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Michel Foucault: o sujeito moderno em questão

À Paulinha.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Anderson Aparecido Lima da Silva Michel Foucault: o sujeito moderno em questão (versão corrigida) São Paulo 2013 Anderson Aparecido Lima da Silva Michel Foucault: o sujeito moderno em questão Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva. (versão corrigida) São Paulo 2013 À Paulinha. AGRADECIMENTOS Nos diferentes tempos deste trabalho, tive o privilégio de estar cercado por pessoas que souberam, cada uma à sua maneira, oferecer uma presença capaz de cultivar as sutilezas da alegria, do companheirismo, do amparo e da beleza. Seria tarefa árdua discriminar a importância e o lugar que ocuparam na consecução desta empreitada desde o início marcada por inquietações, dúvidas e percalços diversos, e que só puderam ser contornados pela coragem que me inspiraram e que continuam a inspirar. Espero que se reconheçam nestas palavras, desde sempre aquém das enumerações e dos papeis que desempenharam nessa travessia. Gostaria de agradecer primeiramente a Franklin Leopoldo e Silva, orientador e amigo, cuja postura intelectual aliada à generosidade de sua pessoa foi fundamental para a insistência e realização deste trabalho. Em nossas conversas, desde os primeiros anos de graduação, sempre tive a impressão de que não apenas recebo ensinamentos (briosamente engajados, eruditos e descontraídos), mas de que há a confiança de uma partilha que me permite aprender a fazer maiores perguntas. Essa mescla de comprometimento, reciprocidade e liberdade marcou profundamente minha formação em filosofia. Agradeço aos Professores Doutores Salma Tannus Muchail e Pedro Paulo Garrido Pimenta pelos argutos e estimulantes apontamentos no exame de qualificação. Aos membros do Grupo de Estudos Michel Foucault da PUC-SP, que me acolheram gentilmente e com quem pude nutrir enriquecedoras discussões. Meus agradecimentos aos queridos amigos Mauro Dela Bandera Arco Júnior, Virginia Helena Ferreira da Costa e Martha Gabrielly Coletto Costa pela leitura e discussão deste trabalho, que me foram extremamente incentivadoras e gratificantes, tal como são suas constantes presenças, ainda que à distância. Agradeço também a colaboração amiga e assídua de Paulo Borges de Santana Júnior, com quem pude discutir diversos momentos da elaboração destes escritos. Ao amigo Nicolau Dela Bandera Arco Netto que, de modo perspicaz, discutiu comigo o projeto da dissertação. À Dalila Pinheiro, pela disposição constante e esmerado auxílio nas traduções. À Natália Leon, pela cumplicidade e afeição; ao Xicko Veiga, pelo suporte e camaradagem sempre bem disposta. Aos amigos Marcos Camolezi, Flávio Reis, Fernando Lopes, Júlio Valim, Antonio Herci e Karen Shiratori, que ajudaram a fazer do exercício solitário da pesquisa uma verdadeira oportunidade de conversas instigantes e descontração. Aos colegas e amigos com quem convivi no CRUSP e em Paris, em especial a Sébastien Stenger, Tomas Samuel, Pierre Lambert, Ilaria Renna, Lucile Maury, François Charpentier, Diego Scalada, Geisy Dionísio, Paty Meneghini, Taty, Pedrinho, Bertolin, Leandro, Rafinha, Lucas, Alex, Valdir, Marcinha, Leo, Rodolpho, Dai, Aline, Márcio (Viu), Yara. Aos meus amigos, professores e ex-alunos do Centro Educacional Soben, em especial a Silvio Marcos e Aparecida Santesso, Diego Galiza, Marcus Dionizio, Lucas, Diogo, Dani, Keslei, Heloísa, Danilo, Tabata, Daiane, Amauri, Andreus. Aos meus pais, Maria Gorett Lima da Silva e José André da Silva, que me alfabetizaram para a vida, dando com o exemplo de suas existências o melhor argumento em favor da generosidade, da perseverança e do amor incondicional. Ao meu tio Juarez José Vieira que, correlatamente a meus pais, sempre me apoiou em minhas escolhas, contribuindo com entusiasmo e desprendimento para que eu pudesse aceder a meus objetivos. Ao meu irmão, Walace, pelas travessuras. Ao meu sobrinho escolhido, Pedro Gonçalves, que sempre me oferece o primeiro pedaço de bolo. Por fim, a todos de minha extensa família que, apesar de nem sempre compreenderem muito bem meu ofício, sempre nutriram certa admiração, convertendo-a em suporte afetivo. À Paulinha, minha pequena, companheira de tantas veredas. Às funcionárias da secretaria do Departamento de Filosofia da USP: Geni, Luciana, Maria Helena, Marie, pela constante solicitude e dedicação. Ao CNPq e à CAPES, pela Bolsa de Pesquisa concedida. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. RESUMO Silva, A. A. L. Michel Foucault: o sujeito moderno em questão. 2013. 133f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Costuma-se avaliar o último movimento das pesquisas de Foucault como um suposto “refúgio”, um “retorno aos gregos” que traria consigo a marca de uma dupla recusa: à “política” e à “modernidade”. Prova disso seria o seu fechamento na análise acerca das “práticas de si” de uma “época de ouro” na qual este “si” divergiria radicalmente do “sujeito moderno”. Suplantado, assim, este polo referencial da modernidade, o “relativismo pósmoderno” daria a Foucault seu último nome. Na contramão dessa leitura, pretendemos desenvolver apontamentos (pautados sobretudo em trabalhos específicos dos anos de 1980) que possam apresentá-lo como um filósofo eminentemente moderno, que busca na abordagem genealógica – ao invés de histórica – dos Antigos a amplificação do campo de investigação de problemáticas presentes. Campo este em que as formações subjetivas terão papel privilegiado na recorrência que Foucault empreende a filosofias em que o “si” é tomado como um “modo de vida” ao qual conhecimento, ética, política e estética estão atados na constituição histórica dos sujeitos. Esse movimento, orientado por uma atitude crítica constante, traria consigo a potencialidade de redirecionamento do olhar à nossa modernidade e da experiência que poderíamos fazer de nós mesmos, sujeitos modernos. Palavras-chave: Foucault; Sujeito; Modernidade; Antiguidade. ABSTRACT Silva, A. A. L. Michel Foucault: the modern subject in question. 2013. 133 p. Dissertation (Master degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. It is customary evaluate the last movement of Foucault‟s work as a supposed “refuge”, as a “return to the Greeks”, that would bring the mark of a double refusal: to the “politics” and to the “modernity”. Proof of this would be the enclosure of this movement into the analysis of the “practices of the self” of a “golden age” in which this “self” would differ radically from the “modern subject”. Supplanted thereby this referential polo of modernity, the “postmodern relativism” would give to Foucault his last name. Contrary to this interpretation, we intend to develop notes (which are guided especially by works that characterize the Michel Foucault‟s production in the 1980‟s) that may present him as a philosopher eminently modern, who seeks with a genealogical approach – and not a historical one – of the Ancients, the amplification of the investigation field of the present's problematic. It is a field where the subjective formations have a privileged role in his recurrence to philosophies in which the “self” is taken as a “way of life” to which knowledge, ethics, politics and aesthetics are tied in the historical constitution of the subject. This movement, guided by a constant critical attitude, would bring with itself the potentiality to redirect both the look to our modernity and the experience of ourselves, modern subjects. Keywords: Foucault; Subject; Modernity; Antiquity. SUMÁRIO Introdução 10 Capítulo 1 Foucault, leitor de Sócrates: subjetividade e verdade. 1.1. Quem é Sócrates? 1.2. Quem somos nós? 18 25 1.2.3. “Cuida-te de ti mesmo” 27 1.2.4. “Conhece-te a ti mesmo” 35 Capítulo 2 A coragem da verdade: subjetividade, verdade, governo. 2.1. O filósofo e a cidade: a questão aberta 2.2. A parrhesia política: democracia e crise do dizer-verdadeiro 2.3. A parrhesia socrática: a reinvenção do dizer-verdadeiro 46 62 69 Capítulo 3 A questão filosófica da modernidade 3.1. A modernidade em questão 3.2. A atitude de modernidade 3.2.1. Kant: o acontecimento filosófico da modernidade 3.2.2. Baudelaire: lírica e transfiguração 3.3. Por uma modernidade atual Referências bibliográficas 84 89 91 108 122 125 Introdução Ao afirmar em 1982 que não era o poder, mas o sujeito que constituía o tema geral de suas pesquisas1, Michel Foucault causou grande alvoroço no círculo de seus leitores, que não hesitaram em acorrer a traçar as linhas interpretativas: fosse a da suposta “continuidade” da “obra” e suas “fases”; fosse a da “ruptura” que marcaria o advento de um “retorno do sujeito”, após o decreto da “morte do homem” nos anos de 1960, em As palavras e as coisas. Não será a última vez que a união dos modismos intelectuais a hábitos acadêmicos de longa data perpetrará a falsa questão que põe como alternativas a serem eleitas a “descontinuidade radical” ou a “completa homogeneidade”, como se a presença de uma mesma preocupação ao longo de uma trajetória intelectual não pudesse comportar diferentes modulações e articulações em sua abordagem temática, em seu estilo de condução e questionamento ou em sua metodologia e objetivos. No entanto, é preciso ser prudente, pois, por vezes, mesmo a insistência em estabelecer um único “tema geral” como fio condutor de toda uma trajetória intelectual não deve abandonar a perspectiva de um pensamento ainda em constituição, e que compreende, portanto, a historicidade dos modos como Foucault se posiciona ante seus trabalhos. Nesse sentido, a própria leitura retrospectiva que coloca a questão do sujeito como o fio subterrâneo de toda a sua démarche filosófica não deixou de sofrer alterações. Bastaria que colocássemos em pauta, por um lado, o modo como Foucault pretende ter gestado a questão ao acercar-se primeiramente da maneira como o “sujeito” fora constituído enquanto objeto de conhecimento das ciências humanas, ou enquanto objeto de dominação por certas práticas institucionais de saber, culminando por fim nas análises em que o sujeito poderá constituir-se ativamente por meio das práticas de si. Ou ainda, em outra vertente de análise, a maneira como Foucault se coloca sob a perspectiva de uma “história da verdade”, a partir da qual a problemática dos modos de constituição histórica do sujeito em sua relação à verdade ganharia volume, tanto ao abordá-lo como efeito de verdade, através dos dispositivos de verdade que esquadrinham as posições para sujeitos virtuais e onde os poderes-saberes fabricam os indivíduos, quanto ao tematizá-lo como aquele que se constitui e se transforma a partir de um discurso verdadeiro, em uma determinada relação a si. “Assim, não é o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa” (FOUCAULT, M. “Le sujet et le pouvoir” [1982]. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, nº 306, p. 1042). Os textos de edições em língua francesa, inglesa e espanhola mobilizados são de livre tradução nossa. 1 10 Por mais plausíveis que possam se apresentar estas (re)leituras, e por mais que as tenhamos considerado e mesmo lançado mão das mesmas em mais de um momento no desenvolvimento do presente trabalho, procuramos também ponderar que, ainda nos anos de 1980, Foucault nos apresenta uma perspectiva que não deposita na questão do sujeito o princípio matricial de suas pesquisas. Referimo-nos a uma reformulação que se apresentará pela primeira vez na aula inaugural do curso de 1983 (5 de janeiro) no Collège de France, sendo retomada em diversas entrevistas, no prefácio ao Uso dos prazeres (1984) e no curso introdutório de 1984. Trata-se da rearticulação de seus trabalhos a partir da noção de “focos de experiência”. Detenhamo-nos por um momento nesse segundo tipo de formulação. Em sua aula inaugural de 1983, ao anunciar seu “projeto geral”, Foucault afirmará que o que almejou fazer foi uma análise do que se poderia chamar de focos de experiência, nos quais se articulam uns sobre os outros: primeiro, as formas de um saber possível; segundo, as matrizes normativas de comportamento para indivíduos; e enfim os modos de existência virtuais para sujeitos possíveis, [ao que complementa que] é a articulação dessas três coisas que podemos chamar, creio, de “foco 2 de experiência” . Articulação que esteve presente, “com maior ou menor sucesso e eficácia”, por exemplo, em História da loucura. E, entretanto, Foucault admite na sequência ter empreendido em seus livros posteriores não exatamente uma articulação entre esses três eixos, mas o estudo dos mesmos como “dimensões de uma experiência”: o eixo da formação dos saberes a partir de práticas discursivas em As palavras e as coisas; o eixo das matrizes normativas de comportamento através das técnicas e procedimentos pelos quais se conduz a conduta dos outros em Vigiar e Punir; e, por fim, a análise do “eixo de constituição do modo de ser do sujeito”, visando um deslocamento que “em vez de se referir a uma teoria do sujeito”, tenta analisar, em sua historicidade, “as diferentes formas pelas quais o indivíduo é levado a se constituir como sujeito”, isto é, proceder “à análise das formas de subjetivação das técnicas/tecnologias da relação consigo”3 no âmbito de uma História da sexualidade. 2 FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros (Curso no Collège de France, 1982-1983). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. de Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes, 2010, p. 5. 3 Ibid., p. 6 11 Contudo, Foucault não deixa de manifestar o desejo de “tentar marcar melhor a correlação destes três eixos”, ou seja, “tentar ver como se pode estabelecer, como se estabelece efetivamente, a correlação deles”4. Com efeito, uma leitura atenta de seus últimos escritos seria capaz de descortinar a retomada e o esforço de consecução desta proposta. Vejase o caso do prefácio ao Uso dos prazeres: Em suma, tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas, constitui-se uma “experiência” tal, que os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma “sexualidade” que abre para campos de conhecimento bastante diversos, e que se articula num sistema de regras e de coerções. O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência – se entendemos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de 5 subjetividade . Diversas questões poderiam emanar dessa nova rearticulação reflexiva. Uma delas poderia nos conduzir à afirmação de que, no momento em que empreende sua série de estudos sobre os processos de subjetivação nos anos de 19806, encontrando no sujeito – ou nas “formas de subjetividade” – um dos três eixos para pensar determinada experiência histórica (no caso precedente, a da “sexualidade”), longe de renunciar às suas pesquisas anteriores, Foucault encontra um meio de lhes conferir uma forte coerência. Coerência que não é necessariamente a da “unidade” ou a do “sistema”, tratando-se antes de abertura a uma diferença contextual capaz de retomar e ampliar perspectivas anteriormente trabalhadas, não se tratando, portanto, de uma “ruptura” ou de uma “continuidade” pura e simples. Por outro lado, essa articulação das “formas de subjetividade” com os “campos de saber” e os “tipos de normatividade” próprios a determinada cultura só pode levar a uma concepção inusual do termo “sujeito” ou “subjetividade”. Sobretudo se por “sujeito” entendermos uma substância universal, anistórica e necessária que constituiria o fundamento a priori do conhecimento e o princípio de toda significação. Esta concepção de sujeito como dado originário, fundante e constituinte caracteriza aquilo que Foucault designou como as “filosofias do sujeito” que, encontrando na figura de Descartes a petição de princípio de um 4 Ibid., p. 42. FOUCAULT, M. História da sexualidade 2 – O uso dos prazeres. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. RJ, Graal, 2007, p. 10. (Grifo nosso). 6 São eloquentes os títulos de alguns dos cursos da referida época: Subjetividade e verdade (1981), A hermenêutica do sujeito (1982). 5 12 eu universal “que é todo mundo, não importa onde, a todo momento”7, legará à parte da modernidade uma tradição de pensamento do sujeito como natureza originária, préestabelecida e autoinstituinte do conhecimento. A esta concepção de sujeito ou de subjetividade que marca certa tendência do pensamento moderno, Foucault manterá um distanciamento crítico irredutível que, embora em diferentes formulações e a partir de diferentes perspectivas, estará presente em seus escritos desde os anos de 1960 até seus últimos trabalhos. No entanto, ao questionar esta concepção de subjetividade que teria seu ponto de inflexão na modernidade própria a Descartes, Foucault não visará em momento algum dar uma nova estabilidade ao sujeito, redefinindo, por exemplo, qual seria sua estrutura ou suas propriedades essenciais, sua identidade. Ao valer-se de termos como “formas de sujeito” e “subjetivação”, a concepção de sujeito que Foucault nos sugere é aquela de algo suscetível de transformação e que só pode ser apreendido enquanto processo histórico de constituição. Mais ainda, a presença mesma do sufixo nos induz a pensar num processo histórico de constituição que denota certa ação por parte do sujeito no desenrolar deste processo. De fato, em vez de apresentar o sujeito como mero “efeito” dos campos de saber e dos tipos de normatividade de determinada cultura, Foucault enfatizará em suas últimas pesquisas os processos de subjetivação como práticas historicamente singulares que não se reduzem à relação com formas de saber possíveis ou de normatividades instituídas, mas que remetem também à relação a si, qual seja, à capacidade de criação pautada em determinada maneira de se relacionar consigo mesmo e com os outros para se elaborar, se constituir como sujeito. Trata-se de uma relação a si que poderíamos designar como “etopoética”, na medida em que visa criar um modo de ser guiado por princípios de ação que possam dar certa forma e estilo à existência. Princípio de ação que pode assumir, por exemplo, o caráter ético de uma construção de si que visa harmonizar os pensamentos e as palavras, as palavras e as ações, no intuito de realização de uma vida bela, ressaltando, por sua vez, uma dimensão estética que se apresenta na própria trama da vida, que doravante é trabalhada como uma obra a ser constantemente construída. Constituindo-se, assim, na urdidura histórica da conjugação entre conhecimento, política, ética e estética, os processos de subjetivação problematizados por Foucault comportam diversas formas possíveis de articulação e construção de si, formações múltiplas e 7 FOUCAULT, M. “Le sujet et le pouvoir”, op. cit., 1050. 13 complexas que variam e se transformam sem que haja apelo a uma cristalização que forneça a síntese definitiva de uma solução. Posto isto, seria no mínimo simplista alardear um suposto “retorno do sujeito” em Michel Foucault. Em primeiro lugar, porque este sujeito não assume as formas canônicas estabelecidas pela história da filosofia, que o toma em larga medida como uma substância autoidêntica necessária e universal. Em segundo lugar, porque o termo sujeito só pode ser compreendido enquanto processo histórico de subjetivação, o que permitirá a um autor como Deleuze afirmar que, em última instância, “não há sujeito, mas uma produção de subjetividade”8, porquanto o sujeito só pode ser designado como a história da subjetivação, quer dizer, um movimento constante de formação enquanto ato e relação a si, aos outros, à cidade. No entanto, dado este quadro, muito se interrogou até que ponto essa maneira de enfocar a subjetividade seria compatível com a modernidade, visto que, efetivamente, os últimos trabalhos de Foucault concentram-se em torno da Antiguidade clássica, que marca um de seus pontos prioritários de questionamento. Nessa senda, seriam os estudos sobre a Antiguidade clássica o sintoma de um fascínio em relação a épocas em que estas práticas “etopoéticas” de constituição de si predominariam sobre as “estratégias de dominação” próprias à “modernidade”? Seria este o sentido do suposto “retorno aos gregos” perpetrado pelo “último Foucault”? Um movimento que, apegando-se ao estudo da “estética da existência” e do “sujeito ético” clássico, visaria instaurar um processo contra a “subjetividade moderna”? Afirmações de tal ordem seriam aceitáveis somente se desconsiderássemos completamente aspectos seminais da posição foucaultiana. A começar pela relação que o pesquisador estabelece com a história, ao ressaltar que embora empreenda “estudos de „história‟”, estes estudos, contudo, “não são trabalhos de historiador”9; na verdade, assegurará, faz genealogia: “Genealogia quer dizer que conduzo a análise a partir de uma questão presente”10. Portanto, ao tratar de Sócrates, Sêneca, Aristóteles ou Gregório de Nissa, das técnicas de confissão, de condução da existência, do cuidado de si ou da parrhesia, o que DELEUZE, G. “Un portrait de Foucault”. In: Pourparlers (1972-1990). Paris, Les Éditions de Minuit, 2007, p.154. 9 FOUCAULT, M. História da sexualidade 2 – O uso dos prazeres, op. cit., p. 13. 10 FOUCAULT, M. “Le souci de la verité”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, nº 350, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, p. 1493. Conforme afirma ainda Paul Veyne: “Foucault não se fazia historiador senão a propósito dos pontos em que o passado encobre [recèle] a genealogia de nossa atualidade. Esta última palavra permaneceria a grande palavra.” (VEYNE, P. “Le dernier Foucault et sa morale”. In: Critique – Revue générale des publications françaises et étrangères, Paris, Vol. XLII, n. 471-472, 1986, p. 934). 8 14 está continuamente em questão para Foucault é seu próprio presente, sua atualidade como campo produtor de questionamentos que visa menos uma “descrição” pormenorizada da maneira como os Antigos recortavam suas questões do que a problematização de questões atuais através dos Antigos11. Modo de proceder que se liga estreitamente ao papel que desempenha a modernidade reivindicada por Foucault, no qual o filósofo não apenas se reconhece como pertencendo a um determinado presente que a caracteriza, mas faz deste pertencimento o agenciador de seus questionamentos e de seu modus operandi: a modernidade, assim disposta, apresenta-se como pertencimento e atitude. Por conseguinte, o recurso que Foucault faz às formas de subjetividade e aos processos de subjetivação próprios à Antiguidade não tem o teor de uma “alternativa à modernidade” ou de um “retorno histórico”, mas emanam diretamente do questionamento a propósito da constituição do sujeito moderno: quais as possibilidades e limites de constituição de subjetividades que nos são dispostos? Como pensar a correlação entre conhecimento, política, ética e estética no processo de constituição do sujeito moderno? Qual o estatuto de pertencimento e engajamento que se delineia entre os sujeitos na modernidade? Em que medida, enfim, o estudo da experiência que os Antigos fizeram de si não traria consigo a potencialidade de redirecionamento do olhar à nossa modernidade e da experiência que poderíamos fazer de nós mesmos, sujeitos modernos? São questões que perpassam de diferentes maneiras cada momento do presente trabalho, sem o intuito, todavia, de conferir uma resposta conclusiva ou apresentar a “última palavra” de Foucault atinente ao que seja, enfim, “o sujeito moderno”. Tampouco nos propomos a uma apresentação exaustiva que tivesse o fito de estabelecer o “tema geral do sujeito” em cada uma das respectivas “fases” (“arqueológica”, “genealógica”, “ética”) das pesquisas de Foucault. De modo mais restrito e circunstancial, buscamos nos ater a considerações sobre determinadas problematizações suscitadas por Foucault concernentes aos modos de constituição do sujeito presentes em momentos específicos de algumas de suas produções dos anos de 1980. Mais precisamente, no capítulo 1, tendo como texto base de discussão a primeira hora da primeira aula do curso A hermenêutica do sujeito, ministrada no Collège de France em 6 11 Tendo isso em vista, talvez se tornem menos inusitados ao leitor os cortes e associações que Foucault por vezes opera: sem denotar maiores impedimentos, antepõe Sócrates e Descartes, aflora um debate acerca do papel do intelectual em meio a interrogações sobre Tucídides, Platão, a filosofia cínica, correlaciona de modo não menos excepcional Baudelaire e Kant que, por seu lado, não deixam de ressaltar aspectos que poderiam nos remeter novamente a Sócrates e ao próprio Foucault. 15 de janeiro de 1982, dedicamo-nos a analisar as relações entre “conhecimento de si” e “cuidado de si”. Relações que implicam, por sua vez, dois modos de ser do sujeito: por um lado, um sujeito autoidêntico, entregue de uma vez por todas através de um ato de conhecimento; por outro lado, uma noção de sujeito que se apresenta como construção constante de si numa relação que envolve as dimensões epistêmica, ética, estética e política da existência. Nesse ínterim, a comparação e a contraposição dos modos de conceber a filosofia e sua relação à verdade a partir de Descartes (ou do “momento cartesiano”) e de Sócrates (ou do “momento socrático-platônico”) marcaram o escopo de articulação da análise, acarretando, por seu turno, a recorrência à investigação da filosofia como “modo de vida”, com a qual inauguramos o capítulo. No capítulo 2, apoiando-nos sobremaneira nos cursos O governo de si e dos outros (1983) e A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II (1984), empenhamo-nos em salientar problemáticas e temas relativos ao capítulo 1, desdobrando-os na relação – ou mesmo na tensão – entre a “parrhesia política” e a “parrhesia ética” própria à filosofia. Colocando em perspectiva a análise de aspectos do “franco-falar” (parrhesia) de Péricles e de Sócrates, intentamos frisar um modo de ser do sujeito que envolve um modo de dizer e de se reportar aos outros que, por sua vez, faz com que o sujeito se vincule a si mesmo, ao seu enunciado e à enunciação, à medida mesma que se vincula aos atos e às consequências, notadamente de risco, acarretadas por esta atitude de franco-falar. No caso específico de Sócrates, cuja abordagem privilegiamos, tencionamos manifestar a relação ao mesmo tempo imprescindível e autônoma entre seu modo de ser e o modo de ser da cidade, entre seu francofalar e o regime de discursos da polis, entre sua conduta pautada no cuidado de si e dos outros e o governo da cidade. Quadro este que, procuramos delinear previamente, tem em seu plano geral a interrogação mais ampla das possíveis relações entre filosofia e política. Por fim, no capítulo 3, tomando como ponto de partida de nossa análise o texto de Foucault intitulado “O que são as luzes?” (1984), focalizamos a leitura que o pensador francês empreende de Kant e Baudelaire ao tomá-los como referenciais de uma “atitude de modernidade” que implica um pertencimento crítico ao presente, ou melhor, uma “crítica permanente de nosso ser histórico”. No que diz respeito a Kant, Foucault concentrar-se-á no questionamento do opúsculo “Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento?”, esforçando-se por destacar a especificidade do mesmo na medida em que coloca de maneira inteiramente nova a questão filosófica da atualidade, de modo a relacioná-la a uma atitude que enreda uma 16 nova maneira de pensar, sentir e agir, que se conjuga, por sua vez, a um novo modo de visar o presente (dimensão epistêmica), de se relacionar a si (dimensão ética), de se relacionar aos outros (dimensão política) e, enfim, que acarreta a escolha e construção de uma forma de existência (dimensão estética). No tocante a Baudelaire, Foucault visará indicar como estas dimensões próprias à atitude de modernidade encontrar-se-iam também no autor de “O pintor da vida moderna”, entretanto, redobradas e, em certa medida, ressignificadas pela referência lírica: seja no que concerne ao potencial crítico da imaginação que visa transfigurar o mundo, seja na criação e transfiguração de si que faz da existência uma elaboração permanente, afigura-se uma relação ativa, permanente e crítica diante do presente. Ainda no que se refere a este capítulo, cumpre ressaltar que, ao apresentar Foucault como um filósofo eminentemente moderno, retoma e retrabalha em seu desenvolvimento questões presentes nos capítulos anteriores, tais como aquelas suscitadas pela interpelação do “cuidado de si” e da “coragem da verdade” própria à parrhesia, ressaltando nesse movimento a possibilidade de constituição de um sujeito moderno distinto do registro “cartesiano”, posto que tecido num “labor infinito” de um constante “fazer-se”. Labor infinito ao qual o próprio Foucault não se furta, lançando a seus leitores uma advertência: Quanto àqueles para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar tudo de cima abaixo a ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar mantendo-se em reserva e inquietação equivale à demissão, pois bem, é evidente que não somos do 12 mesmo planeta . Advertência que talvez não deixe de conter a suspeita de que o exercício da liberdade implica o exercício não menos árduo de pôr-se a si mesmo em questão. 12 FOUCAULT, M. História da sexualidade 2 – O uso dos prazeres, op. cit., p. 12. 17 Capítulo 1 Foucault, leitor de Sócrates: subjetividade e verdade. Os antigos filósofos gregos, como Epicuro, Zenão, Sócrates, etc., permanecem muito mais fiéis à verdadeira Ideia do filósofo do que a que se fez nos tempos modernos. “Quando hás de, enfim, começar a viver virtuosamente?”, disse Platão a um ancião que lhe pedia escutasse algumas lições sobre a virtude. Não se deve apenas especular, mas é necessário também, de uma vez por todas, pensar em praticar. Mas hoje toma-se por sonhador aquele que vive de acordo com o que ensina. (Immanuel Kant) 1.1. Quem é Sócrates? Em sua aula inaugural no Collège de France, Maurice Merleau-Ponty chamava a atenção de seus ouvintes ao fato de que “a filosofia colocada em livros deixou de interpelar os homens. O que há de insólito e quase insuportável nela se escondeu na vida decente dos grandes sistemas”. Ora, continua, para reencontrar a função completa do filósofo, é preciso lembrar-se que mesmo os filósofos-autores que nós lemos e que nós somos jamais cessaram de reconhecer como patrono um homem que não escrevia, que não ensinava, ao menos nas cadeiras do Estado, que se dirigia àqueles que ele encontrava na rua e que teve dificuldades com a opinião e com os poderes, é preciso se 13 lembrar de Sócrates . Esta homenagem, que é também um apelo, põe àqueles que se dedicam à filosofia uma tarefa tão incontornável quanto dificultosa: o recurso a Sócrates. Incontornável posto que desde muito cedo este cidadão ateniense foi tomado por seus pares como pai de algo que não era exatamente novo, mas que mudava radicalmente de 13 MERLEAU-PONTY, M. Éloge de la philosophie et autres essais. Paris, Gallimard, 1960, p. 39. 18 sentido: “Sócrates foi o primeiro a convidar a filosofia a descer do céu, instalou-a nas cidades, introduziu-a também nos lares e impôs-lhe o estudo da vida e dos costumes, do bem e do mal”14. Se antes a filosofia aplicava-se em aprofundar a física ou o estudo da natureza, a partir de então a reflexão filosófica se interessará pelas “questões humanas”. Foi provavelmente na senda desta tradição interpretativa – que está longe de ser unívoca – que os modernos forjaram o termo “pré-socráticos” para açambarcar todos os filósofos que se situam antes da “revolução” socrática. No entanto, parece-nos, a “paternidade filosófica” de Sócrates não se deve somente a esta conversão de objeto que fará das questões éticas e políticas o objeto por excelência da reflexão filosófica. Como nos afirma Dorion: Não é somente em razão de sua influência determinante como nenhuma outra sobre a reflexão ética de seus discípulos imediatos e das escolas filosóficas posteriores, mas porque ele continua sendo para nós o primeiro exemplo de um filósofo que se dedicou inteiramente à busca sem compromisso e sem concessão dos princípios e fundamentos da “vida boa”. Sócrates consagrou sua vida a esta busca, até ao ponto de perdê-la, de sorte que ele foi não somente o pai da filosofia, mas também seu primeiro e mais célebre mártir15. Tempos em que não ser “funcionário” ou “escritor”16 podiam ainda levar o filósofo a pagar o preço de seu modo de vida com a própria vida. Mas dizíamos também que Merleau-Ponty nos colocava frente a uma dificuldade, diante mesmo de um embaraço. Afinal, remeter-se a Sócrates implica, de um modo mais ou menos direto, a questão: “quem é Sócrates?”. Resposta que, como frisado, jamais poderá nos ser conferida diretamente por este “homem que nada escrevia e nada ensinava”. Possivelmente encontre-se neste ponto um dos aspectos que torne sua figura ao mesmo tempo tão emblemática e tão difícil de se deixar apreender, circunscrever. Note-se: 14 CICERÓN. Disputaciones Tusculanas (V. 4, 10). Introduccíon, traducción y notas de Alberto Medina González. Madrid, Editorial Gredos, 2005, p. 393. Este texto de Cícero é um testemunho, entre outros, de uma tradição multifacetada de apreciação da importância de Sócrates que remonta a Platão (Apologia 19 c), Xenofonte (Ditos e feitos memoráveis de Sócrates I, 1, 11 – 16) e Aristóteles (Metafísica A 6, 987 b; Das partes dos animais I 1, 642 a 24-31), para ficarmos apenas com estes. 15 DORION, L.-A. Compreender Sócrates. Trad. de M. Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 2006, pp. 8-9. 16 “O filósofo moderno é frequentemente um funcionário, sempre um escritor.” (MERLEAU-PONTY, M., op. cit., p. 39). 19 Sócrates ensina que a religião é verdadeira, e o viram oferecer sacrifícios aos deuses. Ele ensina que se deve obedecer à cidade, e o faz até o último momento. O que lhe censuram não é tanto o que faz, mas a maneira, o 17 motivo por que o faz . Se Sócrates acredita na religião, ele acredita de outro modo, verdadeira como Sócrates a pensa e não como ela se pensa; se Sócrates justifica a cidade, é por suas razões e não pelas do Estado; Sócrates não foge, comparece ao tribunal, mas há pouco respeito nas explicações que lhe dá; até mesmo na iminência de sua condenação à morte, “quando Sócrates recusa fugir, não é porque ele reconheça o tribunal, é para melhor recusá-lo”18: “presença ausente”, “obediência desrespeitosa” que não deixa, todavia, em um só momento, de marcar uma “relação viva com Atenas”. Remata Merleau-Ponty: Tudo o que Sócrates faz se ordena segundo este princípio secreto que em vão se tenta captar. Sempre culpado por excesso ou falta, sempre mais simples e menos sumário que os outros, mais dócil e menos acomodatício, causa-lhes mal-estar, infringe-lhes esta imperdoável ofensa de fazê-los duvidar de si próprios19. Parece haver de fato um “desvio constitutivo”20 de Sócrates. No Teeteto, Sócrates é chamado de átopos21, isto é, sem lugar: um indivíduo que não somos capazes de caracterizar nos moldes da “natureza humana”, um “ex-cêntrico”. Há um caráter especial de Sócrates, um “tropos socrático”, um “jeito” que o faz ser “tal” como é e agir “tal” como age. Talvez seja esta “maneira de ser” – tão insistente na Apologia (que teremos oportunidade de retomar) – o “princípio secreto que em vão se tenta captar”, sua atopia. Algo dessa dificuldade em apreender “quem é Sócrates?” se manifesta ainda naquilo que se pôde designar sua “herança” mais direta ou “literatura socrática”. Como assinalará 17 Ibid., p. 40. Ibid. 19 Ibid., p. 41. 20 MEDRANO, G. L. El proceso de Sócrates: Sócrates y la transposición del socratismo. Editorial Trotta, Madrid, 1998, p. 15. 21 Em Teeteto (149 a): “Dizem apenas que eu sou o homem mais esquisito [átopos] do mundo e que lanço confusão [aporia] no espírito dos outros.” (Platão. Teeteto – Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, EDUFPA, 2001, p. 45. 18 20 Francis Wolff, “nascia no IV século a.C. a maior febre filosófica que o Ocidente conheceu”, um “'socratismo' generalizado de que quase todo pensamento se vai reclamar doravante”22: Sócrates nada escrevera, e escrevia-se em seu nome; nunca dirigira escola, e estas se fundavam às dezenas, e todas Socráticas. Tronco comum dos “Grandes Socráticos”, (a Academia de Platão, depois o Liceu de Aristóteles) e dos “Pequenos Socráticos” (Cínicos, Megáricos, Cirenaicos) e ainda outros dos quais só nos restam vestígios, Sócrates talvez valesse sobretudo como emblema. No entanto, como explicar que filhos assim tão diversos tenham podido reivindicar a mesma paternidade? Como explicar que se tenham considerado socráticos – ao mesmo título e aparentemente com os mesmos direitos – o ascetismo estrito, a mortificação provocante, a ironia misantropa de um Diógenes – o homem do tonel, a quem Platão chamava de “Sócrates enlouquecido” – e o hedonismo sorridente e tranquilo de um Aristipo, o “amigo do prazer”?23 Não seria porque a personagem enigmática de Sócrates, em sua riqueza e opacidade, permita de algum modo todas essas tensões antagônicas? Não seria a revelação mesma da complexidade da figura Socrática e da forte impressão que deixou sobre seus contemporâneos e, sobretudo, sobre seus discípulos? Em todo caso, o que podemos conhecer de sua vida e pensamento só pode se dar por via de testemunhos. Sejam eles diretos, como escritos provenientes de autores contemporâneos (Aristófanes), ou de discípulos (Platão e Xenofonte); sejam indiretos, em que contam os testemunhos de Aristóteles como os mais importantes. Conquanto estes testemunhos apresentem muitas divergências entre si24, “surge a questão de saber se é possível reconstituir a partir de um, de vários ou de todos estes testemunhos, a vida e sobretudo o pensamento do Sócrates histórico”. Trata-se do que se convencionou chamar de a “questão socrática”: “para nós, a chamada 'questão socrática' é o problema histórico e WOLFF, F. Sócrates – o sorriso da razão. Trad. Franklin Leopoldo e Silva. SP, Brasiliense, 1982, p. 9. Ibid., p. 11. 24 Para apontar apenas algumas delas: “espírito sintético e enciclopédico, aliando à acuidade metafísica um gênio literário não igualado, Platão nos mostra um Sócrates vivo, aberto, curioso, jamais satisfeito, superiormente irônico e hábil dialético. Xenofonte, com o bom senso grosseiro do proprietário de terras, com o moralismo pragmático e frio do militarão, mostra-nos um Sócrates moralizador e convencional, preso aos sadios valores utilitários e dogmatizando a propósito de tudo. E, afinal, o retrato feito por Aristófanes [...] nos apresenta um mestre-pensador perigoso, empoleirado no seu 'pensatório' e ocupado, entre duas lições subversivas, em medir saltos de pulga...” (Ibid., p. 23). 22 23 21 metodológico, com o qual se defrontaram e tentam resolver os historiadores que se empenham em reconstruir a doutrina filosófica do Sócrates histórico”25. Destarte, na busca da “doutrina filosófica do Sócrates histórico”, historiadores darão privilégio ora a este ora àquele testemunho. A Aristófanes, por ter sido contemporâneo de Sócrates e ter escrito sua comédia, Nuvens, sem intuito apologético. A Aristóteles, por sua suposta objetividade, visto não ter conhecido pessoalmente Sócrates. Xenofonte, com textos de menor fôlego e sem grandes pretensões filosóficas, seria, por isso, historicamente mais fiel. Já a credibilidade de Platão dar-se-ia justamente pelo motivo oposto: sendo filósofo, estaria mais qualificado para uma exposição fiel da doutrina de Sócrates. Não é preciso ir muito longe para notar que mesmo uma suposta primazia deste ou daquele autor manifesta sua falta de consenso. Seja o caso de adotarmos Platão: diverge-se quanto a quais escritos devem ser dignos do “Sócrates histórico”: os ditos diálogos de juventude, ou apenas alguns deles, a Apologia, os diálogos apócrifos, os diálogos em sua íntegra? Por outro lado, tentativas de “síntese” também não deixaram de se manifestar. Tentativas que, quase sempre, fundando-se na circularidade dos testemunhos, redundaram numa concordância superficial que não tinha por resultado senão disfarçar desacordos mais profundos. Contudo, não teríamos motivos para desconfiar que esta discussão se baseia num falso problema? Afinal, faria sentido tentar captar o “Sócrates histórico” através de determinados escritos sem que antes nos interroguemos sobre o estatuto dos mesmos? De fato, para que pudéssemos empreender um questionamento sobre o “Sócrates histórico” seria preciso que os principais testemunhos diretos, como os de Xenofonte e de Platão, tivessem a intenção de reportar fielmente o pensamento de Sócrates por meio de seus escritos. Se fosse esta a intenção deles, teríamos uma base para perguntar que testemunho corresponde melhor ao “Sócrates histórico”. Porém, não parece ser o caso: tudo leva a crer que nem Xenofonte nem Platão conceberam o projeto de expor fielmente o pensamento de Sócrates. Os escritos socráticos deles resultam de um gênero literário, o logos sokratikos26, que é explicitamente DORION, L.