INTERTEXTUALIDADE, SENTIDO E SUBJETIVIDADE
Neusa Inês Philippsen1
RESUMO DO ARTIGO
No campo da Lingüística Textual, é freqüente apontar-se
como um dos fatores de textualidade a referência – explícita ou
implícita – a outros textos. Há, no entanto, um trabalho de
reconstrução do texto citado, o qual é intencionalmente recolocado
pelo sujeito numa outra situação concreta. Sem a percepção dos
intertextos feitos e sem o domínio da referência lingüístico-cultural
dos mesmos, o efeito de sentido buscado pelo autor do texto não
será compartilhado pelo leitor.
PALAVRAS-CHAVE
Textualidade, Intertextualidade, Sujeito, Efeitos de Sentido,
Intencionalidade.
1 INTRODUÇÃO
Contrariamente à Lingüística Textual tal como é conhecida e praticada hoje, que
destoa radicalmente de teorias formalistas, às quais, dada a sua visão imanentista, não era
permitido responder questões que se referissem a domínios transfrásticos, ela teve que
passar por vários momentos, até que viesse a obter clareza do seu objeto de trabalho.
Passada a fase inicial, em que se pensava a textualidade apenas em sentido estrito, por
meio das noções de coesão e coerência textuais, chegou-se ao objeto ‘texto’, encarado,
hoje, como um produto lingüístico, histórico e social, que se relaciona a outros textos
armazenados na memória textual coletiva.
Para se compreender melhor a inter-relação do texto com a história, é necessário
que se conheça os elementos que concorrem para o seu resultado e significação, bem como
as operações envolvidas na obtenção da textualidade. Na tentativa de mostrar como o
processo de textualização é obtido, a Lingüística atual tem cada vez mais recebido
contribuições de outras áreas de estudos compatíveis, a partir de um diálogo fecundo, que
pretende sanar deficiências da disciplina no que tange à tarefa que se lhe impõe.
Um dos mecanismos de coerência textual, a intertextualidade, a partir da qual se
procura explicar a significação de alguns textos e se é possível pleitear ou não um sujeito
ativo, será o alvo da análise deste trabalho, o qual estará voltado, em especial, para os
deslocamentos de sentido dos intertextos (que conservam parte do seu material estrutural
1
O texto a seguir é resultado de conclusão do curso de especialização realizado no segundo semestre de 1999
em Língua Portuguesa: teoria e prática, da Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon, sob orientação
do professor João Carlos Cattelan.
primitivo), quando os mesmos são aplicados a diferentes contextos. A percepção da
intencionalidade do autor só será compreensível, na grande maioria das vezes, por quem
puder recuperar a fonte das expressões citadas e perceber o seu reaproveitamento.
2 SOBRE A LINGÜÍSTICA DE TEXTO
A Lingüística Textual é uma das correntes modernas de estudos lingüísticos
(década de 60). Apesar de ser um ramo de estudo muito recente, a Lingüística de Texto
trouxe importantes contribuições para a Lingüística atual. Face às diversas correntes que
surgem paralelamente (Lingüística da Enunciação, Pragmática, Análise do Discurso, etc.),
cabe papel de destaque à Lingüística Textual como precursora da investigação sobre os
textos. Esta investigação se forjou a partir da constatação de que os recortes de análise que
permitiam responder às questões da dimensão da ordem da imanência textual (ao nível da
extensão da frase) não davam conta de explicar os sentidos textuais na sua totalidade2.
Tem-se, porém, nesse campo de análise muitas questões em aberto e novos
postulados que flexivelmente recebem contribuições de outras áreas de estudo (Psicologia,
Sociologia, etc.), aproximando-se cada vez mais de disciplinas afins.
2.1 Tarefa da Lingüística Textual
A Lingüística de Texto, inicialmente, se dedicou a pontos de observação mais
interiores ao texto, aos mecanismos de coesão textual. Com o passar do tempo e amparada
em estudos da Psicologia Cognitiva (modelos globais de cognição), ela desenvolveu
estudos colocados sob a abrangência da coerência textual, num primeiro momento pensada
em sentido estrito, mas, percebida a impossibilidade de se explicar os sentidos apenas pela
imanência, ela teve que recorrer ao extralingüístico e contextual.
