utiliza do “outro” para alterar, construir e deixar suas marcas era exatamente o propósito deste trabalho. E mostrá-lo acontecendo com relação à intertextualidade. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 7.1 KOCH, Ingedore V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo : Contexto, 1998. 7.2 ______ & TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. São Paulo : Cortez, 1989. 7.3 KRISTEVA, Julia. No princípio era o amor : psicanálise e fé. ( Trad. Leda Tenório da Motta). São Paulo : Brasiliense, 1987. 7.4 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Lingüística de texto: o que é e como se faz. Pernambuco, 1983 (Inédito). 7.5 MARQUES, M. Helena Duarte. Iniciação à semântica. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1990. 7.6 POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo : Martins Fontes, 1988.