-A., op. cit., p. 19. Para a discussão da “questão socrática” que se segue tomaremos por fio condutor o capítulo do mesmo livro intitulado “O problema das fontes e a 'questão socrática'”. 26 ARISTÓTELES. Poética 1, 1447b 13. (ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. SP, Ars Poetica, 1992, p. 19). 25 22 reconhecido por Aristóteles e que autoriza, em virtude de sua natureza, uma grande liberdade de invenção, tanto no que se refere à encenação como quanto ao conteúdo, a saber, as ideias expressas pelos mesmos 27 personagens . Sendo assim, “se o logos sokratikos não deve ser lido nem interpretado como um documento histórico no sentido estrito, mas antes como uma obra literária e filosófica que comporta uma grande parte de invenção, a questão socrática fica desprovida de objeto”28. Há, portanto, nos diálogos socráticos um híbrido entre fidelidade histórica e invenção. Mas como entender essa correlação? É preciso atentar que a referência de Aristóteles aos logoi sokratikoi é situada no quadro dos tipos de imitação, de mímesis. Os logoi sokratikoi são, por conseguinte, mímesis. Encontramos em Platão, Xenofonte, Aristófanes “imitações” de Sócrates. Mas imitar não significa reproduzir fielmente, nem deve ser tomado como uma ficção completa. A imitação contém uma grande liberdade de invenção, mas uma invenção que se atém ao verossímil29: quem faz mímesis não diz o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido segundo a verossimilhança: o verossímil é o que poderia ter sido. A boa imitação adéqua (no sentido de tornar verossimilhante) o caráter do agente (seu éthos) e a ação executada. Nesse sentido, poderíamos pensar no caráter extremamente peculiar, por exemplo, da Apologia de Sócrates, de Platão: não se trata de uma “reportagem” ou de uma “transcrição” do discurso de Sócrates no tribunal, tampouco se trata de uma completa ficção (no sentido moderno que damos a esta palavra). Trata-se de um indivíduo que existiu, que sofreu um processo e que está sendo objeto de uma mímesis, um híbrido entre fidelidade histórica (particular) e invenção imitativa (universal), entre o indivíduo particular real e a invenção de certo caráter verossímil que está sendo atribuído a Sócrates. Mais do que um Sócrates “histórico”, “real” ou “fictício”, o Sócrates de Platão (bem como o de Xenofonte e Aristófanes) é verossímil e deve conter características que o leitor contemporâneo possa identificar como o éthos filosófico de Sócrates, como sua maneira de ser e de agir, como seu modo de vida. 27 DORION, L.-A., op. cit., pp. 22-23. Ibid., p. 23. 29 Ver ARISTÓTELES. Poética 1451b 10. (ARISTÓTELES. Poética, op. cit., pp. 53-55). 28 23 Este quadro nos leva a deslocar de certa forma o problema da questão doutrinal relativa aos logoi sokratikoi. Posto que se trata não de uma descrição histórica, mas de mímesis, qual seria o estatuto destes escritos, a que visariam? Uma possível interpretação pode nos levar a entender que a sua importância recai menos na exposição de uma teoria filosófica sistemática do que nos resultados que a exposição da maneira de viver (do éthos) do filósofo pode adquirir sobre o interlocutor. Desta feita, o socratismo aparece como o modo de vida pautado pela ação de inspeção ou exame de si e dos outros tendo por objetivo menos uma construção teórico-intelectiva do que “um método de formação que visa uma nova maneira de viver e de ver o mundo, como um esforço de transformação do homem”30: “o diálogo visa antes formar que informar”, dirá Goldschmidt31. Mais patente que em outros casos, completa Hadot, o exemplo de Sócrates é interessante, porque não é a doutrina que se procura atualizar, pois temos muita dificuldade em saber o que ela poderia ser, fora da afirmação enigmática do não-saber, mas isto que se procura atualizar, aquilo que se torna um ideal filosófico, é sua vida e sua morte elas mesmas consagradas inteiramente aos outros, consagradas a fazê-los cuidar de si mesmos, a torná-los melhores32. 30 HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris, Albin Michel, 2002, p. 71. Esta interpretação teria ainda a vantagem suplementar, segundo Hadot, de reavaliar o tema, historicamente constante, da pretensa incoerência das filosofias Antigas: “nós somos assim conduzidos a ler as obras dos filósofos da antiguidade prestando atenção redobrada à atitude existencial que funda o edifício dogmático. Quaisquer que sejam os diálogos, como os de Platão, os cadernos de cursos, como os de Aristóteles, os tratados, como os de Plotino, os comentários, como os de Proclus, as obras dos filósofos não podem ser interpretadas sem levar em conta a situação concreta na qual elas nasceram: elas emanam de uma escola filosófica, no sentido mais concreto da palavra, na qual um mestre forma seus discípulos e se esforça em levá-los à transformação e à realização de si. A obra escrita reflete então preocupações pedagógicas, psicagógicas, metodológicas. No fundo, ainda que todo escrito seja um monólogo, a obra filosófica é sempre implicitamente um diálogo; a dimensão do interlocutor eventual está aí sempre presente. É o que explica as incoerências e as contradições que os historiadores modernos encontram com espanto nas obras dos filósofos antigos. Nestas obras filosóficas, com efeito, o pensamento não pode se exprimir segundo a necessidade pura e absoluta de uma ordem sistemática, mas deve levar em conta o nível do interlocutor, do tempo do logos concreto no qual ele se exprime. O que condiciona o pensamento é a economia própria do logos escrito; é ele que é um sistema vivo que, como diz Platão, 'deve ter um corpo, de modo a não ser nem sem pés nem cabeça, mas a ter um meio e extremidades que sejam escritas de maneira a convir entre si e o todo' (Fedro, 264c). Cada logos é um 'sistema', mas o conjunto dos logoi escritos por um autor não forma um sistema”. (Ibid., pp. 65-67). 31 GOLDSCHMIDT, V. Les Dialogues de Platon – structure et méthode dialectique. Paris, Presses Universitaires de France, 1947, p. 3. 32 HADOT, P. La philosophie comme manière de vivre (entretiens avec Jeannie Carlier et Arnold I. Davidson). Paris, Albin Michel, 2001, pp. 198-199. 24 Podemos encontrar algo desta ordem naquele que é considerado por Châtelet como “o marco zero do diálogo socrático”33. Momento em que Nícias como que apresenta o éthos da investigação socrática (Laques, 187 e): Não sabes que aquele que se aproxima muito perto de Sócrates e entra em diálogo com ele, mesmo que tenha começado, no início, a falar com ele de outra coisa, ele não se constrange em ser conduzido em círculo por esse discurso, até que seja necessário dar razão de si mesmo tanto quanto da maneira pela qual se vive presentemente e daquela que viveu sua existência passada. Quando se chega lá, Sócrates não te deixa partir antes de ter, bem a fundo e de uma bela maneira, submetido tudo à prova de seu exame. […] Quem não se furta a este exame passará necessariamente a tomar mais 34 cuidado consigo mesmo . Possivelmente nos “aproximarmos muito perto” de Sócrates ao ponto de perguntarmos “quem é Sócrates?” implique mais que relançar a velha pergunta “que é a filosofia, o filosofar?”; talvez a grande artimanha e virtude do filósofo seja a de devolver insidiosamente a quem lhe pede os documentos de identidade uma interpelação ainda mais contundente que o “conhece-te a ti mesmo”, uma interpelação que concerne profundamente ao nosso modo de vida e que põe o nosso próprio ser em questão: “que devemos fazer de nossa existência?” é a questão fundamental à qual somos conduzidos quando ingenuamente indagamos “quem é Sócrates?”. Foi esta intuição de base que parece ter levado Foucault a sua “investigação socrática”, e é a ela que pretendemos doravante nos ater. 1.2. “Quem somos nós?” Uma das virtudes de Foucault costuma ser a de deslocar as evidências, introduzir uma desconfiança fundamental naquilo que é dado como tradicional. Algo dessa ordem ocorre no curso oferecido no Collège de France em 1982, intitulado A hermenêutica do sujeito. “O Laques, em sua simplicidade, é como o marco zero do diálogo socrático.” (CHÂTELET, F. “Platão”. In: ______. (org.) História da filosofia: ideias, doutrinas – 1 A filosofia pagã (do século VI a. C. Ao século III d. C). Trad. de Maria José de Almeida. RJ, Zahar Editores, 1981, p. 81). 34 PLATON, Oeuvres Complètes – Tome II (Hippias Majeur – Charmide – Lachès). Texte établi et traduit par Maurice Croiset. Paris, Société d'édition “Les belles lettres”, 1970, pp. 103-104. 33 25 Momento em que Foucault propõe-se a “entabular uma reflexão histórica das relações entre subjetividade e verdade”35. Empreendimento nada inexpressivo, visto que – embora o autor não deixe de enfatizar que não fará senão levantar algumas “hipóteses, com muitos pontos de interrogação e reticências”36 –, logo de saída, infligirá ao conjunto da história da filosofia toda uma renovação de perspectiva ao declarar e ressignificar seu momento originário e seu respectivo ponto de “cisão”. Contexto que, desde a primeira aula do curso 37, visará delinear o hiato – por vezes explícito, por vezes velado – que se esboça entre a figura de Sócrates e a de Descartes, tendo por pano de fundo, num movimento mais amplo e ousado, as relações entre filosofia Antiga e filosofia Moderna. Movimento a tal ponto marcante e fundamental que mesmo o nome próprio “filosofia” será posto em questão. Com efeito, Foucault propõe-se a desenvolver o questionamento entre “sujeito e verdade” a partir de uma “noção grega bastante complexa e rica”: trata-se da noção de “cuidado de si” (epiméleia heautoû), noção rica o suficiente a ponto de envolver um modo de ser do sujeito, um modo de pensar a verdade e, correlatamente, um modo de conceber a filosofia. Procedimento um tanto paradoxal o da escolha dessa noção, à primeira vista marginal na historiografia filosófica, pois todos sabemos, todos dizemos, todos repetimos, e desde muito tempo, que a questão do sujeito (questão do conhecimento do sujeito, do conhecimento do sujeito por ele mesmo) foi originalmente colocada em uma fórmula totalmente diferente e em um preceito totalmente outro: a famosa prescrição délfica do gnôthi seautón (“conhece-te a ti mesmo”)38. Esta suposta fórmula fundadora das relações entre sujeito e verdade apresentou-se não apenas como a marca mesma do nascimento da filosofia, mas inscreveu-se nas paredes do pensamento ocidental com a força de um destino: um destino que confere ao sujeito sua identidade, sua constituição profunda, sua verdade mais íntima, possivelmente sua natureza, através de procedimentos de conhecimento. 35 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Edição estabelecida por Frédéric Gros, sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010, p. 3. 36 Ibid., p. 13. 37 Trata-se da aula de 6 de janeiro de 1982, na qual nos concentraremos, sobretudo em sua primeira hora de exposição. 38 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 4. 26 No entanto, a esta perspectiva que põe o “conhece-te a ti mesmo” como a mais antiga das interrogações, questionamento ancestral e imemorial que “fundaria” o pensamento ocidental, Foucault parece antepor outra leitura: e se, no fundo, a importância conferida ao conhecimento de si como imperativo absoluto do pensamento grego não fosse senão retrospectiva, e se o conhecimento de si fosse o próprio de nossa modernidade, ao passo que a Antiguidade se reconheceria em outro imperativo: não o “conhecimento de si”, mas o 39 “cuidado de si”? . Tal expediente de problematização traria consigo, ao menos, uma dupla implicação: 1) a releitura da relação existente entre a epiméleia heautoû e gnôthi seautón no contexto da Antiguidade; à qual pretendemos nos remeter concentrando-nos no contexto do “momento socrático-platônico”40, especialmente na análise da Apologia promovida por Foucault em sua aula inaugural; 2) a indicação do momento, historicamente datado, e afinal relativamente recente, em que o “conhecimento de si”, desgarrando-se do “cuidado de si”, pôde se impor como configurador por excelência das relações entre sujeito e verdade no Ocidente. Trata-se, adiantemos, do “momento cartesiano” e da consequente cesura histórico-filosófica que este estabelece nas relações entre sujeito e verdade, levando Foucault a apontar uma anteposição entre o que chamará de “filosofia” e “espiritualidade”. Procedamos, assim, ao primeiro momento. 1.2.1. “Cuida-te de ti mesmo” Após nos chamar a atenção ao fato “um tanto paradoxal” que seria escolher a noção de “cuidado de si” – noção em todo caso presente, mas aparentemente sem nenhum status particular no pensamento grego – como fio condutor de uma investigação entre sujeito e GROS, F. “À propos de l'Herméneutique du sujet”. In: LE BLANC, G.; TERREL, J. (éd.) Foucault au Collège de France: un itinéraire. Pessac, Presses Universitaires de Bordeaux, 2003, pp. 152-153. 40 Foucault esquematiza a história do cuidado de si em três momentos: o de seu nascimento filosófico, séculos V e IV a.C., momento socrático platônico; o de sua “idade de ouro”, séculos I e II d. C., momento helenísticoromano; o da passagem do ascetismo pagão ao ascetismo cristão, séculos IV e V (Cf. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 30). O desenvolvimento do curso, de fato, é consagrado mormente ao segundo momento (estoicismo e epicurismo). 39 27 verdade, Foucault remete-se a estudos de historiadores e arqueólogos41 que tinha à mão para corroborar que “sem dúvida, tal como foi formulado, de maneira tão ilustre e notória, gravado na pedra do templo, o gnôthi seautón não tinha, na origem, o valor que posteriormente lhe conferimos”, isto é, “o que estava prescrito nessa fórmula não era o conhecimento de si, nem como fundamento da moral, nem como princípio de uma relação com os deuses”42: recomendações ao próprio ato da consulta ao deus, imperativos gerais de prudência nas demandas ao mesmo, de modo algum pretendia designar ou formular um “princípio geral de ética e medida para a conduta humana”43. Não obstante, o que parece ocupar e interessar a Foucault mais de perto é menos o sentido dado e atribuído ao preceito délfico no culto de Apolo do que o fato da aparição do “conhece-te a ti mesmo” no pensamento filosófico, inauguração cujas honras são conferidas a Sócrates44. Ora, quando surge este preceito délfico no discurso filosófico, assinala Foucault, ele está não raras vezes “acoplado, atrelado” ao princípio do “cuida de ti mesmo”. Mais do que isso, acrescenta, em “alguns textos”, “é bem mais como uma espécie de subordinação relativamente ao preceito do cuidado de si que se formula a regra do 'conhece-te a ti mesmo'”45. É no âmbito, no quadro mais geral e como que nos limites da epiméleia heautoû que o gnôthi seautón aparece como uma espécie de aplicação concreta da regra geral: “é preciso que te ocupes contigo mesmo”. Inversão de perspectiva e de valoração tão surpreendente quanto a escolha do texto que, num primeiro momento, é trazido como ratificador dessa estreita preponderância do “cuidado de si” sobre o “conhecimento de si”: trata-se da Apologia de Sócrates, de Platão46. Foucault reporta-se aqui aos trabalhos de W. H. Roscher (“Weiteres über die Bedeutung des E [ggua] zu Delphi und die übrigen grammata Delphika”, Philologus, 60, 1901, pp. 81-101) e de J. Defradas (Les thèmes de la propagande delphique, Paris, Klincksieck, 1954, cap. III: “La sagesse delphique”, pp. 268-283). 42 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 5. 43 Ibid. 44 Foucault aponta “alguns textos de Platão” e as Memoráveis de Xenofonte como signos dessa aparição. Em Xenofonte, que não será priorizado por Foucault (deixando, assim, mais ou menos explícita sua opção por “alguns textos” de Platão), pode-se ler: “Então Sócrates: Dize-me, Eutidemo, perguntou ele, já estiveste em Delfos? – Sim, por Zeus, respondeu Eutidemo; estive até duas vezes. – Então viste em algum lugar no templo a inscrição: Conhece-te a ti mesmo? – Sim. – Tu a viste distraidamente ou prestaste atenção e tentaste imaginar quem tu és?” (XÉNOPHON, Mémorables, IV, II, 24. Trad P. Chambry. Paris, Garnier-Flammarion, 1996, p. 390). 45 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 6. 46 No curso do ano de 1982, Foucault dedicar-se-á ainda, e de modo mais incisivo (no que tange ao “momento socrático-platônico”), à leitura do Primeiro Alcibíades, de Platão. A opção em manter o texto da Apologia como base de análise deste momento justifica-se não apenas por ser o texto tratado na aula que nos propusemos a trabalhar, mas também porque o texto do Alcibíades levaria a uma ligação quase que direta, ao menos nos marcos deste curso, com o estoicismo e com o epicurismo, ligação que pretendemos evitar, pois nos levaria demasiado longe. Por outro lado, fossemos justos com o conjunto dos cursos de 1982 a 1984, teríamos que 41 28 Aparentemente, ao ver de Foucault, a notoriedade histórica deste texto não foi capaz de atentar ou de tirar as devidas implicações que o mesmo encerra, visto que na Apologia “Sócrates apresenta-se como aquele que, essencialmente, fundamental e originariamente, tem por função, ofício e encargo incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados consigo e não descuidarem de si”47. A respeito disso, sustentará Foucault que há no referido texto três passagens “totalmente claras e explícitas” que atestam esta preponderância do “cuidado de si” em relação ao “conhecimento de si”. As três passagens da Apologia eleitas por Foucault encontram-se entre 28b e 36d, momentos em que Sócrates apresenta e esclarece seu modo de vida, o valor intrínseco deste modo de vida e os benefícios que ele traz à cidade, seguido do comentário da condenação e da “pena” proposta por Sócrates48. Vamos nos ater aqui àquela que consideramos ser a principal das passagens, indicando, amiúde, outras que possam nos servir de apoio49. Trata-se de um trecho longo, porém muito elucidativo, que se encontra em 29d e se segue ao momento em que Sócrates responde a uma possível acusação que lhe poderia ser dirigida (28b): não haveria algo de vergonhoso em encontrar-se numa situação em que um certo modo de vida, seja ele qual for, tenha-o levado ao tribunal e à possibilidade mesma de ser condenado à morte?50. Ao que Sócrates responde (29c) que, ao contrário, ainda que tivesse a possibilidade de receber indulto com a condição de que levasse a partir de então outra vida, recusaria, não a mudaria. Eis a resposta que daria: Varões atenienses, eu os saúdo e os amo, mas obedecerei antes ao deus que a vocês e, enquanto respirar e tiver condições, receio não parar de filosofar e a vocês advertir e mostrar (a qualquer um de vocês que eu sempre encontrar), mobilizar também o Laques, explorado de modo mais agudo no curso de 1984 (A coragem da verdade – O governo de si e dos outros II), e que, por sua vez, aponta para a tradição cínica. 47 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 6. 48 Para maiores detalhes, consultar o “Plan de l'Apologie” proposto por Luc Brisson em sua “Introduction”. In: PLATON, Apologie de Socrate – Críton. Traductions inédites, introductions et notes par Luc Brisson. Paris, GFFlammarion, 1997. 49 Como é sabido (Cf. nota 15, de Frédéric Gros, em FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 20), Foucault utilizava em seus cursos a edição “Les belles lettres” (neste caso, PLATON, Oeuvres Complètes – Tome I (Introduction, Hippias mineur, Alcibiade, Apologie de Socrate, Euthyphron, Criton). Texte établi et traduit par Maurice Croiset. Paris, Société d'édition “Les belles lettres”, 1970.), também conhecida como edições Budé, que lhe permitia, concomitante à tradução ao francês, o acesso direto ao texto grego. Visando escapar à tradução do texto francês para o português por nossa conta, quando necessário, recorreremos à tradução do grego de André Malta (PLATÃO, Apologia de Sócrates, precedido de Sobre a piedade (Eutífron) e seguido de Sobre o dever (Críton). Introdução, tradução do grego e notas de André Malta. RJ, L&PM, 2011). 50 “Alguém poderia então talvez dizer: 'Mas você não sente vergonha, Sócrates, de ter se ocupado com uma tal ocupação, pela qual agora corre o risco de morrer?'” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, precedido de Sobre a piedade (Eutífron) e seguido de Sobre o dever (Críton). Introdução, tradução do grego e notas de André Malta. RJ, L&PM, 2011, p. 86.). 29 falando daquele jeito a que estou habituado – “melhor dos homens, você, sendo um ateniense, da melhor e mais reputada cidade em sua sabedoria e força, não sente vergonha de militar [epimeleîsthai] em favor do dinheiro (a fim de possuir o máximo possível), e da fama e da honra, mas em favor da reflexão [phrónesis], da verdade [alétheia] e da alma [psykhè] (a fim de ser a melhor possível) não militar [epimelêi] nem se preocupar?” E se algum de vocês quiser contestar e disser que milita, não o liberarei de imediato nem me afastarei, mas vou interrogá-lo [erésthai], e inspecioná-lo [exetázein], e refutá-lo [elénkhein]. E se me parecer não ter adquirido a virtude [areté] – mas dizer que sim –, vou reprová-lo por considerar de menos o digno do máximo, e o mais banal, demais. Farei isso com o mais jovem e com o mais velho (com qualquer um que eu encontrar), com o estrangeiro e com o cidadão – mais com os concidadãos, pelo tanto que, por raça, vocês me são mais próximos. Pois é isso – fiquem sabendo – que o deus me ordena e ainda penso que não surgiu para vocês nenhum bem maior na cidade que meu 51 serviço ao deus . Para Sócrates, portanto, é preciso cuidar dos objetos certos: a reflexão, a verdade e a alma, em oposição ao dinheiro, à fama e à honra. Trata-se de uma atividade, de um exercício permanente e que não envolve uma atitude meramente intelectual: quando Sócrates interroga, inspeciona e refuta seus interlocutores tem como horizonte de sua ação a transformação do cuidado do interlocutor, para que dirija seus cuidados a certos valores e não a outros, uma transformação que é, no fundo, uma transformação no modo de vida de quem escuta. Daí que a filosofia socrática possa ser compreendida como um modo de vida pautado pela ação de inspeção ou exame de si e dos outros que tem como objetivo um “cuidado da alma” – se por esta entendermos não uma “substância”, mas um princípio de ação, cujas aptidões e capacidades devem ser bem direcionadas52. É obedecendo a esta ordem divina e mantendo-se firme em seu posto (táxis) que Sócrates milita53 por seus concidadãos, e mesmo estrangeiros, entendendo aqui por militar dar a algo um papel central na vida. Sócrates é Méletes: é aquele que cuida, aquele que cuida do cuidado de si e dos outros. E não seria fora de propósito atentar ao trocadilho irônico com o nome de um de seus acusadores: Meleto. Sócrates não cansará de dizer, sob a letra de Platão, 51 Ibid., p. 89. Sobre este ponto, ver FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 52. Como enfatiza ainda JeanPierre Vernant, deve-se evitar igualmente a interpretação do termo na chave de um “eu psicológico”: “A psykhè é em cada um de nós uma entidade impessoal ou suprapessoal. É a alma em mim mais do que minha alma” (VERNANT, J.-P. “O indivíduo na Cidade”. In: VEYNE, P. et al. Indivíduo e poder. Trad. de Isabel Dias Braga. Lisboa, Edições 70, 1988, p. 40). Para um exame da noção de psykhè através da poesia lírica grega antiga, consultar SNELL, B. “O Homem na Concepção de Homero”. In: A cultura grega e as origens do pensamento europeu. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo, Perspectiva, 2001, pp. 1-22. 53 Consideramos de bom grado a tradução escolhida por André Malta para o verbo épimélesthai, que poderíamos também traduzir como “preocupar-se com”, “dirigir a atenção para”, ou ainda, na direção das traduções francesas, optar pelo termo souci, etimologicamente mais rico que a noção de “cuidado”, do português. 52 30 que Meleto não “milita” pela juventude; dando a entender, num só golpe, que Sócrates sim “milita” pela juventude que Meleto o acusa de corromper. Note-se, Sócrates denota não apenas que as palavras de Meleto são falsas, que Meleto mente: Sócrates aponta a incompatibilidade entre o discurso e as condutas, as ações ou o modo de vida de seu acusador. Por esta “militância” Sócrates não pede nenhuma retribuição. Trata-se de uma tarefa desinteressada, cumprindo-a por pura benevolência, ainda que, para tanto, renuncie à fortuna, a vantagens cívicas ou carreira política54. Ademais, trata-se de uma função útil à cidade: o que Sócrates faz ao viver filosofando é questionar, pôr à prova os indivíduos reputados sábios na cidade e, ao colocá-los em aporia, fazê-los reconhecer sua ignorância. Este não-saber que, a princípio, aparenta-se meramente negativo, na verdade é algo benéfico a Sócrates e à cidade, pois dá aos interlocutores a chance de um primeiro passo rumo ao conhecimento e ao verdadeiro cuidado que devem ter em relação a si mesmos e aos outros. Como consequência deste expediente, ao incitar os cidadãos a ocuparem-se consigo mesmos (mais do que com seus bens), incita-os também a se ocuparem com a própria cidade (mais do que com seus negócios materiais). O cuidado de si é, portanto, inextrincavelmente cuidado dos outros e cuidado da cidade55. A cidade só poderia sair perdendo se condenasse tal homem à morte56, pois não teria mais ninguém, a menos que o deus lhe enviasse qualquer outro, para incitar seus cidadãos a se ocuparem consigo mesmos e de sua própria virtude. Passariam a vida a dormir. Sócrates desempenha, portanto, ao incitar os outros a ocuparem-se consigo mesmos, o papel daquele que “desperta”, comparando-se mesmo ao “moscardo”, este inseto que ataca bois e cavalos, fazendo que corram e agitem-se. Como afirma o filósofo, “O que mereço receber ou oferecer como retratação – por não ter me conduzido sossegadamente na vida, e não ter militado em favor daquilo que a maioria milita (dinheiro e negócios, liderança do exército e liderança do povo, e demais postos e conchavos e agrupamentos que existem na cidade), depois de considerar que eu próprio era, na realidade, honesto demais para sair vivo se fosse ao encontro disso; e por aí não fui (por onde eu não iria ser de nenhuma serventia nem para vocês nem para mim mesmo), mas, me encaminhando para beneficiar cada um, em particular, com maior benfeitoria – por aí sim (como estava dizendo) fui, tencionando persuadir cada um de vocês a não militar [epimeletheíe] nem em favor de nenhuma de suas próprias coisas – antes de militar em favor de si próprio, a fim de ser o melhor e o mais sensato possível –, nem em favor das coisas da cidade – antes de em favor da própria cidade –, e assim, da mesma maneira, militar em favor das demais coisas. […] O que eu mereço então receber, sendo desse jeito? Algo bom, varões atenienses, se é preciso mesmo que eu verdadeiramente estipule isso segundo o merecimento” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., pp. 99-100). 55 O cuidado de si é pessoal, social e político. Como lembra Sócrates a Alcibíades, para se ocupar dos outros é preciso saber se ocupar de si mesmo, saber governar-se para governar os outros. A relação de si para consigo passa, assim, como dirá Foucault, pela “mediação da cidade” (FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 77). Este aspecto será enfatizado no capítulo 2. 56 “Pois fiquem sabendo: se vocês me matarem por ser desse jeito que digo que sou, não prejudicarão a mim mais do que a vocês mesmos”. (PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., p. 90). 54 31 se vocês me matarem não vão encontrar facilmente outro desse jeito, simplesmente ligado à cidade – por ordem do deus – (ainda que seja algo um pouco risível de dizer) como a um alto e nobre cavalo, que por causa da altura é um pouco lerdo e precisa ser despertado por algum moscardo... Assim me parece, realmente, ter o deus me ligado à cidade, desse jeito; eu que de despertá-los, persuadi-los e reprová-los – um por um – não paro de modo algum, o dia inteiro por toda parte assediando-os... outro desse jeito não surgirá facilmente para vocês, varões, e se vocês me derem ouvidos me pouparão! Mas vocês poderiam talvez, quem sabe, ficar aborrecidos – como os que são despertados de um cochilo – e, me dando um safanão e ouvidos a Anito, poderiam facilmente me matar e então continuar dormindo pelo resto 57 da vida, a menos que o deus, aflito por vocês, lhes enviasse um outro . Donde propõe Foucault: “o cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantando na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência”58. Vê-se, assim, o papel central que a epiméleia heautoû recebe quando relacionada ao personagem de Sócrates, a quem tradicionalmente é vinculado, de maneira senão exclusiva pelo menos privilegiada, o gnôthi seautón. À vista disto, nota-se que, para Sócrates, o conhecimento é condição necessária e não suficiente, mais do que isso, atém-se subordinado a um objetivo que o abarca, sustenta e ultrapassa: “trata-se bem menos de se questionar o saber aparente que se acredita possuir do que se questionar a si mesmo e os valores que dirigem a nossa própria vida”, de modo que, “o verdadeiro problema, portanto, não é saber isso ou aquilo, mas ser desta ou daquela maneira”59. Este apelo ao “ser”, à maneira de ser, ao modo de vida, levará Foucault a afirmar que mais do que ser o homem do “conhecimento de si”, “Sócrates é o homem do cuidado de si e assim permanecerá”60. Sócrates é o homem do cuidado de si não porque dispense o conhecimento, mas porque lhe confere um caráter de formação do éthos, de trans-formação do ser, do modo de vida do sujeito, isto é, lhe confere um caráter “etopoético”61. O saber de Sócrates é um “saber- 57 Ibid., pp. 90-91. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 9. 59 HADOT, P. O que é a filosofia antiga?. Trad. de Dion Davi Macedo. SP, Loyola, 1999, pp. 55-56. 60 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., loc. cit. 61 Ibid., p. 212. 58 32 viver”62. Como nos afirma Francesco Paolo Adorno: “A epimeleia heautou é o ponto de cruzamento entre um problema epistemológico, o conhecimento de si, e um problema ético, o cuidado de si e seu objetivo”63. A ligação entre cuidado de si e conhecimento de si revela, por conseguinte, a conjugação daquilo que poderíamos denominar plano “ético” (ou “etopoético”) e “epistemológico”. No entanto, há ainda que considerar que este vínculo entre conhecimento (a questão da verdade) e cuidado (que remete às condutas, à constituição ética de si) implica o constante vínculo à cidade (à ação política do cidadão); e se acrescentarmos que esta tríplice relação, se bem conduzida, resulta na constituição da própria vida enquanto vida virtuosa ou existência bela, podemos afirmar então que “da conjunção entre conhecimento e cuidado de si segue-se a associação entre o que hoje denominaríamos planos epistemológico, ético, político e estético”64. Assim, a polissemia da relação entre cuidado de si e conhecimento de si ressalta mais do que uma relação epistemológica do sujeito à verdade, é índice mesmo de uma conexão cerrada em que conflui conhecimento, ética, política e estética, não com a finalidade de definir de uma vez por todas o “si” do sujeito, tal qual uma coisa que pudéssemos isolar em sua identidade, porém, antes, enquanto marca de um movimento de formação – sempre em aberto – em que o ser do sujeito se apresenta através de seus atos, como uma obra inacabada. Esta correlação entre “cuidado de si” e “conhecimento de si” – que se dá no texto da Apologia na forma da primazia do primeiro em relação ao segundo – no momento originário do nascimento filosófico das duas noções terá uma longa tradição. Visto que, como se sabe, Sócrates configurará uma espécie de “ponto de fuga” da filosofia posterior: epicurismo, estoicismo, cinismo, cada uma vai apresentar a pretensão de reivindicar a filiação socrática. E ainda nestas filiações, séculos depois, “Sócrates é sempre, essencial e fundamentalmente, aquele que interpelava os jovens na rua e lhes dizia: 'É preciso que cuideis de vós mesmos'” 65. É o que leva Foucault a apontar que Colocando-se na contramão do pretenso “intelectualismo socrático”, afirma Voelke que “a dialética socrática une indissociavelmente o conhecimento do bem e a escolha do bem.” (VOELKE, A. -J. L'idée de volonté dans le stoïcisme. Paris, Presses Universitaires de France, 1973, p. 194). 63 ADORNO, F. P. Le style du philosophe – Foucault et le dire vrai. Paris, Kimé, 1996, p. 126. 64 MUCHAIL, S. T. Foucault, mestre do cuidado – textos sobre a hermenêutica do sujeito. SP, Loyola, 2011, p. 58. 65 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 9. 62 33 a noção de epiméleia heautoû acompanhou, enquadrou, fundou a necessidade de conhecer-se a si mesmo não apenas no momento de seu surgimento no pensamento, na existência, no personagem de Sócrates. Parece-me que a epiméleia heautoû (o cuidado de si e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana, [configurando] um verdadeiro fenômeno cultural de 66 conjunto . “Fenômeno cultural de conjunto” que, no curso de sua história, ampliou, multiplicou, deslocou as significações do cuidado de si, mas mantendo seu lugar de excelência enquanto atitude filosófica na relação com o conhecimento de si. Em todo caso, em Sócrates e depois dele, há, no dizer de Foucault, uma “sobreposição dinâmica”, um “apelo recíproco” entre o gnôthi seautón e a epiméleia heautoû que será reencontrado em todo pensamento grego, helenístico e romano, ainda que com “tônicas diferentes atribuídas a um e a outro”, “equilíbrios diferentes”, diferente “distribuição dos momentos entre conhecimento de si e cuidado de si” nos diversos tipos de pensamento. O que importa, todavia, é que, de forma alguma, “nenhum dos dois elementos deve ser negligenciado em proveito do outro”67. Dado este quadro, impõe-se necessariamente a questão: Por que, a despeito de tudo, a noção de epiméleia heautoû (cuidado de si) foi desconsiderada no modo como o pensamento, a filosofia ocidental, refez sua própria história? O que ocorreu para que se tenha privilegiado tão fortemente, para que se tenha dado tanto valor e tanta intensidade ao “conhece-te a ti mesmo” e se tenha deixado de lado, na penumbra ao menos, essa noção de cuidado de si?68 Foucault levantará duas hipóteses na tentativa de explicar este privilégio, “para nós”, do gnôthi seautón às expensas do cuidado de si. A primeira hipótese, na qual se detém menos, busca identificar tal delíquio através dos “paradoxos da história moral”. Já a segunda hipótese concerne mais diretamente ao “problema da verdade e da história da verdade”, considerada por Foucault a “razão mais séria” pela qual o preceito do cuidado de si foi sendo apagado: trata-se do “momento cartesiano” e de seus desdobramentos. 66 Ibid., p. 10. Ibid., p. 64. 68 Ibid., p. 13. 67 34 1.2.2. “Conhece-te a ti mesmo” Vejamos, ao menos a título indicativo, a primeira hipótese atinente ao esvaziamento histórico do “cuidado de si”. Trata-se, na verdade, de um duplo paradoxo: primeiramente, “desde logo observa-se que o valor do cuidado de si sofreu de uma espécie de inversão de sinal: de índice positivo, no sentido de acentuar uma moral social e coletiva, passa a um índice negativo, no sentido de um tônica individualista”69. Foucault repassa algumas fórmulas que o “cuidado de si”, em sua profusão histórica, pôde assumir: “ocupar-se consigo mesmo”, “ter cuidados consigo”, “retirar-se em si mesmo”, “recolher-se em si”, “sentir prazer em si mesmo”, “buscar deleite somente em si”, “permanecer em companhia de si mesmo”, “estar em si como numa fortaleza”, “cuidar-se” ou “prestar culto a si mesmo”, “respeitar-se” etc. Todas elas comportando “ressonâncias” que uma “certa tradição” (talvez mesmo várias, talvez mesmo “a nossa”) considera moralmente negativas, dissuadindo-nos de conferir a estes preceitos um valor positivo ou de fazer deles o fundamento de uma moral. Com efeito, pontuará Foucault, essas injunções soam aos nossos ouvidos como uma espécie de “desafio”, de “bravata”, como “vontade de ruptura ética”, “dandismo moral”, “afirmação-desafio de um estádio estético e individual intransponível” ou como alternativa melancólica e triste de uma volta do indivíduo sobre si, incapaz de sustentar, perante seus olhos, entre suas mãos, por ele próprio, uma moral coletiva (a da cidade, por exemplo), e que, em face do deslocamento da moral coletiva, nada mais então teria senão ocupar-se consigo70. 69 MUCHAIL, S. T., op. cit., p. 48. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 13. Sabe-se que essa leitura moralmente negativa do cuidado de si foi reforçada por diversos historiadores. É o que nos aponta Frédéric Gros na nota 17 do curso de 1982 (Ibid., pp. 23-24), que reproduzimos na íntegra: “Esta tese do filósofo helenista e romano que não mais encontra, nas novas condições sócio-políticas, com o que desdobrar livremente sua ação moral e política (como se a cidade grega fosse desde sempre seu elemento natural) e que encontra no eu uma saída aviltante, tornou-se um tópos, senão uma evidência incontestada da história da filosofia (partilhada por Bréhier, Festugière, etc.). Durante a segunda metade do século, os artigos de epigrafia e de ensino de um célebre estudioso cuja audiência era internacional, Louis Robert (“Opera minora selecta”. Épigraphie et antiquités grecques, Amsterdam, Hakkert, 1989, t. VI, p. 715), tornaram caduca essa visão do grego perdido em um mundo grande demais e privado de sua cidade (devo todas essas indicações a P. Veyne). Esta tese do apagamento da cidade na época helenística acha-se, portanto, vivamente contestada, após outros, por Foucault em Le souci de soi (cf. cap III – 'Soi et les autres', pp. 101-17: 'Le jeu politique'; cf. também, pp. 55-7.). Para ele, trata-se, primeiramente, de contestar a tese de um esfacelamento do quadro político da cidade nas monarquias helenísticas (pp. 101-3) e, em seguida, de mostrar (assunto a que ele também se dedica no presente curso) que o cuidado de si fundamentalmente se define mais como um modo de viver-junto que como um recurso individualista (“o cuidado de si […] aparece então como uma intensificação das relações sociais”, p. 69.). Hadot (Qu'est-ce que la philosophie antique?, Paris, Gallimard, 1955, pp. 146-7) remete o preconceito de um apagamento da cidade 70 35 Em suma, “temos, pois, o paradoxo de um preceito do cuidado de si que, para nós, mais significa egoísmo ou volta sobre si e que, durante tantos séculos, foi, ao contrário, um princípio positivo, princípio positivo matricial”71 relativamente, inclusive, a morais extremamente rigorosas e austeras. O segundo paradoxo configura de certa forma o reverso do primeiro: alguns dos princípios de austeridade do “cuida-te de ti mesmo” foram retomados na moral cristã e na moral moderna não cristã, porém, com outro estatuto: não mais desviadas em direção a um “individualismo”, mas realocadas no contexto de uma “ética geral do não-egoísmo”72, quer no sentido cristão da “renúncia a si”, quer sob a forma “moderna” de uma obrigação para com os outros (“coletividade”, “classe”, “pátria” etc.). Nos dois conjuntos, em suma, o “cuidado de si” redunda, por um lado, numa moral do “egoísmo” e, por outro, numa moral do “nãoegoísmo”, perdendo assim sua complexidade filosófica e desaparecendo do horizonte de preocupação dos historiadores. Indicávamos, todavia, que a “razão mais séria” da marginalização e desqualificação histórico-filosófica do “cuidado de si” – que Foucault enquadrará como “problema da verdade e da história da verdade” – dá-se com aquilo que designou, “com muitas aspas”, “momento cartesiano”. Fenômeno que, grosso modo, rompe o vínculo entre o acesso à verdade (“conhecimento de si”) – tornado desenvolvimento autônomo do conhecimento – e a exigência de uma transformação do sujeito e do ser do sujeito por ele mesmo (“cuidado de si”). E isso por uma dupla via: em primeiro lugar, Descartes requalificou o gnôthi seautón como fundador do procedimento filosófico, fazendo do “conhece-te a ti mesmo” “um acesso fundamental à verdade”73; ao mesmo tempo, “muito contribuiu para desqualificar o princípio do cuidado de si, desqualificá-lo e excluí-lo do campo do pensamento filosófico moderno”74. Por um lado, portanto, requalificação histórico-filosófica do “conhecimento de si”, por outro, desqualificação e exclusão do “cuidado de si”. grega a uma obra de G. Murray de 1912 (Four Stages of Greek Religion, Nova York, Columbia University Press)”. 