Revista de Estudos e Pesquisas sobre Ensino Tecnológico
ISSN: 2446-774X
Literatura afro-brasileira e exclusão: dificuldades enfrentadas na
materialização da Lei 10.639/2003
Afro-Brazilian literature and exclusion: difficulties faced in the materialization of the
Law 10.639/2003
Natalino da Silva de Oliveira
https://orcid.org/0000-0001-7426-7283
IF Sudeste MG/Campus Muriaé
E-mail:
[email protected]
Anderson Novais Soares https://orcid.org/0000-0001-8561-7242
IF Sudeste MG/Campus Muriaé
E-mail:
[email protected]
Resumo
Este artigo foi motivado por uma pesquisa de mestrado, em andamento, em que se investiga o ensino
de literatura afro-brasileira no ensino médio. O objetivo deste trabalho é abordar questões
relacionadas ao ensino da literatura afro-brasileira em sala de aula e o cumprimento da Lei
10.639/2003. Para isso, apresenta-se, inicialmente, um panorama da situação de escolarização da
população negra brasileira e da presença do preconceito racial na sociedade e na literatura. Em
seguida, propõe-se estabelecer um conceito de literatura afro-brasileira segundo as concepções de
Duarte (2017), Fonseca (2014) e Cuti (2010). Por fim, são demonstradas algumas constatações sobre
a efetivação do ensino de literatura afro-brasileira em sala de aula, com base em revisão bibliográfica
de artigos acadêmicos. Analisam-se aspectos como a importância da literatura para a formação
humana, o modelo eurocentrista predominante na literatura brasileira e nos currículos escolares, a
formação deficitária de professores e a invisibilidade de pessoas negras nos livros didáticos.
Palavras-chave: Cultura Afro-Brasileira. Currículo. Ensino.
Abstract
This article was motivated by an ongoing master's research, which investigates the teaching of AfroBrazilian literature in high school. The aim of this paper is to address issues related to the teaching of
Afro-Brazilian literature in the classroom and the accomplishment of the Law 10.639/2003. To this
end, an overview of the schooling situation of the black Brazilian population and the presence of racial
prejudice in society and literature is initially presented. Then, it is proposed to establish a concept of
Afro-Brazilian literature according to the conceptions of Duarte (2017), Fonseca (2014) and Cuti
(2010). Finally, some findings are demonstrated about the effectuation of teaching Afro-Brazilian
literature in the classroom, based on a bibliographic review of academic articles. Aspects such as the
importance of literature for human formation, the predominant Eurocentric model in Brazilian literature
and school curricula, deficient teacher education and the invisibility of black people in textbooks are
analyzed.
Keywords: Afro-Brazilian culture. Curriculum. Teaching.
Revista de Estudos e Pesquisas sobre Ensino Tecnológico, v. 7, 133521, 2021.
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Introdução
Este trabalho objetiva abordar algumas questões concernentes ao ensino de
literatura afro-brasileira nas escolas por meio de revisão de bibliografia que trate do
tema. Deste modo, serão abordados a lei Lei nº 10.639 e o conceito de literatura
afro-brasileira (DUARTE, 2014) ou negro-brasileira (CUTI, 2010). Além disso, serão
demonstradas algumas constatações sobre a efetivação do ensino de literatura afrobrasileira em sala de aula, com base em revisão de fortuna crítica.
Inicialmente, será traçado um panorama sobre dados de escolarização da população
afrodescendente brasileira, cuja condição geral de exclusão e discriminação de toda
sorte é bem conhecida. Constata-se que a situação dessa camada populacional é
em muito desfavorável em relação ao grupo não negro, e que isso pode ser
alimentado tanto pela situação econômica, em geral mais adversa, quanto pelo
processo sistemático de preconceito racial impetrado a essas pessoas. Isso
evidencia a necessidade de abordagem do tema em ambiente escolar para a
construção de uma educação verdadeiramente antirracista.
Após, será proposta a delimitação de um conceito de literatura afro-brasileira, tendo
em vista que há muita disputa em torno do que seria a terminologia mais adequada
para nominar as criações literárias de autores de ascendência africana ou de obras
que retratem aspectos da vida e da cultura afro-brasileira. Contudo, não é possível
afirmar que uma conceituação seja mais adequada que a outra. Os dois conceitos
carregam elementos semelhantes com pequenas alterações de perspectiva. Deste
modo, esta pesquisa se apropriará das contribuições das duas percepções teóricas.
Para finalizar, serão abordadas algumas questões referentes ao ensino de literatura
afro-brasileira nas escolas e quais têm sido os problemas encontrados para a
materialização da Lei 10.639/2003. Alguns aspectos levantados dizem respeito à
falta de formação adequada de professores; à escassa divulgação da literatura afrobrasileira na sociedade, notadamente a sua ausência no grande mercado editorial,
passando também pelo currículo deficitário em relação à presença de temas
africanos e afro-brasileiros. Todos esses apontamentos perpassam obviamente por
considerações sobre o racismo presente na sociedade brasileira, ainda que em boa
parte do tempo de forma perversamente escamoteada.
Exclusão
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD
Contínua para o ano de 2017, a população preta e parda 1 no Brasil equivale a 55,4%
do total de habitantes do país (IBGE, 2017). No segundo grupo, incluem-se pessoas
identificadas etnicamente como resultado da miscigenação entre europeus e seus
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Trata-se de critério de classificação de cor ou raça, adotado pelo IBGE (2017). Nesta pesquisa,
pretos e pardos inserem-se no conjunto da população negra brasileira.
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descendentes, populações autóctones brasileiras e de origem africana. Este
significativo contingente populacional, em grande parte afrodescendente, a despeito
de representar no presente momento a maioria da população brasileira, sofre um
histórico processo de discriminação e silenciamento, imposto pela elite dominante do
país, constituída, em sua maioria, pelos que herdaram as posses e o lugar social
dos antigos colonialistas europeus.
A marginalização da população afrodescendente brasileira e o preconceito são
elementos que atuam na manutenção e no aprofundamento das mazelas sociais que
atingem em grande medida esse grupo de pessoas. Jesus (2018), na pesquisa
intitulada “A exclusão de jovens adolescentes de 15 a 17 anos cursando ensino
médio no Brasil: desafios e perspectivas”, realizada entre 2012 e 2013, em Belo
Horizonte, Brasília, São Paulo, Fortaleza e Belém, explicita melhor essa realidade.
