Cinema gaúcho:
um modo de fazer e ver os jovens
Ana Carolina O. Escosteguy1, Cristiane Freitas Gutfreind2
Resumo
Esse texto analisa o que representou a produção de Deu Pra
Ti, Anos 70 (Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, 1981) e Houve
Uma Vez Dois Verões (Jorge Furtado, 2002), num contexto
regional específico mas que articula-se ao espaço
cinematográfico nacional. Ao mesmo tempo, pretende-se
observar a construção discursiva dos jovens protagonistas das
duas tramas citadas que, além de revelar um determinado modo
de fazer cinema, denotam uma construção identitária que se
articula com outros discursos em circulação na sociedade de
cada período.
Palavras-chave: juventude, cinema, regional
Abstract
This articte analyses two films, Deu Pra Ti, Anos 70 (Nelson
Nadotti and Giba Assis Brasil, 1981) and Houve Uma Vez Dois
Verões (Jorge Furtado, 2002), for a better understanding of
what it may mean to speak of youth cinema. lt intends to identify some features that connect these films to a regional cultural practice in a national social formation. Besides revealing
a certain way of film making, these films also ofier cinematic
accounts of youth in a historically specific periods.
Keywords: youth, cinema, regional
'Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, professora do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e pesquisadora do CNPq.
2
Doutora em Sociologia pela Université Renê Descartes (Paris V), p
rofessora do Programa de Pôs-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e editora
da Revista Famecos.
93
94
As atividades culturais são constitutivas de um processo social.
E os produtos culturais, resultantes dessas atividades, são
materializações de formações sociais. Assim, o que se pretende aqui é
uma análise de formas culturais e formações sociais. Deu Pra Tti, A nos
70 (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, super-8, 110 mm, 1981) e
Houve Uma V ez Dois V erões (de Jorge Furtado, DV, 35mm, 75min,
2002) são tomados como textos filmicos que, além de representar a
juventude em momentos históricos distintos, revelam um determinado
modo de fazer cinema que diz respeito a uma formação social específica.
Neste trabalho, o cinema é entendido como uma estrutura
formada por uma criação filmica que possui uma relativa autonomia,
sendo essa criação organizada de acordo com o meio sociocultural ao
qual ela pertence, determinando uma forma de produção específica. A
organização cinematográfica tem, então, uma relação direta com o lugar
onde ela é produzida, possibilitando ao cinema a capacidade de
questionar sobre as relações históricas e socioculturais. Como diz JeanMichel Frodon, "existe uma solidariedade entre a história das nações e
a história do cinema" (FRODON, 1998:12), as narrativas
cinematográficas aparecem, assim, profundamente ligadas a maneira
de viver de um local determinado, possibilitando a formação de
cinematografias nacionais ou regionais, estabelecendo uma relação
íntima com os meios de produção e subvenção. Por isso, a organização
cinematográfica estabelece relações estreitas com a estrutura
institucional estatal, acompanhando as mudanças de valores na sua
formação e se diferenciando umas das outras.
E a juventude é vista como um modo de estar no mundo que
obrigatoriamente leva em conta aspectos históricos e culturais das
circunstâncias vividas. Sendo assim, não se trata de pensá-la como
pertencendo apenas a uma faixa etária precisa o que, de certa forma,
homogeneiza uma variedade de instâncias que colaboram na sua
definição. Aqui, pretende-se compreendê-la como produto de relações
de poder e resultado de uma série de condições sociais, portanto, uma
construção cultural e relacional.
Neste sentido, não existiria uma determinação direta pela idade
na consideração do serjovem, mas diversas formas de realização
conforme contextos sociais, econômicos e culturais que se vivam.
Portanto, não existe uma Juventude, em maiúscula, resultado de
uma cronologia, mas muitas 'juventudes" resultado das culturas."