71 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 14. 72 Ibid. 73 Referindo-se ao procedimento cartesiano nas Meditações, Foucault afirma que: “colocando a evidência da existência própria do sujeito no princípio do acesso ao ser, era esse conhecimento de si mesmo (não mais sob a forma da prova da evidência mas sob a forma da indubitabilidade de minha existência como sujeito) que fazia do 'conhece-te a ti mesmo' um acesso fundamental à verdade.” (Ibid., p. 15). 74 Ibid. 36 A partir de então, tendo Descartes como marco, o sujeito, por si só e sem que tenha que efetuar sobre si uma mudança em seu ser, tornou-se capaz de verdade: “não é o sujeito que deve transformar-se. Basta que o sujeito seja o que ele é para ter, pelo conhecimento, um acesso à verdade que lhe é aberto por sua própria estrutura de sujeito”75. Em outras palavras, o “momento cartesiano” teria assim cumprido um papel de cesura da história da filosofia, através dele Foucault pretende mostrar “de que forma, onde e quando o lado epistemológico da filosofia sufocou o lado espiritual, quando e como o 'conhece-te a ti mesmo' tornou-se o imperativo mesmo da prática filosófica, tomando o lugar da epiméleia heautoû”76. Embora as indicações de Foucault em relação ao “momento cartesiano” sejam breves, há de se notar, antes de tudo, o peso das aspas que lhe são conferidas, visto que o próprio Foucault reconhece que “a expressão é ruim”, utilizada “a título puramente convencional”77 etc. E assim se dá porque não se trata de fato de um “momento”, se o encaramos com a rigidez de um instante fixo; nem se trata de compreender por “cartesiano” a redução à filosofia específica de Descartes: “não se trata, de modo algum, de situar isso em uma data e localizá-lo, nem de individualizá-lo em torno de uma pessoa e somente uma”78. Até mesmo porque, antes de Descartes rupturas importantes já estariam em curso79, da mesma forma que houve ressurgimentos do “cuidado de si” na modernidade após Descartes80. O filósofo, portanto, não foi o artífice de um corte abrupto e definitivo: se “corte” houve, este não se deu no dia em que Descartes colocou a regra da evidência ou descobriu o cogito. Pode-se pensar, então, que o recurso ao termo “momento cartesiano” sugira muito mais uma “tônica”81 que 75 Ibid., pp. 171-172. ADORNO, F. P., op. cit., p. 122. 77 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 14. 78 Ibid., p. 25. 79 Foucault confere a origem e o desenvolvimento deste lento processo de separação à teologia: “a correspondência entre um Deus que tudo conhece e sujeitos capazes de conhecer, sob o amparo da fé, é claro, constitui sem dúvida um dos principais elementos que fazem [fizeram] com que o pensamento – ou as principais formas de reflexão – ocidental e, em particular, o pensamento filosófico se tenham desprendido, liberado, separado das condições de espiritualidade que os haviam acompanhado até então, e cuja formulação mais geral era o princípio da epiméleia heautoû.” (Ibid., p. 26). 80 Ainda que de modo panorâmico, vale ressaltar que não apenas no século XVII foi colocada a questão da relação entre as condições de transformação de si (ou de “espiritualidade”) e o problema do método para chegar à verdade (Foucault pensa na noção de “reforma do entendimento” em Espinosa), mas também entre os séculos XVIII e XX: seja na filosofia de Kant, de Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, do Husserl da Krisis ou de Heidegger (e mesmo, com ressalvas, no “marxismo” e na “psicanálise”), Foucault afirmará que “em todas essas filosofias, há uma certa estrutura de espiritualidade que tenta vincular o conhecimento, o ato de conhecimento, as condições desse ato de conhecimento e seus efeitos, a uma transformação no ser mesmo do sujeito”, estas filosofias colocam, “implicitamente, ao menos, a velha questão da espiritualidade e reencontra, sem dizê-lo, o cuidado com o cuidado de si.” (Ibid., pp. 27-28). 81 “Eu evocara este tipo de problemas, difíceis e de longo alcance histórico, entre o gnôthi seautón (conhecimento de si) e o cuidado de si. Parecera-me então que a filosofia moderna – por razões que busquei assinalar naquilo que denominei, brincando um pouco, embora não seja engraçado, de 'momento cartesiano' – 76 37 recai sobre o gnôthi seautón e sobre o concomitante “princípio de um acesso à verdade unicamente nos termos do sujeito cognoscente”82, do que a impreterível redução a um só filósofo e época histórica83. Podemos pensar esta “tônica” como a instauração de um novo “fenômeno cultural de conjunto” próprio à modernidade e que traz consigo os traços de uma reavaliação das relações entre subjetividade e verdade que persistirá e marcará – com a força de “um acontecimento no pensamento” – “um momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno”84. Talvez seja por conta deste novo marco que Foucault nos convide a uma análise de escopo mais amplo que aponta a certa bifurcação nisto a que denomina “história do pensamento”: Foucault parece então reconhecer e distinguir duas modalidades da relação entre sujeito e verdade. A primeira modalidade, a filosofia, lê o princípio délfico de modo epistemológico e fundador; a segunda, a espiritualidade, põe-se ao contrário o problema das transformações que o sujeito deve efetuar 85 sobre si mesmo para poder ter acesso à verdade . “Filosofia” e “Espiritualidade”, dois modos de pensamento e, concomitantemente, duas formas de acesso à verdade e duas concepções de sujeito. Abordemos em primeiro plano o que Foucault entende por “espiritualidade”86: teria sido levada a fazer recair a tônica inteiramente sobre o gnôthi seautón e, consequentemente, a esquecer, deixar na sombra, marginalizar um tanto, a questão do cuidado de si.” (Ibid., p. 64. Grifo nosso). 82 Ibid., p. 26. 83 Ainda como parte das devidas aspas, “não devemos esquecer que Descartes escreveu as Meditações – e meditações são uma prática de si. Porém, o extraordinário nos textos de Descartes é que ele prosseguiu substituindo um sujeito constituído através das práticas de si por um sujeito que funda as práticas do conhecimento.” (FOUCAULT, M. “Sobre a genealogia da ética: um panorama do trabalho em curso”. In: DREYFUS, H., L.; RABINOW, P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. RJ, Forense Universitária, 2010, p. 299). 84 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 11. 85 ADORNO, F. P., op. cit., p. 122. 86 Há de se notar a peculiaridade do termo. Salma Tannus Muchail (op. cit., pp. 87-99) apontará para uma possível reverberação ou diálogo implícito de Foucault à distinção heideggeriana entre “pensamento” e “filosofia”. Hipótese que achamos interessante e válida. Por outro lado, seria igualmente profícuo atentar ao artigo publicado em 1977 por Pierre Hadot (“Exercices spirituels et philosophie antique”), que fora lido com entusiasmo por Foucault e do qual poderíamos encontrar, embora de maneira autônoma, diversos “ecos” no curso de 1982. No mesmo artigo o historiador justificava a escolha do termo do seguinte modo: “'exercícios espirituais'. A expressão desconcerta um pouco o leitor contemporâneo. Primeiramente não é mais de bom tom, hoje, empregar a palavra 'espiritual'. Mas é preciso se resignar a empregar este termo, porque os outros adjetivos ou qualificativos possíveis: 'psíquico', 'moral', 'ético', 'intelectual', 'de pensamento', 'da alma' não recobrem todos 38 creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o 87 preço a pagar para ter acesso à verdade . Pode-se afirmar que, neste contexto, para Foucault, o termo “espiritualidade” – vocábulo que, de resto, vê-se progressivamente suprimido em seus escritos subsequentes – esteja mais propenso a designar a “longa duração” de um “fenômeno cultural de conjunto” em que os “exercícios” ou “práticas de si” configuram o elemento essencial, sobressalente, da relação a si. O que significa também dizer que “a espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito”88, isto é, o sujeito enquanto tal não é uma identidade ou uma substância constante cuja estrutura, que é a de ser cognoscente, seria a condição de possibilidade da descoberta ou da decifração da verdade. Sua relação à verdade deve ser marcada por um trabalho, por um constante exercício em relação a si. Nesse ínterim, à guisa de “parênteses”, seria promissora uma comparação: para Sócrates, que é vinculado por Foucault à tradição da “espiritualidade” (ou ao menos da conjugação entre “espiritualidade” e “filosofia”89), a verdade não pode ser “dada”, o saber não se apresenta como um conjunto de proposições e fórmulas prontas que se possa fixar, descrever e escrever. Bastaria relembrar o trecho do início do Banquete (174d – 175d)90 em que Sócrates chega atrasado, pois permanecera a meditar, imóvel e em pé, “ocupando seu os aspectos da realidade que queremos descrever. Poderíamos evidentemente falar de exercícios de pensamento, posto que, nestes exercícios, o pensamento se toma de alguma forma por matéria e procura a ele mesmo se modificar. Mas a palavra 'pensamento' não indica de uma maneira suficientemente clara que a imaginação e a sensibilidade intervêm de uma maneira muito importante nestes exercícios. Pelas mesmas razões não podemos nos contentar com 'exercícios intelectuais', mesmo que os aspectos intelectuais (definição, divisão, raciocínio, leitura, investigação, amplificação retórica) desempenhem um grande papel. 'Exercícios éticos' seria uma expressão muito sedutora, visto que, nós veremos, os exercícios em questão contribuem fortemente à terapêutica das paixões e se relacionam à conduta de vida. Todavia seria ainda um ponto de vista muito limitado. De fato, estes exercícios correspondem a uma transformação da visão do mundo e a uma metamorfose da personalidade.” (HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique, op. cit., pp. 20-21). 87 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 15. 88 Ibid., p. 16. 89 “Durante todo esse período que chamamos de Antiguidade e segundo modalidades que foram bem diferentes, a questão filosófica do 'como ter acesso à verdade' e a prática de espiritualidade (as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito que permitirão o acesso à verdade) são duas questões, dois temas que jamais estiveram separados. Não estiveram separados para os pitagóricos, é claro. Não estiveram separados também para Sócrates e Platão: a epiméleia heautoû (cuidado de si) designa precisamente o conjunto das condições de espiritualidade, o conjunto das transformações de si que constituem a condição necessária para que se possa ter acesso à verdade” (Ibid., p. 17). 90 PLATÃO. O Banquete. Tradução, notas e comentários de Donaldo Schüller. RS, L&PM, 2010, pp. 27-29. 39 espírito consigo mesmo”. Tão logo ele faz sua entrada na sala, Agaton, que é o anfitrião, convida-o a sentar-se perto dele: “quero desfrutar do pensamento que te arrebatou lá fora”. “Como seria bom” – responde Sócrates –, “se a natureza do saber fluísse do mais pleno ao mais carente, à maneira da água que escorre do copo mais cheio ao mais vazio”. Tendo isso em vista, o que podemos depreender é que “o saber não é um objeto fabricado, um conteúdo acabado, transmissível diretamente pela escritura ou por não importa qual discurso”91. A verdade, neste âmbito, não apareceria como uma aquisição, mas como um exercício de sabedoria, isto é, como o artigo de uma busca, de uma aspiração que se dá dia a dia através da constante investigação e da manutenção, senão da transformação, do modo de vida e de um discurso determinados pela ideia de sabedoria, votada a jamais fechar-se sobre si mesma. Esta definição socrática da filosofia como amor à sabedoria pouco tem que ver com a determinação cartesiana da filosofia como conhecimento da verdade. A transformação de si jamais é definitiva, exigindo uma perpétua reconquista. Talvez seja esta uma das faces do “preço” que o sujeito deve pagar para ter acesso à verdade na circunscrição da “espiritualidade”. Efetivamente, Foucault nos indica que seriam três os seus caracteres fundamentais: em primeiro lugar, para que o sujeito tenha acesso à verdade, é preciso que ele se modifique, se transforme, se desloque, torne-se em certa medida “outro”. De modo que a “fórmula mais simples e mais fundamental para definir a espiritualidade” é aquela de que “a verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito”92. Todavia, tal procedimento acarreta, como consequência, um segundo ponto: “não pode haver verdade sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito”93. Transformação que requer um movimento que pode se configurar de duas formas: seja aquele em que o sujeito é arrancado “de seu status e de sua condição atual”, movimento em que o sujeito é como que tomado pela verdade que “vem até ele e o ilumina”; seja aquele movimento em que o sujeito realiza um trabalho sobre si, um “longo labor”, a progressiva “elaboração” de si mesmo. Por fim, terceiro aspecto da espiritualidade, “quando efetivamente aberto, o acesso à verdade produz efeitos”94, efeitos “de retorno” da verdade sobre o ser do sujeito que completa o próprio sujeito e o transfigura. A verdade, portanto, retorna ao sujeito não como uma forma de compensá-lo pelo ato de conhecimento, é “retorno” justamente porque 91 HADOT, P. O que é a filosofia antiga?, op. cit., pp. 52-53. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 16. 93 Ibid. 94 Ibid. 92 40 para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa transformação do sujeito, não 95 do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito . No registro da espiritualidade, logo, a verdade não é resultado exclusivo de um ato de conhecimento, de uma evidência, é antes uma verdade que se pratica, que se exercita permanentemente, como uma verdade de vida a retornar sobre o sujeito, modificando-o. Esboçando um quadro muito diverso, por outro lado, temos aquilo que Foucault designa como “filosofia” e que traz consigo a marca de “uma outra era das relações entre subjetividade e verdade”96, própria à “Idade Moderna”. É neste contexto que aquilo que chamamos de “momento cartesiano” encontrará seu tópos: Poderemos dizer que entramos na Idade Moderna (quero dizer, a história da verdade entrou no seu período moderno) no dia em que admitimos que o que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade, é o conhecimento e tão somente o conhecimento. É aí que, parece-me, o que chamei de “momento cartesiano” encontra seu lugar e 97 sentido . De agora em diante, no enredo da “filosofia”, o sujeito, este a priori capaz de verdade, encontrará em si mesmo e através de sua estrutura cognoscente uma verdade que é uma verdade tão só intelectiva98. 95 Ibid., p. 17. Ibid., p. 18. 97 Ibid., pp. 17-18. Não se deve deixar de atentar que em livros precedentes (Histoire de la folie, Surveiller et punir, Les mots et les choses), Foucault situara a modernidade como período histórico que se inicia no final do século XVIII e estende-se até a contemporaneidade. Já a “periodização” utilizada por Foucault em A hermenêutica do sujeito, que coloca de certa forma Descartes como marco inicial da modernidade, sugere um escopo mais amplo que se estende até nossos dias, incluindo, portanto, o que nestas obras anteriores fora caracterizado como a época clássica (séculos XVII e XVIII). No entanto, Foucault não deixará de apresentar um enriquecimento da noção de modernidade ao destacá-la não tanto como um período histórico específico, mas como uma atitude de crítica do presente (aspecto que buscaremos explorar em nosso terceiro capítulo). Para uma categorização geral do termo em Foucault, ver CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Trad. de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte, Autêntica, 2011, pp. 301-303. 98 Isso não significa, entretanto, que não haja condições para a obtenção da verdade. Estas condições são de duas ordens: primeiro, “condições internas do ato de conhecimento e regras a serem por ele seguidas para ter acesso à verdade”, que são elencadas por Foucault em “condições formais”, “condições objetivas”, “regras formais do 96 41 Ora, como ressaltamos, colocar no centro da filosofia o sujeito como fundamento do conhecimento não é apenas um modo de valorizar o princípio délfico, mas implica também, e parece ser este o ponto essencial, a desvalorização do cuidado de si que – alçando a dimensão epistemológica do conhecimento de si ao “primeiro alicerce [jalon] da teoria do saber”99 – coloca em segundo plano, quando não elimina de seus horizontes, a conexão entre princípios epistemológicos, éticos, políticos e estéticos de transformação do sujeito100. A partir de Descartes, a questão fundamental da “filosofia” se concentrará na definição operada pelo sujeito dos limites e das aspirações do conhecimento. Entra em cena a questão do sujeito, sai de cena o sujeito cujo ser está sempre em questão101. Doravante, a questão “quem somos nós?” não apenas é capaz de ser formulada e de receber uma resposta em termos de verdade (uma resposta epistemológica), como também se torna o designador comum da verdade do sujeito, apresentando-o enquanto natureza ou essência conhecível. A verdade, ou sua busca, não mais configurará a transformação do sujeito em sua historicidade prática; nela o sujeito encontrará apenas “o caminho indefinido do conhecimento” que, no curso da história, será convertido em “acúmulo instituído de conhecimentos ou em benefícios psicológicos ou sociais”. No entanto, algo nos diz que é preciso desconfiar desses “benefícios”, ou, ao menos, colocá-los em questão, pois Foucault não deixa de lembrar que este tipo de verdade não será capaz de “salvar”102 o sujeito, o que talvez seja uma maneira discreta de dizer que ela não poderá “livrar” o sujeito, que este tipo de verdade, em suma, não poderá torná-lo “livre”. método”, “estrutura do objeto a conhecer”. Em segundo lugar, constariam ainda as “condições extrínsecas” ao ato do conhecimento, isto é, individuais, tais como “condições culturais” (ter acesso a estudos, à dada formação, inscrever-se em certo consenso científico) e “condições morais”, donde, por exemplo a necessidade de um ajuste entre interesses pessoais (financeiros, de carreira, de status) e os ideias de uma pesquisa desinteressada. Não obstante, todas estas condições, dirá Foucault, “não concernem ao sujeito no seu ser: só concernem ao indivíduo na sua existência concreta, não à estrutura do sujeito enquanto tal.” (FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 18). 99 FOUCAULT, M. “Les techniques de soi”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, Éditions Gallimard “Quarto”, nº 363, 2001, p. 1608. 100 De maneira um tanto abrupta, Foucault afirma que “posso ser imoral e conhecer a verdade. […] Antes de Descartes, não poderíamos ser impuros, imorais e conhecer a verdade. Com Descartes, a evidência direta é suficiente.” (FOUCAULT, M. “Sobre a genealogia da ética: um panorama do trabalho em curso”, op. cit., p. 326). 101 “Desde que, em função da necessidade de ter acesso à verdade, o ser do sujeito não esteja posto em questão, creio que entramos numa outra era da história das relações entre subjetividade e verdade” (FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 18). 102 “Tal como doravante ela é, a verdade não será capaz de salvar o sujeito. Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito” (Ibid., p. 19). 42 Com efeito, não é preciso remetermo-nos exclusivamente a Surveiller et punir ou La volonté de savoir para divisar como modo por excelência de ser “governado” esse movimento em que as técnicas de si se reduzem a técnicas de introspecção, de conhecimento de si, movimento em que há produção, pelo próprio sujeito, de um discurso em que poderia dar a ler sua própria verdade, isto é, constituir a si mesmo como objeto de saber: o governo dos homens exige daqueles que são dirigidos, para além de atos de obediência e de submissão, “atos de verdade” que têm como particularidade o fato de que não somente o sujeito é obrigado a dizer a verdade, mas dizer a verdade sobre si mesmo103. A partir daí, e por um longo tempo, completará Frédéric Gros, o destino do sujeito verdadeiro no Ocidente estará fixado, e procurar sua verdade íntima será sempre continuar a obedecer. Mais genericamente, a objetivação do sujeito em um discurso verdadeiro não adquire historicamente sentido senão a partir dessa injunção geral, global, permanente de obedecer: somente sou sujeito da verdade, no Ocidente moderno, no princípio e no termo de uma sujeição ao Outro104. No entanto, a perspicácia de Foucault parece pressentir que há outros modos da verdade de si. E é provavelmente esse um dos motivos que o leva à sua interrogação sobre subjetividade e verdade tomando como marco a Antiguidade: A filosofia antiga, e a verdade de seu discurso, não se sustentam de forma alguma na resposta à questão “quem somos nós?”, enquanto natureza ou essência conhecíveis, mas à questão “que devemos fazer de nossa existência?” como sujeitos agentes105. FOUCAULT, M. “Résumé du cours”. In : Du gouvernement des vivants – cours au Collège de France (19791980). Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par Michel Senellart. Paris, Seuil/Gallimard, 2012, p. 317. 104 GROS, F. “Situação do curso”. In: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 460. 105 Id. “À propos de l'Herméneutique du sujet”, op. cit., p. 161. 103 43 Dessa forma, não apenas esboça-se a possibilidade de uma nova relação entre subjetividade e verdade mas a questão do sujeito é ressignificada: não se trata mais de perguntar o que é, ou onde ele está, qual a sua verdade escondida, mas o que faz de si mesmo, qual sua conduta em relação a si, aos outros e à cidade. A suposta identidade do sujeito vê-se assim revertida em uma formação histórica de si mesmo; e a verdade escondida no fundo de nós mesmos, em verdade que faz parte de nós mesmos. Poder-se-ia, todavia, objetar: qual o real estatuto desta contraposição? Em primeiro lugar, cabe dizer que se Foucault recorre, de fato, à filosofia Antiga, sua interrogação se coloca, entrementes, sob o pano de fundo do “modo de ser de sujeito moderno”. Movimento que, ao interpelar os Antigos, não deixa de interpelar sua atualidade: operando “cortes transversais”106 e fugindo de uma exposição doutrinal stricto sensu, Foucault não pretende trabalhar como historiador, faz genealogia: “genealogia quer dizer que conduzo a análise a partir de uma questão presente”107. Mas isto ainda não explica tudo, pois existe mais de uma maneira de conduzir uma análise a partir de uma questão presente: estaria Foucault em busca de uma “alternativa” para nossa atualidade? A isso o autor responde que “não estou procurando uma alternativa; não se pode encontrar a solução de um outro problema levantado num outro momento por outras pessoas”108. Resposta que implica dizer que tampouco se trata da proposição de um “retorno” aos Antigos em sua exemplaridade109. Qual seria o sentido, portanto, de sua investigação? O objetivo de Foucault talvez seja menos o de oferecer um “retorno” ou uma “alternativa”, do que prover nossa atualidade de instrumentos de pensamento para sua análise e mudança: Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de dispositivos, técnicas, ideias, procedimentos etc., que não pode ser exatamente reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou ajuda a constituir, um certo ponto de vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta para a análise do que Id. “Situação do curso”, op. cit., p. 631. FOUCAULT, M. “Le souci de la verité”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, nº 350, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, p. 1493. 108 FOUCAULT, M. “Sobre a genealogia da ética: um panorama do trabalho em curso”, op. cit., p. 299. 109 “Na minha opinião, não há um valor exemplar num período que não é o nosso... não se trata de algo a que possamos retornar.” (Ibid., p. 303.) 106 107 44 ocorre hoje em dia – e para mudá-lo. Não temos que escolher entre o nosso 110 mundo e o mundo grego . Ao remeter-se à Antiguidade a partir de “nosso mundo”, Foucault não visa, por conseguinte, extrair desta remissão a fórmula do que devemos ser. Mais do que um “anacronismo” ou uma “falsa nostalgia”, isto configuraria grave desprezo à atualidade da qual se fala. Atualidade que impõe suas próprias questões e, com elas, a necessidade de uma análise crítica do presente, análise que tenha em vista as possibilidades de transformação daquilo que somos, fazemos e pensamos111. Assim, na démarche foucaultiana, os Antigos não podem dizer o que devemos ser, mas podem ajudar a pensar o que podemos ser. A presença da Antiguidade visa estender nossos horizontes de possibilidades, fornecendo instrumentos de subversão, de resistência à questão “quem somos nós?” e aos “limites culturais” a ela inerentes, isto é, nossa incapacidade de fazer de nós mesmos outra coisa que sujeitos de conhecimento, de pensar de outro modo a relação a nós mesmos que sob o modo da investigação de uma identidade, de uma natureza, do segredo de nossa verdade interior112. Em sua estratégia de transposição destes limites, que são os nossos limites, Foucault manterá sua distância e fidelidade ao éthos filosófico socrático. À questão “que devemos fazer de nossa existência?”, interporá outra, não menos perturbadora: “que podemos fazer de nossa existência?”. Questão que, espera-se, seja ainda capaz de causar-nos “mal-estar” e de “infringir-nos” – como dizia Merleau-Ponty a propósito de Sócrates – “esta imperdoável ofensa de nos fazer duvidar de nós mesmos”. 110 Ibid., p. 305. (Grifo nosso). Processo que pretendemos abordar no capítulo 3, ao analisarmos FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, nº 339, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001. 112 GROS, F.; LEVY, C. (org.) “Introduction”. In: Foucault et la philosophie Antique. Paris, Kimé, 2003, p. 10. 111 45 Capítulo 2 A coragem da verdade: subjetividade, verdade, governo. Nada é mais inconsistente do que um regime político indiferente à verdade. Mas nada é mais perigoso do que um sistema político que pretende prescrever a verdade. A função do “dizer-verdadeiro” não deve tomar a forma da lei, assim como seria vão acreditar que resida, de pleno direito, nos jogos espontâneos da comunicação. A tarefa do dizer verdadeiro é um trabalho infinito: respeitá-la em sua complexidade é uma obrigação à qual nenhum poder pode se furtar. Salvo a impor o silêncio da servidão. (Michel Foucault) 2.1. O filósofo e a cidade: a questão aberta No capítulo precedente, ao abordarmos alguns aspectos da história das relações entre subjetividade e verdade, focalizamos a problematização da relação entre conhecimento de si e cuidado de si. Nesse âmbito, buscamos enfatizar como Sócrates, na contracorrente de Descartes, concebia o conhecimento de si como “uma espécie de subordinação relativamente ao cuidado de si”113. Sócrates manifestava-se então como aquele que, ao cuidar de si mesmo, vela para que seus concidadãos cuidem de si mesmos, incitando-os à transformação de seu modo de vida para que se tornem melhores. Ao proceder assim, o filósofo colocava em cena uma prática ao mesmo tempo subjetiva, social e política, visto que, ao incitar os cidadãos a ocuparem-se consigo mesmos (mais do que com seus bens), incita-os também a se ocuparem com a própria cidade (mais do que com seus negócios materiais). É no domínio da cidade, portanto, que a prática do cuidado de si deve ser situada. Embora estes aspectos tenham sido aflorados por Foucault em A hermenêutica do sujeito, é na sequência de seus dois últimos cursos que a temática de uma prática ao mesmo 113 FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Edição estabelecida por Frédéric Gros, sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010, p. 6. 46 tempo subjetiva, social e política que seja capaz de arrolar e problematizar a relação entre “o governo de si e dos outros”114 passa a ganhar volume. Nesse ínterim, a relação entre o filósofo e a cidade adquire um escopo interrogativo cada vez mais presente nas análises foucaultianas, sobretudo à medida que o tema do cuidado de si será cada vez mais explorado como um cuidado que “também é um cuidado do dizer-a-verdade”115. Panorama que, de saída, poderia nos levar a uma série de questões: em primeiro lugar, que tipo de verdade “diz” o filósofo e qual sua relação com aquilo que poderíamos designar como a “verdade da cidade” (presente em suas instituições, leis, visão de mundo etc.)? Tratase da mesma forma de verdade? Não sendo o caso, seria possível conciliar a verdade que diz o filósofo à verdade instituída na cidade? A condenação de Sócrates pelo júri democrático ateniense em 399 a. C. poderia dar a entender que essa coincidência é não apenas improvável como também impossível sua correlação116. Contudo, antes de elaborar uma resposta definitiva ou categórica a estas questões – se é que é possível perfazê-la –, faz-se necessário interpelar a postura e o dizer-a-verdade de Sócrates em sua contextualização com a polis, o que pretendemos colocar em prática seguindo os meandros da leitura empreendida por Foucault. Todavia, visando expandir nosso campo de interrogação e ao mesmo tempo clarificar a atmosfera histórica que antecede e envolve o “momento socrático-platônico”, achamos por bem recorrer a autores que problematizaram a relação entre a filosofia e a cidade, buscando escandir a plausibilidade, a possibilidade e a dificuldade de sua correlação. Acreditamos tratar-se de um recurso que, se for capaz por um instante de dispensar as etiquetas escolares e os velhos hábitos de filiação, ofereceria talvez a ocasião de uma legítima conjugação (o que não significa mera sobreposição ou justaposição pura e simples) com alguns dos topoi caros à reflexão foucaultiana. E assim procederemos, incorrendo antes na aposta de enriquecimento 114 Como se sabe, os dois últimos cursos dados por Foucault no Collège de France (1983 e 1984) intitulam-se O governo de si e dos outros, e A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. 115 GROS, F. “Situação de curso”. In: FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: Curso no Collège de France (1983-1984). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes, 2011, p. 308. 116 Em termos mais amplos, vale anotar, não se deixou inclusive de apontar o “caso Sócrates” como um designador comum da necessidade de exterioridade e separação estrita entre o assim chamado “indivíduo” e a “política”, ainda que em sua forma “democrática”, de modo que, deixada a administração do Estado, doravante distinto da coletividade (ou da “sociedade civil”), ao encargo de técnicos capacitados, o “cidadão democrático” estaria “livre”, assim, para perseguir seus “interesses individuais”. 47 de uma problemática do que na expectativa de exposições e comparações doutrinais em filigrana117. A despeito das múltiplas interpretações, admite-se, e isto desde a Antiguidade, que a filosofia tem data e local de nascimento: no início do século VI a. C., na cidade grega de Mileto, litoral da Ásia menor, local de estabelecimento de prósperas colônias jônicas. É nesta paisagem em que, no espaço de cinquenta anos, sucederam-se três homens: Tales, Anaximandro e Anaxímenes, cujas pesquisas são bastante próximas pela natureza dos problemas abordados e pela orientação espiritual para que se os tenha considerado, desde a Antiguidade, como os fundadores de uma única e mesma escola118. Não foram poucos os historiadores modernos que identificaram no florescimento desta escola um evento cuja originalidade seria a marca do “milagre” grego119. Porém, outras explicações das possíveis causas históricas para a origem da filosofia na Jônia se apresentaram. Enfatizouse a invenção do calendário, da moeda, da escrita alfabética, da navegação e do comércio como propulsores de um novo tipo de pensamento120. Sem dúvida esses fatores foram pertinentes e não devem ser diminuídos. Entretanto, proporá Vernant, a condição histórica determinante para o advento da filosofia deve ser identificada no regime da polis e na laicização do pensamento político que lhe é inerente. Laicização cujos primórdios encontram-se no desmoronamento do poder micênico no século XII a. C. sob os ataques das tribos dóricas. Cuja peculiaridade, no entanto, reside no fato de que, mais do que a queda de uma simples dinastia, é a figura do Rei divino que se vê abolida do horizonte grego e com ela toda uma forma de vida centrada em torno do palácio. Os efeitos desta derrocada ultrapassarão o domínio da história política e social, reverberando no próprio homem grego, modificando seu “universo espiritual” e transformando suas atitudes 117 Expediente que, obviamente, não interdita a possibilidade de consecução de um trabalho posterior com esse objetivo e tampouco impede o leitor de descortinar nas linhas e entrelinhas relações de tal ordem. 118 VERNANT, J.-P. “As origens da filosofia”. In: Mito e pensamento entre os Gregos – Estudos de psicologia histórica. Trad. de Haiganuch Sarian. RJ, Paz e Terra, 1990, p. 376. 119 Perspectiva fomentada, por exemplo, por John Burnet em seu livro Early greek philosophy. London, A. and C. Black, 1908. 120 Cf. VERNANT, J.-P. “A formação do pensamento positivo na Grécia arcaica” (1957). In: Mito e pensamento entre os Gregos – Estudos de psicologia histórica. Trad. de Haiganuch Sarian. RJ, Paz e Terra, 1990, p. 358. 48 e visão de mundo. Com efeito, este parece ser um fato determinante para que, ao lançar os fundamentos do regime da polis na virada do século VIII ao VII a.C., a Grécia passe a se reconhecer de mais a mais numa certa forma de vida social, num tipo de reflexão que define aos seus próprios olhos sua originalidade, sua superioridade sobre o mundo bárbaro: no lugar do Rei cuja onipotência se exerce sem controle, sem limite, no recesso de seu palácio, a vida política grega pretende ser o objeto de um debate público, em plena luz do sol, na Ágora, da parte de cidadãos definidos como iguais e de quem o Estado é a questão comum; no lugar das antigas cosmogonias associadas a rituais reais e a mitos de soberania, um pensamento novo procura estabelecer a ordem do mundo em relações de simetria, de equilíbrio, de igualdade entre os diversos elementos que 121 compõem o cosmos . Ora, esse contexto de racionalização gradual da vida social não é apanágio apenas da filosofia, mas embasa igualmente o surgimento da democracia, cujo advento se convencionou situar no início do século VI a.C, em Atenas122. Mais do que mera coincidência, Cornelius Castoriadis entrevê nesse nascimento conjunto uma consubstancialidade que encontraria seu fator comum no “movimento em direção à autonomia individual e coletiva”123, instaurando por este ato sem precedentes uma ruptura social-histórica da clausura das instituições e das significações. Para o autor greco-francês, filosofia, democracia e autonomia se autoimplicam. No centro, um questionamento sem fim que se recusa a aceitar qualquer “autoridade” que não prestasse conta ou razão (logon didonai), que não justificasse a validade de direito de suas enunciações, seja no plano social ou das representações: “o movimento democrático, a pesquisa e interrogação filosóficas são, os dois, questionamentos das instituições existentes da 121 VERNANT, J.-P. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. RJ, Difel, 2005, p. 11. Embora existam indícios de que o poder do povo tenha se afirmado primeiramente na ilha de Chios, poucas e discutíveis são as evidências que corroborariam este fato, salvo a menção a um conselho popular em uma inscrição encontrada há alguns decênios. A este respeito consultar MOSSÉ, C. “La démocratie athéniènne”. In: ______. (Org.). L’histoire - La grèce anciènne, Éditions du seuil, 1986, pp. 115-129. De modo menos fragmentário, sabe-se que o regime que deveria culminar na alocação do poder nas mãos do demos, o povo cidadão, foi estabelecido em torno de 508 a.C., em Atenas, tendo como propulsoras as reformas levadas a cabo por Clístenes. Aristóteles retraça as etapas deste processo, sublinhando também o papel de Sólon como precursor da democracia, em sua Constituição dos atenienses. 123 CASTORIADIS, C. “Natureza e valor da igualdade”. In: As encruzilhadas do Labirinto II. Os domínios do homem. RJ, Paz e Terra, 1987, 315. A título indicativo, para uma possível correlação entre o pensamento de Foucault e de Castoriadis, ver MUCHAIL, S. “Democracia como prática: algumas reflexões a partir de Michel Foucault e Cornelius Catoriadis”. In: Foucault, simplesmente – textos reunidos. SP, Loyola, 2004, pp. 109-114. 122 49 sociedade – quer se trate das leis, no sentido próprio, ou da constituição das representações humanas”124. Destarte, ser autônomo, em seu plano individual e coletivo, pressupõe tanto a possibilidade constante de questionamento das instituições e das representações existentes – das “idola tribus”, dirá Castoriadis125 –, quanto “a afirmação da capacidade da coletividade e do pensamento em se instituírem por eles mesmos explícita e reflexivamente”126. Autonomia acarreta, portanto, o ato livre de instituir as próprias normas de modo explícito e continuado. O que significa dizer que não basta que os indivíduos sejam os autores da norma, mas é preciso que se reconheçam como autores destas normas e de sua possível revogabilidade. A interrogação constante sobre a lei que devo (que devemos) adotar encontra nesse quadro sua expressão e revela mais uma vez a relação intrínseca entre filosofia e democracia: a democracia é “filosofia em ato”, posto que, “ao instaurar a democracia, o demos faz filosofia: ele inaugura a questão da origem e do fundamento da lei, e abre um espaço público (social e histórico) de pensamento”127. É este espaço público de discussão que se encontra fechado, ao ver de Castoriadis, na maioria dos regimes sócio-históricos: “quase em toda parte, as sociedades praticamente sempre viveram na heteronomia instituída. Desse estado, é parte integrante a representação instituída de uma fonte extra-social do nomos”128. Essa representação garante que todas as significações – do mundo como das coisas – surjam da mesma origem, por princípio transcendente à sociedade, indiscutível e dada de uma vez por todas. A fonte e o fundamento da lei, das normas, dos valores e das significações, serão encontrados seja nos deuses, em Deus, nos ancestrais, nas leis da Natureza, nas leis da Razão, nas leis da História ou do Mercado; o que vigora é a representação de que a instituição da sociedade independe dos indivíduos. CASTORIADIS, C., “Phusis, criação, autonomia”. In: As encruzilhadas do labirinto V. Feito e a ser feito. Trad. de Lílian do Valle. RJ, DP&A, 1999, p. 220. 125 Id., “A democracia como procedimento e como regime”. In: As encruzilhadas do labirinto IV. A ascensão da insignificância. Trad. de Regina Vasconcellos. RJ, Paz e Terra, 2002, p. 260. 126 Id., “O „fim da filosofia‟?”. In: As encruzilhadas do Labirinto III: O mundo fragmentado. Trad. de Rosa Maria Boaventura. RJ, Paz e Terra, 1992, p. 246. 127 Id., “Uma interrogação sem fim”. In: As encruzilhadas do Labirinto II. Os domínios do homem, op. cit., p. 259. 128 Id., “Poder, política, autonomia”. In: As encruzilhadas do Labirinto III: O mundo fragmentado, op. cit., p. 138. 