As narrativas recolhidas pelo pesquisador demonstraram como o preconceito racial
contribui com a evasão e retenção escolares de jovens pretos e pardos.
Em paralelo, dados da Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua para a
educação em 2017 expõem os números do problema: a população desse grupo
étnico-racial, com 25 anos ou mais de idade, tem em média 8,2 anos de
escolaridade, enquanto que entre a população branca, a média é de 10,1 anos
(IBGE, 2018, p. 4). Em 1999, segundo Jesus (2018), os números eram
respectivamente de 6,1 e 8,4 anos, portanto, 2,3 anos de diferença. Destaca, ainda,
que em 2002 essa desigualdade caiu para 1,9 anos de escolaridade. Em quase vinte
anos, houve uma tímida evolução geral quanto aos aspectos quantitativos de tempo
de escolarização da população maior de 25 anos. Entretanto, tomados os números
de 2002, a diferença entre as pessoas dos dois grupos étnicos aqui observados
mantém-se a mesma.
A questão parece não avançar, ainda que se considere ter havido nesse interregno a
adoção de medidas que visassem à equalização dessas desigualdades, como
edição da Lei 12.711/2012, que dispõe sobre a reserva de vagas para pessoas
autodeclaradas pretas, pardas e indígenas e por pessoas com deficiência em
instituições de ensino superior e em instituições federais de ensino técnico de nível
médio (BRASIL, 2012).
Evidentemente, a melhoria das condições de escolarização da população
afrodescendente decorre de muitos fatores, sendo o principal deles talvez o fator
econômico. A questão econômica está atrelada, por conseguinte, às amarras do
racismo estrutural presente em nosso país. De acordo com Almeida, o racismo:
[...] é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de desvantagens ou privilégios, a
depender do grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018, p. 25).
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Uma das faces mais cruéis de atribuir desvantagens para os negros é a vertente
econômica da expressão racista.
A desigualdade econômica fruto de um desprivilégio surgido da torpe ideia de raça
acaba afetando os currículos e vagas em escolas. Assim, há muitas variantes que
acabam interferindo nas amarras do racismo que afetam o ambiente escolar. Tanto
do ponto de vista da ampla oferta de um ensino público gratuito e de qualidade, que
requer investimentos por parte da União, Estados e Municípios, ou seja, o fator
econômico do Estado brasileiro, sua capacidade e sua disposição para investir em
educação; quanto em relação à renda familiar desses alunos, pois que a
permanência deles na escola depende de que suas famílias tenham condições
materiais suficientes que os dispensem do trabalho precoce.
Sabe-se muito bem que as condições materiais favoráveis numa sociedade
capitalista estão, para a classe trabalhadora, intimamente ligadas ao alcance de um
nível de escolarização maior: requisito para acesso aos postos de trabalho mais bem
remunerados. Este quadro leva a vislumbrar um círculo vicioso, em que, não
dispondo de escolaridade adequada o indivíduo não consegue o acesso aos
melhores empregos, reproduzindo, por conseguinte, a conformação social que aí
está desde alguns séculos.
Além disso, é preciso repensar o conceito de educação em seu cerne, em funções
que carrega como mantenedora de determinada estrutura social. Cabe questionar os
motivos de a escola não buscar fornecer para os negros elementos conteudísticos
ou epistemológicos que fortaleçam suas origens, sua autonomia, o sentimento de
pertença. A educação, e principalmente quando pensamos no cenário nacional em
que esta é fornecida e/ou regulada pelo Estado, segue um propósito de
fortalecimento de um modelo de nação. Sendo assim, há toda uma seleção
curricular que visa estabelecer esses explícitos propósitos.
Os elementos e técnicas pedagógicas não surgem de forma aleatória ou separados
de qualquer ideologia. É importante, portanto, que a escola, que, sobretudo, o
professor tenha plena consciência crítica de sua prática.
Tanto a educação do homem feudal quanto a do homem burguês (e
também do chamado socialismo real) têm uma finalidade muito bem
definida: adaptar as novas gerações a um modelo de sociedade. Mas
será que a educação é apenas isso? Será apenas um processo de
formação do homem para adaptá-lo à vida numa dada sociedade?
Não existirá uma concepção de sociedade que, ao contrário, vise
despertar novas gerações para a construção de outra sociedade,
uma educação emancipadora que as desafie a construir outra? O
que representa o educador nessa outra educação e como pode ele
surgir no interior de uma sociedade velha e opressiva? (GADOTTI,
2001, p. 13).
Partindo da provocação de Gadotti, é necessário repensar as razões que são
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camufladas no discurso do ensino do “cânone” e do intencional “esquecimento” de
outras matrizes possíveis.
Entende-se, neste ponto, por cânone o padrão de boa literatura que foi estabelecido
no Brasil a partir da produção literária europeia no século XIX e anteriores. Referese aos aspectos de linguagem, de temas, de valores morais, culturais, religiosos
entre outros, que podem ser merecedores de se apresentarem numa obra escrita.
Defende-se, obviamente, não o apagamento desse passado e do que está
estabelecido, mas a incorporação de textos que tragam proposições diversas do
olhar eurocêntrico. Nesse sentido, é preciso rediscutir os critérios unilaterais
utilizados para a construção de um modelo literário de prestígio no Brasil.
Eis que se vislumbra a necessidade de refletir sobre o papel do Estado enquanto
propagador e formador de epistemologias restritivas, preconceituosas e racistas
(racismo estrutural) ou como ente capaz de promover as mudanças necessárias e
cruciais para a construção de uma nação inclusiva.
Não sem razão é que se deve ir à luta pela escola pública. Pela sua existência e
pela sua evolução. Para que seja ela uma instituição acolhedora e verdadeiramente
transformadora não apenas da realidade social, mas de cada pessoa em particular.
É, portanto, de suma importância que estudantes negros se sintam acolhidos na
escola; que tenham um sentimento de pertencimento à coletividade escolar e à
sociedade de forma geral, para se reconhecerem como membros relevantes do
espaço que ocupam, contrariando uma longa história de exclusão e opressão. A
inserção de obras literárias afro-brasileiras nos currículos escolares pode contribuir
com isso, a partir da ideia de que esses estudantes possam reconhecer-se
positivamente nessas obras e também por meio de seus autores.