(SERRANO, 1998:276)
São essas relações que se pretende tratar mediante a análise do
que representou a produção de Dcii Pra Ti, anos 70 e 1-louve Urna V ez
Dois V erões, num contexto regional específico mas que, por sua vez,
articula-se ao espaço cinematográfico nacional. Ao mesmo tempo,
pretende-se observar a construção discursiva dos jovens protagonistas
das duas tramas citadas que, além de revelar um determinado modo de
fazer cinema, denotam uma construção identitária que se articula com
outros discursos em circulação na sociedade de cada período.
Deu Pra Ti se passa na década de 70, assinalado pela festa do
tricanipeonato brasileiro do Sport Club Internacional, até a virada de
1979 para 1980 e apresenta o cotidiano de um grupo de jovens
universitários, centrado nos acontecimentos que envolvem Marcelo e
Ceres. Destaca-se que essa década é marcada pelo Ai-5, assinado em
13 de dezembro de 1968, no governo Costa e Silva, que concedeu plenos
poderes ao executivo e inaugurou uma fase de fechamento até 1979
quando é revogado. Como os protagonistas da traria vivem esse período
e uma parte da narrativa diz respeito ao seu envolvimento com o
movimento estudantil, é importante, também, ressaltar que este tinha
sido desmantelado em 1968 quando no 30' Congresso da UNE, em
Ibiúna (SP), seus líderes foram presos. A partir de 1976 inicia lentamente
sua reorganização, culminando em 1979, quando 10 mil estudantes
participam do Congresso de Reconstrução da UNE. Na mesma época,
no governo Geisel, o processo de abertura política é destravado, com a
concessão de anistia aos condenados por crimes políticos, o relaxamento
da censura e o restabelecimento do pluripartidarismo. Assim, os jovens
deste filme vivem esse clima e, ainda, estão fortemente ligados a unia
agenda da geração dos 60, dividindo-se entre militância, o sonho da
mudança, e prazer, diga-se festa, música - entre o rock'n'roll e a MPB
e suas novas experimentações -, cinema e literatura.
1-louve Urna V ez Dois V erões é o nosso passado recente. Se eles
estão finalizando o 2' Grau no final dos 90, são crianças em 1985, ano
que marca a transição do regime militar para a democracia e, ainda, em
1989 quando ocorrem as primeiras eleições diretas. E permanecem na
infância quando um dos últimos movimentos dosjovens no Brasil eclode
e vai para as ruas reivindicar o irnpeach,nent de Fernando ColIor de
Mello que renuncia em 1992, depois do mesmo ter sido aprovado pelo
Congresso. As forças que vão marcar esses jovens dizem respeito à
onda ascendente do neoliberalismo e a conseqüente interpelação do
indivíduo nas suas escolhas pessoais. Fica implícito nesse filme que se
trata dessa geração. Ocupando essa posição é que Chico e Juca se
deparam com Roza numa noite das férias de 1998. No primeiro encontro,
Chico e Roza fazem sexo. Ele deixa de ser virgem, mas ela, durante a
noite, desaparece. Acompanhado do amigo Juca, Chico procura a amada,
numa busca sem sucesso. De volta à cidade, recebe um telefonema de
Roza, que o reencontra e diz que está grávida. Depois de pagar parte da
realização de um suposto aborto, ele descobre, no verão da virada para
o próximo milênio, que Roza mentiu sobre a gravidez e que foi apenas
mais um a sofrer o golpe.
1. Do fazer cinema
Levando em consideração esses dois eixos - cinema e juventude
- e os dois filmes, compreende-se que existe uma produção
cinematográfica que tematiza e representa a juventude, revelando que
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as relações entre cinema e juventude acabam, por vezes, reduzidas a
uma idéia de um "cinema jovem", que é um termo extremamente vago,
mas que pode ser utilizado cada vez que aparece uma nova geração de
cineastas propondo uma renovação em termos técnicos, estéticos e
narrativos3. Foi o que se passou no Rio Grande do Sul, mais
precisamente em Porto Alegre, quando surge um grupo de jovens
cineastas que se interessaram em narrar o cotidiano da juventude gaúcha
dessa época.