Eis a proposta de Marcuschi (1983, s.d.):
Proponho que se veja a Lingüística do Texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo
das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção,
funcionamento e recepção de textos escritos ou orais. Seu tema abrange a coesão superficial ao nível
semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e implicações a nível pragmático da produção
do sentido no plano de ações e interações. Em suma, a Lingüística Textual trata o texto como um ato
de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Por um lado, deve preservar a
organização linear, que é o tratamento estritamente: lingüístico abordado no aspecto da coesão e, por
outro, deve considerar a organização reticulada ou tentacular, não linear, portanto, dos níveis de
sentido e intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas.
2
É a partir da década de 80 que os pesquisadores se atêm radicalmente ao novo objeto de estudos da
linguagem, o texto, tomado como a unidade básica de manifestação da linguagem.
Face a isso, a Lingüística Textual vai destinar-se à tarefa de buscar explicar como
o processo de textualização é obtido. Cabe a ela investigar as estratégias de construção de
sentido nas diferentes situações de interação verbal e explicitar que tipo de mecanismo
cognitivo ou de outra natureza faltou e impediu que a textualidade fosse obtida.
2.2 Texto e Textualidade
Pode-se definir que texto é uma unidade de sentido numa dada situação
comunicativa e é através da interação comunicativa ( material lingüístico, processos
interlocutivos e associações extralingüísticas (cognitivas e pragmáticas)) que se pode
apreender o sentido global e determinar quais os elementos ou fatores responsáveis pela
textualidade. Entre estes fatores, pode-se citar a coesão, a coerência, a situacionalidade, a
intencionalidade e a intertextualidade.
O conceito que normalmente temos de texto é empírico. Diante de uma série de enunciados não
inter-relacionados dentro desses princípios lógico-semânticos, numa dada situação de uso da língua,
sabemos que não estamos diante de um texto. Para que identifiquemos como texto uma série de
enunciados encadeados, é preciso que a seqüência de enunciados forme um todo significativo,
constitua uma unidade de sentido, nas circunstâncias de uso em que ocorrem ( MARQUES, 1990).
Por outro lado, a textualidade se refere ao fato de uma determinada manifestação de
linguagem, de qualquer tipo, produzir um sentido interacional. Assim, o texto seria a
contraparte lingüística, verbal, da textualidade.
3 ACERCA DA COERÊNCIA
Alguns estudiosos da Lingüística Textual, a exemplo de Koch e Travaglia (1989),
ampliam o conceito de coerência, considerando-a condição fundamental para a construção
do texto. Apresentam a coerência como decorrente de fatores das mais diversas ordens:
lingüísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais, tomando-a como sinônimo
de textualidade.
Textualidade ou textura é o que faz de uma seqüência lingüística um texto e não uma seqüência ou
um amontoado aleatório de frases ou palavras. A seqüência é percebida como texto quando aquele
que a recebe é capaz de percebê-la como uma unidade significativa global. Portanto, tendo em vista
o conceito que se tem de coerência, podemos dizer que é ela que dá origem à textualidade.
Deste modo, sentido, coerência e textualidade são termos que recobrem um ao
outro e que pretendem explicitar os mecanismos latentes ou explícitos responsáveis pelo
fenômeno texto. Nesse processo, não só estão envolvidos os fatores imanentes ao texto:
elementos lingüísticos, consistência, focalização, informatividade e intertextualidade, mas
também os usuários, com seu conhecimento de mundo e partilhado, além dos fatores de
ordem pragmática, como as inferências, a aceitabilidade e a intencionalidade.
No decorrer deste trabalho, as atenções irão se voltar mais especificamente para o
fator intertextualidade, defendida por muitos teóricos como um dos domínios cruciais para
que o sentido e a legibilidade textual se façam.