124 50 Indivíduo este que terá, por conseguinte, o sentido de sua vida previamente dado, regulado de acordo com o respectivo fato certo e inabalável vigente. O resultado dessa trama é o de que não pode haver discussão possível sobre as instituições – logo, não pode haver discussão possível sobre as crenças sociais, sobre o que tem ou não valor, sobre o bem e o mal. Em uma sociedade heterônoma – ou simplesmente tradicional – o fechamento da significação faz com que não apenas a questão política e a questão filosófica estejam antecipadamente 129 fechadas, como também as questões éticas ou estéticas . Não há o que julgar ou escolher, a Verdade é dada pronta e acabada, permitindo, no máximo, um comentário ou uma casuística sutil deste ou daquele ponto, mas que se detém sempre diante de um último dado indiscutível130. De modo qualitativamente distinto e marcando uma ruptura com essa situação, apresenta-se a instituição democrática: Democracia significa o poder do povo, dito de outro modo, que o povo faz suas leis – e, para fazê-las, é preciso, com efeito, estar convencido que as leis são o feito de humanos. Mas, ao mesmo tempo, isto implica que não existe padrão [étalon] extra-social das leis131. A fonte coletiva da lei é, consequentemente, explicitada como a única responsável de sua instituição. É significativo que as leis atenienses comecem sempre pela famosa cláusula: “pareceu bom ao Conselho e ao povo que...” [edoxe tê boulê kai to dêmô]. Isto é, não se diz que é a verdade absoluta, ou que se aplicam leis eternas, mas que neste momento os atenienses creram ser boa a lei votada. À questão: como instituir a sociedade, qual a boa, a Id., “A cultura em uma sociedade democrática”. In: As encruzilhadas do labirinto IV. A ascensão da insignificância, op. cit., p. 229. 130 Castoriadis não deixa de ressaltar que, todavia, em última instância, o que se dá nas sociedades heterônomas é a auto-ocultação da instituição humana da sociedade: “A sociedade é, portanto, sempre auto-instituição do social histórico. Mas essa auto-instituição geralmente não se sabe como tal (o que levou a fazer crer que ela não pode saber-se como tal). A alienação ou heteronomia da sociedade é auto-alienação; ocultação do ser da sociedade como auto-instituição a seus próprios olhos, encobrimento de sua temporalidade essencial”. (Id., A instituição imaginária da sociedade. Trad. de Guy Reynaud. SP, Paz e Terra, 2010, p. 417). 131 Id., “Institution première de la société et institutions secondes”. In : Les carrefours Du labyrinthe VI. Figures du pensable. Paris, Éditions du Seuil, 1999, p. 199. 129 51 justa sociedade? A democracia responde que é o povo que vive sob estas leis que pode decidir quais leis são as melhores. Mas como decidem? Em primeiro lugar132, há de se enfatizar aquilo que Vernant designou como “a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder”133. O que significa dizer que, em lugar dos ditos do rei ou dos termos rituais, é a argumentação, o debate contraditório, a discussão que se tornará o instrumento político por excelência. As questões de interesse geral não mais recaem sobre um poder originário, sobre a arché do Soberano ou do pequeno grupo134, mas supõem um público esclarecido que, como juiz, decide sobre os partidos apresentados de acordo com a apreciação respectiva de cada discurso. Condição basilar desta conjuntura é o ideal de isonomia, traduzido no princípio de que “apesar de tudo que os opõe no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no plano político, como unidades permutáveis no interior de um sistema cuja lei é o equilíbrio, cuja norma é a igualdade”135. À igualdade de participação política de todos os homens livres136 nos negócios públicos – participação, diga-se de passagem, ativamente encorajada tanto pelas regras quanto pelo éthos da polis – acrescenta-se ainda a isegoria, isto é, o direito de todo cidadão tomar a palavra na ekklesía, na Assembleia do povo, donde suas vozes têm cada qual o mesmo peso (isopsèphia), e donde se espera o compromisso efetivo de cada qual de falar com toda a franqueza e liberdade (parrhesia)137. O logos aparece então como circulação do discurso e do pensamento no interior da coletividade, permitindo a resolução do querer coletivo dos cidadãos. Não nos propomos aqui a uma descrição “procedimental” das instituições atenienses e seus respectivos câmbios históricos (o que por si só exigiria um escrito à parte), mas tão somente o enfoque em alguns pontos paradigmáticos do regime democrático ateniense, sobretudo no que possa nos revelar de suas relações com a filosofia. 133 VERNANT, J.-P. As origens do pensamento grego, op. cit., p. 53. 134 Nesse sentido, é mister notar a peculiaridade do termo demokratia quando inserido no conjunto do vocabulário político grego: monarquia e oligarquia revelam, pelo sufixo, um poder originado (arqué) de um ou de poucos, mas o governo de todos os cidadãos remete a kratos, o poder conquistado, revelando a origem agônica do poder político. Cf. LORAUX, N. “Elogio do anacronismo”. In: NOVAES, A. (Org.). Tempo e história. SP, Companhia das Letras, 1992, pp. 65-66. 135 VERNANT, J.-P. As origens do pensamento grego, op. cit., p. 65. 136 Nunca é demasiado lembrar, o corpo dos cidadãos é aquele de homens livres atenienses, filhos de pais atenienses, o que exclui consequentemente do direito de cidadania aqueles que são considerados “desiguais”: crianças, mulheres, estrangeiros (embora houvesse possibilidade de “naturalização”) e escravos (embora houvesse a possibilidade de “alforria”). Neste ponto específico, embora perca muito de sua carga substancial, “a grande contribuição da modernidade é a de que queremos a democracia para todos”. (CASTORIADIS, C. “Imaginário político grego e moderno” In: As encruzilhadas do labirinto IV. A ascensão da insignificância, op. cit., p. 208). 137 Séculos mais tarde, já sob a égide do império romano, a democracia seria ainda caracterizada por Políbio (Livro II, capítulo 38, §6) em torno de dois destes princípios matriciais: “ninguém pode encontrar um sistema e princípios políticos tão favoráveis à igualdade e liberdade de palavra [isegoria e parrhesia], em suma, tão autenticamente democráticos quanto os da Confederação Aquéia” (POLÍBIOS. História. Trad. de Gama Kury. Brasília, Editora UNB, 1996, p. 110). 132 52 Inaugurando assim um espaço público que sustenta os princípios de um autogoverno, os atenienses criam a democracia direta 138. Criação que assume por sua vez uma historicidade forte, que não apenas reconhece que não há instância extra-humana responsável, em último caso, pelo que se passa na história, mas que “não existe verdadeira causa da história; nem autor [não humano] da história”139. A história faz-se como criação humana e tem apenas o sentido que lhe é conferido por aqueles que a fazem. Em outras palavras, a história não tem um sentido último ou original, não é fundada em nenhum mito escatológico, ou seja, a história não tem télos. Essa concepção da história, que não deixa de ser uma visão de mundo e da vida humana, está profundamente ligada, ao ver de Castoriadis, “à ideia grega fundamental de chaos”: Em Hesíodo, lemos que no princípio era o caos. Caos, em grego, no sentido próprio e primordial, significa vazio, nada. É do vazio mais total que o mundo emerge. Mas, já em Hesíodo, também o universo é caos, no sentido de que não é perfeitamente ordenado, de que não se submete a leis plenas de sentido. No princípio reinava a desordem mais total, depois, foi criada a ordem, o cosmos. Contudo, nas “raízes” do universo, para além da paisagem familiar, o caos continua a reinar soberano140. 138 Desse cenário delineado pela democracia direta Castoriadis enfoca três aspectos a seu ver centrais, sobretudo quando comparados às democracias representativas modernas. Em primeiro plano, o desconhecimento, ao menos em direito público, da ideia de “representação”. Claramente os atenienses têm magistrados, que são de duas ordens: aqueles que não são eleitos, tornando-se magistrados por sorteios, por rotatividade ou por um sistema que combine os dois, como no caso dos jurados (o que revela, aliás, que não há juízes profissionais), dos prítanes e dos epístatas, estes que, por um dia, representam o papel de “presidente da República dos atenienses”. E há também os magistrados eleitos. Trata-se de peritos cujo domínio é o de uma techné específica: a guerra, a arquitetura, a construção naval etc. Em ambos os casos os magistrados podem ter seus mandatos revocados ou ser punidos de acordo com a decisão da ekklesía, que decide sobre todas as funções governamentais de importância e assegura o controle do corpo político sobre os magistrados eleitos. Isso se liga diretamente à concepção que os gregos tinham dos “experts”, e este é o segundo ponto a evidenciar. Em política não existe peritos: “não há épistemé, saber certo e seguro em política, nem techné política pertencente a especialistas. Em política há somente a doxa, a opinião, e esta doxa é igualmente e equitativamente partilhada entre todos”. (CASTORIADIS, C. “A democracia ateniense: questões falsas e verdadeiras”. In: As encruzilhadas do labirinto IV. A ascensão da insignificância, op. cit., p. 221). É por isso que, numa primeira abordagem, as doxai, as opiniões de todos, são equivalentes: após a discussão, após ouvir diversos oradores e, entre outros, eventualmente os que se dizem detentores de um saber específico relativo aos assuntos discutidos, é preciso votar. Note-se, é o postulado da equivalência das doxai a única justificativa possível, sem contar a da norma legal, para o princípio majoritário. Por fim, ainda nesta chave, e marcando o terceiro aspecto, “no mundo antigo, não existe o Estado como aparelho ou instância separada da coletividade política. O poder é exercido pela própria coletividade” (Id., “Imaginário político grego e moderno”, op. cit., p. 192), pois, embora haja uma maquinaria técnico-administrativa, esta não assume nenhuma função política. Daí que, mais do que dizer “o Estado são eles”, os atenienses possam dizer “a lei somos nós, a polis somos nós”. Mais do que delegar a representantes, a peritos ou ao Estado os negócios públicos, o princípio político dos atenienses é o do autogoverno, da democracia direta. 139 CASTORIADIS, C., “Os intelectuais e a história”. In: As encruzilhadas do Labirinto III: O mundo fragmentado, op. cit., pp. 111-2. 140 Id.,“A Polis grega e a criação da democracia”. As encruzilhadas do Labirinto II. Os domínios do homem, op. cit., pp. 291-2. 53 A ordem, a medida, não é o dado inicial, mas é conquistada contra a realidade. Não há uma ordem total e “racional”, um cosmos completamente ordenado e, por conseguinte, repleto de sentido. E é porque o ser não é absolutamente racional por inteiro que a filosofia e a democracia podem surgir: caso o universo fosse totalmente ordenado, não haveria nenhuma filosofia, mas um sistema de saber único e definitivo. Por outro lado, caso o universo fosse uma total desordem, puro e simples caos, não haveria possibilidade alguma de pensar. Da mesma forma, se o universo humano fosse perfeitamente ordenado, não haveria, consequentemente, lugar algum para o pensamento político, e nenhum campo aberto à ação política: seria absurdo perguntar pelo que é uma boa lei, ou pela natureza da justiça. De modo análogo, se os seres humanos não pudessem criar alguma ordem para si mesmos estabelecendo leis, não haveria qualquer possibilidade de ação política, instituinte. E, se um conhecimento seguro e total (épistèmé) do domínio humano fosse possível, a política terminaria imediatamente e a democracia seria tão impossível quanto absurda, já que ela pressupõe que todos os cidadãos têm a possibilidade de atingir uma doxa correta, e que 141 ninguém possui uma épistèmé relativamente a assuntos políticos . Há, portanto, nisso que Castoriadis chamará de “ontologia implícita”142 – e que poderíamos por nossa conta chamar de “ontologia histórica” – a concepção de que o mundo não é um nada, um caos total, mas que há certa ordem, que, entretanto, não pode tudo. E é graças a esta correlação que se pode conceber a possibilidade e a realidade da liberdade de pensar e de corrigir o pensamento, de deliberar, de eleger e de se corrigir. É com base nesta ontologia histórica, intimamente ligada à filosofia e à democracia, que se torna possível a autonomia individual e política. Assim, não há um nomos natural, divino ou extra-social que “fundamente” o pensamento e a política. É esta ausência de fundamento que revela a liberdade radical da filosofia e da democracia e a consequente capacidade dos indivíduos de se reconhecerem como autores de suas normas. Mas revela também, no mesmo movimento, uma questão que 141 142 Ibid., pp. 292-3. Id., “Imaginário político grego e moderno”, op. cit., p. 199. 54 não pode ser escamoteada por uma sociedade e por sujeitos que se queiram autônomos, a saber, trata-se da questão dos limites para suas ações: Em uma democracia, o povo pode fazer toda e qualquer coisa – e precisa saber que não deve fazer toda e qualquer coisa. A democracia é o regime da autolimitação; portanto, é também o regime do risco histórico – outro modo 143 de dizer que é o regime da liberdade, e um regime trágico . Autonomia e autolimitação implicam-se reciprocamente. Uma vez que não podem evocar nenhuma instância superior para normalizar seu agir que, entretanto, deve ser normalizado, os indivíduos só podem apelar a si mesmos na condução ou reforma de suas ações. É nesse constante arriscar que a história se desenrola. A liberdade não pressupõe qualquer “garantia” para a democracia e a escolha é tão mais livre porque abre um campo de possibilidades imponderáveis que compreende a possibilidade do erro e da tragédia. Como os limites não são impostos, mas estabelecidos a cada momento, o desequilíbrio fatal está sempre potencialmente presente, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. O universo das condutas e significações políticas jamais constituirá um cosmo ordenado, será sempre uma construção provisória ameaçada pelo caos. Assim como, na tragédia, o homem está sempre à beira de sua perda, a polis estará sempre sitiada pela hybris, pelo desencadeamento das paixões, que induz o ser humano a ignorar os limites144. O risco constante de deslize na hybris, no excesso, na desmedida, não é equivalente à transgressão da lei. A lei pressupõe um delito definido diante de um código fixo, já “a hybris surge quando a autolimitação é a única „norma‟, quando se transgridem limites que não estavam definidos em parte alguma”145. A hybris, desse modo, é o reverso não tanto da lei, mas da liberdade quando desprovida de sua autolimitação. E, ao ver de Castoriadis, não nos protegemos da possibilidade permanente de incurso da hybris pela instauração de uma autoridade externa ou de uma “norma da norma”, movimento duplamente sujeito ao erro e que conduz, simplesmente, à heteronomia, visto que, ao fim e ao cabo, “qualquer norma da Id. “A Polis grega e a criação da democracia”, op. cit., p. 304. SILVA, F. “O trágico e o sagrado”. In: Saber filosófico, história e transcendência. SP, Loyola, 2002, p. 62. 145 CASTORIADIS, C. “A Polis grega e a criação da democracia”, op. cit., 304. 143 144 55 norma tem que ser, também ela, uma criação histórica. E não há modo algum de eliminar os riscos de uma hybris coletiva. Ninguém pode proteger a humanidade contra o desatino ou o suicídio”146. Poucas circunstâncias ilustram melhor a constante possibilidade da insurgência da hybris na história do que a trajetória (e o destino histórico) de Atenas na guerra contra Esparta. Determinados aspectos deste capítulo essencial da história grega talvez possam nos fornecer algumas pistas a respeito da ambiência daquele dia de 399 a.C. em que o tribunal ateniense condenou seu mais eminente filósofo. Ponto de viragem incontornável das relações entre democracia e filosofia? Fim trágico de uma afinidade até então descrita por nós como conativa e consubstancial, na medida mesma em que expressaria a autonomia individual e política? Seja qual for a resposta – e aqui a tentação aos simplismos deve ceder à complexidade da situação –, é preciso admitir que a Atenas do início do século IV já não era mais a mesma, especialmente quando comparada com aquela polis dos séculos VIII ao V147. Corrupção, decadência, declínio, decomposição, crise, foram alguns dos termos mobilizados para designar este período que se seguiu à derrota de Atenas na guerra do Peloponeso. E é neste quadro crítico que, no caso de Sócrates, deve ser pensada a nova relação entre a filosofia e a cidade. Mas que entender exatamente por essa “crise”? De seus vários aspectos, fiquemos por ora com aquele que poderíamos denominar de “crise da avaliação”, ou “crise dos valores”, pintada por Tucídides em cores fortes ao abordar os “excessos” provenientes das revoluções – leia-se: das lutas partidárias entre aristocratas e democratas, comumente vertidas em guerra civil – que “convulsionaram” o mundo helênico. A célebre descrição apresentada no livro III (82-4) da História da guerra do Peloponeso enfatiza a perversão da relação entre as palavras e os atos e do correspondente valor que se confere a um e outro: Ibid. Embora qualquer suposta “garantia” para a democracia seja relativa e contingente, Castoriadis não deixa de destacar que – mais do que o apelo incondicional a “códigos constitucionais” – talvez “a menos contingente de todas” as cauções “se encontra na Paideia dos cidadãos, na formação (sempre social) de indivíduos que interiorizaram a necessidade da lei e ao mesmo tempo a possibilidade de questioná-la. Indivíduos que interiorizaram também a interrogação, a reflexividade e a capacidade de deliberar, a liberdade e a responsabilidade”. (Id., “Poder, política, autonomia”, op. cit., p. 48). Ao que complementa que, “suponhamos que uma democracia, a mais completa e perfeita que pudermos imaginar, caia do céu: essa democracia não vai durar mais do que alguns anos se ela não engendrar indivíduos que lhe correspondam e que, primeiramente e antes de qualquer coisa, sejam capazes de fazê-la funcionar e de reproduzi-la. Não pode haver sociedade democrática sem Paideia democrática” (Id., “A democracia como procedimento e como regime”, op. cit., p. 269). 147 É sintomático que “a Grécia” à qual se refere Castoriadis situe-se exatamente entre VIII e V a.C., período no qual a polis se cria, se institui e se torna polis democrática (Id., “Imaginário político grego e moderno”, op. cit., p. 188). 146 56 Assim as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções [...] A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo o capricho dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente se torna covardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível sempre merece confiança, e seu oposto se torna suspeito. [...] Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. [...] De um modo geral, os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro. A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e ambição [...] Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso sob o manto de palavras enganosas eram considerados os melhores. [...] Já não havia palavras fidedignas, nem juramentos capazes de inspirar respeito bastante para reconciliar os 148 homens . “A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo o capricho dos homens”. Não se trata tanto de dizer que as palavras perderam seu sentido, mas de destacar a manipulação da língua e o redirecionamento do poder de avaliação das palavras em relação aos atos149. Nesse contexto, a mesma palavra pode ser apropriada por ambos os partidos para dizer em aparência a mesma coisa, embora se refira a ações completamente contrárias. O compromisso efetivo de cada qual falar publicamente com toda a franqueza e liberdade (parrhesia) torna-se tão raro quanto circunstancial, quando não puramente perigoso ou impossível, posto que o falar não mais engaja o agir coerente. Estabelece-se, por conseguinte, uma cisão, uma crise, entre os atos e as palavras, entre os discursos e as condutas. Doravante, o uso público da palavra passa do estatuto de instrumento político democrático por excelência ao de mera ferramenta de domínio utilizada por determinados indivíduos ou facções em preterimento às questões de interesse geral. O ato da fala conta menos com a capacidade de esclarecer seus interlocutores do que com a intenção de ludibriálos e de submetê-los, de tal maneira que as palavras não apenas perdem sua exatidão, mas são aplicadas de modo a mascarar as verdadeiras intenções daqueles que a pronunciam – como 148 TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1987, pp. 166-168. 149 Ver, a este respeito, LORAUX, N. “Thucydide et la sédition dans les mots”. In : La tragédie d’Athènes: La politique entre l’ombre et l’utopie. Éditions du Seuil, 2005, pp. 81-107. 57 pode revelar a consecução dos atos que se seguem aos discursos. Antigos ideais, a um lado e outro, diluem-se em palavras sem compromisso que não têm por móvel senão “a ânsia de chegar ao poder”: usando em ambas as facções palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses da cidade, mas na realidade serviam-se 150 dela . “Paixões ingovernáveis” dominam os ânimos das poleis gregas. E a este quadro de desmedida, de hybris, Atenas também veio acrescentar seu quinhão, não apenas insuflando “revoluções” em outras cidades, mas sofrendo em sua própria constituição as consequências de seus excessos. O preço a pagar foi altíssimo: em 431 a. C. Atenas era a maior potência do mundo grego, líder de um império considerável, próspera e orgulhosa – orgulhosa de sua posição, de sua cultura e, acima de tudo, de seu sistema democrático. Era “a escola da Hélade”, como disse Péricles, uma crença partilhada e acalentada por todos os atenienses. Em 404 a. C. não havia mais nada: o império, a glória e a democracia eram coisas do passado. Em seu lugar havia uma divisão do exército espartano e uma junta cruel e ditatorial (que veio a ser conhecida como os Trinta Tiranos)151. O terror armado, a chacina sem processo ou lei foram as marcas da tirania dos Trinta, que executou mais de 1.500 cidadãos, condenando muitos ao exílio e saqueando os estrangeiros ricos para o seu enriquecimento pessoal152. 150 TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso, op. cit., p. 167. Murari aponta para este panorama ressaltando a perda de ao menos dois princípios que sustentam o conceito de polis: “a perda da dissociação público/privado na determinação da prática política; e a perda do comando da razão no domínio da Assembleia”. Doravante, a realização de interesses pessoais será a finalidade e a lisonja o seu instrumento prioritário. (Cf. MURARI, F. “Péricles e Cleonte, democracia e demagogia”. In: Mithistória (vol II.). SP, Humanitas, 2006, pp. 349-50). 151 FINLEY, M. “Sócrates e Atenas”. In: Aspectos da Antiguidade. Trad. de Marcelo Brandão Cippolla. SP, Martins Fontes, 1991, pp. 73-74. 152 Cf. ARISTÓTELES. Constituição dos atenienses. Trad. de Delfim Ferreira Leão. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p.78. 58 Pode-se afirmar, de modo geral, que a tirania dos Trinta viera arrematar o quadro de excessos que se deram no correr de quase três décadas de guerra153. Mas, afinal, quem eram os Trinta? A resposta mais curta diria que eram oligarcas. Uma visão mais acurada, contudo, apontaria que muitos deles não eram apenas signatários de determinada “forma de governo”, mas membros de uma elite econômica “intelectualizada”, que havia adotado uma nova educação, distinta daquela comumente recebida pelos demais154. Como bem aponta Jaeger155, por volta da metade do século V, sobretudo em Atenas, surgiram “instrutores” profissionais, chamados sofistas, que ofereciam àqueles que dispusessem de lazer suficiente para o estudo e de boas somas pecuniárias ensino em retórica, filosofia e política. Não obstante as diferentes posições políticas de cada um, os sofistas compartilhavam um método de argumentação que induzia em alguns discípulos uma atitude, ao ver de muitos, suspeita e perigosa: a moral, as tradições, as crenças e os mitos não eram algo a ser transmitido sem qualquer modificação ou questionamento de geração em geração, mas algo a ser analisado e estudado racionalmente, e, se necessário, modificado e rejeitado156. Ora, afirmará Finley, “era inevitável que tal tipo de ensinamento fosse alvo de repulsa e suspeita, em muitos setores. Como reação, surgiu uma espécie de obscurantismo popularesco”157. “Obscurantismo popularesco” que foi satirizado por Platão no diálogo Ménon (92 a-b), colocando Anito, um dos acusadores de Sócrates, como porta-voz do tradicionalismo e do conservadorismo intransigente: Não são os sofistas que são loucos, os verdadeiros loucos são os jovens que os pagam, e mais ainda os responsáveis que permitem que eles caiam nas 153 A Guerra do Peloponeso iniciou-se em 431 a. C., sendo entrecortada por tensos períodos de paz até 404 a.C. A educação que podemos chamar de “tradicional” se realizava, mormente, através de uma vida comunitária ativa: nos jantares, no teatro quando dos grandes festivais religiosos, na ágora, nas reuniões da Assembleia etc. Ver, a este respeito, especialmente os capítulos I a V de MARROU, H.-I. História da educação na Antiguidade. SP, Edusp, 1966. 155 Ver, de modo mais detido, o capítulo intitulado “Os sofistas: a sofística como fenômeno da educação”, do Livro Segundo (pp. 335-386) de JAEGER, W. Paidéia – a formação do homem grego. Trad. de Artur M. Parreira. SP, Martins Fontes, 1995. 156 FINLEY, M. “Sócrates e Atenas”, op. cit., p. 79. 157 Id., Democracia antiga e moderna. Trad. de Waldéa Barcellos, Sandra Bedran. RJ, Graal, 1988, p. 148. 154 59 mãos dos sofistas. Mas, ainda piores, são as cidades que permitem sua 158 entrada e que não os expulsam . Independente de representar fielmente ou não a opinião de Anito, pode-se inferir que havia de fato atenienses que pensavam e diziam tais coisas, vislumbrando nos sofistas e seus prósperos discípulos o símbolo do surgimento de uma nova classe intelectual divorciada do conjunto dos cidadãos – sobretudo no que tange à religião, aos valores e princípios morais tradicionais – e capaz de perpetrar os piores crimes, tais como os que culminaram na tirania dos Trinta. Seguindo essa via de juízo, era de fato uma “loucura” não expulsá-los, visto que se tratava de um perigo concreto a ameaçar Atenas. Uma das posturas diante desta trama traduziu-se na perseguição a um determinado setor dos “intelectuais”, que teve na condenação de Sócrates seu ato final. Ato final, posto que este clima hostil remontava ao começo da Guerra do Peloponeso, em que, provavelmente como uma reação à peste que eclodiu em Atenas, matando um terço dos cidadãos em um período de quatro anos, foi decretada uma lei que proibia e declarava ímpio o estudo da astronomia: “por moção de um adivinho profissional chamado Diopeithes, a Assembleia aprovou uma lei determinando ser delito grave ensinar astronomia ou negar a existência do sobrenatural”159. A primeira vítima teria sido o eminente filósofo-cientista Anaxágoras de Clazómenes, que escapou da punição fugindo da cidade. Anaxágoras ensinava que o sol não era uma divindade, mas sim uma rocha incandescente, o que poderia explicar, segundo determinada óptica, a origem da formação do elo entre astronomia e a descrença no sobrenatural. Assim, por meio de uma série de julgamentos por impiedade originados da lei de Diopeithes, a geração da Guerra do Peloponeso testemunhou uma coação inaudita em relação PLATON, Oeuvres Complètes – Tome III, partie 2 (Gorgias - Ménon). Texte établi et traduit par Alfred Croiset. Paris, Société d'édition “Les belles lettres”, 1935, p. 268. 159 FINLEY, M. Democracia antiga e moderna, op. cit., p. 139. De acordo ainda com o historiador, ao analisar os termos e o teor da acusação contra Sócrates, não resta dúvida “de que a acusação era basicamente de impiedade e que ela se baseava na lei de Diopheites, em vigor há uma geração” (Ibid., p. 145). A acusação, lida em voz alta para os quinhentos e um membros do júri, segundo Diógenes (Livro II, §40), teria sido a seguinte: “Esta acusação e declaração é jurada por Mêletos, filho de Mêletos de Pitos, contra Sócrates, filho de Sofroniscos de Alopece: Sócrates é culpado de recusar-se a reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado, e de introduzir divindades novas, e é também culpado de corromper a juventude. Pena pedida: a morte”. (LAÊRTIOS, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília. Editora da Universidade de Brasília, 1988, p. 57). Ver também XÉNOPHON. Mémorables, op. cit. I, 1, 1 e PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., 24b-c. Para uma análise pormenorizada das três versões do ato de acusação contra Sócrates que chegaram até nós, consultar BRICKHOUSE, T.; SMITH, N. Socrates on Trial, Oxford, Clarendon Press, 1989. 158 60 aos “intelectuais”, uma vez que eram processados e punidos não por atos abertos de impiedade que pudessem interferir na ordeira condução religiosa160, mas por suas ideias, por afirmações e questionamentos que, muitas vezes, desafiavam as crenças tradicionais profundamente enraizadas, tanto no campo religioso como na moral e na política161. Tal hostilidade dispensava maiores distinções ao considerar os responsáveis pela “corrupção” da cidade e dos jovens de sua elite: que importava se um deles corrompia pela astronomia e outro pela ética, ou se um aceitava pagamento e outro não? Para certa parcela do público, fosse Anaxágoras, Protágoras ou Sócrates, todos eram “corruptores”162. E, nesta ambiência de conservantismo vertido em perseguição, de modo mais ou menos trágico, cada um pagaria por suas palavras e seu modo de vida e, sobretudo, por sua coerência consigo mesmo. Mau momento da democracia163 em que esta passa não apenas a desrespeitar o jogo político do embate público dos logói sensatos ou verdadeiros – ou ainda, de “doxas corretas”, como prefere Castoriadis164 – que visam ao bem individual e coletivo, mas a ser dominada por um pensamento moral-religioso que estanca a liberdade de discussão e o conflito regrado, seja 160 Cujo ato de mutilação das estátuas de Hermes em 415 seria o exemplo paradigmático. Sobre este caso ver o livro VI, capítulos 27 a 29 de História da guerra do Peloponeso. 161 Nessas circunstâncias, a imprecisão do termo “impiedade” (asebeia) – sobretudo em uma sociedade em que a religião, de cunho cívico, comportava grande diversidade de deuses e heróis, sendo estruturada muito mais em torno de mitos e rituais do que propriamente em dogmas – levou muitos a indicar as possíveis “tonalidades políticas” do julgamento de Sócrates: uma espécie de ato de vingança da democracia restabelecida. Afinal, Sócrates não apenas criticava abertamente a democracia, como também teve por frequentadores de seu círculo homens como Cármides e Crítias, dois dos Trinta Tiranos, isso para não mencionar a controversa figura de Alcibíades. Tudo isso poderia levar alguns jurados à associação da figura de Sócrates a destes “intelectuais”. Ora, embora tais tonalidades políticas pudessem estar presentes no julgamento do filósofo, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, a declaração da anistia em 403 a.C., quando da restauração democrática, cujo esforço de efetivação foi pontuado por muitos autores da época, incluindo Platão e Aristóteles. Por outro lado, homens que pareciam simpatizar com a democracia, como Protágoras ou mesmo Anaxágoras, amigo de Péricles, também haviam sofrido o processo de impiedade. Acrescente-se ainda que nem Platão nem Xenofonte indiquem a possibilidade de um julgamento “político” de Sócrates. Na verdade, afirmará Finley, “a opinião favorável à vingança política é tardia” (FINLEY, M. Democracia antiga e moderna, op. cit., p. 145), o que nos leva a centrar a acusação contra Sócrates na chave dessa atmosfera de “obscurantismo”, sobretudo moral e religioso, preponderante nesse momento de Atenas. 162 Não apenas a comédia de Aristófanes, Nuvens, encenada em 423 a. C., dá prova desta tendência ao “confundir” na figura de Sócrates a combinação de cientistas-filósofos (possivelmente Anaxágoras) e de sofistas, mas também a participação de Anito, que propunha a expulsão dos sofistas (Ménon 92 a-b), como acusador de Sócrates, pode revelar algo dessa generalização. Por fim, ainda, valeria lembrar que em Protágoras (314 d), ao abrir a porta para Sócrates e seu jovem amigo Hipócrates, após lançar-lhes um breve olhar e possivelmente escutar algo do que conversavam, o escravo da casa exclama: “Ah! Mais sofistas!”. 163 O estabelecimento subsequente da Academia de Platão em Atenas e sua longevidade é um fator a mais para evidenciar que se tratou de fato de um mau momento, ao qual se seguiu o desanuviar do clima de hostilidade em relação aos “intelectuais” em Atenas, mesmo aos intelectuais que poderiam ser categorizados como antidemocráticos, como fora o caso de Platão. 164 Vale lembrar que o autor enfatizara (CASTORIADIS, C. “A Polis grega e a criação da democracia”, op.cit., pp. 292-293) que, embora a democracia pressuponha que ninguém possui um conhecimento perfeito, uma épistèmé relativamente a assuntos políticos, isto não significa que todos os discursos se equivalham do ponto de vista de sua plausibilidade: a democracia “pressupõe que todos os cidadãos têm a possibilidade de atingir uma doxa correta” e – podemos acrescentar – que sejam capazes de reconhecê-la e aplicá-la. 61 no âmbito das instituições, seja no âmbito das representações. Por um período, a heteronomia própria às “idola tribus” prevalece sobre a liberdade do dizer autônomo. E esta liberdade, que é também a do filósofo, deverá encontrar um lugar: seja na viciada Assembleia, na corte do Príncipe, na ágora ou alhures, as “respostas” serão as mais diversas, a questão, no entanto, continua em aberto. E é por continuar em aberto que, antes de emitirmos certificados peremptórios de pureza ou exprobração ao filósofo ou à cidade, talvez analisar, na medida de nossas limitações, como Sócrates vivenciou a “crise” e os riscos próprios de seu tempo traga maiores possibilidades de compreensão dessa intrincada e inconstante relação165. Afinal, como já notara convenientemente um leitor atento a propósito de Sócrates: “o intelectual é filho da democracia, já foi dito, mas também filho da crise dos valores”166. Crise dos valores que nos põe diante da explicitação da urdidura que vincula – aqui já em termos foucaultianos – o “sujeito” e a “verdade”, sobretudo quando permeado e ambientado em determinada conjuntura de relações de poder. 2.2. A parrhesia política: democracia e crise do dizer-verdadeiro Em seu último curso no Collège de France, em 1984, Foucault relembrava o itinerário que o havia levado ao estudo da noção de parrhesia. Em 1982, no curso A hermenêutica do sujeito167, a noção recebe uma primeira análise no contexto da direção de consciência, da condução espiritual, do conselho da alma, das formas através das quais o sujeito, dizendo a 165 Seria preciso considerar, por exemplo, que tragédia da condenação de Sócrates jamais poderia ter ocorrido em Esparta, ou em outras poleis semelhantes, pela simples razão de que estavam fechadas aos filósofos e às escolas de filosofia. O que sucedeu em Atenas no final do século quinto não se repetiu em parte alguma, posto que “só Atenas proporcionava a necessária combinação de condições: soberania popular, um numeroso e ativo grupo de pensadores vigorosos e originais, e as experiências únicas que a guerra trouxera consigo. Em suma, as mesmas condições que atraíam para Atenas os melhores espíritos da Grécia podiam, e por um tempo assim aconteceu, colocá-los numa situação singularmente precária” (FINLEY, M. Os gregos antigos. Trad. de Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1988, p. 120). Reconhecimento análogo parece ser conferido por Sócrates, no Críton, ao recusar-se a fugir da polis que o havia condenado injustamente, mas cujas leis permitiram o advento e a existência de Sócrates e seu modo de vida filosófico, e onde pôde por décadas discutir e pensar, algo que sequer poderia ter começado a fazer em Esparta. Conjuntura que nos levaria a depreender que é o momento de “crise” de Atenas e de sua democracia, de seus valores, atitudes e concepção de mundo que parece ter gerado as condições necessárias não apenas para a condenação de Sócrates, mas também, fato surpreendente, para o dealbar de sua filosofia. 166 WOLFF, F. “Dilemas dos intelectuais”. In: NOVAES, A. (org.). O silêncio dos intelectuais. SP, Companhia das Letras, 2006, p. 55. 167 Mais especificamente, é no fim da aula de 3 de março que a noção é inserida, recebendo tratamento mais minucioso nas duas horas da aula de 10 de março. 62 verdade – que acredita e reconhece como sendo francamente a verdade –, se manifesta, isto é, como constitui a si mesmo e é reconhecido pelos outros como sujeito que pronuncia um discurso de verdade: trata-se do regime de palavra do mestre de existência que, na contracorrente da bajulação e dos ornamentos retóricos, oferece uma fala franca, clara e direta, que autentica a verdade que diz em sua própria conduta, e que, por sua vez, é capaz de incitar o discípulo atento a alcançar certa transformação de si. Não obstante a longevidade e a multiplicidade de acepções e de usos que virá a adquirir historicamente (inclusive conotações negativas), este contexto de aparição do termo já nos proporciona alguns indícios a respeito de seu sentido: traduzida comumente por libertas, free speech, franc-parler, freimüthigkeit, parrésia168, o termo grego parrhesia 169, formado por pan (tudo) e rhema (aquilo que é dito), ressaltará a enunciação de um dizerverdadeiro, um jogo entre locutor e interlocutor, que estabelece um “pacto”, um “comprometimento” entre o sujeito que diz livre e transparentemente o que pensa e o sujeito da conduta. Na célebre carta 75 de Sêneca a Lucílio, retomada por Foucault, encontraríamos um possível epítome dessa adequação: “dizer o que se pensa, pensar o que se diz; fazer com que a linguagem esteja de acordo com a conduta”170. No entanto, declara Foucault, o desenvolvimento de suas pesquisas o levou a reconhecer que a origem da noção se encontrava em outro lugar, qual seja, que “a noção de parrhesia [...] é, fundamentalmente, uma noção política”171. Descoberta que, embora o desviasse momentaneamente de seu projeto imediato de uma “história antiga das práticas do dizer-a-verdade sobre si mesmo” em direção a uma “análise da parrhesia no campo das Em português, segundo o dicionário Aulete: “figura que consiste em dizer confiadamente coisas que parecem arriscadas. [Também se chama licença ou liberdade oratória.]”. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/parres%C3%ADa#ixzz2OIe7b4vx. 169 Visando à padronização no uso do vocábulo, mantivemos a supracitada transliteração do grego ao longo do texto. 170 SÊNECA, “carta 75”, apud FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, op. cit., p. 361. Foucault destaca que essa perspectiva de abordagem do dizer-verdadeiro, ou das formas de veridicção, não se dispõe a uma “análise epistemológica” da estrutura dos discursos, isto é, não se dispõe a “analisar, no que elas podem conter de específico, as estruturas próprias dos diferentes discursos que se propõem e são recebidos como discursos verdadeiros” (algo próximo do que se passara em A arqueologia do saber). No estudo da parrhesia, o enfoque recai sobre a constituição e transformação ética do sujeito na medida em que coloca um dizer-verdadeiro como vínculo fundamental de sua relação consigo e com os outros. Uma verdade que se expressa por uma ética da palavra que se conjuga a uma ética da conduta. Trata-se, nas palavras de Saly Wellausen, de “uma verdade cuja condição de possibilidade não é lógica, mas ética” (WELLAUSEN, S. A parrhésia em Michel Foucault: um enunciado político e ético. Prefácio de Franklin Leopoldo e Silva. SP, Editora LiberArts, 2011, p. 19). 171 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: Curso no Collège de France (19831984). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes, 2011, p. 9. 168 63 práticas políticas”172, proporcionou o reencontro de um velho tema constantemente aflorado nas análises que havia empreendido das relações entre sujeito e verdade: “o das relações de poder e de seu papel no jogo entre o sujeito e a verdade”, ou ainda, “a questão do sujeito e da verdade do ponto de vista da prática do que se pode chamar de governo de si mesmo e dos outros”173. Com efeito, a palavra parrhesia é atestada pela primeira vez nos textos de Eurípides. E aí o termo de parrhesia aparece como designando o direito de falar, o direito de tomar publicamente a palavra, de dizer sua palavra, de certo modo, para exprimir sua opinião numa ordem de coisas que interessam a cidade. Dizer a sua palavra sobre os assuntos da cidade, é esse o direito que é designado pela 174 palavra parrhesia . Ora, este sentido inicial do termo não deixa de se coadunar com aquilo que afirmáramos, ainda que de modo passageiro, a respeito da parrhesia. A saber, tomamo-la no contexto de caracterização da democracia como a expressão do compromisso efetivo de cada qual falar publicamente com toda franqueza e liberdade, o que revela, por sua vez, para além do direito a fala, um dever que toma forma num certo tipo de relação entre aquele que fala e o que é dito, ou melhor, entre aquele que fala, o que é dito e como esse conjunto se direciona a seus interlocutores. Foucault procederá à análise dessa parrhesia fundamentalmente política sobretudo no curso de 1983175. E é neste contexto que o caso paradigmático de Péricles, apresentado por Tucídides, servirá como via de explanação deste enredo político de utilização da parrhesia, 172 Ibid. Ibid. 174 Ibid., p. 31. 