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Dossiê Contágio

2021, Revista Concinnitas

Concinnitas | v.22 | n.40 | Rio de Janeiro, janeiro de 2021 DOI: 10.12957/concinnitas.2021.59425 Dossiê Contágio Marisa FlóridoI1 FLÓRIDO, M. I Professora do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é crítica de arte, curadora independente e autora de livros e artigos sobre arte moderna e contemporânea. Vínculo institucional: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro, R.J, 20943000. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9915-1041. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/6579316913909055 . Rio de Janeiro, Brasil. Concinnitas | v.22 | n.40 | Rio de Janeiro, janeiro de 2021 | DOI: 10.12957/concinnitas.2021.59425 Contāgĭo, ōnis, f., contāgĭum (de cum - junto, próximo a; e tangere - tocar), termo em latim que já existia na antiguidade, contágio é “contato” no bom ou no mau sentido. Cícero falava em contagio pulmonum, Tito Livio em contagio pestilefera. Nos escritos poéticos e literários, contágio era também usado no sentido de influir a, afectar a. Assim, se contágio definia a transmissão de uma doença de um organismo a outro, entre homens, entre homem e animal, também descrevia a transmissão dos afetos, das emoções, das paixões. A pane provocada pelo coronavírus nas engrenagens do mundo globalizado escancarou suas falhas, agudizou e acelerou sua crise sistêmica: sanitária, securitária, econômica, política, ecológica, cultural. O sentimento de fim, que pairava há algumas décadas sobre percepções e discursos, ganhou contornos de uma inescapável interdependência planetária. Na velocidade da propagação do vírus, teorias e prognósticos (filosóficos, econômicos, políticos e escatológicos), sobre as ameaças e as possibilidades que a pandemia deflagrou, circularam pelas mídias. Do mesmo modo, as imagens das ruas vazias, das valas abertas, dos lutos sem os rituais funerários da despedida, dos gráficos e da humanidade reduzida a números, da indiferença e banalização da morte, de memes e lives, viajaram até nossas casas e telas acionando a memória e o pathos imagético das catástrofes pandêmicas que atravessaram as artes e a literatura em suas histórias. Como no dúbio sentido etimológico de “contágio”, alguns viram, na crise pandêmica, a oportunidade de reinvenção de outros mundos, além do capitalismo predatório e insustentável, nas formas de redes colaborativas autogeridas, da solidariedade como afeto contagioso e revolucionário. Outros enxergaram na situação apenas mais um álibi para o biopoder e a exceção permanente, para a necropolítica e para um estado cada vez mais autoritário, para um neoliberalismo ainda mais radical e para a precarização ainda mais impiedosa da vida. E, de fato, das periferias do mundo-capital, são os povos vulneráveis, excluídos e invisibilizados, os mais expostos e afetados. Ao perigo da pandemia, se associara o risco do que a OMS chamaria de “infodemia”, uma epidemia pelo excesso de informações falsas, propagadas velozmente pela web e grupos de Whatsapp. O medo do contato e do outro, por um lado, o negacionismo e o anticientificismo, por outro. Inclusive de chefes de Estado que a definiram como uma gripe comum, que realizaram uma gestão irresponsável, desastrosa e mortal do combate à pandemia, que conclamaram seus seguidores ao sacrifício porque a máquina capitalista não poderia parar. Uma guerra travada nas telas, entre signos, imagens, palavras: a desrealização, a manipulação e o contágio dos afetos tristes e ressentidos. FLÓRIDO, M. | Dossiê Contágio 12 Concinnitas | v.22 | n.40 | Rio de Janeiro, janeiro de 2021 | DOI: 10.12957/concinnitas.2021.59425 Hospedamos um vírus, talvez transmitido por morcegos ou pangolins, um estranho que se apossa de nós, de nossas vidas e as transforma, sem que entendamos como. Afastados nas distâncias do espaço, da mobilidade convulsiva, mas aproximados nas telas e lives. Confinados, suspensos da ordem costumeira dos dias, o próprio tempo é uma interrogação: fechado à heterogeneidade dos ritmos ou, ao contrário, após décadas de aceleração e superexcitação, aberto à oportunidade de experimentar outras temporalidades e sensível às insurreições da vida cotidiana. Abertura aos possíveis, inexorável distopia, ou tudo será como antes: o que vem é indeterminado. Se o vírus atua como “recodificador de nossas vidas”1 (Franco ‘Bifo’ Berardi, 2020), ele o faz não apenas por meio dos impactos da pandemia, mas como potencial agente de mutação de nossa relação com o mundo, com a morte (individual e coletiva), dos vínculos e (des)limites entre humano e não-humano, com a linguagem e a arte? Qual, afinal, o lugar das artes em tempos de cólera e catástrofe? Dossiê Contágio traz seis artigos e uma entrevista: Alexandre Sá nos conduz à reflexão sobre o enfrentamento da pandemia no Brasil da era Bolsonaro, ao estabelecer diálogos entre memória, necropolítica e políticas identitárias. Carolina Martínez, a partir do Diário do Ano da Peste (1772) de Daniel Defoe, examina as tensões entre indivíduo e comunidade no contexto pandêmico da época e suas correspondências com os acontecimentos atuais. Inês de Araujo e Tania Queiroz entrevistam o artista indígena Xadalu Tupã Jekupé e sublinham, em artigo traduzido para o guarani e o francês, suas intervenções artísticas e seu trânsito entre cidades e aldeias como gestos de escuta, contágio e atravessamento de mundos. Maria Berbara analisa a relação entre humanos e seu alimento em dois modelos de consumo cárneo, o abate ritual entre os Tupinambá nos séculos XVI e XVII e a atual produção pecuária industrial. Marisa Flórido reflete sobre a morte anônima, o rosto e a máscara, a partir de imagens e palavras que circularam pelas mídias e redes digitais ao longo da pandemia. Tamara Quírico discute a produção artística do fim da Idade Média na Europa, após o surto de Peste Negra, revendo leituras sobre o período. Recebido e aceito em 19 de abril de 2021. Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons 1 BERARDI, Franco ‘Bifo’. “Franco Berardi: a pandemia reativou o futuro. Há condições para reformatar a mente social”. Entrevista concedida a Luisa Duarte e Victor Gorgulho. El País, 30 de Junho de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-06-02/franco-berardi-a-pandemia-reativou-o-futuro-vejo-condicoes-para-a-reformatacao-igualitaria-da-mente-social.html?rel=listapoyo. Acesso em março de 2021. FLÓRIDO, M. | Dossiê Contágio 13