3.1 Intertextualidade
O conceito de intertextualidade, tal como é concebido, pressupõe a existência de
um texto anterior e subjacente a um outro texto (oral, escrito, visual, etc.) e que se lê
(textualmente) ou se decifra sob a estrutura deste. O conceito foi introduzido por Bakhtin e
explorado, posteriormente, por Julia Kristeva nos seus estudos de semiótica. Com isso, a
autora constitui a chamada dimensão heterogênea da linguagem, o que até então nunca fora
possível exprimir, ante o enclausuramento da teoria lingüística tradicional.
Trata-se de abrir, na e para além da cena das representações lingüísticas, modalidades de inscrições
psíquicas pré ou translingüísticas, que poderíamos chamar semióticas, ao encontro do sentido
etimológico do grego semeion, traço, marca, distintividade. No fundamento da filosofia, antes que
nosso modo de pensamento se fechasse no horizonte de uma linguagem entendida como tradução de
uma idéia, Platão lembrando-se dos atomistas, falou no Timeu de uma cora-arcaico, móvel, instável,
anterior ao um, ao Pai, e mesmo à sílaba, metaforicamente designada como alimentar o maternal. (
1987, p.14)
A abordagem de Kristeva mandaria a Lingüística para fora do seu fascínio
prevalente pelas estruturas monolíticas e monogêneas, para uma análise da linguagem
como processo heterogêneo, complexo, num estado de fluxo constante. A redefinição de
objeto proposto pela autora modifica radicalmente a concepção do estruturalismo
ortodoxo, que levava à negação do “autor” e do “leitor”, pois dava ênfase primordial às
estruturas formais do texto e negava um “sujeito em processo”, com possibilidades de
criação e de sublimação. Este era posto como sujeito às leis da cultura humana.
Ao se assumir, pois, uma postura favorável ao sujeito onipresente, que se constitui
pelo discurso do outro, mas que age, manobra e constrói marcas inventivas só suas, é
necessário também partir-se do pressuposto de que a intertextualidade presume um
universo cultural muito amplo e complexo, pois implica identificação e reconhecimento de
remissões a obras ou a textos mais ou menos conhecidos, além de exigir do interlocutor
que ele interprete a ‘função’ daquela citação ou alusão em questão, isto é, identifique a
intencionalidade do sujeito/locutor nas referências literalmente citadas ou modificadas.
Koch (1998, p.46), citando Barthes, afirma que “O texto redistribui a língua. Uma
das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos, que existiram ou
existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um
intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variados, sob formas mais ou
menos reconhecíveis.”
A partir do uso de Barthes realizado pela autora, há que se conceber uma
intertextualidade em sentido amplo e outra em sentido estrito. A intertextualidade ampla ou
“interdiscursividade” é condição para que o discurso exista. Nenhum discurso vem ao
mundo solitário ou ainda não dito. Ele sempre será construído sobre um outro discurso já
proferido e com relação a ele tomará posição, reorganizando os termos principais ou
destruindo seus argumentos. Sendo assim, todo texto já é naturalmente um intertexto, visto
que qualquer texto pode ser considerado como uma espécie de colagem absorvida e
transformada de um outro texto.
A intertextualidade estrita se dá no momento em que um texto retoma outro
efetivamente produzido e do qual conserva elementos que materialmente vem se instalar
dentro do novo texto, quer seja fazendo menção explícita a sua origem, quer deixando-a
implícita, requerendo que tal retomada fique a cargo da percepção do leitor que se depara
com o texto.
Pode-se, então, dizer que um texto remete a outro para defender as idéias nele
contidas ou para contestá-las. Para se definir diante de determinado assunto, o autor do
texto leva em consideração as idéias de outros “autores” e com eles dialoga no seu texto.
4 LÍNGUA – DISCURSO – CONSTITUTIVIDADE
Acreditando num sujeito ativo, que a cada nova produção desloca ou modifica um
já dito, pretende-se reiterar tal forma de percepção, mostrando-a como recorrente em
estudos mais recentes sobre a aquisição da linguagem – visão sócio-interacionista – e ainda
naquelas que procuram conceber as atividades dos falantes, não como de apropriação, mas
como ações que se fazem “sobre” a língua. De acordo com Possenti ( 1988, p. 49),
No domínio do que seria a lingüística das formas, há uma indeterminação das estruturas sintáticas e
semânticas, de tal forma que mesmo as categorias, as relações e os sentidos se constituem
efetivamente nos processos discursivos e de constituição das línguas. A realidade não apresenta uma
língua estruturada, embora mantendo alguns lugares destinados, por oposição aos outros, a marcar a
presença do sujeito. Apresenta-a, ao contrário, como tendo por traço relevante a própria atividade do
sujeito, atividade esta de natureza constitutiva e não apropriadora.