Antes da Lei 12.711/2012, a popular Lei de Cotas, foi promulgada, em 2003, outro
importante normativo: a Lei 10.639/2003, que incluiu como diretrizes e bases da
educação nacional a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares do Brasil (BRASIL, 2003). Instituía-se, com isso, o reconhecimento,
convertido em lei, do valor da expressão cultural africana para a formação da nação
brasileira, tornando obrigatória a sua difusão. Ainda assim, parece ter sido uma lei
que “não pegou”, como costumeiramente ouve-se dizer de uma norma cujo
cumprimento não se reflete na prática, seja por que a população a ignora
deliberadamente, seja por que não há meios disponíveis ao seu fiel cumprimento.
Xavier e Aniceto (2017) destacam que alguns dos problemas para o cumprimento da
Lei 10.639/2003 estão relacionados às dificuldades dos professores em ministrar
conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira em decorrência da falta de uma
formação específica. As autoras destacam em especial que uma das formas de
efetivar este ensino seria por meio dos estudos das literaturas de temática africana e
afro-brasileira:
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Uma das formas de reconhecimento da cultura afro-brasileira e africana é o
estudo de obras literárias sobre a temática. Apesar de a lei [10.639/2003] já
existir há um tempo considerável, ainda não se vê, comumente, o estudo da
cultura Afro-brasileira e Africana na sala de aula, principalmente nas aulas
de Língua Portuguesa e Literatura. Sabe-se que isso requer formação
qualificada e específica de professores, mudança de postura e nos modos
de pensar e agir, em relação à população negra, por parte de toda
comunidade escolar. (XAVIER; ANICETO, 2017, p. 58)
Pode-se reunir à fala das autoras outras hipóteses: a) o que comumente se vê nas
escolas e nas academias é o estudo de literatura calcado nos modelos
eurocentristas, disso deriva em grande medida a falta de formação específica por
elas citada; b) há pouca oferta e divulgação de cursos de formação continuada de
professores que se dediquem à cultura e à história afro-brasileira e africana, medida
que poderia servir de paliativo à primeira formação deficitária; c) o distanciamento da
literatura afro-brasileira do mercado editorial mais destacado, sendo a produção
literária desse segmento publicada e difundida pelos próprios autores, por
coletividades autorais ou por editoras de menor porte, sem o alcance de público que
as grandes casas editoriais conseguem ter.
Não deixa de ser também destacável a passagem da citação: “modos de pensar e
agir, em relação à população negra”. O racismo arraigado e naturalizado nos
costumes, herança do processo histórico de escravização de povos africanos,
deixou como legado o estereótipo da inferiorização da cultura, da inteligência, do
caráter e da beleza das pessoas negras. Não é incomum que manifestações dessa
pretensa inferioridade estejam presentes na escola, proferidas por colegas e até
mesmo por professores. É preciso, nesse caso, que a instituição escolar, em lugar
do silêncio, adote posturas firmes no enfrentamento dessas questões e promova
espaços de debate para a desconstrução do pensamento racialista.
Também a literatura tem sido terreno fértil à disseminação e à consequente
perpetuação do preconceito. Fonseca (2014), listando várias obras do cânone
literário nacional, cita diversos personagens negros e as características
estereotipadas atribuídas a eles por seus autores, ora evocando a imagem do negro
como objeto, como figura infantilizada ou imbecilizada ora, a imagem do “negro
ruim”. Em todas as situações “reproduzem a condição subalterna em que os
africanos escravizados viviam na sociedade brasileira” (FONSECA, 2014).
Vejam-se alguns exemplos:
A caracterização das personagens indica o endosso pela literatura de
representações do negro que circulavam na sociedade escravocrata: o
negro de bom coração, mas submisso, como a escrava Isaura e, de certa
forma, o médico Raimundo; o negro bestializado, como a Bertoleza, de O
cortiço, de Aloísio de Azevedo; ou pervertido, como o negro Amaro, do
romance O bom-crioulo (1885), de Adolfo Caminha, capaz de assassinar o
jovem Aleixo, por quem nutria uma paixão. A caracterização de
personagens negras marcadas por estereótipos negativos (de alma ruim,
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perigosos ou sexualmente pervertidos) distende-se para a consideração dos
negros como depravados, que se evidencia no romance A carne (1888), de
Júlio Ribeiro. Em O presidente negro (1926), de Monteiro Lobato, legitimase a crença na inferioridade do negro e de sua raça. (FONSECA, 2014)
Obviamente, não será nessas e em outras obras semelhantes que estudantes
negros e negras se reconhecerão. Como sucintamente demonstrado, essa literatura
é reprodutora da marginalização e da opressão sofridas pela população
afrodescendente e sua leitura acrítica ou, pior ainda, sua tomada pela escola como
modelo ideal de estética literária e moral não apenas afasta o interesse de alunos e
alunas afro-brasileiros, como contribui para o reforço da segregação étnico-racial e
da imagem de que há uma escala de valores entre brancos e negros.
A relação de obras citada por Fonseca (2014) figura no cânone literário nacional e
não significa que deva ser banida ou que não deva ser lida. O que não se pode fazer
é tomá-la como único modelo, como se nada mais existisse de literatura produzida
no Brasil desde que por aqui se inaugurou a arte das letras. É preciso saber explorar
essas obras em relação à importância que tiveram quanto à estética literária que
cada uma representa, a relevância de seus autores, suas qualidades de estilo
enquanto obras literárias e, principalmente, como repositório de conhecimento
histórico-social e fonte de discussões sobre as diversas inquietações que suscitam a
respeito de uma sociedade escravagista.
Será, pois, uma outra literatura que se ocupará de valorizar a identidade afrobrasileira. Uma voz verdadeiramente afrodescendente, que tem emanação própria e
que se dirige a um interlocutor específico, muito embora possa e deva ser apreciada
indistintamente por todos os outros.
Literatura afro-brasileira: um conceito
Mas o que é literatura afro-brasileira? Seria esta a designação mais adequada?
Refere-se ela à autoria ou ao discurso? Até o presente momento, falou-se dessa
literatura sem que fosse conceituada.
É certo que quando se fala em criações artísticas, dificilmente consegue-se
estabelecer fronteiras rígidas para todos os casos. Assim mesmo, é necessário que
alguma delimitação seja imposta tanto pelas razões práticas do trabalho quanto pela
demarcação de um território próprio, no caso, da literatura afro-brasileira.