175 No âmbito da “parrhesia política”, Foucault distinguirá entre a “parrhesia democrática” e a “parrhesia autocrática”. As cinco primeiras aulas do curso de 1983 são dedicadas à “parrhesia democrática” e se apoiam na interpretação de dois conjuntos de textos: as tragédias de Eurípides – sobretudo Íon – e os discursos de Péricles relatados por Tucídides. No primeiro caso, trata-se, ao ver de Frédéric Gros, de abordar a “fundação legendária do dizer-a-verdade da democracia ateniense”, já o segundo movimento marcaria a reflexão sobre o “exercício concreto” dessa parrhesia (Ver GROS, F. “Situação do curso”. In: FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. (Curso no Collège de France, 1982-1983). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. de Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes, 2010, pp. 346-7). Centraremos nossas atenções neste segundo momento da parrhesia democrática, que Foucault chegou a designar como “momento pericliano da parrhesia” (FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit., p. 308). No mais, as cinco aulas restantes do curso se dedicam à parrhesia do filósofo que se dirige ao Príncipe, isto é, à “parrhesia autocrática”, que tem como eixo principal de estudos as cartas de Platão, em especial a Carta VII. 173 64 isto é, da parrhesia em sua prática política efetiva. Tomemos para tanto o terceiro discurso de Péricles na História da guerra do Peloponeso (livro II, § 60)176. A peste assola Atenas, os insucessos e reveses da guerra se acumulam. Nesse momento, os atenienses indispõem-se contra Péricles, responsabilizando-o por seus infortúnios. Ansiosos por conseguir um acordo com os lacedemônios, chegam a enviar-lhes furtivamente emissários sem, no entanto, conseguir resultados. Nesse momento crítico, Péricles, que ainda é estratego, convoca uma reunião da Assembleia e, subindo à tribuna, diz o seguinte: Eu esperava ver vossa cólera se manifestar contra mim; conheço as razões dela. Por isso convoquei esta assembleia a fim de apelar para a vossa lembrança e vos criticar, se vossa irritação para comigo não repousar em nada e se perdeis coragem na adversidade. Péricles faz lembrar aos atenienses que embora tenha ele mesmo, por sua conta e risco e pautado em suas convicções, os aconselhado a entrar na guerra, a decisão foi tomada em conjunto, implicando a solidariedade no sucesso ou na derrota. Chama-os, portanto, a assumir a responsabilidade frente a um pacto firmado. Trata-se de uma cena na qual o político, consciente de sua tarefa de dizer a verdade, mesmo no momento em que a maioria se volta contra ele, “em vez de bajular os cidadãos ou em vez de desviar para alguma outra coisa ou para um outro a responsabilidade do sucedido, se volta contra seus concidadãos e os critica”177. Sem adulá-los de modo algum, Péricles critica os cidadãos, tem a coragem e assume o risco de dizer aquilo que considera verdadeiro apesar do perigo de se opor à maioria (perigo não raras vezes revertido, dentre outras sanções, em ostracismo). E com base em que Péricles assume esse dizer-a-verdade corajoso? É na apresentação de seu retrato pessoal que podemos encontrar algum indicativo: “vós vos irritais contra mim, que no entanto não sou inferior a nenhum outro, quando se trata de distinguir o interesse público e exprimir seu pensamento pela palavra, contra mim que sou dedicado à cidade e inacessível à corrupção”. 176 Excepcionalmente neste trecho concernente ao terceiro discurso de Péricles, achamos por bem acompanhar a tradução que o próprio Foucault oferece, visto que a mesma influenciará na argumentação posterior do filósofo. O trecho em questão é traduzido e comentado por Foucault em O governo de si e dos outros, op. cit., pp. 164166. 177 Ibid., p. 164. 65 Duas qualidades são postas em destaque na figura de Péricles: ele sabe “distinguir o interesse público” e sabe “exprimir seu pensamento pela palavra”. Mas não apenas, posto que, continua Péricles, discernir o interesse público mas não apontá-lo nitidamente a seus concidadãos equivale exatamente a não ter refletido sobre ele. Ter esses dois talentos e ser mal intencionado é ser condenado a não dar nenhum conselho útil à sua cidade. Ter amor à pátria mas ser acessível à corrupção é ser capaz de vender tudo por dinheiro. Se admitistes que eu tinha, ainda que moderadamente e mais que outros, essas diferentes qualidades e se, por conseguinte, conseguistes meus conselhos para a guerra, erraríeis fazendo disso agora um crime que eu teria cometido. Assim sendo, não basta discernir o interesse público, mas é preciso dizê-lo exata e claramente aos seus concidadãos, isto é, ter a coragem de dizê-lo, ainda que o que diz desagrade, e ter a capacidade de expô-lo num logos verdadeiro e refletido. Além disso, Péricles evoca sua incorruptibilidade, sua dedicação ao bem comum, sua “integridade moral”178, integridade que põe à vista de todos a relação ao mesmo tempo transparente e consequente entre suas palavras e seus atos, que permite reconhecer em sua pessoa, em seu éthos, uma maneira de ser que é também uma maneira de fazer e de dizer179. Esse quadro, ao colocar em cena o éthos e a livre palavra do cidadão cônscio de sua tarefa, permite conciliar – ainda que por vezes de modo tenso – parrhesia e democracia. Conciliação sem dúvida frágil180 e que, como notáramos, corre o risco constante de irromper “A razão do prestígio de Péricles era o fato de sua autoridade resultar da consideração de que gozava e de suas qualidades de espírito, além de uma admirável integridade moral”. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso, op. cit., p. 111. 179 Ao crer na pequena “síntese” fornecida por Foucault ao cabo da primeira de seis aulas dadas em Berkeley em outubro de 1983, encontraríamos em Péricles os principais sentidos (positivos) do termo parrhesia: “para resumir o precedente, parrhesia é um tipo de atividade verbal na qual o locutor tem uma relação específica à verdade através do franco-falar, uma certa relação à sua vida através do perigo, um certo tipo de relação a si e aos outros através da crítica (crítica de si ou do outro), e uma relação específica à lei moral através da liberdade e do dever. Mais exatamente, a parrhesia é uma atividade verbal na qual o locutor exprime sua relação pessoal à verdade, e ele arrisca sua vida porque ele reconhece que o dizer-verdadeiro é um dever para melhorar ou para ajudar a outras pessoas (tanto quanto a si mesmo). Na parrhesia, o locutor utiliza sua liberdade e escolhe falar francamente à persuadir, a verdade à mentira ou ao silêncio, o risco da morte à vida e à segurança, a crítica à bajulação, a tarefa moral aos seus interesses e à apatia moral” (FOUCAULT, M. Fearless speech. Ed. Pearson, Joseph. Los Angeles: Semiotext(e), 2001, p. 19. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/83674956/MichelFoucault-Fearless-Speech). 180 Acerca da fragilidade e, por vezes, paradoxos próprios ao vínculo entre democracia e dizer-verdadeiro no contexto do “momento pericliano da parrhesia”, ver FONSECA, M. “Os paradoxos entre a democracia e o dizer-verdadeiro”. In: Revista de Filosofia Aurora – Dossiê Parrhesia, Curitiba, v. 23, n. 32, 2011, pp. 17-30. 178 66 numa crise, numa cisão e mesmo na perversão da relação entre os atos e as palavras, entre os discursos e as condutas, especialmente quando a hybris própria à “ânsia de chegar ao poder” passa a dominar a paisagem política, levando indivíduos e facções a lançar mão de discursos que não têm compromisso senão com a realização de seus interesses particulares. Conjuntura deletéria que, após a morte de Péricles, propaga-se em Atenas, como bem escreveu Tucídides. Doravante, a harmonia entre parrhesia e democracia vê-se não apenas ameaçada, mas – a crer na constatação de autores que vão de Platão181 a Isócrates182, passando por Demóstenes183 – “estruturalmente” bloqueada, simplesmente inexequível. Trata-se da temática amplamente difundida à época em textos filosóficos e políticos e que Foucault identificou como “crise da parrhesia democrática no pensamento grego do século IV”184. Nestes textos do final do século V e, principalmente, do século IV, a parrhesia aparece “menos como um direito a exercer na plenitude da liberdade do que como uma prática perigosa, de efeitos ambíguos e que não deve ser exercida sem precauções e limites”185. Prática perigosa uma vez que se constata que as instituições democráticas não apenas não são capazes de dar lugar ao dizer-verdadeiro, mas que representam um perigo tanto para a cidade quanto para os cidadãos. A liberdade concedida a todo e qualquer cidadão de tomar a palavra em Assembleia – como vimos anteriormente, um dos valores centrais da democracia ateniense – passará a ser lida como a possibilidade de que qualquer um diga qualquer coisa, o que bem lhe aprouver, independentemente de expressar uma opinião verdadeira ou estar de acordo com o bem comum. Por outro lado, nesta barafunda de discursos, o indivíduo que ousa dizer a verdade no espaço democrático opondo-se à vontade dos demais corre o risco não somente de não ser ouvido, mas de ser categoricamente “silenciado”, seja pelo exílio, seja pela morte ou por outra sanção qualquer. O que se constata nos dois casos é a incapacidade crônica das instituições democráticas em distinguir, reconhecer, avaliar e valorizar devidamente o discurso verdadeiro e o discurso falso. Em outras palavras, aquele que foi reconhecido como o “fundamento ético da democracia”186, a parrhesia, encontra-se ameaçado pela própria democracia, visto que esta 181 Ver, a este respeito, República, Livro VIII, 557 a-b et seq. Ver, especialmente, ISÓCRATES. Sur La paix, §3. Trad. de G. Mathieu. Paris Belles Lettres, 1942. 183 Ver, por exemplo, DEMÓSTENES. Troisième Philippique, §3. In: Haranges, t.1. Trad. M. Croiset. Paris, Belles Lettres, 1965. 184 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 48. 185 Ibid., p. 32. 186 GROS, F. “A parrhesia em Foucault”. In: GROS, F. (org.) Foucault: A coragem da verdade. Trad. de Marcos Marcionilo. SP, Parábola Editorial, 2004, p. 159. 182 67 deixou de ser capaz de “abrir espaço para a diferenciação ética dos sujeitos que falam, deliberam e decidem”187. O diagnóstico da irremovível impossibilidade de “diferenciação ética” na democracia levará diversos autores à proposição de deslocamento do campo de relação entre parrhesia e governo a outro tipo de estrutura política que, embora possa encontrar riscos e circunstâncias adversas, apresentar-se-ia como mais favorável ao vínculo parresiástico do que a relação existente entre o povo e os oradores. Essa relação é aquela entre o Príncipe e seu conselheiro: “não é mais na Assembleia, é a Corte, a corte do Príncipe, o grupo dos que ele está disposto a escutar. É nesse âmbito, é nessa forma que a parrhesia pode e deve encontrar seu lugar”188. É justamente pela possibilidade de que haja essa “disposição a escutar” o discurso daquele que diz a verdade que a formação ética do Príncipe é possível. A acessibilidade do discurso verdadeiro à alma, ao éthos individual do monarca ou do tirano permitirá que a parrhesia do filósofo articule seus efeitos no campo da política, conquanto, supõe-se, a maneira como o Príncipe governará a cidade dependerá de seu éthos. Em suma, é a ausência de lugar para o éthos na democracia que faz que a verdade não tenha lugar nela e não possa ser ouvida. Em compensação, é porque o éthos do Príncipe é o princípio e a matriz de seu governo que a parrhesia é possível, preciosa, útil, no caso do governo [autocrático]189. Constatação correta ou desastrosa – e a história ainda reservaria surpresas aos respectivos apostadores –, o fato é que tanto no descrédito à democracia quanto na valorização dos governos autocráticos é a questão do éthos que aparece como o vínculo, “o ponto de articulação entre o dizer-a-verdade e o bem governar”190. E Sócrates, embora não tenha sido Péricles ou consulente de qualquer tirano, parece ter compreendido bem a importância e os perigos próprios ao estabelecimento deste liame. 187 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 43. Ibid., p. 51. 189 Ibid., p. 57. 190 Ibid. 188 68 3.3. A parrhesia socrática: a reinvenção do dizer-verdadeiro Após afirmar que “Sócrates é o homem do cuidado de si”, Foucault enfatizará que “Sócrates é parresiasta”191. Para além de mais uma designação entre outras, podemos compreender a segunda afirmação na senda do desenvolvimento e da radicalização da primeira. Mas o que vem a ser exatamente um parresiasta? Podemos afirmar, em princípio, que se trata de um sujeito para o qual o dizer-verdadeiro caracteriza sua própria vida. Um modo de ser que, como esboçamos ao abordar a figura de Péricles, envolve um modo de dizer e de se reportar aos outros que faz com que o sujeito se vincule a si mesmo, ao seu enunciado e à enunciação, à medida mesma que se vincula aos atos e às consequências, notadamente de risco, acarretadas por esta atitude de dizer-verdadeiro. Ora, é nos marcos desse sentido geral que Sócrates é apresentado como “aquele que prefere enfrentar a morte a renunciar a dizer a verdade”192. No entanto, a singularidade própria à parrhesia socrática exige uma interpelação mais cautelosa, posto que, como lembra Foucault, Sócrates “não exerce esse dizer verdadeiro na tribuna, diante do povo, dizendo sem disfarces o que pensa”193. Em outras palavras, Sócrates não é Péricles. E não apenas não é Péricles, mas é na ambiência da “crise da parrhesia democrática” que Sócrates é parresiasta. Crise da parrhesia que se enreda igualmente – recordemos – àquele clima de hostilidade e “obscurantismo” em relação aos “intelectuais” que se seguiu à guerra do Peloponeso. Sendo assim, cumpre indagar qual a especificidade do dizer-verdadeiro socrático: como se caracteriza e exerce? Em que condições se efetiva, com que finalidade? A quem se dirige? Quais seus limites e sua relação com a polis? Em suma, qual a atitude de Sócrates, enquanto parresiasta, em face de sua atualidade? Uma resposta completa a estes questionamentos escaparia às dimensões e propósitos deste trabalho. O que não nos impede, contudo, de tentar seguir o fio desvelado por Foucault ao afirmar que embora não haja um desaparecimento da parrhesia política e das questões que continuará a colocar durante toda a Antiguidade, Sócrates marca um ponto de inflexão no qual parece ocorrer uma espécie de desvio progressivo da parrhesia política – e de ao menos um conjunto de suas funções – para o campo da prática filosófica, constituindo em torno da 191 Ibid., p. 26. Ibid., p. 63. 193 Ibid. 192 69 filosofia, da prática e da vida filosófica um outro “foco”194 de parrhesia. Esquematicamente, visto que se trata antes de uma ênfase do que de um apresamento conceitual, Foucault designará este processo de inflexão como a passagem de uma “parrhesia política” a uma “parrhesia ética”195, própria à filosofia, e que encontrará em Sócrates seu patrono modelar. Foucault passará à abordagem desse processo de inflexão através da análise daquele que considera por excelência, o texto de certo modo prático da parrhesia. Em todo caso é o texto tido como o que representa da maneira mais direta a parrhesia de Sócrates. É o texto que se refere a essa situação em que era, para Sócrates, ao mesmo tempo mais necessário praticar a parrhesia e mais perigoso exercê-la, onde a parrhesia filosófica está em seu ponto de conflito mais agudo, conflito de vida ou de morte, com a eloquência político-judiciária 196 tradicional . Esse texto, é claro, é a Apologia de Sócrates, de Platão. Um trecho, notadamente, interessará a Foucault mais de perto nos marcos do curso de 1984 (no qual a inflexão de uma parrhesia política em parrhesia ética ou filosófica está em questão): trata-se do momento (31c – 33a) em que Sócrates se indaga e explica a seus concidadãos por que não “faz política”, isto é, por que se abstém de subir à tribuna e dizer publicamente o que pensa, participando diretamente das decisões políticas da cidade. Todavia, cremos que, a título de preâmbulo, valeria, antes de abordar este momento específico, determo-nos nas primeiras linhas da Apologia com vistas a melhor clarificar a singularidade da parrhesia socrática. Vejamos. No início da Apologia, Sócrates apresenta seu próprio discurso, em resposta ao dos acusadores (17a – 18a). Trata-se, com efeito, de assinalar que “de verdadeiro, a bem dizer, nada disseram”197. E, entretanto, essas pessoas que nada disseram de verdadeiro têm uma habilidade, a de falar “convincentemente”. Habilidade que chegaria ao cúmulo não apenas de persuadir os jurados, mas talvez o próprio Sócrates, a ponto de este não mais saber quem ele próprio é: “o que vocês, varões atenienses, sentiram com meus acusadores, não sei; mas até eu 194 Ver FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit., pp. 308-9. Cf. FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 63. 196 FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit. p. 282. 197 PLATÃO, Apologia de Sócrates, precedido de Sobre a piedade (Eutífron) e seguido de Sobre o dever (Críton). Introdução, tradução do grego e notas de André Malta. RJ, L&PM, 2011, p. 65. 195 70 mesmo, com eles, por pouco não me esqueci de mim, tão convincentemente falavam!”198. É contra essa imagem fabricada por seus adversários, contra esses “discursos beletrificados”, “bem ordenados nas expressões e nas palavras” que Sócrates vai se apresentar como sendo aquele que justamente diz a verdade e que diz sempre a verdade. Mas como diz a verdade? Certamente não nas formas oratórias tradicionais ou mesmo convencionais às Assembleias e aos tribunais, aliás, Sócrates não hesita em dizer que a linguagem do tribunal lhe é “simplesmente estranha”, chegando a comparar-se a um xénos, um “estrangeiro”, frente a estes “modos de linguagem”199. Mas por que a linguagem de Sócrates no tribunal é uma linguagem de xénos? Três razões podem ser elencadas. Primeiro, porque se trata da linguagem que utiliza todos os dias, na praça pública, no comércio ou em qualquer lugar200. Segundo, Sócrates se expressa com a série de palavras que se apresentam ao seu espírito, transmitindo, sem ornamentos ou “beletrificações”, o próprio movimento de seu pensamento, trata-se, afirmará, de “coisas ditas de improviso, com as palavras que me ocorrerem”201. Por fim, há no ato de enunciação de Sócrates uma coincidência entre o que acredita ser verdadeiro e o que diz: “acredito que são justas as coisas que digo”202. Falar a linguagem de todos os dias, tal como se apresenta, afirmar o que se acredita ser justo. Esse conjunto denota o contraste do franco-falar de Sócrates diante da linguagem de seus acusadores, de modo que, por conseguinte, podemos, de certa forma, correlativa e negativamente, sentir que nós [nos] orientamos para a proposição reversa. Se a habilidade em falar provoca o esquecimento de si, pois bem, a simplicidade [do] falar, a palavra sem aparato ou sem ornamento, a palavra diretamente verdadeira, a palavra de 203 parrhesia portanto nos levará à verdade de nós mesmos . 198 Ibid. “Pois a situação é esta: subo agora, com setenta anos de idade, pela primeira vez ao tribunal; logo, a linguagem daqui me é simplesmente estranha... E da mesma forma que vocês, caso eu fosse de fato um estrangeiro, certamente seriam condescendentes comigo, se eu falasse com aquele sotaque e aqueles modos em que fui criado, também agora peço isso a vocês, conforme me parece justo: que deixem de lado meus modos de linguagem (seriam talvez piores, talvez melhores), e examinem propriamente isto e nisto prestem atenção – se falo coisas justas ou não” (Ibid., p. 66). 200 “Peço e solicito isto a vocês, varões atenienses: se vocês me ouvirem me defender com os mesmos discursos que costumo proferir não só na ágora, junto às bancas (onde muitos de vocês têm me ouvido), mas também em outros lugares, não fiquem espantados nem façam tumulto por causa disso” (Ibid.). 201 Ibid. 202 Ibid. 203 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 64. 199 71 Temos aqui uma primeira síntese que indicaria como e porque Sócrates é parresiasta. Ora, a questão que poderia surgir nesse momento é justamente aquela relativa à participação de Sócrates nos assuntos da cidade. Pois sendo este sujeito que reivindica o papel de dizer a verdade, sendo aquele que é visto em praça pública interpelando seus concidadãos, convidando-os a cuidarem de si mesmos, “dirigindo[-se] a cada um em particular como um pai ou irmão mais velho, tentando persuadi-los a se preocupar com a virtude”204. Sendo este homem tão excelente e dedicado, poder-se-ia perguntar, por que Sócrates jamais subiu à tribuna, diante da Assembleia, para dar conselhos ao povo? É a esta objeção que o próprio Sócrates pretende responder ao reconhecer o insólito de sua postura: “talvez possa parecer estranho que em particular eu dê esses conselhos – enquanto vou circulando – e atue além da conta, mas que em público não me atreva a subir perante vocês, a maioria, e dar conselhos à cidade”205. Estranhamento tão mais tenaz visto que traz à tona, ainda que indiretamente, o papel político do parresiasta que se levanta, fala ao povo e participa das decisões da cidade, evocando, consequentemente, aquela cena das instituições democráticas que deveriam abrir espaço para a parrhesia. Ao ver de Foucault, “o que Sócrates evoca é essa figura possível do parresiasta político que, a despeito dos perigos, a despeito das ameaças, aceita, por ser do interesse da cidade, se levantar. E, expondo-se eventualmente à morte, diz a verdade”206. Poderíamos ter em vista aqui a figura de Péricles como expoente desta prática de parrhesia política. Porém, é esta prática de parrhesia que Sócrates não assumirá e da qual, inclusive, desviar-se-á. E por quê? Sócrates responde que a causa disso é aquilo que vocês têm me ouvido muitas vezes mencionar, em muitos lugares: que algo divino e numinoso me vem, [...] que quando vem é sempre para me dissuadir de fazer aquilo que estou prestes a fazer (jamais para me persuadir). É isso que se opõe a que eu faça política207. 204 PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., p. 91. Ibid., p. 92. 206 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit. p. 65. 207 PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., p. 92. 205 72 Logo a ele, Sócrates, que cuida dos cidadãos como um pai ou um irmão mais velho, a voz de seu daímon o desvia de se ocupar destes na cena da política. Mas o que significa essa interdição, por que essa voz o contém do exercício direto da parrhesia política? Neste ponto, Sócrates levanta considerações que reportam ao mau funcionamento, à crise da parrhesia, não apenas “democrática”, mas, de um modo geral, como veremos, da “parrhesia política”. Trata-se da dificuldade, ou mesmo da impossibilidade, de desempenhar plenamente e até as últimas consequências o papel parresiástico sem que o parresiasta seja ameaçado em sua própria vida: pois fiquem sabendo, varões atenienses: se eu há tempos tivesse tencionado fazer política, há tempos estaria morto e em nada teria beneficiado nem a vocês nem a mim mesmo. Mas não se aborreçam comigo porque digo a verdade! É que não há quem venha a se salvar, dentre os homens, depois de se opor genuinamente a vocês ou a qualquer outra maioria, impedindo que 208 muitas coisas injustas e ilegais ocorram na cidade . Não tenhamos dúvida, Sócrates explica o impeditivo do daímon de que não “faça política” considerando que, se o tivesse feito, teria perecido como todos os que generosamente querem impedir sua cidade de cometer injustiças e ilegalidades. A esta afirmação Sócrates acrescentará, a partir de sua própria experiência e de sua própria vida, dois exemplos, ou melhor, duas “grandes provas” do risco de vida que corre aquele que quer cuidar diretamente dos interesses da cidade com parrhesia e justiça. Exemplos e “provas” paradoxais, uma vez que, como apontará Foucault de antemão, são exemplos na medida em que são casos em que vemos as instituições políticas, sejam elas, aliás, democráticas, tirânicas ou oligárquicas, impedir ou querer impedir os que estão do lado da justiça e da legalidade de dizer a verdade. Mas esses exemplos são ao mesmo tempo refutações, porque neles vemos justamente que Sócrates, em dois casos bem precisos que cita, não aceitou essa chantagem e essa ameaça. Ele as afrontou e aceitou, em ambos os casos, correr o risco de morrer209. 208 209 Ibid. FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 67. 73 O primeiro caso passa-se por volta de 406 a. C., no momento em que Sócrates assumira o cargo rotativo de prítane, uma vez que cabia à sua tribo, a Antióquida, estar na presidência. E eis que nesse momento acaba de ser aberto um processo contra certos generais atenienses que, saindo vitoriosos da batalha das Arginusas, após o combate não recolheram os cadáveres e os homens lançados ao mar. Assim disposta a situação, propunha-se o julgamento “em bloco” dos dez generais, o que configurava um ato ilegal, posto que a lei ateniense não permitia esse gênero de responsabilidade coletiva210. Ora, dirá Sócrates, só eu, então, entre os presidentes me opus a que vocês [povo de Atenas] fizessem algo ilegal e votei contra. E embora os oradores [partidários da condenação dos generais] já estivessem preparados para me indiciar e prender – e vocês incentivassem e gritassem –, pensei que meu dever era antes me arriscar ao lado da lei e do justo do que ficar do lado de vocês (que não estavam decidindo coisas justas) por medo da prisão ou da morte211. “Prova”, portanto, de que no regime democrático, tal como se dispunha, corre-se um risco de morte querendo dizer a verdade em favor da justiça e da lei. Mas, por outro lado, ao mesmo tempo que mostra que corre realmente esse risco, Sócrates atesta que ele afrontou efetivamente esse perigo, desempenhando por um momento, dirá Foucault, “o papel típico do parresiasta político”: “ele teve a coragem de tomar a palavra, teve a coragem de dar uma opinião adversa, diante de uma Assembleia que procurava calá-lo, processá-lo, eventualmente puni-lo”212. No encargo de suas funções de cidadão democrático, Sócrates não hesita em manter firme sua palavra e convicção do que é justo, ainda que diante de uma situação de risco própria a uma democracia em crise. Tendo isso em consideração, analisemos o segundo exemplo ou “prova” que Sócrates propõe em sua Apologia. Como explica André Malta, em nota à Apologia, op. cit., p. 93: “A batalha nas ilhas Arginusas, em frente a Lesbos, ocorreu em 406 a. C., perto do fim da Guerra do Peloponeso. Os atenienses saíram vencedores, mas devido a uma tempestade seus generais não puderam retirar os mortos (e os que ainda estavam vivos) do mar. O povo, temendo uma vingança dos cadáveres insepultos, condenou os comandantes à morte. Seis foram executados. O procedimento foi depois considerado ilegal porque deveria ter havido um julgamento em separado para cada general”. 211 PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit. p. 93. 212 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 68. 210 74 O outro episódio trazido à lembrança dos atenienses por Sócrates decorre no período da tirania dos Trinta. Regime oligárquico marcado por sua violência – violência que será evocada pelo próprio filósofo (32d)213. É deste regime que Sócrates, juntamente a outras quatro pessoas, recebe a ordem de ir deter certo general rico e partidário da democracia, o salamínio Leon, acusado injustamente, para que morresse. Diante disso, os outros quatro partiram para Salamina e trouxeram Leon, enquanto eu, dirá Sócrates, me afastando, parti na direção de casa... E teria talvez morrido se o governo não tivesse sido rapidamente dissolvido214. Nessa circunstância, lembrará o filósofo a seus acusadores, não por palavras, mas por atos, [eu] também dessa vez mostrei que com a morte me preocupo (se não fosse algo um pouco grosseiro de dizer...) nem um pouco, enquanto que com não efetuar nada injusto nem ímpio, com isso me preocupo totalmente215. Esse ato de “resistência”216 de Sócrates que não se exprime por palavras – talvez porque, neste caso, mais do que no primeiro, as considerasse vãs perante um poder apoiado sobremaneira na força – não deixa de ser menos arriscado. Pelo contrário, o filósofo coloca a morte – e por duas vezes no trecho anteriormente citado – como possibilidade sempre presente na decorrência mesma de sua atitude. No marco das possíveis “tonalidades políticas” do julgamento de Sócrates aludida em nota precedente, a avaliação – negativa do começo ao fim, diga-se de passagem – do regime dos Trinta Tiranos pelo próprio Sócrates traz um contraponto a sua possível ligação com alguns de seus próceres, pois insistirá que jamais concordou com quem quer que seja a respeito de algo que fosse contra aquilo que considerasse justo, “nem mesmo contra nenhum desses que meus caluniadores dizem ter sido meus alunos”, ao que ajuntará que nunca foi “professor” de ninguém, embora aceitasse que o escutassem falar e que dialogassem com ele, seja o mais jovem ou mais velho, o rico e o pobre, sem, no entanto, a nenhum deles prometer ou ensinar lição alguma (Apologia, 33a-b). Se Crítias, Cármides ou Alcibíades agiram como agiram, não poderiam, portanto, tê-lo feito inspirados em alguma “doutrina” professada pelo filósofo. Pese em favor de Sócrates ainda que sua vida foi ameaçada por aqueles que se poderia acusar de terem sido seus “alunos”. 214 PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., p. 94. 215 Ibid., pp. 93-4. 216 Ao ver de Foucault, esta recusa específica de Sócrates dá “um exemplo de resistência filosófica a um poder político, exemplo de parrhesia que vai ser por muito tempo um modelo [de] atitude filosófica diante do poder” (FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit. p. 198). 213 75 Destarte, é no mínimo curioso que Sócrates sustente o argumento de que não “faz política” porque nesse caso morrerá. Como pode dizer isso ao passo que, por duas vezes, na democracia e na oligarquia, não apenas aceitou o risco de morrer para fazer valer a verdade e a justiça mas explica, ao longo da Apologia, que não tem medo de morrer? Isso nos leva a inferir que não foi rigorosamente por medo da morte que Sócrates renunciou à atividade política direta. Mas qual seria o motivo, então? Recordemos que o filósofo havia afirmado que “se eu há tempos tivesse tencionado fazer política, há tempos estaria morto e em nada teria beneficiado nem a vocês nem a mim mesmo”217. O que este trecho parece revelar após a análise dos momentos em que Sócrates realmente colocou sua vida em risco é que a privação de sua vida não seria um mal a evitar por si só, mas que a manutenção da mesma é a condição de realização de “benefícios” úteis a Sócrates e aos atenienses. Não é portanto o medo da morte, não é essa relação pessoal de Sócrates com a sua própria morte a razão pela qual ele não quis dizer a verdade na forma da veridicção política. Não é essa relação pessoal, mas uma relação de utilidade, uma relação consigo mesmo e com os atenienses, é essa relação útil, positiva e benéfica que é a razão pela qual a ameaça que os sistemas políticos fazem pesar sobre a verdade o impediu de dizer essa verdade na 218 forma política . O sinal demoníaco que desviou Sócrates da tribuna teve como efeito, e provavelmente tinha por função, proteger essa tarefa positiva e o encargo que Sócrates havia recebido. Qual é essa tarefa benéfica que deve ser protegida contra a morte? Retomando e ampliando análises desenvolvidas no curso de 6 e janeiro de 1982 (que encontram desenvolvimento em nosso capítulo 1), Foucault afirmará que o que enfim aparece como tema fundamental desse discurso corajoso e filosófico, como objetivo maior dessa parrhesia, desse dizer-a-verdade filosófico e corajoso, é o cuidado de si, articulado na relação com os deuses, na relação com a verdade e na relação com os outros219. 217 PLATÃO, Apologia de Sócrates, op. cit., p. 92. (Grifo nosso). FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 69. 219 Ibid., p. 78. 218 76 A parrhesia socrática é, assim, precisada tanto em sua íntima correlação ao cuidado de si – que, em última instância, constitui sua base – quanto ressaltada em sua dimensão de ato, de ato arriscado que, tendo recebido do deus essa tarefa, visa a inquietar e a transformar o modo de ser dos sujeitos, o éthos de seus concidadãos, a partir de uma ética do dizer-verdadeiro que tem uma relação intrínseca com a cidade. Dessa forma, a parrhesia filosófica ou “ética” apresenta-se como útil e benéfica à cidade, ao passo que assinala, como vimos, sua diferença com a “parrhesia política”. Ora, embora possamos compreender a utilidade e os benefícios dessa atividade filosófica e certa especificidade da mesma, por outro lado, não podemos deixar de levantar o questionamento a respeito menos da especificidade de cada modo de dizer-verdadeiro do que da relação que os coloca em comunicação. Pois se, efetivamente, pudemos tangenciar tal correlação ao abordar o momento de tensão paroxística em que Sócrates dá prova da verdade de sua vida num campo político hostil, isso não nos leva a deduzir, ao menos não no caso de Sócrates, que haja uma heterogeneidade impermeável marcando um “corte” definitivo entre a “ética” e a “política”. Aliás, Sócrates é ciente de que há uma dimensão intimamente política à ética do cuidado de si: o filósofo advertia Alcibíades de que, para se ocupar dos outros, é preciso saber se ocupar de si mesmo, saber governar-se para governar os outros, isto é, a ética do cuidado de si era apresentada como uma condição, um momento indispensável da atuação política220. No entanto, o fato de colocar a ética como momento indispensável da atuação política conduz Sócrates, o parresiasta por excelência, a uma situação, senão paradoxal, ao menos delicada quando confrontado diretamente com sua atualidade política: as exigências da tribuna, das estruturas do campo político são tais que quem se acha atrelado diretamente a ele corre o risco, como bem notou o filósofo, não apenas de se tornar sujeito de uma ação injusta, mas de não ser compreendido (e mesmo silenciado), visto que seu modo de falar é estranho ou mesmo “estrangeiro” (xénos) aos “modos de linguagem” da estrutura, da engrenagem do jogo político. Essa tensão entre o que poderíamos chamar de capacidade ética “pessoal” e a 220 Poder-se-ia notar ainda que, no início do diálogo Êutifron, ainda que ironicamente, Sócrates afirmará a seu interlocutor que Meleto (seu acusador) parece ser o único, em “matéria de política”, a começar por onde se deve, isto é, pelo “cuidado”: “Verdadeiramente, ele me parece ser o único que sabe em matéria de política começar por onde se deve; não tem ele razão de se ocupar [epimeleîsthai] primeiro dos jovens para torná-los excelentes?” (PLATON, Oeuvres Complètes – Tome I (Introduction, Hippias mineur, Alcibiade, Apologie de Socrate, Euthyphron, Criton). Texte établi et traduit par Maurice Croiset. Paris, Société d'édition “Les belles lettres”, 1970), p. 185. 77 impossibilidade “conjuntural” do exercício político direto pode ser esboçada a partir de uma passagem de Górgias (521 d) em que o filósofo afirmará ser um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais, senão eu [Sócrates], presentemente a pratica. Visto nunca entabular conversação com qualquer pessoa com o intuito de adquirir-lhe as boas graças e só ter em mira o que é 221 mais útil, não o mais agradável . Ao que ajunta que, entretanto, se fosse chamado ao tribunal não seria “de admirar se fosse condenado à morte”, tal é o modo em que se encontra o campo político de sua cidade. Nesse ínterim, duas “alternativas” de atuação – que não deixam de ser complementares – poderiam se apresentar ao filósofo: assumir a postura do “filósofo que volta seus olhos para uma realidade e se vê desconectado deste mundo” ou a do “filósofo que se apresenta trazendo já escrita a tábua da lei”222. Por mais sedutoras que (ainda) sejam as “alternativas” apresentadas, a postura socrática inovará ao seguir via distinta: buscando apartar-se de um discurso que embora “ornado” não tem compromisso com a verdade e com a justiça, a parrhesia ética socrática apresentar-se-á diante da “crise da parrhesia política” como um discurso que não diz a verdade na política e na “linguagem” da política, isto é, que não fala a linguagem do discurso político instituído, que não opera no campo de sua semântica própria, atado à sua operacionalidade, tornando-se estranha, portanto, a uma filosofia que se propusesse a dizer ou a prescrever a verdade da política, na política. A parrhesia ética de Sócrates, ao contrário, diz a verdade diante da política, diz a verdade diante do poder e, por vezes, apesar e mesmo contra o poder, seja qual for o regime político ou o governo em vigor. É, portanto, na diferença ética de seu dizer-verdadeiro que a filosofia se relaciona com o campo político, seja dirigindo-se ao éthos dos cidadãos – ou, como ocorrerá posteriormente, daqueles que governam – com o fito de suscitar uma relação a si que possa promover certa forma de ação, de engajamento político que seja benéfico à cidade; seja, ainda, enfrentando os PLATÃO. Protágoras – Górgias – Fédon. Tradução direta do grego Carlos Alberto Nunes. Belém, EDUFPA, 2002, pp. 237-8. 222 FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit., p. 232 (nota). 221 78 perigos próprios do campo político, no qual faz a prova de sua verdade, visto que faz a prova de sua existência enquanto prática de vida que não se reduz a um mero discurso, mas que se manifesta enquanto coragem de dizer a verdade numa situação de risco que pode custar a própria vida do filósofo. Nessas circunstâncias, Foucault chegará a assegurar que a realidade, a prova pela qual a filosofia vai se manifestar como real não é o próprio logos, não é o jogo intrínseco do próprio logos. A realidade, a prova pela qual, através da qual a veridicção filosófica vai se manifestar como real é o fato de que ela se dirige, que ela pode se dirigir, que ela tem a coragem de se dirigir a quem exerce o poder223. Contudo, o fato de que a filosofia manifeste a sua realidade no ato de dirigir sua verdade a quem exerce o poder não dirime ainda a totalidade das possíveis ambiguidades inerentes a sua postura: na medida em que encontra seu real ao deparar-se com a prática política – e, deste modo, estabelece com ela dada relação –, a sua própria prática se distingue claramente do fazer político. Abre-se a possibilidade de um dizer ético que, ainda que dirija a palavra à política, não mais se imiscui em seu jogo próprio, abrindo assim, senão a necessidade, ao menos a possibilidade de uma escansão rígida entre “ética” e “política”. Escansão que, no entanto, pode “retornar” ao campo político como uma espécie de “aplicação” da ética, sobretudo se o filósofo crê que pode ou deve dizer à política a verdade da política, fundamentado em preceitos éticos que o tornariam habilitado a pronunciar uma “verdade universal”, um conhecimento pronto e definitivo, estabelecendo assim uma ligação sem mediações entre a verdade ético-filosófica e sua aplicação na polis como verdade da polis que toma a forma de lei. Atento a esta possibilidade de encadeamento, Foucault afirma tratarse, no mínimo, de uma postura equivocada: A coexistência e a correlação da prática política e do dizer-a-verdade filosófico, essa correlação nunca deve ser concebida como uma coincidência adquirida ou como uma coincidência a adquirir. Creio que a infelicidade e os equívocos das relações entre filosofia e política se devem e sem dúvida se deveram ao fato de que a veridicção filosófica às vezes quis se pensar..., ou ainda, que lhe fizeram as exigências que eram formuladas nos termos de uma 223 Ibid., p. 208. 