Esta outra concepção de sujeito, que tem no discurso a instância concreta da sua
existência, no entanto, não pretende um corte radical com a lingüística das formas, assim
como o pretendiam as teorias do contexto, mas uma simultaneidade das duas atividades,
pois a atividade de constituição não pode ser efetuada sem a língua, e sim sobre e através
da língua, tal como o autor acima professa. A significação resultaria, assim, da composição
entre o extra-lingüístico e a materialidade lingüística.
O sentido final da atividade do sujeito, que se utiliza dos recursos mais adequados
(marcas de subjetividade) ao seu discurso, deve ser avaliado no “acontecimento”, visto a
partir da recuperação da situação histórica da língua, construída pelos homens num
processo de interação. É o que nos leva a crer na impossibilidade de desvincular um texto
de seu contexto histórico.
Dizer que o falante constitui o discurso significa dizer que ele, submetendo-se ao que é determinado
( certos elementos sintáticos e semânticos, certos valores sociais) no momento em que fala,
considerando a situação em que fala e tendo em vista os efeitos que quer produzir, escolhe dentre os
recursos alternativos que o trabalho lingüístico de outros falantes e o seu próprio, até o momento, lhe
põe a disposição, aqueles que lhe parecem mais adequados. ( Id. Ibid, p. .59)
Tendo em vista que a língua se constitui através do trabalho discursivo dos sujeitos,
aqui pensados como agindo a partir da retomada do discurso de outrem, pretende-se
mostrar produções de texto constituídas a partir de procedimentos de intertextualidade
estrita, buscando corroborar o postulado do sujeito ativo, o que parece ser definido com
relação aos casos em que um texto se articula sobre outro, sem esquecer, é claro, que a
unidade do texto demanda um leitor cooperativo que reconheça as fórmulas aludidas.
5 O TRABALHO INTERTEXTUAL
Escolheu-se, para análise, três textos imagéticos que mostram um sujeito ativo, o
qual se vale de ingredientes culturais relativamente bem disseminados no domínio público,
o que facilita a compreensão do leitor com relação ao sentido pretendido por ele,
facilitação que é dada pelo fato de os leitores irem buscar textos que são bem difundidos e
que permitem, com mais facilidade, a recuperação do sentido intencionado pelo autor.
5.1 Branca de Neve e os Sete Anões
Os três textos que serão analisados a seguir realizam uma intertextualidade explícita
com o conto tradicional “A Branca de Neve e os Sete Anões”. Este conto, originalmente
escrito pelos Irmãos Grimm, faz parte comum da tradição popular histórica, é conhecido e
difundido pelas gerações, em vários contextos situacionais; portanto, não é necessário aqui
retomá-lo em sua integridade.
Deve-se dar atenção fundamentalmente às duas personagens principais da história,
as quais (como na grande maioria dos contos de fada) personificam as forças contrárias do
bem, corporificado pelo branco e belo ( Branca de Neve - bondosa, educada, solidária), e
do mal, representado pelo negro e feio ( Rainha Má - invejosa, vaidosa, ambiciosa). A
narrativa mostra o conflito que se estabelece entre as duas personagens, tendo como clímax
o momento revelador do suposto “espelho mágico” que informa à Rainha Má que ela não é
mais o centro de beleza do mundo, dado que a personagem o interrogava diariamente com
a questão: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” Com não obtinha a
resposta esperada, atribuída a beleza suprema a Branca de Neve, esta passa a ser vista pela
Rainha Má como alvo de aniquilação.