Souza (2016) diz que “Agregar uma qualificação para o termo literatura é algo que
envolve uma complexa teia de construções históricas, estéticas e significantes
[...]”(SOUZA, 2016, p. 134), e, conforme continua, a autora vai afirmar que a
literatura negra/afro-brasileira:
[...] compreende a quebra de uma teoria literária tradicional postulada como
universal, o que nos faz imergir em engendramentos conceituais e
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discursivos, que, para além de pressupostos estéticos, abarcam questões
ideológicas, culturais e de poder. (SOUZA, 2016, p. 134).
É nesse percurso ideológico de construção de sentidos que a designação de uma
literatura afro-brasileira perpassa por embates terminológicos, de conteúdo e de
autoria que propõem a ela designações diversas. Cuti (2010) defende a utilização do
termo literatura negro-brasileira. Para ele, a denominação afro preconiza, ainda que
de modo discreto, uma remissão ao continente africano, fazendo com que esta
literatura se mantenha marginalizada no cenário da literatura brasileira, pois que isso
atribui-lhe “[...] uma desqualificação com base no viés da hierarquização das
culturas, noção bastante disseminada na concepção de Brasil por seus intelectuais”
(CUTI, 2010, p. 35).
Mais adiante, Cuti (2010, p. 39) se reportará ao sentido polissêmico da palavra
“negro”, sabendo que a utilização desta palavra pode contribuir para o desprezo às
obras com tal denominação. Em sua visão, o termo afro-brasileiro restringe-se aos
estudos de “traços culturais de origem africana”, os quais independem “[...] da
presença do indivíduo de pele escura, e, portanto, daquele que sofre diretamente as
consequências da discriminação.” (CUTI, 2010, p. 39).
Pode-se afirmar que, para Cuti (2010), a utilização da denominação literatura negrobrasileira não se trata apenas de uma escolha terminológica que em seu dizer é
mais correta do ponto de vista sócio-histórico e mesmo geográfico. É também, e
principalmente talvez, uma opção política que encontra no combate ao racismo o
seu sentido mais profundo.
Conforme pode ser visto em Duarte (2014), há uma diversidade de posições sobre a
designação a ser utilizada e, em sua visão,
[…] tem-se, ainda, um outro agravante, formulado pelo segmento de sentido
que diz respeito ao texto negro como sinônimo de narrativa detetivesca de
mistério e suspense, na linha do roman noir da indústria editorial. No Brasil,
tal vertente faz sucesso com Rubem Fonseca e outros, chegando-se
mesmo ao estabelecimento de nuances diferenciadoras entre os conceitos
de romance negro e romance policial. (DUARTE, 2014, p. 24).
Como razão para escapar às controvérsias e à polissemia de literatura negra, Duarte
(2014, p. 25) argumenta que ela “[...] são muitas, o que, no mínimo, enfraquece e
limita a eficácia do conceito enquanto operador teórico e crítico”. Mais ainda, aponta
a “[...] cadeia semântica do adjetivo [negro] que, desde as páginas da Bíblia, carrega
em praticamente todas as línguas faladas no ocidente as marcas de negatividade,
inferioridade, pecado, morte e todo tipo de sortilégio” (DUARTE, 2014, p. 25).
A partir dessas concepções é que o autor propõe o termo literatura afro-brasileira:
Já o termo afro-brasileiro, por sua própria configuração semântica, remete
ao tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde a chegada
dos primeiros africanos. Processo de hibridismo étnico e linguístico,
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religioso e cultural. De acordo com um pensamento conservador, poder-seia dizer que afro-brasileiros são também todos os que provêm de ou
pertencem a famílias mais antigas, cuja genealogia remonta ao período
anterior aos grandes fluxos migratórios ocorridos desde o século XIX.
(DUARTE, 2014, p. 25).
Ele reconhece que terminologias como afro-brasileiro ou afrodescendente podem
conter generalizações que trazem o “[...] risco de assumirem sentido homólogo ao
do signo ‘pardo’, tão presente nas estatísticas do IBGE, quanto execrado pelos
fundamentalistas do orgulho racial” (DUARTE, 2014, p. 26) e que, por conseguinte,
poderiam enfraquecer “o sentido político de afirmação identitária contido na palavra
negro.” (DUARTE, 2014, p. 26).
Não obstante, essa mesma noção generalizante é tomada pelo autor não como
elemento enfraquecedor, mas:
[...] uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a abarcar tanto a
assunção explícita de um sujeito étnico – que se faz presente numa série
que vai de Luiz Gama a Cuti, passando pelo “negro ou mulato, como
queiram”, de Lima Barreto –, quanto o dissimulado lugar de enunciação que
abriga Caldas Barbosa, Machado, Firmina, Cruz e Sousa, Patrocínio, Paula
Brito, Gonçalves Crespo e tantos mais. Por isso mesmo, inscreve-se como
um operador capacitado a abarcar melhor, por sua amplitude
necessariamente compósita, as várias tendências existentes na
demarcação discursiva do campo identitário afrodescendente em sua
expressão literária. (DUARTE, 2014, p. 27-28).
Duarte (2014), trazendo à baila alguns importantes teóricos, destaca que uma
questão central do tema é reconhecer se também há ou não legitimidade em uma
literatura negra/afro-brasileira cuja autoria seja branca, restringindo-se, portanto, o
conceito ao conteúdo da obra, a seus personagens, à intencionalidade discursiva.
Fonseca (2014), nessa mesma linha, vai identificar no poema Navio Negreiro, de
Castro Alves, as marcas de uma visão ainda preconceituosa a respeito dos
africanos, “[...] embora a intenção mais forte seja a de expor o sofrimento dos
escravos e a de condenar o perverso comércio dos africanos como escravos.”
(FONSECA, 2014).
A leitura do belo poema expõe o grito contra a injustiça da escravidão e
contra a barbaridade do tráfico negreiro, mas percebe-se que pairam sobre
os versos resquícios ideológicos que procuravam justificar o tráfico valendose de visões que justificam as diferenças entre raças e aceitam a propensão
natural dos africanos (e do continente africano) à submissão. (FONSECA,
2014).