79 coincidência com os conteúdos da racionalidade política, e que inversamente os conteúdos de uma racionalidade política quiseram se autorizar por se constituírem como uma doutrina filosófica, ou a partir de uma doutrina 224 filosófica . Dessa forma, acrescentará Foucault, a correlação entre a prática política e o dizer-a-verdade filosófico só se torna viável se pautada numa “exterioridade relativa”225. “Exterioridade relativa” que, por um lado, torna sua relação necessária, ao passo que sublinha a sua irredutibilidade. Ao ver de Foucault, não seria outra a postura socrática 226, visto que o filósofo ateniense apresenta como criação diante do quadro crítico de sua atualidade um franco-falar filosófico que coloca em cena a “relação necessária”227 entre três dimensões ou polos: tratase, como evidenciará Foucault, da interconexão entre alétheia, politeía e éthos. É esta conexão que faz com que a verdade e sua enunciação não possam ser pensadas sem a articulação à questão de suas condições políticas, isto é, “das estruturas políticas no interior das quais esse dizer-a-verdade terá o direito, a liberdade e o dever de se pronunciar”228, e que não possam ser tomadas tampouco sem sua articulação às formas de diferenciação ética que abrem ao sujeito o acesso a essa verdade. Correlação que faz com que não se possa tampouco colocar a questão do éthos sem articulá-la à “verdade e à forma de acesso à verdade que poderá formar esse éthos”, tal como às “estruturas políticas no interior das quais esse éthos poderá afirmar sua singularidade”229. E, por fim, relação necessária que não coloca a questão da politeía, da instituição política, da organização e da repartição das relações de poder, sem se colocar ao mesmo tempo “a questão da verdade e do discurso verdadeiro a partir do qual poderão ser definidas essas relações de poder e sua organização”, bem como “a questão do éthos, isto é, da diferenciação ética a que essas estruturas políticas podem e devem dar lugar”230. 224 Ibid., p. 262. Ibid., p. 319. 226 Mantendo a coerência com o exposto no capítulo 1, vale ressaltar que, para Foucault, Sócrates não se manifesta como um sujeito do conhecimento verdadeiro, mas como o sujeito do cuidado de si cujo dizerverdadeiro corajoso refere-se antes à harmonia entre seus pensamentos, palavras e atos, a seu modo de vida, a seu éthos. Daí que possamos afirmar que a filosofia de Sócrates não é, na visão foucaultiana, uma filosofia da verdade, mas do dizer-verdadeiro. 227 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 59. 228 Ibid. 229 Ibid., p. 60. 230 Ibid., pp. 59-60. 225 80 Essa relação necessária própria à atitude e ao discurso filosófico, “obstinadamente e sempre recomeçando”231, se desvia tanto da promessa de uma coincidência entre os três polos, quanto de um discurso fundamental que pretendesse dizer a unidade fundadora dos mesmos. Tampouco há heterogeneidade e separação estrita entre alétheia, politéia e éthos. Foucault notará antes que “são três polos ao mesmo tempo irredutíveis e irredutivelmente ligados uns aos outros”232. Irredutíveis por exemplo, ao discurso científico, que, restringindo-se ao âmbito da alétheia, buscaria definir as condições de verdade, suas formas e regras, estruturadas em certo campo específico. Irredutível também ao discurso estritamente político ou institucional que, limitando-se ao domínio da politeía, se contentaria em colocar a questão das formas de governo ou do melhor sistema político. Irredutível ainda ao discurso exclusivamente moral que, encerrando-se no quadro do éthos, contentar-se-ia com a prescrição de princípios ou códigos de conduta. Ao estabelecer tal correlação e irredutibilidade, Sócrates reinventa a possibilidade do dizer-verdadeiro conjugado à política e à diferenciação ética dos sujeitos. De tal modo que, em vez de se reclusar em sua “individualidade” ou depositar suas expectativas num “contrato” selado de uma vez por todas entre “indivíduos-substância”, Sócrates é apresentado como aquele que se engaja na formação de sujeitos éticos (a começar por si), capazes do enunciar a verdade e do fazer político: Sócrates manifesta-se como este sujeito que não pode ser pensado sem que haja uma relação ao mesmo tempo imprescindível e autônoma entre seu modo de ser e o modo de ser da cidade, seu franco-falar e o regime de discursos da polis, entre sua conduta pautada no cuidado de si e dos outros e o governo da cidade. Constituindo-se nas malhas dessa trama, caberia ainda apontar que o modo de ser parresiástico de Sócrates não deixou de ser lido como uma forma, um “estilo de vida” que se dá na efetividade da existência concreta do filósofo e que estabelece um vínculo entre o “cuidado, sem dúvida arcaico, antigo, tradicional, na cultura grega, de uma existência bela e a preocupação com o dizer-a-verdade”233. Coragem do dizer-verdadeiro que se configura, portanto, como uma “estética da existência” que, encontrando na própria vida, no próprio bíos do parresiasta um objeto de elaboração, manifesta-se como a escolha, o cuidado, a busca por 231 Ibid., p. 61. Ibid., p. 59. 233 Ibid., p. 142. 232 81 uma “verdadeira vida” – princípio que, por sua vez, encontrará nos cínicos sua figura paradigmática234. Porém, Foucault nota que não é apenas na tradição cínica que Sócrates encontrará seus herdeiros. Na verdade, fato surpreendente e de certa forma previsível, Foucault reconhecerá no discurso e na postura socrática o germe da própria identidade da filosofia desde os gregos até a modernidade. Nas suas palavras, alétheia, politeía, éthos: é a irredutibilidade essencial destes três polos, e é sua relação necessária e mútua, é a estrutura de chamamento de um ao outro e do outro ao um que, creio, sustentou a própria existência de todo o discurso filosófico desde a Grécia até nós235. Mais uma vez (posto não ser a primeira)236, Foucault põe em questão os esquemas de leitura habituais da história da filosofia237 ao depositar na reatualização da estrutura parresiástica, da coragem da verdade, uma possível “identidade”238 do “modo de ser da filosofia antiga e moderna”239 que vai do “cuida-te de ti mesmo” socrático ao Sapere aude! kantiano, chegando ao próprio Foucault. Dessa forma, ao apresentar uma concepção do fazer filosófico, ou melhor, um “estilo de existência” parresiástico que, mantendo com seu presente uma relação necessária e ao 234 Com efeito, é a partir da leitura do Laques, de Platão (aula de 29 de fevereiro de 1984), que Foucault passa a enfocar a relação de um dizer-verdadeiro que sustenta um estilo de existência, ou ainda, de um dizer-verdadeiro que se manifesta na trama visível da existência, dedicando, na sequência, a quase totalidade de seu curso à análise da parrhesia cínica e seus desdobramentos. Conjunto que não será diretamente abordado por nós nas margens deste escrito. Recomenda-de, entretanto, a este respeito, ver ADORNO, F. P. Le style du philosophe – Foucault et le dire vrai. Paris, Kimé, 1996. Ver também os úteis apontamentos de GROS, F. “Situação de curso”. In. FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., pp. 310-3 e, ainda, do mesmo autor, GROS, F. “A parrhesia em Foucault”. In: ______. (org.) Foucault: A coragem da verdade. Trad. de Marcos Marcionilo. SP, Parábola Editorial, 2004. 235 FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 59. 236 Cf. capítulo 1. 237 “Em todo caso, era para sugerir a vocês uma história da filosofia que não se alinhasse a nenhum dos dois esquemas que atualmente prevalecem com tanta frequência, o de uma história da filosofia que buscaria sua origem radical em algo como um esquecimento [tradição heideggeriana], ou ainda o outro esquema, que consistiria em encarar a história da filosofia como progresso ou avatar ou desenvolvimento de uma racionalidade [tradição hegeliana]” (FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit., pp. 317-8). As intervenções entre colchetes são nossas. 238 Esta “identidade” deve ser compreendida com as devidas aspas, posto que, em se tratando de um trabalho “obstinadamente e sempre recomeçando”, a correlação-irredutibilidade entre alétheia, politeía e éthos só se torna possível num processo de reatualização que supõe uma relação inerente à atualidade de seu pertencimento. 239 Cf. FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit., p. 321. 82 mesmo tempo irredutível aos seus regimes éticos, políticos e epistêmicos, Foucault permite entrever, na tessitura dessa distância, o despontar de uma atitude de crítica como atitude filosófica por excelência. Atitude de crítica que não deixou de se expressar por via do questionamento das instituições e das representações existentes, num questionamento sem fim, que, visando à abertura constante a um logos verdadeiro, corajoso e autônomo, recusa-se a fixar-se em moldes tradicionais ou na aceitação sofisticada de autoridades reconhecidas que não sejam capazes de prestar conta ou razão de suas enunciações e atos240. Essa concepção de filosofia como atitude de crítica permanente, além de estabelecer uma ponte entre a filosofia antiga e filosofia moderna, habilitará Foucault a repensar a própria noção de modernidade e de filosofia moderna: mais do que tomá-la como determinado período da história (tal como o fizera, ainda que indiretamente, por exemplo, ao abordar a “Idade Moderna”, própria ao “momento cartesiano”, no capítulo 1), doravante, visando Kant e Baudelaire como referências primordiais, a noção de modernidade desdobrar-se-á, na tessitura de sua polissemia, numa atitude em face do presente que articula conhecimento, ética, política e estética na formação de um modo de ser histórico do(s) sujeito(s) pautado num fazer-se. Expediente que, rearticulando a questão do sujeito no contexto da filosofia e da história, permitirá a Foucault inscrever sua própria obra na senda de uma tradição que tem como “éthos filosófico” a “crítica permanente de nosso ser histórico”. Essa tradição não é outra senão aquela de uma “atitude de modernidade” que, passando por Kant e Baudelaire, não deixará de reavivar as tópicas do cuidado de si e da coragem da verdade, articuladas agora numa postura de crítica do presente. Esta postura estaria de acordo com a própria concepção e vivência daquilo que Foucault entendia ser “o papel do intelectual”. E embora nosso objetivo não seja o de uma enumeração ou debate das declarações ou intervenções do autor – o que, de resto já foi feito com melhor manejo em diversos trabalhos –, acreditamos não deixar de ser útil relembrar que Foucault jamais encarnou o papel daquele que, portador de uma verdade universal, põe-se a dizer aos demais o que devem fazer. Um pouco mais modesto, e nem por isso menos atuante, Foucault compreendia seu trabalho intelectual como uma postura crítica constante em face de si mesmo e do presente que encontra em seu vértice o exercício de seu “papel de cidadão”: “o papel de um intelectual não é de dizer aos outros o que têm de fazer. [...] O trabalho de um intelectual não é modelar a vontade política dos outros; é, através das análises que ele faz dos domínios que são seus, reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e instituições e a partir desta reproblematização (onde ele desempenha seu papel específico de intelectual) participar da formação de uma vontade política (onde ele tem seu papel de cidadão a desempenhar). (FOUCAULT, M. “Le souci de la vérité”, op. cit., pp. 1495-6). 240 83 Capítulo 3 A questão filosófica da modernidade “É preciso escolher: descansar ou ser livre” (Tucídides) 3.1. A modernidade em questão “Pós-estruturalismo: moderno ou pós-moderno?”. É com esta interrogação que Andreas Huyssen abre a penúltima parte de seu artigo, “Mapeando o pós-moderno” (1984)241. Ora, a presença mesma da questão como ponto de partida deve ser compreendida em, ao menos, dois pontos. Primeiro, enquanto constatação de “fato”, pois, como afirma o autor, “no início dos anos 80, a constelação modernismo/pós-modernismo nas artes e a constelação modernidade/pós-modernidade na teoria social tinham já se transformado em um dos mais disputados campos da vida intelectual nas sociedades ocidentais”242. Desse modo, vale interpelar os meandros deste quadro teórico naquilo que ele diz sobre si mesmo, dando voz e situando histórica e politicamente os dados e discursos em questão. Trata-se de apresentar o campo de discussão e suas polêmicas. Em segundo lugar, já a título programático, ao lançar a questão, Huyssen visa tomar um posicionamento diante deste quadro. Sua proposta é a de subverter o consenso edificado desde os anos 1970 nos Estados Unidos segundo o qual, “se o pós-modernismo representa a vanguarda nas artes, o pós-estruturalismo deve ser seu equivalente na 'teoria crítica'”243. A seu ver, os defensores desta postura partem do equívoco de que a mera simultaneidade de formações discursivas e críticas seria motivo para uma sobreposição: HUYSSEN, A. “Mapeando o pós-moderno”. Trad. de Carlos A. de C. Moreno. In: HELOÍSA BUARQUE DE HOLANDA (Org.). Pós-modernismo e política. RJ, Rocco, 1991, p. 15-80. 242 Ibid., p. 25. 243 Ibid., p. 58. 241 84 Assim como a arte e a literatura pós-modernas têm tomado o lugar de um modernismo anterior como a tendência mais expressiva de nossa época, a crítica pós-estruturalista decididamente tem ultrapassado os preceitos de seu principal antecessor, a Nova Crítica. E assim como os novos críticos defenderam o modernismo, o pós-estruturalismo – uma das maiores forças intelectuais dos anos 70 – deve, de alguma forma, ser aliado à arte e à 244 literatura de seu próprio tempo, isto é, ao pós-modernismo . A leitura que nos proporá Huyssen, por seu lado, terá como foco obstar esta redução analítica que torna, nesta conjuntura, homólogas a vanguarda na “teoria” e a vanguarda na literatura e nas artes, tratando o “pós-estruturalismo” como se este fosse a “incorporação teórica” ou um “sintoma”245 do “pós-moderno”. Se há de fato alguma relação entre o assim chamado pósestruturalismo e o dito pós-modernismo, esta relação é muito mais complexa do que puderam prever os críticos americanos. No entanto, esta confusão, ou melhor, esta “fusão fácil”, não é privilégio dos críticos americanos – “neoconservadores”246 ou não. Habermas, por sua vez, em contexto diverso, havia já há algum tempo sepultado na cova comum do “pós-moderno” os “autores franceses” do “pós-estruturalismo”. Em 1983247, desenvolvendo alguns temas que seriam mais bem 244 Ibid., p. 59. Mais próximo neste ponto de Habermas do que de Huyssen, Frederic Jameson defende que o “pósestruturalismo” (que ele chama de “teoria”) é uma espécie de “sintoma cultural” (leia-se social e econômico) da “pós-modernidade” típica do alto-capitalismo: “outro indício completamente diverso da dissolução dessas velhas categorias de gênero e linguagem pode se encontrar naquilo que, às vezes, se denomina teoria contemporânea. Na geração passada ainda havia o rigor de linguagem da filosofia profissional – os grandes sistemas de Sartre, ou dos fenomenólogos, a obra de Wittgenstein, a filosofia analítica ou a filosofia da linguagem –, ao lado da qual se podia distinguir o discurso inteiramente diferente das demais disciplinas universitárias – da ciência política, por exemplo, da sociologia ou da crítica literária. Hoje, se pratica mais e mais uma espécie de escrita simplesmente denominada 'teoria' que, ao mesmo tempo, é todas e nenhuma dessas matérias. Esta nova espécie de linguagem, associada em geral à teoria francesa, tem se difundido amplamente, marcando o fim da filosofia como tal. Como, por exemplo, deve ser chamada a obra de Michel Foucault – filosofia, história, teoria social ou ciência política? É 'indecidível', como se diz nos nossos dias; o que estou insinuando é que esse tal 'discurso teórico' pode perfeitamente ser incluído entre as manifestações da pós-modernidade.” (JAMESON, F. “Pós-modernidade e sociedade de consumo”. Trad. Vinícius Dantas. In: Novos Estudos Cebrap. SP, nº 12, jun. 85, p. 2). Ora, poupemos esforços de uma inviável discussão mais profunda desta tese e ensaiemos um exercício: lá onde se encontra grafado “Michel Foucault”, substituamos por “Theodor Adorno” ou “Walter Benjamin”, teóricos do modernismo por excelência. Seria demasiado para o esforço de sistematicidade histórico-econômico-cultural de Jameson? 246 “Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o declínio dos anos 60 foi acompanhado pela ascensão do neoconservadorismo, e prontamente emergiu uma nova constelação caracterizada pelos termos pós-modernismo e neoconservadorismo. Embora o relacionamento entre estes dois termos nunca tenha sido suficientemente analisado, a esquerda decidiu que eles eram compatíveis ou mesmo idênticos, argumentando que o pósmodernismo era o tipo de arte afirmativa que poderia coexistir alegremente com o neoconservadorismo político e cultural”. (HUYSSEN, A., op. cit., p. 47-48). 247 Trata-se de uma sinopse datilografa distribuída no Collège de France na manhã da primeira de uma série de conferências que viriam a constituir em parte O discurso filosófico da modernidade. Cf. ERIBON, D. Michel Foucault e seus contemporâneos. Trad. de Lucy Magalhães. RJ, Jorge Zahar Editor, 1996, p. 169-170. 245 85 explicitados em O discurso filosófico da modernidade (1984), o filósofo alemão atacava as correntes que criticam o modernismo, tendo como alvo o “pós-modernismo” e a vontade, em certos pensadores franceses principalmente, de “ultrapassar” a “modernidade”, isto é, “o racionalismo ocidental que, desde o fim do século XVIII foi o horizonte no qual a idade moderna se compreendeu a si mesma”. Habermas também ataca as tentativas, qualificadas de “anarquizantes”, que desejariam submeter a razão a uma crítica mais radical ainda, para abalar suas “muralhas de ferro”. Lança por fim uma condenação definitiva contra Nietzsche e o “nietzschianismo” (entenda-se aqui sobretudo “nietzschianismo francês”), que não pode ter outro destino senão o do “irracionalismo”. Entre “irracionalismo” e “delírio estetizante”248, armar-se-ia, pois, o complô francês contra o “projeto inacabado da modernidade” e seu potencial emancipatório. Fato que só poderia ser considerado por Habermas como um “conservadorismo”, ou ainda, um “jovem conservadorismo”249, que encontraria na “crítica impiedosa da modernidade própria a Foucault”250 um de seus pontos viscerais. Seria pouco profícuo reverter a Habermas ou mesmo discutir os epítetos duvidosamente filosóficos de “irracionalista” ou “conservador”. Afinal, como já bem lembrava Bento Prado Júnior: Convenhamos que tal coincidência no combate ao irracionalismo, visando, num caso, ao que se considera direitismo e, no outro, esquerdismo, põe em xeque o uso heurístico, o interesse teórico de pseudonoções como a de irracionalismo. Alguém já se proclamou irracionalista sinceramente ou sem ironia? Ou, lembrando Émile Bréhier, que se referia, na ocasião, ao libertinismo, não poderíamos dizer, “on est toujours l'irrationalisme de quelq'un”?251. 248 É sobretudo em sua leitura de Foucault (contemplado com dois capítulos em seu Discurso filosófico da modernidade) que este expediente de “crítica” vem à tona: “é difícil esclarecer a dramática história da recepção de Foucault e a sua reputação de iconoclasta, se a fria fachada desse historicismo radical não encobrisse as paixões do modernismo estético.” (HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Trad. de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. SP, Martins Fontes, 2000, p. 386). 249 Habermas distinguia três tendências de crítica ao modernismo: o “pré-modernismo dos velhos conservadores”, “o anti-modernismo dos jovens conservadores” e o “pós-modernismo dos neoconservadores”. Definia assim os “jovens conservadores”: “eles alegam posições da modernidade para fundar um antimodernismo implacável. Atribuem às forças espontâneas da imaginação, da experiência subjetiva, da afetividade a um fundo arcaico longínquo e opõem de modo maniqueísta à razão instrumental um princípio que só pode ser invocado, quer se trate da vontade de potência, da soberania do ser ou de uma força poética dionisíaca.” […] “Na França, essa tendência vai de Georges Bataille a Derrida, passando por Foucault. Em todos os seus representantes sopra, evidentemente, o espírito de Nietzsche, redescoberto nos anos 70.” (HABERMAS, J. “La modernité: un projet inachevé”. In: Critique, outubro de 1981, nº 413, p. 966). 250 HABERMAS, J. “Le présent pour cible”. In: COUZENS HOY, D. (éd) Michel Foucault – lectures critiques (traduit de l'anglais par Jacques Colson). Bruxelles, De Boeck-Wesmael, 1989, p. 124. 251 PRADO JÚNIOR, B. “Erro, ilusão, loucura”. In: Erro, ilusão, loucura – Ensaios. SP, Editora 34, 2004, p. 26. 86 Assim, desviando de pseudonoções e de falsos esquematismos, talvez seja mais esclarecedor destacar, como o faz Didier Eribon, o “fechamento de Habermas dentro do contexto alemão, no qual toda referência a Nietzsche é considerada como suspeita e sempre atribuída às correntes conservadoras”252. Ou ainda, de modo intrinsecamente ligado a este fechamento, enfocar a leitura que o alemão põe em cena ao abordar o “pós-modernismo”: beirando a tábula rasa, Habermas entende o sentido do prefixo “pós” como uma negação que visaria se desfazer do passado “moderno” num “gesto de despedida apressada”253, podendo marcar apenas, desta maneira, uma “oposição” à modernidade, um “adeus” e um “escapismo” frente ao “projeto moderno”. Por fim, cabe notar a artificialidade, não apenas cronológica254, mas também teórica, que coloca num corpo amorfo e estático255 o “nietzscheísmo francês dos anos 70”. Contudo, nessa conjuntura, uma questão e sobretudo uma “ignorância” do próprio Foucault ao ser interrogado sobre a crítica de Habermas à corrente “pós-moderna” seja mais esclarecedora: “O que é que se chama pós-modernidade? Não estou a par”256, ao que complementa: “Não vejo, entre os que se chamam pós-modernos ou pós-estruturalistas, que tipo de problemas lhes seria comum”257. Seria, então, o debate pós-moderno/pósestruturalismo um artefato fabricado pelo contexto intelectual anglo-saxão? Artefato cuja natureza estratégica consistiria menos na elaboração de um conceito descritivo (que visaria a distinguir modelos e épocas), do que na imposição de um conceito valorativo que prefere relegar à exterioridade do “irracional” ou do “irrepresentável” aquilo que foge a determinados parâmetros de julgamento? 252 ERIBON, D. Michel Foucault e seus contemporâneos, op. cit., p. 171. “Esta exposição oferece oportunidade para refletir sobre o sentido de um prefixo, pois toma partido, discretamente, no debate em torno do pós-moderno ou do posterior ao moderno na arquitetura. Com este 'pós' querem os protagonistas se desfazer de um passado; à atualidade não podem dar ainda um novo nome, na medida em que para os reconhecíveis problemas do futuro não temos até agora nenhuma resposta. Fórmulas como 'pósilustração' ou 'pós-história' desempenham o mesmo papel. Gestos de despedida apressada como estes são adequados aos períodos de transição”. (HABERMAS, J. “Arquitetura moderna e pós moderna”. Trad. de Carlos Eduardo Jordão Machado. In: Novos Estudos Cebrap, nº 18, setembro de 1987, p. 115). 254 Bataille, citado por Habermas como um dos epígonos do nietzscheísmo dos anos 70, faleceu em 1962. Foucault, por sua vez, publica seu primeiro livro célebre, a História da Loucura, em 1961. Bem antes, portanto, do “desencanto” e da “síndrome dos renegados de esquerda” dos anos 70, ou “pós-68”, como soem dizer alguns. 255 Note-se que se algumas das críticas de Habermas poderiam, se bem direcionadas, adequar-se, por exemplo, ao Foucault de História da loucura (a acusação de procura de “uma força poética dionisíaca”, por exemplo), é fato também que o próprio filósofo francês tentou se desvencilhar de concepções desta ordem já no prefácio à segunda edição do mesmo livro e no decorrer de toda sua obra. 256 FOUCAULT, M. “Structuralism and Post-structuralism”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, nº 330, p. 1265. 257 Ibid., p. 1266. 253 87 Seja como for, Andreas Huyssen parece seguir via distinta. Mais do que matizar ou evitar esta sobreposição apressada, ele coloca em cena um novo quadro ao afirmar que “tanto na França quanto nos Estados Unidos o pós-estruturalismo está mais próximo do modernismo do que geralmente supõem os defensores do pós-modernismo”258. Mas de que espécie de proximidade estaríamos tratando? Responde Huyssen: Mais do que oferecer uma teoria da pós-modernidade e desenvolver uma análise da cultura contemporânea, a teoria francesa nos fornece antes de tudo uma arqueologia da modernidade, uma teoria do modernismo no momento 259 de sua exaustão . Bastaria conferir os papéis referenciais dos autores modernistas clássicos no campo do pósestruturalismo para se convencer de tal afirmação: Flaubert, Proust e Bataille em Barthes; Nietzsche e Heidegger, Mallarmé e Artaud em Derrida; Nietzsche, Magritte e Bataille em Foucault; Mallarmé e Lautréamont, Joyce e Artaud em Kristeva; Freud em Lacan; Brecht em Althusser e Macherrey, e assim por diante ad infinitum260. Resumindo, seja nos EUA, seja na França, “o pós-estruturalismo oferece uma teoria do modernismo e não uma teoria do pós-moderno”261. Esta afirmação, que pode parecer insólita – dado o tão persistente quanto pernicioso hábito intelectual de filiação dos maîtres penseurs franceses ao pós-moderno –, constituirá, todavia, o pano de fundo deste capítulo. O quadro de inserção no qual buscaremos tratar um enjeu mais restrito, embora pleno de sutilezas: acreditamos que elucidar a leitura que Foucault faz de Kant e Baudelaire num momento nevrálgico de sua obra262 é proveitoso não apenas no 258 HUYSSEN, A., op. cit., p. 60. Ibid., p. 62. 260 Ibid. 261 Ibid., p. 70. 262 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, nº 339, pp. 1381-1397. Versão publicada, primeiramente, numa coletânea de textos criteriosamente escolhidos por Foucault, sob o título “What is Enlightenment?”. In: RABINOW, P. (ed.), The Foucault Reader. NY, Pantheon Books, 1984, pp. 32-50. Esta versão foi publicada em francês como um inédito na Magazine littéraire, nº 309, abril de 1993, sobre “Kant et la modernité”. Antes desta versão americana, Foucault havia consagrado o primeiro curso do ano de 1983 no Collège de France a uma longa explicação do 259 88 sentido de “explicar Foucault” ou de “explicar” Kant ou Baudelaire, mas também, como num retrato em negativo, pela possibilidade de reatualização e compreensão da tradição moderna em seu encontro com o dito “pós-estruturalismo”. 3.2. A atitude de modernidade Eu sei que falam frequentemente da modernidade como de uma época ou em todo caso como um conjunto de traços característicos de uma época; situam-na sobre um calendário, onde ela seria precedida de uma prémodernidade, mais ou menos ingênua ou arcaica, e seguida de uma inquietante “pós-modernidade”. E se interrogam então para saber se a modernidade constitui o prosseguimento da Aufklärung e seu desenvolvimento, ou se é preciso ver aí uma ruptura ou um desvio em 263 relação aos princípios fundamentais do século XVIII . Ora, esse procedimento padrão que coloca a questão da modernidade enquanto fidelidade (ou não) a um corpo doutrinal específico mais ou menos situado no século XVIII e que tem como fundamento as expectativas do progresso da verdade e da liberdade como frutos da razão é, para Foucault, uma falsa questão. Falsa questão que nos leva facilmente a incorrer na “alternativa simplista e autoritária” que o autor nomeia “chantagem” à Aufklärung, qual seja, ou se aceita a Aufklärung e continua-se na tradição de seu racionalismo, ou se critica a Aufklärung tentando escapar a estes princípios de racionalidade. Posição que é de antemão considerada por estes ou aqueles como “louvável” ou “condenável”264. Para o pensador francês, por sua vez, a questão da modernidade se estende num terreno muito mais amplo e multifacetado, terreno este que não se deixa exaurir por um mero voto “a favor” ou “contra” a Aufklärung. opúsculo kantiano “Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento?”. Esta versão francesa foi igualmente publicada, com algumas alterações, nos Dits et écrits, nº 351, pp. 1498-1507. Daremos privilégio de análise à versão americana, donde constam as referências à Baudelaire, ausentes na versão francesa. 263 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, nº 339, p. 1387. 264 “[...] Isto não quer dizer que é preciso ser contra ou a favor da Aufklärung. Isto quer dizer na verdade que é preciso recusar tudo o que se apresentaria sob a forma de uma alternativa simplista e autoritária: ou você aceita a Aufklärung e continua na tradição de seu racionalismo (o que é por alguns considerado como positivo e por outros como uma reprovação); ou você critica a Aufklärung e você tenta então escapar a estes princípios de racionalidade (o que pode ainda ser tomado de modo positivo ou negativo). E não é sair desta chantagem introduzir nuances 'dialéticas' procurando determinar o que pôde haver de bom e de mau na Aufklärung”. (Ibid., pp. 1390-1391). 89 Nessa perspectiva, pensar a questão das Luzes, compreender seu sentido e sua atualidade, nada tem que ver com uma interpretação que situe como ponto de partida aquele da modernidade como um “projeto inacabado”. Nada tem que ver com a defesa e realização de um projeto moral e político do qual a contemporaneidade seria como que a herdeira e guardiã. A questão das Luzes, para Foucault, passa longe do simples enunciado de uma proposição moral racionalista: o “fio que pode nos ligar deste modo à Aufklärung não é a fidelidade a elementos de doutrina”265. O que implica dizer que a modernidade não nos fornece uma comodidade programática e que, portanto, pensar em termos estritos de “avanços” e “retrocessos” em sua efetivação não é o melhor caminho para colocar a questão do presente. Sendo assim, qual seria o estatuto desse fio de conexão à Aufklärung que nos indica Foucault? É a Kant que este recorre, antes de se remeter a Baudelaire, na tentativa de reatualizar e desobstruir o sentido da questão lançada há dois séculos, “com tanta imprudência”: Was ist Aufklärung?. Este texto aparentemente menor de Kant266 inaugurou uma questão que a filosofia moderna não foi capaz de responder, e da qual tampouco chegou a se livrar. Ele definiu certa maneira de filosofar que continua a nos perseguir. Maneira de filosofar que Foucault define como uma atitude, melhor, como uma “atitude de modernidade” que tem no trabalho incessante de retomada crítica com o presente o seu éthos. É o que compreendemos ao completar a citação anteriormente mobilizada: O fio que pode nos ligar deste modo à Aufklärung não é a fidelidade a elementos de doutrina, mas antes a reativação permanente de uma atitude; isto é, de um éthos filosófico que poderíamos caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico267. Nestes marcos, portanto, a modernidade não é visada apenas como pertencimento a uma época, mas antes como atitude. Posto isto, cumpre deslindar o que seja esta atitude que caracteriza a modernidade ou, se quisermos, a “atitude de modernidade”. Interrogação que Foucault colocará em marcha 265 Ibid., p. 1390. KANT, I. “Resposta à pergunta: Que é 'Esclarecimento'?”. Trad. de Floriano de Souza Fernandes. In: Textos seletos. RJ, Vozes, 1985. 267 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, n° 339, op. cit., p. 1390. 266 90 através do encontro à primeira vista incongruente do artigo de Kant ao estudo de Baudelaire sobre “O pintor da vida moderna”268. Acompanhemos a démarche foucaultiana. 3.2.1. Kant: o acontecimento filosófico da modernidade Referindo-me ao texto de Kant, eu me pergunto se não podemos encarar a modernidade antes como uma atitude do que como um período da história. Por atitude eu quero dizer um modo de relação concernente à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo, marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa [tâche]. Um pouco sem dúvida como aquilo que os Gregos chamavam um éthos. Por consequência, mais do que querer distinguir o “período moderno” das épocas “pré” ou “pós-modernas”, creio que valeria mais investigar como a atitude de modernidade, desde que ela se formou, se encontra em luta com atitudes de “contra-modernidade”269. Neste parágrafo está dado o principal eixo de análise de Foucault: a especificidade e virtude do texto de Kant sobre a Aufklärung é a de colocar de maneira inteiramente nova a questão filosófica da atualidade, relacionando-a com uma atitude que traz em seu bojo uma nova maneira de pensar, sentir, agir e se conduzir que, apresentando-se como realidade compartilhada no presente, dá-se também como tarefa. Pode-se então divisar aqui quatro polos ou “dimensões” que se abrangem e retomam uma à outra em seu encadeamento: a dimensão que estabelece uma nova relação filosófica com o tempo presente: a dimensão que chamaremos de “epistêmica”; a dimensão que estabelece uma nova relação consigo mesmo: a dimensão “ética”; a dimensão que estabelece uma nova relação de si com os outros: a dimensão “política”; e, por fim, a dimensão que concerne à escolha e construção de uma forma de existência: a dimensão “estética”. Embora as quatro dimensões estejam fortemente correlacionadas, buscaremos, para fins de exposição, abordá-las cada uma a seu turno, com vistas a uma melhor explanação das mesmas. Comecemos pela dimensão “epistêmica”. Dizíamos há pouco que a questão posta por Kant continuava a nos perseguir enquanto questão própria a nossa época, como epicentro do diagnóstico do presente em que vivemos. E 268 Trata-se de um artigo de crítica de arte dedicado à obra de Constantin Guys e publicado por Baudelaire em 1863. 269 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1387. 91 isso a tal ponto que se a questão O que é esclarecimento? fosse-nos posta hoje teria provavelmente a amplitude de uma questão ainda mais crucial: “que é a filosofia moderna?”. Não obstante, talvez, nos adverte Foucault, a resposta faria eco à pergunta formulada a Kant em 1784: “A filosofia moderna é aquela que tenta responder à questão lançada, há dois séculos, com tanta imprudência: Was ist Aufklärung?”270. O que é, pois, este acontecimento chamado Aufklärung que nos liga não apenas a nossa atualidade mas que é capaz mesmo de definir em grande medida a filosofia moderna? Afinal, não se pode dizer que seja a primeira vez que encontramos na tradição filosófica, incluso a da filosofia moderna, referências ou mesmo questionamentos em relação ao presente. Nesse sentido, qual seria a especificidade da Beantwortung kantiana? Se quisermos responder a esta questão, é preciso atentar que, até então, ao ver de Foucault, os filósofos não pensaram o presente senão em sua relação ao futuro ou a uma destinação do universo. Tomemos Platão: no Político, todos os interlocutores estão de acordo em pensar sua realidade como uma idade do mundo, sem que este presente seja analisado por ele mesmo. Agostinho e a tradição cristã seguem no mesmo sentido: o atual não é senão o início ou o anúncio de um futuro esperado. Enfim, Vico, pouco tempo antes de Kant, considera as Luzes como uma fase de transição em direção a um período de autêntica felicidade para a humanidade em seu conjunto271. Já com Kant o presente é analisado pela primeira vez nele mesmo, a partir da novidade que ele introduz, no “agora” ou no “hoje”: “O que se passa hoje? O que se passa agora? E o que é este 'agora' no interior do qual somos, uns e outros, e que define o momento no qual escrevo?”272, ou ainda, “qual diferença hoje [o presente] introduz em relação ao ontem?”273. A reflexão filosófica sobre o “hoje” implica uma consciência do presente como diferença histórica em relação ao passado, na qual “o que define a atualidade do presente é o conteúdo [teneur] interno do agora, a análise do elemento distintivo ao qual pertenço”274. Nesse sentido, o que define a atualidade do presente é a consciência filosófica do mesmo enquanto acontecimento. Saber, é saber sobre a irrupção deste acontecimento histórico complexo, sobre esse processo que coloca em relação elementos heterogêneos – 270 Ibid., pp. 1383-4. Ibid., pp. 1382-1383. 272 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 351, op. cit., p. 1498. 273 Id., “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1383. 274 BRUGÈRE, F. “Foucault et Baudelaire. L'enjeu de la modernité”. In: Léctures de Michel Foucault, vol. 3 (sur les Dits et écrits), textes réunis par Pierre François Moreau. Lyon, ENS éditions, 2003, p. 80. 271 92 “transformações sociais, políticas e culturais que se produziram no fim do século XVIII”275 – que se reconhecem no sentido de uma época, disso que poderíamos nomear uma atualidade, e que Kant caracterizou como Aufklärung. A modernidade de Kant, sua atitude filosófica moderna, encontra-se justamente na maneira como ele estabelece esta relação entre o presente e a filosofia. “Em suma – nas palavras de Foucault – parece-me que vemos aparecer no texto de Kant a questão do presente como acontecimento filosófico ao qual pertence o filósofo que dele fala”276. Desse modo, a questão da Aufklärung, enquanto acontecimento singular, apresenta-se como uma questão abrangente do presente. Sua deflagração traz consigo a força de uma partilha na qual o “nós” é capaz de se remeter a certo conjunto cultural presente que se dá um nome, inaugurando uma ruptura com um passado indefinido: Para o filósofo, pôr a questão de seu pertencimento a este presente, não será de forma alguma questionar sobre seu pertencimento a uma doutrina ou a uma tradição; não será mais a questão de seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas aquela de um pertencimento a um certo “nós”, a um nós que se liga ao conjunto cultural característico de sua própria atualidade277. Essa relação social e historicamente partilhada torna-se clara inclusive através do estatuto de publicidade da questão posta pelo jornal alemão a seus leitores: “a essência mesma do acontecimento dá-se pela maneira através da qual é difundido, comunicado, projetado, determinando em torno dele uma rede de sentido”278. No entanto, com a resposta de Kant, a Aufklärung constitui algo mais do que um acontecimento histórico, social e político, ou melhor, o acontecimento se torna também filosófico. As Luzes são então concebidas como um acontecimento total que esclarece ou visa esclarecer o ser (“o que nós somos”), o sentido (“o que nós pensamos”) e o fazer (“o que nós fazemos”) de nossa modernidade279. Estabelece-se, nesse ínterim, uma relação inerente entre FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1386. Id., “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 351, op. cit., p. 1499. 277 Ibid. 278 BRUGÈRE, F., op. cit., p. 82 279 “Que é então este acontecimento que chamamos de Aufklärung e que determinou, em parte ao menos, o que somos, o que pensamos e o que fazemos hoje?” (FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1381). 275 276 93 Aufklärung e filosofia moderna: a filosofia moderna é aquela que se interessa por sua atualidade e, consequentemente, pelo acontecimento que caracteriza sua irrupção e seu sentido histórico, é um “modo de ser de um pensamento que aceita se admirar de sua própria convocação ou comparecimento na e pela história. Que é este hoje onde não somente eu penso, mas pelo qual eu penso e que me faz pensar?”280. A filosofia moderna, portanto, seria aquela que “não repousa sobre sua história, inscrevendo-se no eterno destino de suas questões eternas, mas aquela que se inquieta de suas próprias possibilidades”281. Isto posto, não parece ser por mero acaso que a especificidade da modernidade confunda-se com a abertura de uma questão – questão que, “de Hegel a Horkheimer ou à Habermas, passando por Nietzsche ou Max Weber” e chegando a Foucault, continua em aberto. Sendo assim, caso quiséssemos sondar o motivo da persistência desta questão lançada há dois séculos, cremos que seria pouco, e talvez insuficiente, dizer que as condições histórico-filosóficas que aí encontraram luz não foram “ainda superadas”. Por outro lado, parece improvável, ao menos ao ver de Foucault, que a questão da Aufklärung tenha se tornado mais um “tema” – por vezes mais ou menos requisitado – nas estantes empoeiradas da história da filosofia. Talvez a força e a persistência da questão concentrem-se tanto no fato desta “manter aberta a possibilidade de extravio”282 (daí a “imprudência” da mesma), quanto na sutileza da distinção, apontada por Foucault, entre a noção de “atualidade” e a noção de “presente”, identificando na primeira certo modo de temporalização deste: A questão tem por objeto o que é este presente, tem por objeto inicialmente a determinação de um certo elemento do presente que se trata de reconhecer, de distinguir entre todos os outros. O que é que, no presente, faz sentido atualmente para uma reflexão filosófica?283. Ora, este elemento do presente, isto é, este elemento que define a atualidade do presente, é o acontecimento chamado Aufklärung. O que se passa, por conseguinte, é uma interrogação sobre a atualidade como acontecimento; acontecimento este que, ainda que sobre o solo de GROS, F. “Foucault et la leçon kantienne des Lumières”. In: Revue Lumières, n° 8 - “Foucault et les Lumières”, deuxième semestre 2006, p. 163. 