Essa efervescência fez do estado, desde então, um pólo
cinematográfico regional importante por três motivos: era sede do festival de Gramado que funcionava desde 1973 com relevante destaque
no cenário nacional; possuía uma tradição em cine-clubes, o que
despertava uma cultura cinematográfica formada ao longo dos anos
que dialogava com o seu passado reprimido se tomando uma cultura
engajada e ativa tanto para fazer quanto para fruir os filmes; e se tomou
um lugar privilegiado do surto do Super 8.
O Super 8 encontra repercussão entre os jovens realizadores
brasileiros em 1972, qunado foi criado um festival do formato em São
Paulo, provocando uma grande euforia, encarnando para alguns o meio
alternativo para criar imagens, atraindo não somente jovens cineastas,
mas também artistas plásticos conio Hélio Oiticia, Lygia Pape e Rubens
Gerscheman. Essa bitola permitiu a profissionalização de muitosjovens
que saíram do amadorismo como Nevilie d'Almeida e Ivan Cardoso
promovendo, com esse formato, uma contestação irreverente através
do movimento do udigrudi.
Em 1976, o Super 8 se dissemina também em Porto Alegre
através de um concurso de filmes sobre a cidade promovida pela
prefeitura local, revelando toda uma geração de diretores gaúchos como
Giba Assis Brasil, Carlos Gerbase e Sérgio Lerrer. Deu Pra Ti foi o
marco dessa época, pois o seu sucesso permitiu a realização de uma
série de outros longas-metragem filmados também em Super 8, fazendo
com que esses filmes saíssem de um gueto restrito à cinéfilos e fossem
projetados em salas de cinema. Segundo Luiz Carlos Merten (2002:44),
a produção se tornou contínua, chegavam a realizar dois filmes por
semana, o que fez com que os próprios diretores criassem um circuito
exibidor alternativo que englobava de universidades à associação de
moradores.
Com a proliferação do formato e o sucesso de Deu Pra Ti, a
sua mesma equipe pôde refazer uma versão em 35111111 que obteve uma
distribuição nacional e originou o longa-metragem V erdes A nos (1984),
dessa vez Giba Assis Brasil teve Carlos Gerbase como parceiro à frente
da direção. O filme baseado em um conto de Luiz Fernando Emediato
traz novamente para tela a juventude gaúcha nos anos de repressão
ditatorial, mesmo não sendo autobiográfico, a vivência mostrada na
narrativa poderia ser indiscutivelmente a de qualquer um que compunha
a equipe de produção. Assim para Merten, V erdes A nos diz respeito a
"interpretação do caráter e da própria identidade do homem e da mulher
nascidos no Rio Grande" (2002:63). Ao contrário de Deu Pra Ti, "os
V erdes A nos" se passam no interior, mas a inquietude e a indecisão dos
jovens é a mesma, não levando-se em consideração se a trama acontece
longe da capital. Na verdade, o filme é uma alusão a unia produção
hollywwodiana de 1960, chamada Os A nos V erdes (The Sterile Cuckoo)
de Alan Pakula que mostrava as mesmas inquietações da juventude
americana, inverte-se o título e os jovens continuam sem saber o que
querem e a procura de emoções.
Essas produções abriram caminho para a profissionalização
de outros jovens diretores gaúchos como Sérgio Amon e Werner
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Schünemann. Nesse sentido, o percurso percorrido pelas realizações
em Super 8 possibilitaram a difícil façanha de profissionalizar o
amadorismo e divulgar o cinema gaúcho. Além disso, as narrativas
urbanas começaram a fazer parte do cenário cinematográfico do sul do
país ao lado das já estabelecidas narrativas rurais, se tornando uma
influência marcante para as gerações seguintes de realizadores.
Por outro lado, Houve Uma V ez Dois V erões foi realizado no
final do período do cinema brasileiro conhecido como Retomada.