Portanto, parece que a delimitação conceitual de uma literatura afro-brasileira não
poderá ser reduzida ao discurso ou à tentativa de um discurso que se proclame em
favor de questões íntimas à identidade negra. O exemplo de Castro Alves, que não
era negro tampouco escravizado, revela que, apesar de suas boas intenções ao
compor seus versos, não conseguiu alcançar o ponto de vista necessário a imprimir
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neles a subjetividade que os configurariam como legítimos representantes da
literatura afro-brasileira. Nesse sentido, pode-se deduzir que a autoria é um
elemento importante, senão essencial, à conceituação que aqui se propõe.
Assim é que o conceito de literatura afro-brasileira forjado por Duarte (2014) irá
fundar-se em alguns elementos específicos. Diz o teórico que a classificação de uma
literatura afro-brasileira requer a conjugação de fatores temáticos, autorais, do ponto
de vista, linguagem e público a que se dirige. Trata-se de fundir todos os
componentes desse conjunto de modo que o produto literário que dele emane seja
um discurso verdadeiramente afro-brasileiro:
Em resumo, que elementos distinguiriam essa literatura? Para além das
discussões conceituais, alguns identificadores podem ser destacados: uma
voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afrobrasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de
tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva,
explícito ou não, com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um
ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à
afrodescendência, como fim e começo. (DUARTE, 2014, p. 29).
Então, pode-se dizer que a conceituação proposta por Duarte (2014) deixa claro que
a literatura afro-brasileira é necessariamente produzida por autoria negra: sujeito
étnico com identificação de pertencimento afrodescendente. Trata de temas sóciohistóricos e culturais intimamente ligados ao povo negro e, além disso, assume
essas temáticas a partir de um ponto de vista próprio. Utiliza-se de linguagem
específica, impregnando o texto com as marcas linguísticas herdadas da África. Por
fim, se a autoria literária é negra, também o é o público. É a este segmento da
população em especial que se dirige a literatura afro-brasileira. Uma população em
grande medida marcada pela marginalização, pela pobreza material e
consequentemente pelo afastamento de um contato mais intenso com a leitura.
Duarte (2014, p. 29) alerta, entretanto, que se trata de um conceito em construção,
mas que parece suficiente para ser tomado como paradigma.
Por tudo isso, não são obviamente incorporados à literatura afro-brasileira autores,
obras e concepções (ainda que tangentes a um ou outro elemento de identificação
afrodescendente) que tratem de maneira estereotipada o povo e a cultura africanos
e afro-brasileiros e que, por isso mesmo, tendem ao preconceito (DUARTE, 2014, p.
23).
E na sala de aula?
Forçoso é reconhecer que é preciso trazer a literatura africana e afro-brasileira para
um espaço mais evidente, uma vez que nos círculos acadêmicos e escolares há
primazia pela estética eurocêntrica. Porém, ainda assim, entende-se que a literatura
é um caminho importante para a constituição de sujeitos humanos – seu estudo e
sua fruição são elementos formadores expressivos, que contribuem não apenas com
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a elevação do saber ou com o simples passatempo, mas de modo direto ou indireto
com a formação humana.
O saudoso professor Antonio Candido, no ensaio “A literatura e a formação do
homem”, vem subsidiar essa concepção. No texto, o professor faz uma análise das
funções da literatura e de seu poder humanizador, consubstanciado no que ele
caracteriza como necessidade de ficção e fantasia e na relação dessa com o mundo
real:
A fantasia quase nunca é pura. Ela se refere constantemente a alguma
realidade: fenômeno natural, paisagem, sentimento, fato, desejo de
explicação, costumes, problemas humanos, etc. Eis por que surge a
indagação sobre o vínculo entre fantasia e realidade, que pode servir de
entrada para pensar na função da literatura. (CANDIDO, 1999, p. 83).
Segundo o professor, a transformação promovida pela literatura não se dá de forma
linear, mas de maneira involuntária e indireta, atuando subliminarmente nos sujeitos:
Quero dizer que as camadas profundas da nossa personalidade podem
sofrer um bombardeio poderoso das obras que lemos e que atuam de
maneira que não podemos avaliar. Talvez os contos populares, as
historietas ilustradas, os romances policiais ou de capa-e-espada, as fitas
de cinema, atuem tanto quanto a escola e a família na formação de uma
criança e de um adolescente. (CANDIDO, 1999, p. 84).
Mais adiante, reforçando seu postulado, destaca ele que a literatura não forma os
indivíduos segundo os moldes da pedagogia oficial, na conformação ideológica
pretendida pelos grupos dominantes que desejam reforçar suas concepções de vida
e seus valores: o Verdadeiro, o Bom, o Belo (CANDIDO, 1999, p. 84). Há que se
fazer uma ressalva neste ponto: é possível admitir que há verdadeiramente um
caráter formador independente na literatura e muitas vezes subversivo em relação
aos grupos dominantes, contudo, quando um território é dominado por um discurso
majoritário, e que relega os demais a condições subalternas, haverá certamente um
pré-condicionamento desse potencial formador, direcionando-o àqueles que detêm
maior poder de fala.
Nesse sentido, deve-se destacar que, ao trazer a literatura afro-brasileira para
ocupar um lugar junto ao cânone literário vigente nas escolas brasileiras, colaborase positivamente com a ampliação da gama de elementos formativos. Pode-se, com
isso, erguer um cenário propício às discussões para a desconstrução do preconceito
racial, por exemplo, além de contribuir para a autoestima de alunos de ascendência
africana, cujo fracasso escolar pode estar vinculado à sistemática de abusos e
injúrias raciais perpetrados por outros estudantes e o silenciamento da escola frente
ao problema, conforme hipótese levantada por Jesus (2018).
A realidade de omissão exige alertar para a necessidade de a literatura afrobrasileira se fazer presente nos círculos ditos oficiais. Fonseca (2014) diz que pelo
fato de estar inscrita nessa literatura a denúncia social da condição dos
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afrodescendentes, nem sempre esses textos encontram boa acolhida no público
leitor não habituado a eles porque não se propagam nos espaços escolares e nos
catálogos de grandes editoras. A autora assevera que:
“[...] importa possibilitar a entrada dos textos em maior circulação, aprendêlos em sua feitura, discutir a materialidade discursiva com que se
apresentam, assumindo as inovações de sua escrita” (FONSECA, 2014).