5.2 Fernando Henrique Cardoso
Revista Época, 07/09/98
Neste texto, que foi veiculado durante a campanha eleitoral de Fernando Henrique
Cardoso pela sua reeleição como presidente do Brasil, logo após sair uma pesquisa de
opinião na qual o candidato aparecia ganhando a eleição já no primeiro turno, o articulista
traz à tona o conto da Branca de Neve e os Sete Anões. Cabe ao leitor proficiente, que
dispõe do conhecimento intertextual, fazer as associações necessárias para que o sentido
possa ser apreendido. Por exemplo, ele deve poder atribuir a FHC os traços da Rainha Má,
o que lhe é possível por meio da pistas fornecidas pelo autor – o espelho (e nele refletido o
rosto do presidente: sorriso largo, mostrando a sensação do reinado absoluto e único da sua
vaidade, o que permite assumir uma postura de superioridade e convicção, quanto de
afetação e presunção) – e, principalmente, os elementos lingüísticos: “Espelho meu:
alguém aí quer saber o que a última pesquisa deu?”
Importante que se observe que tal efeito de sentido, propositadamente intentado
pelo articulista, pode ser uma posição contrária aos interesses políticos do governante, e,
dado que a classe política sofre comumente de desprestígio nacional, a crítica pode ser
generalizada para os políticos em geral. Tema este, aliás, muito explorado pela mídia nos
últimos anos. Vê, pois, um sujeito que trabalha e desloca o já sabido.
5.3 Jô Soares
Revista Manchete, 16/06/97
Assim como no anterior, este texto, veiculado pela Revista Manchete, se constrói a
partir da intertextualidade que realiza com o conto da Branca de Neve. Aqui, o objeto da
comicidade é Jô Soares, um apresentador de tevê e humorista muito conhecido no meio
artístico e popular, que é considerado, inclusive, como um dos melhores humoristas
brasileiros. Ele tem se destacado por um programa de entrevistas aplaudido pela crítica.
Novamente observadas as marcas que remetem ao texto aludido que, como se viu,
não só se aplicam à verbal, mas também à outras formas de linguagem, como a recorrência
do espelho, tem-se um novo deslocamento do sentido do texto original. Neste caso, o
articulista se vale da popularidade do artista para, implicitamente, denunciar a posição que,
por excelência, o personagem pensa ter e que lhe permite colocar-se acima dos demais.
É bom lembrar que Jô Soares explora uma das suas características físicas (ser
gordo) como marca integrante do seu sucesso e, ironicamente, o autor estabelece uma forte
carga pejorativa entre o seu estado físico, “gordo” , e ser “sexy”. Ao se observar as marcas
que o texto fornece, vê-se a ênfase do autor nesta condição narcisicamente criada: “Diga,
espelho meu, existe na TV algum gordo mais sexy do que eu?”, ao que o espelho responde:
‘Antônio Fagundes”, que incorpora a personagem da charge a Branca de Neve. O nome
citado pelo espelho é o de outro artista televisivo de grande renome, ator, protagonista de
produções artísticas de destaque nacional e internacional, o que leva a verificar um
desmerecimento do personagem do texto com relação ao outro que é mencionado.
Todos estes dados pressupõe duas linhas de análise (sentidos): uma delas se atem à
sátira de um artista específico do meio humorístico; a outra volta-se à crítica do autor, que
intenciona mostrar ao leitor o narcisismo característico de todos os artistas de televisão,
que tencionam alcançar o grau máximo da popularidade e simpatia, podendo se colocar
num pedestal que lhes dá uma posição superior aos demais. Novamente, é possível pleitear
o trabalho de um sujeito autor, que, valendo-se do já sabido e já dado historicamente,
constrói o novo, forjando um novo efeito de sentido e uma nova fala.
5.4 Paulo Maluf
Revista Época, 15/04./99
Podemos ver aqui mais uma referência intertextual ao texto anterior. Aqui,
especificamente, o alvo do articulista do texto é uma autoridade política bem conhecida
nacionalmente, por ter sido já candidato à presidência da república, mas principalmente por
seus constantes envolvimentos com episódios de corrupção na cidade e estado de São
Paulo, em que foi consecutivamente prefeito e governador.