Sabemos que depois da crise que atingiu o cinema nacional entre 1990
e 1994, os filmes voltaram a ser produzidos devido aos incentivos fiscais,
mas também a uma cultura cinematográfica enraizada no imaginário
das pessoas formada ao longo do tempo devido a uma filmografia
reconhecida e consolidada no curta-metragem e a abertura de um diálogo
com gêneros e movimentos do passado. Esse diálogo com as suas origens
permitiu ao cinema brasileiro se renovar, criar imagens plurais
suscetíveis de dar conta das imagens locais, diferenciando-as por vezes
de uma certa padronização e colocando-a em sintonia com o público.
Assim, como na política, os tempos de ruptura e efervescência
tinham se aquietado, estávamos em uma fase no cinema brasileiro em
que se valorizava o pragmatismo, ou seja, o importante era fazer filmes
com os meios, em termos de produção e de técnica, que estivessem
disponíveis. Não tinha mais espaço para movimentos, como o do Super
8, nem para grandes rupturas estéticas, pois o tempo privilegiava as
pequenas histórias, o cotidiano, e não mais, a contestação de valores,
mas a aceitação do mundo da maneira como ele nos é apresentado.
Ao contrário dos jovens cineastas iniciados pelo Super 8 para
a realização de longa-metragem, Jorge Furtado já era um autor
reconhecido em todo país, desde o premiado sucesso (nacional e
internacional) do curta-metragem Ilha das Flores (1989)4, além das
suas incursões como roteirista e diretor de televisão, gerando, assim,
uma grande expectativa, sobretudo da crítica, em relação ao seu primeiro
longa-metragem para o cinema. O diretor opta por uma realização
"alternativa" tanto, no que diz respeito a temática quanto a forma de
produção. Furtado busca inspiração na televisão para fazer um filme
sobre e para jovens, realizado em vídeo e kinescopado, além de se
constituir em uma produção de baixo orçamento.
Podemos afirmar, então, que a proposta de Furtado nos remete
a questões de ordem técnica (diz respeito ao formato) ou de inovações
da ordem da representação (diz respeito à estética), ou seja, partindo da
idéia de que as tecnologias são um meio, elas têm por objetivo reativar
antigas questões, principalmente, sobre a idéia de representação. Assim,
podemos entender a obra de Furtado como uma transição entre a
linguagem do cinema e da televisão, tendo como objetivo propor
transformações na idéia de representação cinematográfica, através da
migração da linguagem televisiva para o cinema e vice-versa e do uso
da agilidade da forma publicitária.
Tal fato nos remete a construção e importância da sintonia
entre a televisão e o público no Brasil, ao desejo do cineasta de encontrar
esse público, atrelando a criatividade da linguagem televisiva a uma
história típica dos jovens classe média, embalada por sol, namoros e
(des)encontros afetivos.
2. Do modo de ver os jovens
Estabelecidas as relações entre um determinado modo de fazer
cinema, num contexto específico e por uma determinada geração,
procura-se identificar as particularidades dos jovens nos próprios filmes.
Trata-se de assumi-los como agentes sociais específicos, conservando,
portanto, um distanciamento de entendimentos que associam ojovem a
um grupo homogêneo, inter ou transclassista devido especialmente ao
compartilhamento de uma idade, de gostos e preferências, revelados
pelo consumo de certos bens e produtos culturais. Na tentativa de evitar
tal associação, identificamos que essas narrativas filmicas tratam de
unia determinada juventude, isto é, dos jovens da classe média e suas
angústias, em distintos momentos históricos - virada dos anos 70 para
os 80 e passagem do século XX para o XXI.
Em Deu Pra Ti', Anos 70, os protagonistas da narrativa são todos
jovens universitários que moram com suas famílias e aparentemente
não têm problemas financeiros. Sua atividade principal é, sobretudo,
estudar, embora alguns possam realizar alguma tarefa remunerada. Além
do engajamento de alguns no movimento estudantil, perambulam pelos
bares, vão ao Alaska, ícone do movimento estudantil da época, e ao
Ribs, um dos primeiros lugares dej2ist-foodde Porto Alegre, localizado
em bairro nobre e da elite porto-alegrense. Junto com isso, a tríade
sexo, drogas - até aquela data, ainda, restrita a maconha - e rock 'ii 'rol!
fazem a cabeça da gurizada.