Ou seja, assumi-los como obras literárias de valor e não apenas reduzir-lhes à
categoria de obras de caráter político. Deve-se transpor a barreira dos modelos
eurocentristas pela consecução de um projeto de formação de professores que
abarque a capacitação para se trabalhar com a literatura afro-brasileira nas salas de
aula. Há também que se vislumbrar no horizonte a valorização dessa literatura pelo
mercado editorial, muito embora este objetivo dependa primeiramente da formação
de um público leitor, já que, a despeito de figurar no panteão das artes, a literatura
também se submete às leis de mercado e aos anseios capitalistas das casas
editoriais.
A Lei 10.639/2003 é um marco importante na busca pelas mudanças pretendidas.
Fruto de intensas lutas sociais dos grupos marginalizados, se configurou num
mecanismo importantíssimo para o início de um processo que requer medidas mais
profundas para que seu propósito se efetive. Mesmo com a edição da lei, passado
tanto tempo de sua promulgação, o sistema educacional brasileiro ainda padece
com suas práticas curriculares eurocentristas e discriminatórias (VERGULINO;
SILVA; SILVA, 2013, p. 119).
Um exemplo bem-acabado dessas práticas é o estudo da vida e da cultura dos
grupos de excluídos sociais em datas comemorativas, como, por exemplo, o Dia do
Índio e o Dia da Consciência Negra. Em geral, nessas épocas as atenções são
voltadas para esses coletivos, mas os estudos tendem a ser superficiais e
reprodutores de imagens estereotipadas e preconceituosas, ainda que de maneira
velada.
Não é o bastante trabalhar os temas africanos e afro-brasileiros apenas em datas
significativas como o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e o 13 de maio
(dia da abolição da escravidão). Essas datas devem permanecer, sim, no calendário
de atividades e devem ser vistas não apenas como datas comemorativas ou
ocasiões de reprodução de estereótipos, mas como momento de reflexão crítica a
respeito da condição da população negra do Brasil. Além delas, é preciso que haja
durante todo o ano letivo um projeto curricular que traga a literatura afro-brasileira e
os debates sobre as relações étnico-raciais para junto dos alunos, em todo o
processo formativo. Isso deve ser uma constante, uma vez que é essa a realidade
Revista de Estudos e Pesquisas sobre Ensino Tecnológico, v. 7, 133521, 2021.
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social. Os alunos negros não são excepcionalidades na escola, e, como tal, os
temas que lhes dizem respeito devem também ser constantemente abordados de
modo honesto e desnudado dos preconceitos habituais.
Infelizmente, a realidade brasileira é a de um país tradicionalista e
conservador, marcado pelo brancocentrismo e pelo machismo, que sufocam
as diversidades. Isso se reproduz nos currículos escolares, que ocultam as
manifestações dissonantes do modelo social constituído (FELIPE; TERUYA,
2014, p. 115).
Carvalho e Castro (2017, p. 136) afirmam que o sentido primitivo da palavra
“currículo”, que deriva do verbo latino currere, dá a ideia de movimento, o que é
exatamente o oposto da noção atual, de aprisionamento de determinados
conhecimentos. Isso não é um acaso ou descaso por parte daqueles incumbidos de
selecionar e determinar quais são os conhecimentos necessários e válidos para a
formação dos indivíduos que se quer em uma dada sociedade. Trata-se de um
instrumento a serviço da manutenção do status quo, pois “[...] o fato é que o
currículo é construído a partir das relações sociais — desiguais — e envolve
relações de poder.” (CARVALHO; CASTRO, 2017, p. 136).
A permanência dos paradigmas vigentes deve-se ao pensamento de que há um
caráter isonômico e universal no arcabouço cultural europeu, como se não
existissem ou tivessem existido na África e em outras regiões do globo a cultura, a
ciência, a filosofia. Na verdade, o que se tem é “[...] uma história de dominação,
exploração, e colonização que deu origem a um processo de hierarquização de
conhecimentos, culturas e povos.” (GOMES, 2012, p. 102).
O questionamento das instâncias de poder é primordial para que alguma mudança
seja promovida nos currículos. De outro modo, as práticas constituídas se
perpetuarão, impedindo, por essa via, a constituição de uma sociedade em que haja
a igualdade racial e o respeito às alteridades.
A mudança do currículo passa também pela formação de professores aptos a
desenvolverem projetos pedagógicos em consonância com as diretrizes da Lei
10.639/2003. Conforme Vergulino, Silva e Silva (2013, p. 119), ainda há resistência
em cursos de Pedagogia e de licenciaturas quanto a incluir em suas matrizes
curriculares temas africanos e afro-brasileiros, mantendo-os na invisibilidade.
Portanto, é uma necessidade premente que a formação de professores contemple
esses temas polêmicos e delicados, que exigem a proficiência dos docentes para
deles tratar (FELIPE; TERUYA, 2014, p. 121). Segundo Oliveira, Carvalho e Alves
(2018, p. 122, 123) o que se tem visto nos espaços escolares são esforços
individuais de professores para o cumprimento da legislação.
O processo de emancipação do educando só será possível quando o educador for
emancipado. Há um movimento decolonial em vários campos do saber, porém é
necessário que este processo seja internalizado também. Sendo o professor um
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instrumento de uma educação emancipadora, cabe partir do princípio de que ele
deverá passar por toda essa transformação para entender e apresentar caminhos
possíveis para que o estudante possa também caminhar.
[…] no lugar da emancipação, encontramos um conceito guarnecido nos
termos de uma ontologia existencial de autoridade, de compromisso, ou
outras abominações que sabotam o conceito de emancipação atuando
assim não só de modo implícito, mas explicitamente contra os pressupostos
de uma democracia. Por isso, a preocupação que se apresenta não está
restrita à emancipação do educando, mas também à formação do educador,
enquanto são ambos sujeitos do processo ensino-aprendizagem numa
proposta de desenvolvimento da autonomia e da cidadania. (ADORNO,
1995, p. 172)
Uma perspectiva importante a ser considerada é a própria Lei 10.639/2003, que não
levou em conta a obrigatoriedade do ensino de conteúdo africano e afro-brasileiro na
educação de nível superior, desconsiderando a formação de professores (SILVA,
2011, p. 104). Desde o nascedouro, vê-se que a educação para as relações étnicoraciais não recebeu a devida atenção do Estado brasileiro, que não se comprometeu
legalmente com todas as ações concretas necessárias para a sua efetivação. Essa
responsabilidade ficou a cargo das instituições de ensino superior, que deveriam
atentar-se à demanda gerada pela inovação legislativa e, a partir disso, incluí-la em
seus componentes curriculares.