Para se discernir o efeito de sentido pretendido neste texto, é necessário considerar
os fatos recentes ocorridos na câmara de vereadores e prefeitura municipal de São Paulo,
fatos administrativos que revelam uma sucessão de escândalos políticos, nos quais o nome
de Maluf está presente, bem como grande parte dos seus sucessores e seguidores: é o caso
do prefeito em gestão Celso Pita que teve a campanha eleitoral assessorada por ele.
O intertexto recorre enfaticamente à linguagem não verbal, na qual as imagens em
evidência resgatam a narrativa da Branca de Neve. Veja-se, por exemplo, o espelho
refletindo a protagonista do conto, vestida tradicionalmente como no original, mas com o
rosto do político Pita, enquanto que Paulo Maluf personifica a Rainha Malvada. Atente-se
para o detalhe da coroa, que sugere a supremacia de um líder, o dos “desonestos”. No
entanto, tanto no contexto, como no texto citado, surge alguém (o prefeito atual) que
consegue superar o ‘mestre’ corrupto, Pita, mais Maluf do que Maluf.
Tem-se, novamente, um uso deslocado de um texto anterior, provocando, dada a
sua nova situação de uso, um efeito de sentido diferente, derivado da marca de autoria
exercida sobre o texto inicial, e remetido para um ambiente que não aquele a que o texto
original3 pertence.
Com relação aos postulados, que se apresentam necessários para que as leituras
procedentes possam ser realizadas, pode-se identificar o conhecimento prévio do texto
3
Há que se verificar, neste conto, a presença com o intertexto do mito de Narciso, jovem belo que
acaba apaixonando-se pela própria imagem refletida na água, por castigo de uma ninfa desprezada por ele.
originário, as recorrências à linguagem não verbal e, imprescindivelmente, o trabalho de
construção do sujeito/autor do novo texto. Note-se que ele não os copia meramente, ou
seja, não os reproduz simplesmente, sujeitando-se aos limites estabelecidos e aos efeitos de
sentido trabalhados: o locutor do texto desloca, fragmenta, aproveita traços, encaminha
para uma outra situação de aplicação, usa à sua maneira o texto citado.
Confirma-se que, do ponto de vista da construção dos sentidos, todo texto é perpassado por vozes de
diferentes enunciadores, ora concordantes, ora dissonantes, o que faz com que se caracterize o
fenômeno da linguagem humana como essencialmente dialógica e, portanto, polifônica. (Koch,
1998, p. 57)
6 CONCLUSÃO
Pela prática e análise de textos, ainda que fragmentária neste trabalho, pode-se
perceber que os processos discursivos serão sempre legíveis numa perspectiva intertextual,
pois fazem parte de um conjunto de trajetos significativos pré-existentes e orientam a
compreensão do leitor. Por outro lado, se a legibilidade é efetuada através do fenômeno da
intertextualidade, necessita-se, como fator essencial, um olhar atento, estruturado e
informado, sem o qual o trabalho do sujeito/autor não seria perceptível, reconhecível.
A recontextualização de um texto original, que o recoloca numa outra situação,
fazendo em cada uma um deslocamento de sentido, é evidência de que há um sujeito ativo
que constrói, que realiza uma atividade e produz efeitos de sentido distintos com um
material, deixando marcas da sua presença. É por meio destes recursos ou traços subjetivos
que se pode ver refletida a historicidade do sujeito. Mostrar o trabalho desse “eu” que se
utiliza do “outro” para alterar, construir e deixar suas marcas era exatamente o propósito
deste trabalho. E mostrá-lo acontecendo com relação à intertextualidade.
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
7.1 KOCH, Ingedore V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo : Contexto, 1998.
7.2 ______ & TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. São Paulo : Cortez, 1989.
7.3 KRISTEVA, Julia. No princípio era o amor : psicanálise e fé. ( Trad. Leda Tenório
da Motta). São Paulo : Brasiliense, 1987.
7.4 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Lingüística de texto: o que é e como se faz.
Pernambuco, 1983 (Inédito).
7.5 MARQUES, M. Helena Duarte. Iniciação à semântica. Rio de Janeiro : Zahar
Editores, 1990.
7.6 POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo : Martins Fontes, 1988.