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Mais moços que esses, os jovens de Houve Uma V ez estão
terminando 02° Grau e planejam entrar na universidade. Sem problemas
financeiros, embora os pais escolham para tirar férias o mês de março
"porque é mais barato" na "maior e pior praia do mundo". Contudo, ao
longo do filme, a situação financeira da família de Chico, um dos
protagonistas da trama, melhora, pois no ano seguinte as férias já são
em dezembro e o plano é que no futuro possam ir à praia em janeiro.
Juca, seu amigo, também de férias no mesmo período, demonstra ter o
suficiente para sentar num bar/restaurante, comer pizza, beber um vinho
e, ainda, oferecer ao amigo Chico cem reais se ele conseguir uma amiga
para saírem juntos. No retorno à cidade, Chico, em sua casa, tem
computador e telefone no quarto, toca teclado, além de estar preocupado
na escolha de uma camiseta para vestir no reencontro com Roza.
Portanto, há muitos indícios de que os dois guris, também, são da classe
média.
Dentre as distintas possibilidades postas pelos filmes em análise
para tratar das preocupações de tal juventude, destacamos a relação
com os pais e com a cultura vigente do período, a preocupação com o
futuro, incluídos nesse âmbito a escolha da carreira profissional, ir
morar fora da casa dos pais, e, finalmente, as conquistas amorosas e
experiências sexuais. O engajamento político dos jovens não assumirá
um papel central nesta análise, dado sua evidente inexistência no
cotidiano da juventude da virada do século XX para o XXI, posta em
cena em Houve Uma V ez Dois V erões.
Sobre as relações entre uma determinada cultura jovem e sua
associação com expressões culturais do período e, também, com a cultura
dos pais, em Deu Pra Ti, A nos 70, Marcelo, protagonista da trama,
mora com seus pais, tem seu próprio quarto; decorado com um pôster
de Jimi Hendrix, ouve som com seus fones.e escreve poesia. O fato de
escrever poesia indica que se trata, ainda, de uma geração que dá atenção
e importância para a literatura o que mais tarde vai se perder. Herança
da geração de 68 persistia, também, uma afinidade da turma retratada
no filme com a música e o cinema. Assim, as festas embaladas por
Rolling Stones e outros, bem como as idas ao cinema são motivos de
congraçamento da turma. Dado que o contexto histórico de Houve Uma
V ez Dois V erões é outro, destaca-se que neste os jovens relacionam-se
com a cultura eletrônica, fliperama e games no computador. Não há
nenhuma referência à literatura, ao cinema e mesmo à música.
Em relação aos pais, observa-se em diversas situações a ausência
de diálogo entre pais e filhos, especialmente, em Deu Pra Ti, A nos 70.
Por exemplo, Marcelo, embora tenha decidido abandonar Porto Alegre
e compartilhe essa idéia com Ceres, revela que seus pais não sabem de
sua decisão. Algo semelhante ocorre com a própria Ceres que vai para
a praia num final de semana de carona e com o namorado, mas diz para
a mãe que é com a turma e de ônibus. Esta, por sua vez, resume o que
vai acontecer: o pai de Ceres não vai gostar daquele programa. A geração
mais velha neste filme aparece especialmente através da presença da
mãe, o pai é apenas mencionado como referência importante na família,
mas está ausente da trama. Em Houve Urna V ez Dois V erões, as relações
familiares são inexistentes, embora o pai seja o motivo pelo qual a
família vai para a praia em março. Também, é decorrente da melhoria
da posição do pai as férias em dezembro no ano seguinte, assim como
o planejamento das próximas para janeiro. De resto, a família não
aparece.