Uma vez que não haja também a responsabilidade das instituições de ensino
fundamental e médio em cumprir a lei e tampouco a ação do Estado em fiscalizar o
seu cumprimento, a demanda por formação nas faculdades e universidades fica
restrita às determinações individuais daqueles comprometidos com esse projeto. O
que não chega a ser suficiente para movimentar toda a engrenagem.
Tão relevante quanto a existência dessas instâncias formativas, é que elas
proporcionem a adequada capacitação, escapando dos reducionismos que, em vez
de promoverem a multiculturalidade, apenas tendem a substituir um modelo por
outro. Assim,
[…] é necessário também que, na formação dos professores, estejam
presentes, além dos estudos sobre desigualdade, exclusão e inclusão, os
estudos antropológicos da origem do homem, das ideologias do recalque,
do etnocentrismo e da relativização, bem como o processo civilizatório dos
diferentes povos que constituem a nação. Esses estudos facilitarão a
identificação e desconstrução dos mecanismos ideológicos construídos
cotidianamente para transformar o “outro” em algo desumano e apartado da
nossa convivência, bem como para o reconhecimento da sua contribuição
socioeconômica e cultural para a nossa sociedade. (SILVA, 2011, p. 104).
As instituições de ensino superior devem ater-se à inclusão, em seus componentes
curriculares de licenciatura, de disciplinas que visem à formação para educação das
relações étnico-raciais. É comum restringir-se à ideia de que esta educação é dever
dos professores de literatura e da área de humanidades, inclusive por associação ao
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texto da Lei 10.639/2003 que fala em ensino de “cultura e história”. Para além de um
compromisso profissional, supostamente limitado a determinadas áreas do saber,
trata-se de um comprometimento ético de qualquer um. Oportunamente, defende-se
que nos cursos de Letras, em especial, haja uma formação para o conhecimento e o
ensino das literaturas afro-brasileira e africana.
Atualmente, diversas instituições de ensino superior contam com organismos
denominados Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABIS). Se bem
articulados, podem constituir um importante meio auxiliar à formação e
aperfeiçoamento profissional.
Vencida a etapa da qualificação docente (ou ainda sem ela), é preciso uma
mudança de postura nos modos de pensar agir. Todos estão submetidos
culturalmente às “verdades” sociais que aí estão desde o início da formação da
nação brasileira. É preciso lembrar que até mesmo autoproclamados antirracistas
são passíveis do cometimento de atos racistas. Isso é fruto da naturalização do
preconceito na sociedade. É preciso enfrentar a questão, evidenciá-la, para, assim,
iniciar a construção de uma cultura diversa desta que aí está. Na escola e no
currículo isso deve se reproduzir.
Essa alteração, em seus aspectos explícitos e implícitos, precisa ser
construída no cotidiano do fazer pedagógico dentro das escolas, envolvendo
toda a comunidade escolar, especialmente, os alunos e as alunas, os
professores e as professoras, os gestores e as gestoras. (FELIPE;
TERUYA, 2014, p. 117).
Um importante passo nesse sentido é a atenção ao livro didático. Ele é um
instrumento poderoso para a formação de leitores. Para muitas crianças e jovens, o
livro é o único material bibliográfico a que elas têm acesso. Este instrumento tem
também uma enorme capacidade de alcance de público, pois está presente em toda
a rede pública de ensino do país. Segundo dados do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), foram distribuídos a alunos e professores da educação infantil,
fundamental e média, no final do ano de 2019 e início de 2020, 172.571.931
exemplares, que beneficiaram 32.010.093 de alunos e 123.342 escolas, tendo o
investimento do programa com as aquisições quase atingido a casa de 1,4 bilhão de
reais (FNDE, 2020). Cabe considerar que, segundo BRITTO (2011, p. 12), os
didáticos respondem por cerca de 54% da indústria nacional de livros, sendo o poder
público quem adquire a quase totalidade.
Oliveira, Carvalho e Alves (2018, p. 124-125) e Felipe e Teruya (2014, p. 120),
pontuam a necessidade de se ir além do livro didático e de questioná-lo. Trata-se de
um instrumento que ainda não superou a perspectiva social eurocentrista e
excludente. Deste modo, faz-se necessário que a construção do currículo e o
trabalho docente busquem outras fontes.
Silva (2011) notou alguns progressos nos materiais didáticos destinados à educação
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infantil, relativamente àqueles produzidos na década de 1990 comparando-se aos da
década anterior, especialmente quanto ao abandono das representações imagéticas
caricaturescas de pessoas negras e também a diminuição da inserção de
personagens negros em situações sociais negativas na maioria dos casos. Todavia,
houve uma tendência à assimilação de traços físicos característicos de pessoas
brancas nas personagens negras:
[…] chamou-me a atenção a semelhança dos traços fisionômicos de grande
parte dos personagens negros aos traços fisionômicos dos personagens
brancos, bem como uma igualdade de status socioeconômico e de valores
culturais atribuídos aos personagens brancos, que sugerem uma
equalização ou assimilação da representação social do negro nos textos e
ilustrações. (SILVA, 2011, p. 69).
Depreende-se que, mesmo representada, a pessoa negra ainda tem a sua
identidade deturpada de alguma forma, muito embora de maneira não ultrajante
como as representações de animais com feições humanas negras, conforme
observado por Silva (2011).
Silva (2011) e Castro e Miguel (2019) notam ainda a grande desproporcionalidade
entre a presença de imagens e ilustrações de pessoas negras e brancas nos
didáticos. No estudo de Silva (2011), anterior à promulgação da Lei 10.639/2003,
foram encontradas 1.360 representações de brancos e 151 de negros, o que
equivale, respectivamente, a 90% e 10% do total, muito distante da realidade étnicoracial brasileira.
Já Castro e Miguel (2019) realizaram um levantamento de dados em publicações
mais recentes. Ao todo, as pesquisadoras consultaram cerca de 100 livros, utilizados
entre os anos de 2010 e 2018, na primeira etapa do ensino fundamental do
município de Caetité/BA, abrangendo os componentes curriculares de língua
portuguesa, história, geografia, ciências e matemática (CASTRO; MIGUEL, 2019, p.