281 Ibid. 282 Ver DAVILA, J. “L'actitud de modernidad: Una praxis de vida intelectual”. In: ACTUAL, Nº 31, 1995. 283 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 351, op. cit., p. 1499. (Grifos nossos). 280 94 seu presente, não se encerra na imediaticidade temporal e estática de seu engendramento, mas “transborda” para além deste. Nas palavras de Irene Cardoso: Há uma distinção, portanto, entre o presente e o atual, entre o hoje e o agora. O atual é construído a partir de “um certo elemento do presente que se trata de reconhecer”, como “diferença histórica”. Este reconhecimento, que é o da crítica, da problematização, desatualiza o presente, desatualiza o hoje, no movimento de uma interpelação. Nesse sentido o presente não é dado, nem enquadrado numa linearidade entre o passado e o futuro. Mas enquanto atualidade, no movimento de uma temporalização, o que somos é simultaneamente a expressão de uma força que já se instalou e que continua atuante, na expressão heideggeriana, do “vigor de ter sido presente” e o que nos tornamos, o que estamos nos tornando, enquanto abertura para um 284 campo de possibilidades . Em vista disso, a força da questão da Aufklärung reside não apenas num “passado simplesmente dado”, mas antes enquanto revelação de um acontecimento e de seu sentido, cuja presença, re-atualizada desde o século XVIII até o presente, manifesta-se como uma “virtualidade permanente que não pode ser esquecida”285. A questão kantiana inscreve-se na modernidade e se coloca para nossa atualidade como algo que nos concerne. E não nos concerne apenas enquanto um ato retrospectivo que tivesse como objetivo “salvar” o “núcleo essencial de racionalidade”286 que poderíamos encontrar na Aufklärung. A questão kantiana nos concerne sobretudo na medida em que tem um valor atual e prospectivo. Atual porque fruto de uma reflexão histórica sobre o acontecimento do e no presente; prospectivo porque esta reflexão permite tomar consciência de nossas possibilidades atuais e das liberdades às quais podemos ter acesso, indicando, naquilo que se mostra como necessário, universal, evidente, os pontos de fraqueza, as aberturas, as linhas de força, isto é, as condições de um ultrapassamento possível dos “limites” atuais do que somos, fazemos e pensamos. A atitude própria ao Esclarecimento, ao mesmo tempo que envolve o passado, indica a alteridade possível (futuro) do presente, abrindo assim a possibilidade da experiência do novo. CARDOSO, I. “Foucault e a noção de acontecimento”. In: Para uma crítica do presente. SP, Editora 34, 2001, p. 219. 285 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 351, op. cit., p. 1505. 286 Id. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1391. 284 95 Destarte, ao nos fazer deparar com uma nova “relação ao presente”, a questão da Aufklärung não deixa de estar intrinsecamente ligada à interrogação – ou “problematização” – de nosso “modo de ser histórico” e da “constituição de nós mesmos enquanto sujeitos autônomos”287. Ora, o fio que permite alinhavar a “relação ao presente”, o “modo de ser histórico” e a “constituição de si mesmo como sujeito autônomo” é aquele de um éthos filosófico que se caracteriza como um exercício, como uma atitude de crítica em relação ao nosso modo de ser histórico. A este gênero específico e ao mesmo tempo complexo de crítica que visa, por meio de uma atitude, a transformação de nosso ser em relação à história, a si mesmo e aos outros, Foucault designará “ontologia crítica de nós mesmos”: É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um éthos, uma vida filosófica onde a crítica daquilo que nós somos é ao mesmo tempo análise histórica dos limites que nos são postos e desafio [éprouve] de seu ultrapassamento [franchissement] possível288. É nesta direção que “a interrogação sobre 'o que é nossa atualidade' supondo o movimento de atualização e porvir constitui-se numa crítica do presente”289. O que significa dizer também que a “atitude de modernidade” à qual nos referíamos apresenta-se desde então como a reatualização permanente de uma atitude histórico-crítica que tem por objetivo a possibilidade de livre criação e transformação de nosso ser. História, ontologia e liberdade cruzam-se, portanto, no movimento de atualização da crítica. Tal configuração nos leva a fomentar algumas observações sobre esta peculiar noção de “crítica” aqui posta em curso por Foucault, pois a mesma não apenas nos fornecerá a chave de compreensão da passagem à dimensão “ética”, como parece também desenhar um quadro de proximidade e distanciamento em relação à noção convencional de crítica tal como caracterizada por Kant. Atenhamo-nos, ainda que rapidamente, a este quadro. Em primeiro lugar, a crítica foucaultiana distingue-se da kantiana na medida em que o pensador francês identifica uma “atitude crítica” em outros períodos históricos que não “Eu gostaria de sublinhar o enraizamento na Aufklärung de um tipo de interrogação filosófica que problematiza ao mesmo tempo a relação ao presente, o modo de ser histórico e a constituição de si mesmo como sujeito autônomo”. (Ibid., p. 1390). 288 Ibid., p. 1396. 289 CARDOSO, I., op. cit., p. 220. 287 96 exatamente aquele das Luzes (final do século XVIII) e de sua herança mais direta. É num texto de 1978290 que Foucault, ao interrogar-se sobre “o que é a crítica” e inscrevendo-se na tradição kantiana, dizia encontrar nos séculos XV e XVI, uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também, que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica291. Atitude crítica que se apresenta, assim, num período “pré-kantiano”. Isso nos leva a crer que a atitude crítica não se dá como uma conjuntura específica de um período histórico estrito (aquele de Kant), mas deve antes ser tomada como uma postura ante o presente (em diferentes épocas e com diferentes conteúdos). O que desloca, consequentemente, a questão da modernidade: não é moderno aquele que se situa pura e simplesmente num dado período histórico, mas aquele que assume uma atitude crítica em face do presente. Fato que, por sua vez, acarreta dizer que há modernidade a cada vez que esta atitude crítica é reatualizada. Se, por esta via, a atitude crítica se afasta da crítica kantiana, é preciso entretanto frisar que Foucault interroga estas atitudes de modernidade anteriores ao evento da filosofia crítica de Kant numa chave que não deixa de remeter à Aufklärung: Foucault dizia ser possível interrogar os Gregos “sem nenhum anacronismo mas a partir de um problema que é e que foi em todo caso percebido por Kant como sendo um problema da Aufklärung”292. Não se trata de “dizer que os gregos do século V são um pouco como os filósofos do século XVIII”, mas de “definir as condições nas quais o ser humano 'problematiza' o que ele é, e o mundo no qual ele vive”293. Nesse sentido, mesmo quando Foucault lança seu olhar aos Gregos, o faz a partir da 290 Trata-se da conferência proferida em 27 de maio de 1978 na Société française de philosophie (FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”. In: Bulletin de la Société française de Philosophie, Vol. 82, n. 2, avr/juin 1990, pp. 35-63. 291 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”. In: Bulletin de la Société française de Philosophie, Vol. 82, n. 2, avr/juin 1990, p. 36. 292 Ibid., p. 58. 293 FOUCAULT, M. História da sexualidade vol. 2 – O uso dos prazeres. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. RJ, Graal, 2007, p. 14. 97 tradição crítica na qual se inscreve, visando não “retornar a um estado anterior” 294, mas antes com o intuito de “tentar ver sob quais condições, ao preço de quais modificações ou de quais generalizações pode-se aplicar a algum momento da história essa questão da Aufklärung”295. Primeira distinção e reaproximação, portanto, da “atitude crítica” foucaultiana à crítica kantiana em sua vertente Aufklärung. Segunda distinção: a concepção de crítica posta em marcha por Foucault difere ainda da concepção kantiana ao realocar a noção de limite adotada por este. Para Kant, grosso modo, os limites são compreendidos como a fronteira intransponível do conhecimento, isto é, da experiência possível, que não poderia ser ultrapassada sob o risco de incorrer em domínios que estão além das prerrogativas legítimas da razão humana296. Já para Foucault, rompendo com a perspectiva transcendental e normativa de Kant, a tarefa específica da filosofia crítica seria não apenas a reflexão e análise dos limites do conhecimento, mas também o de uma “crítica prática” que, como ato de desprendimento, nos levasse à possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar isto que somos, fazemos ou pensamos: A crítica é a análise dos limites e a reflexão sobre eles. Mas se a questão kantiana era de saber quais limites o conhecimento deve renunciar a ultrapassar, parece-me que a questão crítica, hoje, deve ser reorientada em questão positiva: nisto que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte daquilo que é singular, contingente e dado a coerções arbitrárias. Trata-se em suma de transformar a crítica exercida na forma da limitação necessária em uma crítica prática na forma do ultrapassamento possível297. “Não há valor exemplar num período que não seja o nosso... não se trata de retornar a um estado anterior.” (Id., “À propos de la généalogie de l'éthique: un aperçu du travail en cours”. In: Dits et écrits (1976-1984), vol. II, Éditions Gallimard “Quarto”, 2001, nº 344, p. 1433). 295 Id., “Qu'est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”, op. cit., p. 47. 296 Como se sabe, tal inovação encontra seu núcleo ilustrativo naquilo que se denomina “revolução copernicana”, que tem como uma de suas propostas admitir que “os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento a priori desses objetos, que [se] estabeleça algo sobre eles antes que nos sejam dados”. O ponto fundamental da revolução copernicana consiste em “substituir a ideia de uma harmonia entre sujeito e objeto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objeto ao sujeito. A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou, mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer. [...] A primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos.” (DELEUZE, G. A Filosofia Crítica de Kant. Trad. G. Franco. Lisboa, Edições 70, 1987, pp. 21-22). 297 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1393. 294 98 Esta “crítica prática”, dirá ainda o filósofo, “não procura tornar possível a metafísica enfim tornada ciência; ela procura tão longe e largamente quanto possível o indefinido trabalho da liberdade”298. Ora, parece-nos que é nos marcos desta distinção que podemos divisar “as duas grandes tradições críticas entre as quais se dividiu a filosofia moderna”299 a partir de Kant. Por um lado, pode-se dizer que, na sua “grande obra crítica”, Kant fundou a tradição da filosofia que põe a “questão das condições sob as quais um conhecimento verdadeiro é possível”, isto é, da “filosofia analítica da verdade em geral”; tradição que Foucault chama de “analítica da verdade”. Por outro lado, Kant também teria inaugurado um outro tipo de questão, um outro modo de interrogação crítica que nasce na questão da Aufklärung. Esta outra tradição crítica estaria pautada pelo duplo questionamento: “o que é nossa atualidade? Qual o campo atual das experiências possíveis?”. A esta tradição crítica – à qual Foucault busca filiar-se300 – nomeará “ontologia da atualidade”. Entretanto, é mister lembrar que, embora possamos, com efeito, escandir certa distinção entre a tradição da “analítica da verdade” e da “ontologia da atualidade”, não se trata de estabelecer uma relação de alternativa ou de exclusão simples entre uma e outra. Foucault não deixa de sublinhar uma relação de complementaridade entre a crítica transcendental e a reflexão sobre a Aufklärung. Afinal, as autoridades de tutela (o preceptor, o diretor de consciência etc.) se apoiam justamente naquilo que ultrapassa os limites de nosso conhecimento (a salvação da alma, a existência de Deus, o destino da humanidade) para impor realidades indemonstráveis e manter-nos na menoridade, barrando-nos o acesso às Luzes. E ainda, se o artigo de Kant descreve a Aufklärung como “o momento no qual a humanidade vai fazer uso de sua própria razão, sem se submeter a nenhuma autoridade”, dirá Foucault, é precisamente neste momento que a Crítica é necessária, visto que ela tem por papel definir as condições nas quais o uso da razão é legítimo para determinar o que se pode conhecer, o que é preciso fazer e o que é permitido esperar. É um uso ilegítimo da razão que faz nascer, com a ilusão, o dogmatismo e a heteronomia; por outro lado, desde que o uso legítimo da razão foi claramente definido em seus princípios que sua autonomia pode ser 298 Ibid. Id., “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 351, op. cit., p. 1506. 300 “É esta forma de filosofia [ontologia da atualidade] que, de Hegel à escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão a partir da qual eu tentei trabalhar” (Ibid., p. 1507). 299 99 assegurada. A Crítica é, de algum modo, o livro de bordo da razão tornada 301 maior na Aufklärung; e, inversamente, a Aufklärung, é a idade da Crítica . Desse modo, a reflexão crítica kantiana constituiria a condição necessária à atualização da atitude de modernidade própria à Aufklärung. A crítica cumpriria o papel de servir como “prolegômeno a toda Aufklärung presente e futura”302. Entrementes, enquanto “prolegômeno”, não podemos afirmar que a crítica transcendental esgote a Aufklärung. Visto que esta se dá não apenas por uma postura intelectiva diante do conhecimento, mas também como uma “vontade decisória, atitude ao mesmo tempo individual e coletiva de sair, como dizia Kant, de sua menoridade. Questão de atitude”303, insiste Foucault. A Aufklärung não será simplesmente uma espécie de definição histórica e especulativa, mas uma relação entre a limitação que devemos efetuar na reflexão crítica e a utilização destes limites de forma autônoma no que tange ao uso de nossa razão e de nossa conduta. Trata-se de um “apelo à coragem”, à “coragem de saber” ou, se quisermos, em termos foucaultianos, um apelo à “coragem de verdade”304, que se converte numa atitude ética. Afinal, como bem nos lembra Fréderic Gros, uma coisa, sem dúvida, é denunciar a mecânica de uma ilusão (demonstrar, pela crítica transcendental que nem Deus nem a alma podem provir de uma competência científica [savante] e especial), outra coisa é desta [ilusão] se livrar. O que significa finalmente que a lucidez transcendental, se ela pode ajudar, não é suficiente. A coragem ética pela qual se decide a pensar por si mesmo, esta coragem proveniente da atitude crítica continua superior à 305 simples lucidez permitida pelo estudo transcendental . Ora, vemos assim que a questão da Aufklärung, a “questão filosófica do presente”, ao ser explicitada em sua dimensão “epistêmica”, tem a virtude de despertar uma relação ao saber que é menos de natureza estritamente intelectiva do que propriamente ética. A esta Id., “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1386. Id., “Qu'est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”, op. cit., p. 41. 303 Ibid., p. 53. 304 Deve-se atentar, à guisa de conexão, que o último curso de Foucault ministrado no Collège de France (1984), não despropositadamente, chama-se Le courage de la verité – Le gouvernement de soi et des autres II, podendose encontrar no respectivo volume I do mesmo (1983) a aula inaugural concernente ao opúsculo kantiano em discussão. 305 GROS, F. “Foucault et la leçon kantienne des Lumières”, op. cit., p. 164. 301 302 100 dimensão fundamental de nossa modernidade Foucault se refere mais diretamente ao abordar o primeiro parágrafo do opúsculo kantiano em questão. Acompanhemos sua leitura: Esclarecimento ['Aufklärung'] é a saída do homem de seu estado de menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento 306 [Aufklärung] . Note-se que a primeira caracterização que Kant nos apresenta da Aufklärung é a de uma “saída”307, a saída do “estado de menoridade” da razão. Entendendo aqui por “menoridade” certo estado de nossa vontade, dado à preguiça e à covardia, que nos faz aceitar a autoridade e governo de outrem onde caberia a aplicação do uso autônomo da razão; ao passo que a Aufklärung seria “definida pela modificação da relação preexistente entre vontade, autoridade e uso da razão”308. Em outras palavras, a menoridade de que a Aufklärung deve nos fazer sair se define por uma relação entre o uso que fazemos da nossa razão ou que poderíamos fazer, e a KANT, I. “Resposta à pergunta: Que é 'Esclarecimento'?”, op. cit., p. 100. Segundo Foucault, ao definir a Aufklärung como uma Ausgang, uma saída, ou seja, movimento pelo qual nos desprendemos de alguma coisa, sem que nada seja dito para onde vamos, este texto de Kant se demarca de outros escritos do filósofo alemão sobre a história: aqui, não se trata de colocar questões de origem (tal como se daria em Das diferentes raças Humanas (1775); e em Começo conjectural da história humana (1786), por exemplo) ou de definir a finalidade interior de um processo histórico (tenha-se em vista Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, de 1774), menos ainda de uma discussão nos marcos de uma finalidade interna que organiza os processos históricos (Sobre o uso dos princípios teleológicos em filosofia, de 1788). Não obstante a aparência, este texto, ao ver de Foucault, não parece pôr diretamente nenhuma destas questões: nem questão de origem, nem de acabamento, nem de teleologia. “No texto sobre a Auflärung, a questão concerne à pura atualidade. Ele não procura compreender o presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele procura uma diferença: qual diferença hoje introduz-se em relação ao ontem?” (FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1383). Isso nos ajudaria a compreender não apenas a especificidade do opúsculo kantiano, mas também o aspecto que gera a preferência de Foucault por este escrito em detrimento de outros textos “históricos” de Kant (à exceção, claro, de O conflito das faculdades, presente tanto na edição francesa de “Qu'est-ce que les Lumières?” quanto na primeira aula do curso O governo de si e dos outros, sobremaneira sua segunda dissertação, momento em que Kant se detém sobre a questão da Revolução Francesa): a questão da atualidade que, em vez de se apresentar na via de um “méta-récit” ou de qualquer a priori universal, dá-se no registro de uma “atitude”. 308 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit. p. 1383. 306 307 101 direção (Leitung) dos outros. Governo de si, governo dos outros: é nessa 309 relação, nessa relação viciada, que se caracteriza o estado de menoridade . Sem embargo, Foucault não deixa de enfocar que se a Aufklärung é caracterizada como um “fato”, um “processo” em vias de se dar, um movimento de saída, um desprendimento que está se realizando e que constitui o elemento significativo de nossa atualidade, ela é, ao mesmo tempo, apresentada por Kant como uma tarefa e como uma obrigação. Não se trata mais, tão somente, de um discurso de descrição, mas de prescrição: Kant, no fim do parágrafo, já não descreve o que acontece, ele diz: “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento”. Como compreender esta “ambiguidade”? Foucault assinala que desde o primeiro parágrafo Kant sustenta que o homem é ele mesmo “responsável” por seu estado de menoridade. De modo que, se é ele mesmo responsável por seu estado de menoridade, este não deve ser confundido com um estado de impotência natural, posto que os homens são perfeitamente capazes de guiar-se por si mesmos. Tampouco se trata de um estado de menoridade jurídico-política, no qual o indivíduo ver-se-ia privado de seus direitos pela violência de uma autoridade: se nos encontramos no estado de menoridade, submetidos a uma superimposição da direção dos outros, isso se deve a nós mesmos, a uma certa relação com nós mesmos – marcada pela preguiça e pela covardia – que revela “uma espécie de déficit na relação de autonomia consigo mesmo”310. Posto isso, acrescenta então Foucault, leitor de Kant, que “é preciso conceber que ele [o homem] não poderá livrar-se [en sortir] senão através de uma mudança que ele operará sobre si mesmo”311. Afinal, se a Aufklärung tem um lema – Sapere aude! (“tenha a coragem, a audácia de saber”) –, isto é, “um traço distintivo pelo qual se faz reconhecer”, “um conselho que se dá a si mesmo e que se propõe aos outros”, é preciso encarar este lema tanto em seu sentido mais geral, quanto em seu sentido mais pessoal: estas palavras não são apenas descritivas, elas contêm um imperativo que indica realmente uma obrigação moral. Em outras palavras, 309 Id. O governo de si e dos outros, op. cit., p. 32. Ibid. 311 Id. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1384. 310 102 é preciso então considerar que a Aufklärung é ao mesmo tempo um processo do qual os homens fazem parte coletivamente e um ato de coragem a efetuar pessoalmente. Eles são ao mesmo tempo elementos e agentes do mesmo processo. Eles podem ser os atores na medida em que eles fazem parte dele; e ele [processo] se produz na medida em que os homens decidem ser seus 312 atores voluntários . Essa mudança sobre si mesmo, essa decisão singular da vontade, essa atitude, esse éthos, explicita a atualidade ética daquele que opera uma mudança sobre si mesmo, opondo-se à menoridade e assumindo certo estado de vontade de maioridade ou autonomia, marca mesma de sua liberdade. “Ato de coragem” que, no entanto, não pode ser desvinculado do processo mais extenso de partilha coletiva: o sujeito deve ter a audácia de inventar a si mesmo no interior deste processo que se apresenta como destino conjunto. Tarefa que implica, portanto, uma grande responsabilidade ante a história, uma preocupação constante de inventar um modo de relação a si e a seu presente, que é, em última medida, uma relação a um “nós”. Como afirma Foucault, a análise da Aufklärung, definindo esta como a passagem da humanidade a seu estado de maioridade, situa a atualidade em relação a este movimento de conjunto e suas direções fundamentais. Mas, ao mesmo tempo, ela mostra como, no momento atual, cada um se encontra responsável de uma certa maneira por este processo de conjunto313. É justamente a “responsabilidade” por este “processo de conjunto” que confere ao “ato de vontade” de uma nova maneira de pensar, de sentir e de se conduzir não apenas a consciência de pertencer ao presente (questão da atualidade crítica), mas também a tarefa e o dever de moldá-lo, individual e coletivamente (a responsabilidade ética). Entretanto, é preciso considerar que para que se realize esta mudança e seja possível a saída da menoridade são necessárias condições não apenas éticas, mas também políticas: 312 313 Ibid. Ibid., pp. 1386-1387. 103 A Aufklärung, vê-se, não deve ser concebida simplesmente como um processo geral afetando toda a humanidade; ela não deve ser concebida apenas como uma obrigação prescrita aos indivíduos: ela aparece agora como um problema político. A questão, em todo caso, se põe de saber como o uso da razão pode tomar a forma pública que lhe é necessária, como a audácia de saber pode se exercer à plena luz, na medida mesma em que os 314 indivíduos obedecerão tanto quanto possível . A dimensão política desperta, logo, uma questão, um cenário no qual se veem enredados a constituição ética de si em sua autonomia, o uso da razão em sua forma pública e a obediência dos indivíduos. Liberdade, razão e obediência; ou, ainda, relação a si, saber e poder 315. Cumpre perscrutar como se põem e desenvolvem tais relações no texto kantiano e sua consequente retomada por Foucault. Acompanhamos que, no parágrafo inicial, quando Kant colocava a questão acerca de como podemos sair do estado de menoridade, esta saída não se apresentava em termos de um processo natural de emancipação ou, tampouco, graças a libertadores históricos. Em vez disso, era necessário, em cada um, um ato de coragem. Todavia, no final de seu texto, Kant cita “obstáculos” que se erguem (como se cadeias exteriores estivessem impedindo a emancipação) e invoca, por outro lado, a intervenção decisiva de Frederico II (mesmo havendo precisado anteriormente que não há atores da liberação de outros). Por fim, Kant sugere a ideia de que haveria um benefício político na liberação dos meios de expressão públicos, visto que se obedeceria tão melhor quanto maior fosse a possibilidade de raciocinar. Talvez seja essa crença que leve Kant a propor uma espécie de “contrato do despotismo racional com a livre razão”, no qual um Estado racionalmente fundamentado poderia convir a uma razão esclarecida316. O dístico deste contrato seria o célebre “raciocinai, tanto quanto 314 Ibid., p. 1386. Esta é apenas uma das diversas oportunidades de destacar o quanto as leituras do texto kantiano (e, claramente, as remissões a Baudelaire) estão permeadas pela própria trajetória da “obra” de Foucault. Em cada dita “fase” de seus escritos é possível assinalar a ênfase sobre cada um destes eixos anteriormente mencionados: Na “arqueológica”, a insistência sobre a questão do “saber”; na “genealógica”, idem às relações de “poder”; e, por fim, na fase “ética”, a insistência sobre a questão das “formas de subjetividade”. Não é fortuito, consequentemente, que alguns comentadores vejam o “Qu'est-ce que les Lumières?” de Foucault como um “palimpsesto do texto kantiano com o mesmo título” (afinal, não estaria Foucault, neste texto, refletindo igualmente sobre o “status contemporâneo de sua própria iniciativa”?); ou, de modo mais veemente, como “um dos últimos trabalhos de um pensador que entrega nele uma espécie de expressão sinóptica dos pontos de vista fundamentais de seu pensamento”. (DAVILA, J. “Una Exégesis del Texto ¿Qué es la Ilustración? como Testamento Intelectual de M. Foucault”. In: Literatura y Conocimiento: Michel Foucault. Ediciones de la ULA, 1999, pp. 1-2). 316 Cf. KANT, I. “Resposta à pergunta: Que é 'Esclarecimento'?”, op. cit., pp.114-116. 315 104 quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei”317, tendo por fiador do mesmo o “numeroso e bem disciplinado exército”318 de Frederico. Acreditamos que não seria completamente descabido entrever neste panorama uma distinção: de um lado, uma reafirmação da obediência, mas limitada ao domínio político (obedecer praticamente à lei, mesmo se a ela opomos a crítica); por outro lado, a reivindicação de uma liberdade total, mas limitada à razão teórica e somente em seu uso público (isto é, em revistas, jornais de opinião etc.). Até que ponto esta distinção – que é, em cerne, a distinção entre uso público e uso privado da razão319 – não “culmina por cercear no fundo toda comunicação entre o governo de si e o governo dos outros (a não ser que seja pela forma suspeita do: eles obedecerão tão melhor quanto deixarmo-los refletir)”320? Não é de se admirar que, na trilha desta desconfiança, diversos autores tenham defendido que Kant “não levou às últimas consequências a sua própria máxima crítica ('Tenha a coragem de pensar por si mesmo')”; visto que, “ao invés de opor a autonomia à obediência ao soberano, [...] Kant fundou esta obediência na própria autonomia”321. O próprio Foucault parece denotar certa “decepção” com tal desfecho (patente sobretudo no curso de 1983), divisando nestas “soluções” do processo da Aufklärung como que um “deslocamento” que até certo ponto “contradiz” e “questiona o conjunto da análise”322 anterior. Descontentamento que poderia explicar, especulamos, a insistência do filósofo na procura de um ponto de articulação entre a teoria e a prática, entre o discurso e as ações, entre os saberes e as resistências, uma procura que, como buscamos apresentar nos capítulos precedentes, encontrará na problematização das noções de “cuidado de si” e de parrhesia um de seus pontos de incidência, reverberando também, por outro lado, como veremos, na abordagem que empreenderá o filósofo francês a propósito de Baudelaire. 317 Ibid., p. 104. Ibid., p. 114. 319 “Entendo contudo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado” (Ibid., p. 104). No uso público é lícito e benéfico que a razão possa exercer-se em plena liberdade. Já em seu uso privado, a razão deve ser submissa. Entendendo aqui por uso privado da razão o domínio no qual o homem, enquanto “peça de uma máquina”, tem um papel a desempenhar na sociedade e funções a exercer: ser funcionário do governo, pagar impostos, administrar uma paróquia, etc. Enquanto seguimento particular na sociedade, o ser humano encontra-se numa posição definida na qual ele deve aplicar regras e seguir fins particulares, circunstância na qual não cabe o uso livre da razão, mas a obediência. 320 GROS, F. “Foucault et la leçon kantienne des Lumières”, op cit., p. 166. 321 SENELLART, M. “A crítica da razão governamental em Michel Foucault”. Trad. de Maria das Graças de Souza do Nascimento. In: Tempo social – Revista de sociologia da USP, vol. 7 – nº 1-2, outubro de 1995, p. 5. 322 FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, op. cit., pp. 36-38. 318 105 Em todo caso, ainda em seus textos sobre a Aufklärung, Foucault não deixa de atentar aos riscos próprios a esta atitude política de “saída” da menoridade: justamente por se tratar de uma saída, de um processo, não se pode prever qual seria a melhor forma de assegurar definitivamente a sua efetivação política, ou se de fato esse processo um dia encontrará seu termo. Parece-nos que, ao ver de Foucault, o mais conveniente é assumir a “imprudência” de um “presente que se desdobra no ultrapassamento dos limites como ato de coragem política que subentende um risco”323. Isto é, trata-se de fazer da atitude de modernidade uma articulação perene entre crítica e história, aquilo que chamávamos há pouco de “crítica permanente de nosso ser histórico”, ou ainda, de “ontologia crítica de nós mesmos”. Em suas palavras: Não sei se jamais nos tornaremos maiores. Muitas coisas na nossa experiência nos convencem que o evento histórico da Aufklärung não nos tornou maiores; e que nós não o somos ainda. Todavia, parece-me que podemos dar um sentido a esta interrogação crítica sobre o presente e sobre nós mesmos que Kant formulou ao refletir sobre a Aufklärung. Parece-me que se apresenta aí uma maneira de filosofar que não foi desprovida de importância ou eficácia desde os últimos dois séculos324. Uma maneira de filosofar que permanece, por conseguinte, atual. Atual, podemos arriscar, não porque tenha encontrado – ou perdido – o momento de sua realização, mas talvez porque, diferentemente, tenha assumido como éthos a atualização crítica que não se deixa cristalizar, que assume para si o risco radical de um desprendimento constante, de uma separação, isto é, que assume o risco radical da crise. Crítica e crise parecem reencontrar sua antiga raiz – a Krisis –, desta vez, no entanto, como nosso estado atual de filosofia. Este panorama nos leva a depreender que a Aufklärung não é um processo cujas leis intrínsecas – sejam naturais ou históricas – se encarregariam de efetivá-la, ou ainda, um processo de cujo desenrolar poderíamos ter a certeza de um caminho previamente traçado e pronto a ser percorrido. À Aufklärung é preciso incessantemente instituí-la. O que significa dizer que se trata de um processo de criação continuada e que, como tal, implica também a criatividade dos agentes no interior deste processo histórico no que tange à decisão reiterada de dar certa forma e estilo à existência individual e coletiva. 323 324 BRUGÈRE, F., op. cit., p. 83. FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1396. 106 Essa decisão, essa escolha de um modo de existência – na qual encontramos a dimensão “estética”, alhures denominada “estética da existência” – será caracterizada por Foucault, no contexto da Aufklärung, como “l‟art de n’être pas tellement gouverné”325. Fórmula esta que, por sua vez, visaria evitar a relação viciada entre o governo de si e o governo dos outros, isto é, aquilo que apontamos como o déficit da relação de autonomia consigo mesmo que define a “menoridade”. Essa arte assinala a harmonia entre um modo de pensar e de sentir, entre uma atitude ética e política que teriam como dynamis a reiterada elaboração de um modo de ser regido pela autonomia, no qual as normas, valores e modos de viver – evitando a total identidade, a dominação ou a subsunção sem recursos – seriam pautados pela possibilidade da criação de si em sua conjugação com a sociedade, o que pode implicar, por vezes, uma postura que se deflagra apesar ou contra as instituições ou representações sociais vigentes. Foi o que bem notou Didier Eribon, aproveitando, por seu lado, para enfatizar o quanto este plano torna evidente que a ideia, desenvolvida pelo último Foucault, de uma “estética da existência” não pode ser separada da problemática do poder, visto que se trata, em Foucault, de uma política da subjetivação, da criação de si, que consiste em aumentar a autonomia (individual ou coletiva) que podemos conquistar sobre o peso da história inscrita nos nossos cérebros e corpos326. Em suma, tomada como uma atitude, como um éthos, a modernidade apresenta-se como um pertencimento e uma tarefa que, não necessariamente restritos a um período histórico específico, podem ser retomados em diferentes contextos. O opúsculo de Kant permite vislumbrar a forma moderna sob a qual filosofia, numa atitude ao mesmo tempo epistêmica, ética, política e estética, permite estabelecer uma relação crítica com a atualidade. Relação que, tendo como ponto de partida uma nova maneira de perceber o mundo que nos rodeia, apresenta-se também como a possibilidade de um novo modo de situarmo-nos neste mundo, e de transformá-lo, transformando-nos. Contanto, claro, que não se negligencie o trabalho de atualização constante e criativo de uma “ontologia crítica de nós mesmos”. Divisa que receberá ainda outras formulações aproximadas, tais como “arte da inservidão voluntária” ou “arte da indocilidade refletida”. Cf. FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”, op. cit., pp. 38-39. 326 ERIBON, D. “Introduction: l‟art de l‟inservitude”. In : ______. (coord), L’infréquentable Michel Foucault – Renouveuax de la pensé critique. Paris, EPEL, 2001, p. 16. 325 107 No entanto, Foucault parece não se dar por satisfeito com esta análise do ponto de partida de nossa modernidade. Tudo se passa como se a filosofia por si só não fosse capaz de esgotar a plurivocidade disto que chamamos de atitude de modernidade. Não é por qualquer motivo que acabará afirmando que a remissão ao texto de Kant é “um ponto de partida”, um “esboço” disto que “poderíamos chamar atitude de modernidade”327. É justamente neste momento que, para melhor caracterizar tal atitude, Foucault mobilizará um “exemplo”. Exemplo “quase necessário” daquele no qual se reconhece “uma das consciências mais agudas da modernidade no século XIX”328. Trata-se de Charles Baudelaire. E aqui podemos dizer que há mais de uma maneira de compreender o que significa o termo “exemplo” neste enredo. Viria o poeta reiterar a apreciação teórico-filosófica de dada experiência explicitada por Kant? Ou poderíamos ir mais longe e tomar Baudelaire como um caso “exemplar”, único, da atitude de modernidade, que não se restringe, portanto, à experiência filosófica da mesma? Há, com efeito, uma verdade em cada uma dessas possibilidades, pois as dimensões acima trabalhadas (ética, estética, política, epistêmica) não deixaram de estar presentes em Baudelaire. Porém, ao mesmo tempo, deve-se atentar que estas dimensões se enlaçam de modo muito singular a partir de uma experiência vivida. Um vivido que não necessariamente é vivido refletido, mas expresso poeticamente, ressaltando assim uma sensibilidade da modernidade distinta de seu advento estritamente racional. Aceitando esta trama, pode-se depreender que a lírica vem acrescentar uma nova voz à polifonia da modernidade. Uma voz que, ao entender de Foucault, deve ter um papel “exemplar”. 3.2.2. Baudelaire: lírica e transfiguração Com efeito, na polissemia que caracteriza a “modernidade”, poucas figuras ocupam referência tão central quanto Baudelaire. Poetas, pintores, críticos, filósofos recorrem constantemente a seus escritos – ora privilegiando a poesia, ora a prosa poética ou os textos críticos – na tentativa não apenas de “desvendar” o que seja a modernidade e seus arcanos ou 327 328 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1387. Ibid. 108 o advento de uma dita “pós-modernidade” mas também como possibilidade e instrumento de pensamento e problematização de suas próprias práticas. Mas, de onde emanaria essa força que faz com que pareça “difícil pensar a Modernidade sem recorrer, hoje, ao nome de Baudelaire”329? Acreditamos que parte seminal de suas energias reside no fato, bem notado por Walter Benjamin, de que “sua obra não só se permite caracterizar como histórica, da mesma forma que qualquer outra, mas também pretendia ser e se entendia como tal”330. O que Benjamin parece nos indicar é que a obra de Baudelaire não se caracteriza tão somente pela constatação do fato de ser moderno, isto é, pelo mero pertencimento passivo a uma época histórica determinada, mas, mais do que isso, o autor das Flores do Mal seria o protótipo de uma consciência de modernidade como efeito de uma disposição ativa do homem moderno que o conduz a interrogar seu ser histórico, sua identidade presente e as condições de constituição desta modernidade, experimentados tanto no plano teórico-crítico quanto no plano propriamente lírico. E se não podemos afirmar que Baudelaire seja o inventor do termo modernité331, não deixa tampouco de ser verdadeiro que o léxico tenha sido alçado ao estatuto de verdadeiro imperativo e denominador comum de uma nova estética e poética por via de seus escritos. Novidade, e mesmo “pioneirismo”332, que se articulam numa tomada de consciência sem precedentes da relação aparentemente contraditória entre o belo e a dimensão do presente: “o prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas com a beleza de que ele pode estar revestido, mas também a sua qualidade essencial de presente”333, ou ainda, “não COELHO, T. “A modernidade de Baudelaire”. In: A modernidade de Baudelaire – textos inéditos selecionados por Teixeira Coelho. Trad. de Suely Cassal. RJ, Paz e Terra, 1988, p. 13. 330 BENJAMIN, W. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Batista. SP, Brasiliense, 2000, p. 110. 331 Baudelaire contribuiu a incorporar o léxico “modernité” e tudo que ele contém e sugere na língua francesa. Constata-se, todavia, que o primeiro emprego conhecido do termo tenha sido aplicado por Balzac (La Dernière Fée, 1823). Para uma explicação mais detalhada consultar: BAUDELAIRE, C. Oeuvres complètes II. Bibliothèque de la pléiade, Gallimard, 1976, pp. 1418-1419. 332 “Baudelaire, que fez mais do que ninguém, no século XIX, para dotar seus contemporâneos de uma consciência de si mesmos enquanto modernos. Modernidade, vida moderna, arte moderna – esses termos ocorrem frequentemente na obra de Baudelaire; e dois de seus grandes ensaios, o breve 'Heroísmo da vida moderna' e o mais extenso 'O pintor da vida moderna' (1859-1860, publicado em 1863), determinaram a ordem do dia para um século inteiro de arte e pensamento”. […] “Quanto mais seriamente a cultura ocidental se preocupa com o advento da modernidade, tanto mais apreciamos a originalidade e a coragem de Baudelaire, como profeta e pioneiro. Se tivéssemos de apontar um primeiro modernista, Baudelaire seria sem dúvida o escolhido.” (BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. Trad. de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioratti e Marcelo Macca. SP, Companhia de Bolso, 2008, pp. 159-160). 