Em Deu Pra Ti, A nos 70 a preocupação com o futuro se relaciona
com o que se vai fazer profissionalmente. Ceres questiona sua opção
pela arquitetura, assim como Marcelo a pelo jornalismo. Já em Houve
Urna V ez Dois V erões, os dois protagonistas não tematizam essa questão,
apenas marginalmente tal terna aparece na conversa inicial entre Chico
e Roza. De um lado, porque estão em férias, mas as conversas revelam
uma preocupação central com "matar o tempo" e efetivar a primeira
transa. Em relação a esse último tema, em Deu Pra Ti, A nos 70, vivese um tempo de descoberta das relações sexuais onde estas são tratadas
sem problematização, embora os jovens assumam suas "transas"
abertamente.
Apesar de serem jovens da classe média os que estão
representados nesses dois filmes, as circunstâncias históricas distinguem
esses jovens. A dolorosa tormenta dos anos 70, em que a luta armada e
a repressão deram início a um lento processo de recuperação dos direitos
civis, é abordada sob uma perspectiva diferente nesses filmes gaúchos.
A visão retrospectiva dessa época está inscrita no afrontamento da
dramaturgia através de uni olhar interrogativo do jovem. As
reconstituições naturalistas acabam sendo abandonadas, assim como
um engajamento político, em proveito dos personagens, delimitados
pela sua ambigüidade entre o compromisso político e a procura de um
encontro afetivo.
101
No restante do país, ao contrário, os filmes que tinham a
juventude como tema, priorizavam o culto ao corpo, ao sol e ao surf
como em Nos Embalos de Ipanema (1978), Menino do Rio (1981) e
Garota Dourada (1984), todos dirigidos por Antonio Calmon ou em
filmes que retratavam uma certa ambigüidade, associando jovens, drogas
e delinqüência, como em A mor Bandido (Bruno Barreto, 1978).
Podemos afirmar, então, que no sul do país, o vazio provocado
na juventude pela sufocação das utopias e pela repressão, regida pelo
autoritarismo, está inscrita no centro de filmes em que a descontração
se deixa, por vezes, marcar pela angústia como Deu Pra Ti, V edes
A nos, Me Beija (Werner Schünemann, 1984) e A queles dois (Sérgio
Amon, 1985), feitos por grupo de jovens realizadores que se interessavam
ao mesmo tempo por literatura, teatro e cinema. Isso demonstra a
especificidade dos filmes gaúchos.
Já se compararmos Houve Uma V ez Dois V erões com o resto
do país, percebemos que é um filme singular em relação aos outros
realizados no mesmo período, pois apresenta a juventude de forma
diferenciada buscando descobertas individuais, em um cenário de férias
102 e praia, longe da violência. Nos filmes brasileiros dessa época o jovem
aparece desesperançado com necessidade de escapar de um universo
sem grandes perspectivas como, por exemplo, em Terra Estrangeira
(Walter Salles e Daniela Thomas, 1996) e A Ostra e o V ento (Walter
Lima Júnior, 1997), ou ainda aparece atrelado à violência urbana,
marcada por um espaço demarcado (sobretudo pelas favelas e/ou
periferias), com um estilo de vida próprio de zonas de fronteiras, ou
seja, lugares com regras específicas de poder que tomam a interação
social estranha a qualquer noção de humanidade e onde as instituições
são ausentes. Essa temática é vista em filmes Como Nascem Os A njos
(Murilo Salles, 1996), passando por Uma Onda No A r (Helvécio Ratton,
2002) para chegar a um filme que levou ao extremo a violência urbana,
Cidade de Deus (Fernando Meirelies e Kátia Lund, 2002).
A partir daí podemos afirmar que Houve Uma V ez, se diferencia
tanto do movimento do Super 8 dos anos 70, quanto dos filmes
contemporâneos que tem o jovem como temática, se distanciando de
uma proposta política e de espaços periféricos, se voltando para a classe
média e os seus problemas afetivos, reforçando uma linguagem estética
próxima da televisão.