202). Apesar do recorte geográfico da pesquisa, é preciso lembrar que os mesmos
materiais consultados por elas são utilizados em escolas de todo o país.
Os resultados apresentaram-se mais favoráveis em comparação aos obtidos por
Silva (2011). A análise da tabela apresentada por Castro e Miguel (2019, p. 205)
revela que, em média, foram localizados nos livros 66,70% de imagens de indivíduos
com fenótipo próximo ao branco, enquanto que o fenótipo próximo ao negro
representou 23,75% das ocorrências. Ainda assim, lembram as autoras que essa
discrepância da representação da população negra nos livros didáticos frente a
realidade social pode fazer com que o aluno [especialmente o afrodescendente] se
distancie do livro (CASTRO; MIGUEL, 2019, p. 205).
Na mesma pesquisa, Castro e Miguel (2019) se detiveram também no tema da
ausência de escritores negros e africanos nas obras didáticas de português.
Conforme apurado, 83% dos escritores eram brancos; 0,5% negros e 15% ignorados
(CASTRO; MIGUEL, 2019, p. 213). Mesmo que todos os autores desse último grupo
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fossem, de fato, negros, haveria ainda uma significativa diferença. Elas observam
que
Há muito tempo que há escritores negros no Brasil, como Cruz e Sousa e
Machado de Assis. No entanto, o que se ofusca é o trabalho de autores
negros contemporâneos, em virtude da invisibilidade sofrida pelo negro
brasileiro. Assim, esses autores não têm notoriedade no mercado editorial e
não integram os currículos escolares do Ensino Fundamental e Médio […].
(CASTRO; MIGUEL, 2019, p. 213).
A inserção de textos de autores afro-brasileiros em maior contingente nos livros
didáticos seria uma medida para disseminar de forma imediata, por todo o território
nacional, o conhecimento da literatura afro-brasileira. Isso poderia catalisar o
processo de acolhimento e reconhecimento dessa literatura entre as obras
canônicas da literatura nacional e entre o público leitor.
Nota-se, a partir das pesquisas de Silva (2011) e Castro e Miguel (2019) que,
mesmo com a edição da Lei 10.639/2003, o racismo institucionalizado pode ser
ainda percebido sob a forma de invisibilização. Houve um compromisso social e
institucional de retirar dos livros didáticos caracterizações ofensivas à pessoa negra,
porém, sua representação minoritária contribui perversamente para a construção de
um modelo eurocêntrico de sociedade, que não é necessariamente universal e ideal.
Um panorama sobre a materialização da Lei 10.639/2003 pode ser traçado a partir
de Almeida e Sanchez (2017). Os autores abordam o percurso de implementação da
Lei, analisando os 10 primeiros anos de sua vigência. São analisados quatro eixos
temáticos nesse processo: regulamentação, formação profissional, material e
articulação. A análise parte de um levantamento bibliográfico sobre publicações
afetas à Lei, na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. A constatação
geral é a de que a Lei 10.639/2003 não tem sido efetivada de modo adequado,
principalmente por questões relacionadas à gestão: seja na gestão participativa para
a construção de ações de efetivação da Lei, seja pela falta de interesse de
profissionais da educação ou por conta de processos políticos e burocráticos.
Se ainda não há um cenário ideal para a promoção de uma sociedade mais
equânime, que reconheça a sua metade invisibilizada da população, seja pela falta
de cursos de formação suficientes; seja pelos currículos oficiais deficitários ou pela
escassez material de publicação de autores negros, é preciso que aqueles que
estejam imbuídos do propósito de evidenciar a literatura afro-brasileira e seus
autores e de querer uma educação mais justa, mantenham seus discursos,
continuem agindo e exigindo das instituições competentes a adoção de práticas para
que as necessárias e profundas mudanças possam acontecer na escola e na
sociedade.
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Palavras finais
É imperativo reafirmar nessas considerações finais que a situação geral da
população afro-brasileira frente a do grupo não negro é desvantajosa no que diz
respeito ao acesso a bens materiais e culturais. O contundente processo de
discriminação pelo qual têm passado essas pessoas é fator determinante para seu
alijamento dos círculos sociais que vêm sendo reservados aos descendentes dos
europeus, em especial à parcela economicamente favorecida desses.
Mesmo com tudo isso, as vozes dos movimentos pela luta dos direitos da população
negra de ter seu espaço social reconhecido têm conseguido, ainda que timidamente,
conquistar importantes resultados, como é o caso das promulgações das Leis
10.639/2003 e 12.711/2012. Esta última, a Lei de cotas, tem sido executada sem
grandes dificuldades, restando vez ou outra alguma controvérsia sobre o
pertencimento étnico de algum beneficiário. Quanto à outra, mesmo passado tanto
tempo de sua entrada em vigor, viu-se, conforme as fontes bibliográficas aqui
levantadas, que sua consecução encontra ainda algumas barreiras significativas. Os
requisitos para a sua efetividade demandam não apenas investimentos por parte dos
setores público e privado, mas uma mudança de postura das pessoas em relação à
cultura africana e afro-brasileira. Trata-se de reconhecer a importância dessa cultura
e sua influência na formação do Brasil, em lugar de submetê-la à condição de
subalternidade.
Por derradeiro, repete-se que não é um empreendimento simples a mudança de
postura, mas é preciso que se comece de algum ponto. Trazer a cultura e a literatura
afro-brasileira para a sala de aula deve ser, sim, um projeto nacional e das gestões
das escolas, porém, não será efetivo se não houver, principalmente por parte de
professores e alunos, a disposição e a receptividade para acolher e valorizar esse
projeto.
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Recebido: 17/06/2020
Aprovado: 09/03/2021
Como citar: OLIVEIRA, N. S.; SOARES, A. N. Literatura afro-brasileira e exclusão: dificuldades
enfrentadas na materialização da Lei 10.639/2003. Revista de Estudos e Pesquisas sobre
Ensino Tecnológico (EDUCITEC), v. 7, e133521, 2021.
Contribuição de autoria:
Natalino da Silva de Oliveira - Pesquisa bibliográfica, escrita e revisões.
Anderson Novais Soares - Pesquisa bibliográfica, escrita e revisões.
Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative CommonsAtribuição 4.0 Internacional.
Revista de Estudos e Pesquisas sobre Ensino Tecnológico, v. 7, 133521, 2021.
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