333 BAUDELAIRE, C. “O pintor da vida moderna”. In: A modernidade de Baudelaire – textos inéditos selecionados por Teixeira Coelho. Trad. de Suely Cassal. RJ, Paz e Terra, 1988, p. 160. 329 109 temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes”334. Ora, mais do que declarações de louvor a Constantin Guys, estes trechos revelam uma injunção programática de Baudelaire em favor da submissão da exigência tradicional da beleza à de uma “representação do presente” enquanto tal. Como nos afirma Phillipe Sabot: O belo, que era a pedra de toque da estética clássica, devém então o efeito da constituição da obra de arte moderna que é assinalada antes de tudo por sua capacidade de buscar no traço de um desenho ou no ritmo de um verso o que há de “transitório”, de “fugidio” no presente e que constitui, de maneira paradoxal, a essência mesma desse presente. Nestas condições, o artista é logicamente alçado ao patamar de verdadeiro herói da vida moderna na medida em que, em lugar de ser simplesmente tomado pelas frequentes metamorfoses da realidade e a elas se acomodar passivamente, ele procura “representar” ativamente, logo a se afastar suficientemente para chegar a revelar a beleza original que pode emanar intrinsecamente de tais 335 metamorfoses . Assim, a estética moderna, tornada estética da modernidade, tem na tensão entre o ideal e o novo, entre o intemporal e o presente, entre a tradição e a ruptura, o heroísmo próprio de uma poética da modernidade que procede de uma estetização do cotidiano, de um concerto entre arte e vida que combina a consciência histórica do presente à consciência estética do belo: “a modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”336. Segue-se a tal afirmação que “houve uma modernidade para cada pintor antigo”. Assertiva tão curiosa quanto central, pois desloca a questão da historicidade da modernidade: não se trata de afirmar e assumir tão somente a ruptura de um presente próprio à época de Baudelaire, mas sim de uma afirmação de todo e qualquer presente enquanto petição de princípio estético. Em toda e qualquer época, é preciso “compreender o caráter da beleza atual”337. Os “belos retratos” das épocas passadas estão revestidos de costumes da 334 Ibid., p. 174 SABOT, P. “Lectures de Baudelaire: Benjamin, Sartre, Foucault”, 2006, p. 1. Disponível em: <http://stl.recherche.univlille3.fr/seminaires/philosophie/macherey/macherey20052006/machereysabot08032006.html>. (Acesso em agosto de 2012). 336 BAUDELAIRE, C. “O pintor da vida moderna”, op. cit., p. 174. 337 Ibid., p. 175. 335 110 própria época: indumentárias, gestos, olhar, penteado, porte, sorriso, de modo que, em sua harmonia e aspiração ao belo, até mesmo “o passado, conservando o sabor do fantasma, recuperará a luz e o movimento da vida, e se tornará presente”338. Inversamente, é preciso que, como fruto dessa “teoria racional e histórica do belo”339, toda modernidade aspire e “seja digna de tornar-se Antiguidade”, extraindo “a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere”340. Talvez seja nesta direção que devamos compreender o elogio que Baudelaire dirige a seu contemporâneo Constantin Guys: G. tem um mérito profundo que lhe é peculiar; desempenhou voluntariamente uma função que outros artistas desdenharam e que cabia sobretudo a um homem do mundo preencher. Ele buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de Modernidade341. É este um dos pontos a partir dos quais podemos divisar a originalidade de Baudelaire: o poeta-crítico não apenas compõe um diagnóstico da modernidade em seus aspectos estritamente estéticos e literários (condições materiais e formais da prática poética), mas também em seu caráter sócio-político, na medida mesma em que, ao épouser la foule342, nos mostra que o artista não está excluído da multidão e em relação direta com o absoluto, mas mergulhado no turbilhão presente de seus semelhantes, no burburinho da realidade cotidiana e urbana, para daí extrair sua verdade poética. O poeta que perdeu sua aura num boulevard, agora faz botânica no asfalto. Não é de se admirar que Baudelaire tenha sido tão mal compreendido por seus contemporâneos. Mas não é menos digno de nota o fato de que este “lírico no auge do capitalismo” tenha sido retomado por escritores e filósofos que, com certo recuo, se 338 Ibid., p. 161. “Esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja uma, pois a dificuldade em discernir os elementos variáveis do belo na unidade da impressão não diminui em nada a necessidade da variedade em sua composição. O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão.”(Ibid., p. 162). 340 Ibid., p. 175. 341 Ibid., p. 212. 342 Trata-se de uma expressão presente tanto em O pintor da vida moderna (op. cit. p. 170), quanto no poema em prosa intitulado “Les Foules”, em BAUDELAIRE, C. Le Spleen de Paris. Paris, Le livre de poche, 1967, pp. 3739. 339 111 esforçaram em esboçar os contornos e explorar as diferentes faces de uma modernidade em crise, cujas formas moventes merecem ser por isso mesmo constantemente repensadas. Podemos afirmar que é neste grande painel que se inserem as análises de Benjamin 343 e a curta, mas não menos interessante, leitura de Foucault publicada em 1984, que buscam situar a obra, o pensamento e a vida de Baudelaire, tomados por ocasião como sintomas de uma atitude de modernidade da qual eles se propõem a retraçar o diagnóstico em vista de reativar um procedimento de análise crítica do presente. Evitemos, no entanto, a tentação de um debate direto entre a teoria crítica alemã e o pensamento francês contemporâneo e mantenhamo-nos por ora, tanto quanto possível, a oeste do Reno344. Foucault nos faz notar que, em alguma medida, as análises de Baudelaire parecem prolongar a reflexão kantiana sobre a modernidade. Tanto para o filósofo quanto para o poeta, ser moderno é adotar uma atitude que concilia sentimento de novidade e ruptura da tradição; é um posicionamento frente ao movimento do transitório, do novo, do fugidio que estabelece uma nova relação ao tempo presente. Entretanto, a definição da atitude de modernidade é agora ligeiramente agudizada pela referência lírica, e isto em um duplo sentido: num sentido “interno” à criação artística e num sentido “externo” à mesma. Do ponto de vista “interno”, teremos a “heroicização” do presente através da imaginação. Do ponto de vista “externo” darse-á o plano da “heroicização” pela construção e transfiguração de si que faz da existência uma obra de arte. Embora haja interdependência entre os dois sentidos, analisemos primeiramente o atinente à “heroicização” do presente pela imaginação. Tenta-se frequentemente caracterizar a modernidade pela consciência da descontinuidade do tempo; ruptura da tradição, sentimento da novidade, vertigem daquilo que passa. E é bem isto que parece dizer Baudelaire quando define a modernidade pelo “transitório, o fugidio, o contingente”. Mas, para ele, ser moderno não é reconhecer e aceitar esse movimento perpétuo; é, ao contrário, tomar uma certa atitude em relação a este BENJAMIN, W., op. cit. Note-se apenas a título comparativo que, para Benjamin, “a teoria da arte moderna é, na visão baudelairiana da modernidade, o ponto mais fraco”. (Ibid., p. 81). Para o filósofo alemão, a reflexão estética de Baudelaire sobre a modernidade não teria atingido em sua descrição e problematização a mesma qualidade e justiça de sua obra poética. Nesta direção, Les fleurs du mal e os Petits poèmes en prose seriam mais representativos da modernidade do que os textos aos quais Foucault se dedica, como “O pintor da vida moderna” e “Sobre o heroísmo da vida moderna”. 344 Para uma análise comparativa das leituras de Benjamin e Foucault acerca de Baudelaire, ver: MURICY, K. “O heroísmo do presente”. In: Tempo social – Revista de sociologia da USP, vol. 7 – nº 1-2, outubro de 1995; conforme também SABOT, P. Lectures de Baudelaire: Benjamin, Sartre, Foucault, op. cit.; Para um balanço mais geral das relações entre teoria crítica alemã e o pensamento foucaultiano, ver: ERIBON, D. Michel Foucault e seus contemporâneos, op. cit., sobretudo o capítulo 9: “A impaciência da liberdade” (Foucault e Habermas). 343 112 movimento; e esta atitude voluntária difícil consiste em retomar [resaisir] algo de eterno que não está para além do instante presente, nem atrás dele, mas nele. A modernidade se distingue da moda, que não faz senão seguir o curso do tempo; é a atitude que permite apanhar [saisir] o que há de “heroico” no momento presente. A modernidade não é um fato de sensibilidade ao presente fugidio; é uma vontade de “heroicizar” o momento 345 presente . Esta “heroicização do momento presente” em Baudelaire é ilustrada pela recomendação de utilização de personagens contemporâneos em pintura: escarnece o poeta dos pintores que representam os homens de seu tempo revestidos de togas antigas, que eles consideram como mais belas ou mais dignas. Ser moderno não consiste tampouco, para Baudelaire, em restabelecer a verdade vestindo de negro todos os personagens, visto que desdenha também aqueles que não visam senão representar o costume da época (a moda). Recusa, pois, tanto as togas antigas quanto a representação do negro pelo negro. O verdadeiro pintor da vida moderna deve antes detectar aquilo que é próprio de sua época, traduzir o que há de essencial, de eterno, de heroico na relação atual do homem, por exemplo, às roupas negras, qual seja, a relação constante e obsedante face à morte: Não será ela [a indumentária negra] indispensável à nossa época, que sofre e carrega até em seus ombros negros e magros o símbolo de um perpétuo luto? Note-se bem que a casaca e a sobrecasaca não têm apenas uma beleza política, expressão da igualdade universal, mas também uma beleza poética, que é expressão da alma pública; um imenso cortejo de papa-defuntos [croque-morts], de papa-defuntos políticos, papa-defuntos apaixonados, 346 papa-defuntos burgueses. Todos nós celebramos algum tipo de enterro . Encontrando assim na indumentária da moda – esta “segunda pele do herói moderno”347 – o “hábito necessário de nossa época”, depreende-se que aquilo que o poeta põe em cena “não é o elogio da mudança por ela mesma, mas uma alta consciência da singularidade do momento atual, que tem então alguma coisa de heroico”348. FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1388. BAUDELAIRE, C. “Do heroísmo da vida moderna”. In: A modernidade de Baudelaire – textos inéditos selecionados por Teixeira Coelho. Trad. de Suely Cassal. RJ, Paz e Terra, 1988, p. 25. 347 Ibid., p. 24. 348 DEKENS, O. “Qu'est-ce que les lumières?” de Foucault. Bréal, 2004, pp. 96-97. 345 346 113 Este heroísmo próprio à atitude do criador, do homem da modernidade, não é aquele do flanêur. O flâneur, na perspectiva de Foucault, recolhe o presente como uma “curiosidade fugidia e interessante”, visa o prazer fugaz do instante, que ele não pode reter: “contenta-se em abrir os olhos, prestar atenção e colecionar memórias”349. Ora, tampouco se trata, na atitude de modernidade, de sacralizar o momento que passa para tentar mantê-lo ou perpetuálo. A heroicização do presente, dirá Foucault, é “irônica”. Mas o que estaria tentando nos dizer com isso? Uma caracterização de Guys por Baudelaire pode nos ajudar a compreender o estatuto desta relação entre heroísmo e ironia: Assim ele vai, corre, procura. O quê? Certamente este homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o de um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a ideia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório350. O desenhista Constantin Guys aparece aqui como exemplo de atitude de modernidade uma vez que sua obra se compreende como transfiguração do real, como fixação idealizante do real pela imaginação. É neste sentido, parece-nos, que podemos relacionar a ironia a um ato de imaginação que, dando um passo além da postura heroica perante o presente, aponta para algo outro, ainda que do interior mesmo deste presente, como que em sua fronteira ou limite: “a atitude irônica implica a pesquisa no presente de práticas que oferecem a possibilidade de um novo modo de ação”351. Novo modo de ação que visa não apenas figurar, mas transfigurar o mundo. É esta a postura do pintor moderno por excelência: “na hora em que o mundo inteiro adormece, ele se põe a trabalho, e ele o transfigura. Transfiguração que não é anulação do real, mas jogo difícil entre a verdade do real e o exercício da liberdade”352. A transfiguração pelo ato livre da imaginação – imaginação criadora, e não reprodutora – é o que faz a originalidade e o valor da arte moderna aos olhos de Baudelaire; é ela que permite exprimir o real ultrapassando-o, anunciando já o que ele poderia ser. FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit. p. 1388. BAUDELAIRE, C. “O pintor da vida moderna”, op. cit., p. 173. 351 DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. “Qu'est-ce que la maturité? Habermas, Foucault et les lumières”. In: COUZENS HOY, D. (éd) Michel Foucault – lectures critiques (traduit de l'anglais par Jacques Colson). Bruxelles, De Boeck-Wesmael, 1989, p. 136. 352 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1389. 349 350 114 Insistamos mais do que o faz Foucault sobre este ponto crucial: é a imaginação do artista, ou melhor, do “homem do mundo” que constitui o caráter ativo de sua obra, que permite metamorfosear o presente. “Rainha das faculdades”353, a imaginação concentra o “poder demiúrgico”, “ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo”354. O que os “artistas positivistas”, que buscam se aferrar à “cópia da natureza”, não percebem é que esta é “apenas um dicionário”, que “todo universo visível é apenas um armazém de imagens e de signos aos quais a imaginação deve digerir e transformar”355. Digerir e transformar a tal ponto que as coisas “naturais” se tornem “mais que naturais”, que as coisas “belas” se tornem “mais que belas”. O artista não é apenas um criador de formas, mas um criador de ser, que tem na potência demiúrgica infinita da imaginação a infinita possibilidade do novo. O que se anuncia nesta urdidura é o potencial crítico356 transfigurador que a imaginação dimana sobre a realidade presente: Para a atitude de modernidade, o alto valor do presente é indissociável da obstinação a imaginá-lo, a imaginá-lo diferente do que ele é e a transformálo não o destruindo, mas captando-o naquilo que ele é. A modernidade baudelairiana é um exercício onde a extrema atenção ao real é confrontada à 357 prática de uma liberdade que ao mesmo tempo respeita este real e viola-o . Neste ponto escutamos mais do que um eco da atitude de modernidade kantiana. Como afirma Fabiènne Brugère, no domínio estético, interromper o presente para se dispor a atingir [saisir] a atualidade é transformar, fixar, idealizar (donde a heroicização) pela imaginação. O evento filosófico que é a modernidade é ilustrado com a atitude estética do criador. Poderíamos então compreender este evento como potência de dessemelhança358. BAUDELAIRE, C. “Salão de 1859”. In: A modernidade de Baudelaire – textos inéditos selecionados por Teixeira Coelho. Trad. de Suely Cassal. RJ, Paz e Terra, 1988, p. 76. “Sem ela, todas as faculdades, por mais sólidas ou aguçadas que forem, são como se não existissem, enquanto a debilidade de algumas faculdades secundárias, excitadas por uma imaginação vigorosa, é um mal menor” (Ibid., p. 77). Donde possamos compreender os elogios dirigidos a Delacroix e as reprovações a Ingrès e Courbet. 354 Id. “Salão de 1859”, op. cit., p. 76. 355 Ibid., p. 84. 356 “A imaginação, graças à sua natureza compensadora, contém o espírito crítico” (Ibid., p. 79) 357 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1389. 358 BRUGÈRE, F., op. cit., p. 87. 353 115 É esta “potência de dessemelhança” que acrescenta ao Sapere aude! kantiano “a feição que permite não só reconhecer os limites do que nossa atualidade se pode pensar, fazer e esperar, mas também ironizar estes limites: poder pensar, agir e sentir para além deles”. De modo que, destacará ainda Kátia Muricy, “o presente, carregado de possibilidades, pode ser objeto de uma construção, o que determina também uma mobilidade em suas relações com o passado”359. Baudelaire, portanto, permite colocar em perspectiva a especificidade criadora e irruptiva da atitude estética graças à força da imaginação. Eis, pois, o ponto de vista “interno” à criação artística. Não obstante, dizíamos que havia também na atitude baudelairiana um sentido “externo” ao ato artístico. Esse segundo sentido parece de algum modo redobrar a figura ética do acontecimento filosófico que é a modernidade em Kant. Ser moderno, para além da atenção à atualidade, consiste também em uma forma de relação a si, ou seja, em um exercício pessoal de construção de si enquanto recusa daquilo que se é. A atitude de modernidade baudelairiana visa engendrar um “si” que, ao mesmo tempo, recusa a identidade do “eu”, buscando elaborar uma sorte de sujeito ao termo de um trabalho rigoroso sobre si. Há aqui uma forma de ascetismo, que impõe ao indivíduo voluntariamente moderno uma dura obrigação de criatividade constante em relação a si mesmo. Como afirma Foucault: Para Baudelaire, a modernidade não é simplesmente forma de relação ao presente, é também um modo de relação que é preciso estabelecer consigo mesmo. A atitude voluntária de modernidade está ligada a um ascetismo indispensável. Ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar-se a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura360. Assim, o heroísmo ante o presente não aparece somente na obra produzida, mas no criador que se elabora ele mesmo, rigorosamente, fazendo de sua existência uma obra de arte. É isto que Baudelaire chama, “segundo o vocabulário da época”, “o dandismo”. Centremonos um momento sobre esta figura do dândi. Em O pintor da vida moderna, Baudelaire MURICY, K. “Foucault e Baudelaire”. In: PORTOCARRERO, V; CASTELO BRANCO, G, (org.) Retratos de Foucault. RJ, NAU, 2000, p. 306. 360 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit. p. 1389. 359 116 desenvolve alguns comentários sobre esses seres que “não têm outra ocupação senão cultivar a ideia do belo em suas próprias pessoas, satisfazer suas paixões, sentir e pensar”361. Representantes de uma “atitude altiva de casta”, de uma “doutrina da elegância e da originalidade”, o dandismo leva “o culto de si mesmo”362 – no que diz respeito a seu comportamento, seu corpo, seus sentimentos e paixões – ao estatuto de uma “instituição sem leis escritas”363, de uma disciplina tão despótica que beira as mais terríveis religiões364, aproximando-se mesmo do “espiritualismo e do estoicismo”. Aliás, dirá Baudelaire, “estranho espiritualismo! Para os que são ao mesmo tempo seus sacerdotes e suas vítimas”365. Todavia, a característica fundamental que Baudelaire parece encontrar no dândi, este “Hércules desempregado”366, não é um amor desmesurado pela indumentária e pela elegância física, mas antes a originalidade, o “caráter de oposição e de revolta”367 de seu espírito aristocrático perante a natureza “grosseira, terrestre, imunda”. Elaborar a si mesmo, para o dândi, significa construir-se como anti-natureza, reforçando assim, concomitantemente, a apologia do artifício na existência368. Antes de prosseguirmos, caberia aqui um questionamento e uma observação: estaria Foucault, através de Baudelaire, defendendo a postura do dândi como paradigma de homem moderno? Tratar-se-ia de uma apologia a uma “nova forma de dandismo versão fim de século XX”369? Estaria Foucault colocando em marcha um projeto de fundar uma nova espécie de “aristocracia”? Bem longe disso, acreditamos que Foucault parece encontrar na figura do dândi baudelairiano apenas uma das possíveis figuras do ato voluntário e ascético de BAUDELAIRE, C. “O pintor da vida moderna”, op. cit., p. 193. “Que é, pois, esta paixão que, transformada em doutrina, conquistou adeptos dominadores, essa instituição sem leis escritas, que formou uma casta tão altiva? É antes de tudo a necessidade ardente de alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências. É uma espécie de culto de si mesmo.” (Ibid., p. 194). 363 “O dandismo, instituição à margem das leis, tem leis rigorosas a que são estritamente submetidos todos os seus adeptos, quaisquer que forem, aliás, a audácia e a independência de seu caráter.” (Ibid., p. 193). 364 “Na verdade eu não estava completamente errado a considerar o dandismo como uma espécie de religião. A regra monástica mais rigorosa, a ordem irresistível do Velho da montanha, que recomendava o suicídio a seus discípulos inebriados, não eram mais despóticas nem mais obedecidas do que essa doutrina da elegância e da originalidade, que impõe igualmente a seus ambiciosos e humildes seguidores – homens muitas vezes cheios de ardor, de paixão, de coragem e de energia contida – a fórmula terrível: Perinde ao cadaver!” (Ibid., p. 195). 365 Ibid. 366 Ibid., p. 197. 367 Ibid., p. 196. 368 Diga-se de passagem que o “elogio da maquiagem” traz à luz um outro modo de reforçar esta perspectiva de valorização do artifício perante a “natureza”: “o mal é praticado sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre o produto de uma arte” (Ibid., p. 201); ou, ainda, “a moda deve ser considerada, pois, como um sintoma do gosto pelo ideal que flutua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de grosseiro, terrestre e imundo, como uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza.” (Ibid., pp. 201-202). 369 Assim acusa HADOT, P. “Réflexions sur la notion de „culture de soi‟”. In: Michel Foucault philosophe. Rencontre internationale, Paris (9, 10, 11 janvier 1988), Seuil (Coll. Des Travaux), 1989, p. 267. 361 362 117 modernidade. Num texto de 1983, intitulado “Sobre a genealogia da ética, um panorama do trabalho em curso”370, assegurará: Estaria ainda a ser feita uma história das técnicas de si e das estéticas da existência no mundo moderno. Eu evocava, ainda há pouco, a vida “artista”, que teve uma grande importância no século XIX. Mas poderíamos também considerar a Revolução não simplesmente como projeto político, mas como um estilo, um modo de existência com sua estética, seu ascetismo, as formas particulares de relação a si e aos outros371. Abertos os parênteses, mantenhamos, contudo, o foco na figura do dândi, que dizíamos caracterizar-se, sobretudo, por um ato voluntário e ascético. Ascético, frise-se, não no sentido de uma moral da renúncia, mas de um exercício de si sobre si pelo qual se busca elaborar-se, transformar-se e atingir certo modo de ser que, no caso do dândi, tem como télos a beleza da existência, ou uma existência bela. Talvez seja este o sentido mais geral que encontra sua síntese na “revolta indispensável do homem em relação a ele mesmo”372. Revolta através da qual encontramos não apenas a recusa de um “eu” por assim dizer “natural” que existe no fluxo dos momentos, mas, acima de tudo, a expressão da originalidade da existência, na qual o sujeito só pode se apresentar como “artificial”, como uma transfiguração voluntária de si que o torna belo, sem que para tanto tenha que renunciar ao transitório, ao circunstancial, ao histórico. Cenário que nos leva a crer que o sujeito moderno não é caracterizado por um princípio, natureza ou fundo humano que se encontre mascarado, aprisionado ou alienado, FOUCAULT, M. “À propos de la généalogie de l'éthique: un aperçu du travail en cours”, op. cit., p. 1448. Ainda sobre esta tópica, enfatizará Foucault em A coragem da verdade: “A revolução, no mundo europeu moderno […] não foi simplesmente um projeto político, foi também uma forma de vida. Ou, mais precisamente, ela funcionou como um princípio que determinava um modo de vida. E se vocês quiserem chamar por comodidade de 'militantismo' a maneira como foi definida, caracterizada, organizada, regrada a vida como atividade revolucionária, ou a atividade revolucionária como vida, podemos dizer que o militantismo, como vida revolucionária, como vida consagrada, total ou parcialmente, à Revolução, adquiriu, na Europa do século XIX e do XX, três grandes formas.” Que seriam: “a socialidade secreta, a organização instituída e, depois, o testemunho pela vida (testemunho da verdadeira vida pela própria vida)”. Este terceiro aspecto seria aquele de um “militantismo como testemunho pela vida, na forma de um estilo de existência. Este estilo de existência próprio do militantismo revolucionário, que assegura esse testemunho pela vida, está em ruptura, deve estar em ruptura com as convenções, os hábitos, os valores da sociedade. E ele deve manifestar diretamente, por sua forma visível, por sua prática constante e sua existência imediata, a possibilidade concreta e o valor evidente de uma outra vida, uma outra vida que é a verdadeira vida”. (FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: Curso no Collège de France (1983-1984). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes, 2011, pp. 161-162). 372 Id. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1389. 370 371 118 mas por um princípio de prática de liberdades, por um “fazer-se”. O sujeito moderno, nesse sentido, “não é aquele que parte em descoberta dele mesmo, de seus segredos e de sua verdade escondida; é aquele que procura inventar a si mesmo”. De modo que, complementa Foucault, “esta modernidade não libera o homem em seu ser próprio; ela o compele à tarefa de se elaborar a si mesmo”373. Um último ponto a sublinhar conflui com o derradeiro parágrafo que Foucault dedica ao poeta no texto que temos em foco: Esta heroicização irônica do presente, este jogo da liberdade com o real para sua transfiguração, esta elaboração ascética de si, Baudelaire não concebe que eles possam ter lugar na sociedade ela mesma ou no corpo político. Eles não podem se produzir senão em um lugar outro que Baudelaire chama arte374. Posto isto, como compreender tal desfecho? Poder-se-ia concluir, como o faz Olivier Dekens, que esta última observação de Foucault sobre Baudelaire seria também uma “crítica de sua concepção de modernidade”: Baudelaire não crê que um tal trabalho da imaginação seja possível na sociedade ou nas instituições políticas. Somente a arte é um terreno propício à expressão da modernidade. Foucault não acrescenta nenhuma palavra a mais, mas compreendemos que uma tal limitação não é para ele legítima, e 373 Ibid., p. 1390. Tendo isso em vista, não é de menor importância ressaltar a distância que Foucault estabelece entre esta concepção de sujeito, apoiada num fazer-se, ou ainda, no “princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos”, daquela dos diversos “humanismos” que vigoraram na Europa em seus diversos conteúdos e julgamentos de valor (seja o humanismo cristão, ateu, anti-científico, científico, marxista, stalinista, nacional-socialista, personalista, existencialista etc.). Não porque se deva simplesmente rejeitar todo e qualquer humanismo, mas porque, ao ver de Foucault, “a temática humanista é ela mesma demasiado frágil [souple], demasiado diversa, demasiado inconsistente para servir de eixo à reflexão. É um fato que ao menos desde o século XVII isto que chamamos de humanismo sempre foi obrigado a apoiar-se sobre certas concepções do homem que são emprestadas à religião, à ciência, à política. O humanismo serve para colorir e justificar as concepções do homem as quais ele é obrigado a fazer recurso” (Ibid., p. 1392). Mais do que isso, o filósofo francês parece enxergar mesmo – menos neste que em outros contextos, ressalte-se – certo “perigo” representado pela possibilidade de “essencialização”, de “normatização” de um padrão “humano” universal que possa ser aleatoriamente adotado e imposto (tal como ocorreu nos regimes totalitários com a figura do “homem novo” ou do “homem ariano”). Por sua vez, o “princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia” nos dá por ofício um elaborar-se constante que não está sujeito a um acabamento ou à entrega do homem – ou do “humano” – em sua essência. 374 Ibid., p. 1390. 119 que é precisamente no domínio político que a atitude moderna, quer dizer, 375 no fundo, a atitude filosófica, é hoje indispensável . Ora, é na medida mesma em que Foucault “não acrescenta nenhuma palavra a mais” que outra interpretação deste remate faz-se possível. A leitura de Dekens culmina por restringir a atitude de modernidade de Baudelaire a um suposto nicho artístico, suscitando uma desagregação que não poderia deixar de provocar certa estupefação, visto que a “heroicização irônica do presente” e o “jogo da liberdade com o real para sua transfiguração” não poderiam, por exemplo, deixar de ser socialmente situados e de conter efeitos políticos, o que nos leva a crer que se trata menos de uma ausência (ou de uma “limitação”, como argumenta) do que de uma ressignificação destes campos. De fato, os efeitos políticos que poderíamos esperar da atitude de modernidade baudelairiana dificilmente seriam aqueles voltados à adesão de uma política “corporativa” preestabelecida ou institucional (isto é, o “corpo político”) ou de homologação pura e simples desta ou daquela ordem social (a “sociedade ela mesma”). Parece haver na atitude de modernidade de Baudelaire uma ambiguidade fundamental que “respeita” a realidade em que nos é dado viver, com suas convenções, regras, leis sociais e políticas (posto que é somente a partir dela que se pode agir) e que, ao mesmo tempo, está em ruptura com as convenções, os hábitos, os valores da sociedade, “violando”, portanto, toda forma adquirida, isto é, o mundo dos fatos, o “real”376. Trata-se, nas palavras de Foucault, de “um militantismo no mundo, contra o mundo”377. Nesse ínterim, o “lugar outro” da arte complexifica-se à medida que pode ser tomado como este âmbito no qual a arte aparece em um “lugar”, isto é, situada (histórica, social e politicamente), mas que, ao mesmo tempo, é um lugar “outro”, pois aponta, através da potência imaginativa, para a “transfiguração” da situação presente. Transfiguração que deve ser encarada tanto em termos sócio-históricopolíticos (o “jogo da liberdade com o real”), quanto em termos ético-subjetivos (a “elaboração ascética de si”). O “lugar outro” da arte, como lugar da atitude de modernidade, permite, assim, descortinar uma relação entre ética e política – e mesmo a possibilidade de sua 375 DEKENS, O., op. cit., p. 98. Após citar nominalmente Baudelaire, Flaubert e Manet, Foucault destaca, no curso de 1984, que “a arte estabelece com a cultura, com as normas sociais, com os valores e com os cânones estéticos uma relação polêmica de redução, de recusa e de agressão. É o que faz a arte moderna, desde o século XIX, esse movimento pelo qual, incessantemente, cada regra estabelecida, deduzida, induzida, inferida a partir de cada um desses atos precedentes, se encontra rejeitada e recusada pelo ato seguinte”. (FOUCAULT. M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II, op. cit., p. 165). 377 Ibid., p. 251. 376 120 transfiguração –, sob condição de que a estas não se restrinja: não basta que sua atitude seja a de um militantismo no mundo, é preciso que se apresente também como um militantismo por um mundo outro, por um “lugar outro”, cujo advento suporia a transformação do mundo presente. Dessa forma, a tarefa de elaborar a si mesmo, de transfigurar-se e, ao fazê-lo, transfigurar este mundo, apresenta-se como uma filosofia da existência que é ao mesmo tempo arte da existência, ou ainda, trata-se do despontar de uma “estética da existência” que, por sua vez, como ressaltamos, não deixa de estar entrelaçada a uma atitude simultaneamente ética e política em face do tempo presente. Mais do que isso, o “exemplo” de Baudelaire parece nos lembrar do quanto esta estética da existência, do quanto este “cuidado (estético) de si é moderno”378. Estética da existência que redobra o ato ao mesmo tempo filosófico, ético e político do Sapere aude! kantiano na exigência de uma mudança pessoal, de um trabalho sobre si que é transfiguração de si (e de um “nós”) na atualidade. Por fim, a partir de Kant e Baudelaire, e para além destes, Foucault rearticula a relação entre arte e vida, entre ética e política, alargando sua força e alcance. Frise-se, não se trata de “retomar”, num apelo nostálgico, Baudelaire ou Kant enquanto programas (revenant que caracterizaria, aliás, um expediente “pós-moderno”379), mas sim de reatualizar e repotencializar uma atitude em face do presente existente nestes autores. Atitude que condensa a unidade indissociável e irredutível da dimensão ética, política e estética que cumpre à filosofia realizar através de seu incansável trabalho crítico sobre o presente, ou melhor, sobre a atualidade. É neste ponto que o melhor da tradição crítica alemã parece por fim encontrar-se e mesclar-se com a “tradição da ruptura” típica do modernismo estético tão propalado pelas vanguardas heroicas. Seria o caso de dizer – e aqui concordando e ao mesmo tempo discordando de Huyssen – que mais do que uma teoria da modernidade, Foucault colocaria em cena uma teoria moderna por excelência? 378 BRUGÈRE, F., op. cit., pp. 88-89. Sublinhemos que, no início de O uso dos prazeres, no momento em que anuncia sua empreitada de pensar historicamente uma estética da existência, Foucault grafará em nota de rodapé: “[…] não seria exato acreditar-se que, desde Buckhardt, o estudo dessas artes e dessa estética da existência foi completamente negligenciado. Podemos pensar no estudo de Benjamin sobre Baudelaire.” (FOUCAULT, M. História da sexualidade vol. 2 – O uso dos prazeres, op. cit., p. 15). Nessa direção, poderíamos afirmar que Foucault entrevê nos estudos de Benjamin sobre Baudelaire a atenção e a possibilidade de uma história das artes da existência e das técnicas de si no perscrutar mesmo da modernidade. Perspectiva que se afirma de modo diametralmente oposto à afirmação de que “o sujeito positivo da época moderna se faz independentemente de todo cuidado ético ou estético” (BERNAUER, J. “Par-delà vie et mort”. In: Michel Foucault philosophe. Rencontre internationale, op. cit., p. 313). 379 “Se o pós-estruturalismo pode ser visto como o revenant do modernismo sob o disfarce da teoria, é justamente isto que o faz pós-moderno.” (HUYSSEN, A., op. cit., p. 63). 121 3.3. Por uma modernidade atual Postas as cartas à mesa, retornemos à interrogação de partida deste capítulo: o que levaria à rotulagem de “pós-moderno” de um autor que propõe um entrelaçamento tão vivo entre arte e vida, anulando inclusive suas dicotomias com a ética e a política? Acreditamos não ser este senão o resultado de uma concepção demasiado limitada de modernidade, que exclui a dimensão da estética modernista em favor de uma concepção de modernidade restrita à dimensão “político-jurídica” do Iluminismo380. Talvez seja justamente esta proximidade da modernidade francesa, de modo geral, ao modernismo estético que torne pouco compreensível uma ruptura radical entre “moderno” e “pós-moderno” em seu contexto intelectual. Possivelmente explique também por que, mais do que assumir “o pós-moderno como condição histórica e cultural” e daí procurar explorar o “potencial crítico e de oposição” 381 do pós-modernismo nas artes, Foucault pareça defender uma atitude crítica permanente (em suas quatro dimensões explicitadas), independentemente da denominação estrita do período ou sociedade em que vivemos: “pós-moderno”, “hiper-moderno”, “pós-histórico”, “sociedade de consumo”, “sociedade do espetáculo”, “sociedade pós-industrial”, “pós-utópica” etc. O que está em jogo, pois, não é um conceito e sua efetivação ou superação, mas uma atitude ante a realidade histórica contemporânea, melhor, ante a atualidade. * * * Concordamos neste ponto com Andreas Huyssen, que não deixará de notar que “a investida de Habermas contra a visão francesa pós-nietzschiana da modernité, qualificando-a simplesmente de anti-moderna ou pósmoderna, implica uma noção demasiado limitada da modernidade, pelo menos em relação à modernidade estética”. (Ibid., p. 54). 381 Programa este que é, basicamente, o de Huyssen: “devemos, na medida do possível, resgatar o pós-moderno de seu suposto conluio com o neoconservadorismo; sugiro também que exploremos a questão de se o pósmodernismo pode ou não abrigar contradições produtivas, talvez mesmo um potencial crítico e de oposição. Se o pós-moderno é realmente uma condição histórica e cultural (embora transitória ou incipiente), então as práticas e estratégias culturais de contestação devem ser localizadas no interior do pós-modernismo.” (Ibid., p. 49). 380 122 Chegaríamos assim, por fim, ao termo de uma linha argumentativa capaz de caracterizar de uma vez por todas “o pensamento” ou “a filosofia” de Michel Foucault? Dificilmente, visto que Foucault considera aquilo que poderíamos chamar de “atividade filosófica” como um incessante “trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento”382. O que significa dizer que nos deparamos com uma noção de “atividade filosófica” – e, correlatamente, de “pensamento” – que não se fecha nas afirmações categóricas de suas “descobertas” ou na defesa intransigente de determinado “campo intelectual” específico, que não se apresenta como uma doutrina que encerra conceitos ou “teorias” a priori desde já prontas a serem explanadas com a calma de quem cumpre um itinerário previamente traçado e coeso de ponta a ponta. Ao contrário, o que podemos divisar é uma atividade que se constitui amplamente a partir do enfoque atual de seus objetos de estudo, suscitando a inquietação constante de sua abordagem metodológica, histórica, filosófica, política. Inquietação que almeja “saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe”383, que assume o risco da errância e do “descaminho daquele que conhece”, constituindo-se como um “exercício”, como uma “experiência modificadora de si”384 que não hesita, portanto, em colocar-se constantemente em questão e, nesse movimento, colocar em questão a própria noção apaziguadora e reconfortante de uma identidade estanque, necessária e universal capaz de fundar o conhecimento e o princípio de toda significação. A abertura deste questionamento encaminha Foucault à investigação das formas históricas de subjetivação, levando-o a enfatizá-las enquanto processos variados de constituição que põem em cena os diferentes modos de relacionar-se a si, aos outros e à cidade. Nesse ínterim, os estudos a propósito do “cuidado de si”, da parrhesia ou da “atitude de modernidade” são profundamente solidários de uma interrogação que busca articular em sua urdidura histórica os diferentes modos de relação não apenas ao conhecimento, mas também à ética, à política e à estética, configurando por sua vez diferentes “modos de vida”. Esta démarche traz consigo a possibilidade de aceder a “experiências” que se elaboram como indagações abertas e que carregam, por conseguinte, a constante possibilidade de pensar, sentir e agir para além dos limites que enquadram os campos de saber, os tipos de normatividade e as formas de subjetividade próprias a determinada época e cultura. FOUCAULT, M. História da sexualidade vol. 2 – O uso dos prazeres, op. cit., p. 13. Ibid. 384 Ibid. 382 383 123 Ora, ao ter em vista que Foucault conduz suas análises a partir de questões presentes que concernem diretamente a nossa modernidade, podemos julgar que ele não estaria distante deste exercício que visa a um só tempo esquadrinhar e transpor os limites atuais de nossa “experiência”. Se assim for, poderemos afirmar que os últimos empreendimentos de Foucault não se apresentam exatamente como uma “conclusão”, mas como uma abertura de perspectivas que desdobra um campo propício à modificação de nós mesmos, sujeitos modernos. Trata-se de um convite a uma relação ativa, permanente e crítica diante do presente, de um trabalho incessante sobre nossos limites atuais, atitude que certa vez Foucault ousou designar como “um labor paciente que busca dar forma à impaciência da liberdade”385. 385 FOUCAULT, M. “Qu'est-ce que les Lumières?”, nº 339, op. cit., p. 1399. 124 Referências bibliográficas ADORNO, F. P. Le style du philosophe – Foucault et le dire vrai. 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