3. De uma análise ainda incipiente
O espaço das relações entre cinema e juventude ainda está para
ser explorado, em especial nas suas conexões mais específicas entre a
produção nacional e a regional, dado que o que ora se apresenta é apenas
uma visão inicial. Podemos afirmar que assim como a idéia de uma
identidade nacional é rarefeita, a de unia cinernatografia brasileira
também o é.
No que diz respeito ao cinema gaúcho, este valoriza o seu espaço
cineniatográfico elegendo a região corno cenário para criar e fruir
narrativas sustentadas por uma estética marcada pelos aspectos
socioculturais do lugar, mas através de histórias universais que se
regionalizam pelo jeito de fazer e ver, idéia reforçada pelo movimento
do Super 8 porto alegrense e de certa forma pela experiência de produção
de Houve Urna V ez Dois V erões.
Portanto, há unia criação estética específica da região, oriunda
do movimento iniciado no final dos anos 70 com o Super 8, enfatizando
a temática juvenil e urbana que se alastrou eni seguida pelo resto do
país, embora revelando traços característicos. Tal fato tem continuidade
até hoje, contando entre seus expoentes na criação fllrnica gaúcha com
Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase.
Na trilha de Deu Pra Ti, passando por Ilha das Flores e
chegando a Houve Uma V ez, o Rio Grande do Sul se consolida como
um importante pólo cinematográfico no país, inovador em termos de
formatos e uso de diferentes linguagens, com uma cultura
cinematográfica enraizada que prestigia os longas-metragem locais. No
entanto, vale destacar a vasta produção de curtas-metragem,
subvencionados pelas trocas entre televisão e cinema e exibidos por
emissoras locais5, além de urna proliferação de escolas de cinema em
nível universitário formando profissionais para uni mercado cada vez
mais em expansão.
No que diz respeito ao modo de ver os jovens na passagem de
Deu Pra Ti para Houve Uma V ez, o sonhou acabou. Isso, sobretudo,
torna-se emblemático para ajuventude brasileira que viveu a década de
70. A garra, a paixão e o radicalismo da geração 68 foram abruptamente
interditados. Restou a clandestinidade e um lento retomo ao primeiro
plano da cena através da reorganização do movimento estudantil onde
ainda reverberava urna possibilidade de mudança. Com o passar do
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tempo, as utopias revolucionárias faliram, veio a frustração dos 80 e o
desencadeamento de compromissos cada vez mais itinerantes, portanto,
a ausência de projetos de longo prazo e uma atuação marcada pelo
tempo presente e com compromissos consigo próprio. Mas se a canção
de 70 de Lennon chancelava o fim de uma época, também, vislumbrava
o futuro: "Eu não acredito em Kennedy/Eu não acredito em Buda/Eu
não acredito em mantra/Eu não acredito em GitalEu não acredito em
yoga/Eu não acredito em reis/Eu não acredito em Elvis/Eu não acredito
em ZimmermanlEu não acredito em Beatles/Eu só acredito em mim".
Em sendo assim, a angústia embasada por um período de
efervescência político-social do jovem em Deu Para Ti deu lugar a uma
angústia centrada no indivíduo e no conformismo do jovem em Houve
Uma V ez, mas cada um dos filmes ressaltando ao seu modo a
especificidade de um cinema feito no extremo sul do país.
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Notas
3 Esse termo também é uma clara alusão aos movimentos
cinematográficos como o britânico Free Cinema e o francês Nouvelle
Vague que marcaram a história do cinema e permitiram um
desencadeamento de outros movimentos realizados por jovens em
diferentes partes do mundo.
4 Ilha das Flores narra a trajetória de um tomate do plantio ao
lixo, usando uma linguagem criativa, irreverente e irônica, mostra o
desalento através do riso.
5 Desde 2000, a RBS TV veicula o programa Curtas Gaúchos,
que exibe curtas-metragem realizados no Rio Grande do Sul, além de
outros projetos que dão espaço para produções de cineastas do estado.
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