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MARTINS, Roberto de Andrade. As fontes literárias do ‘Tratado da Esfera’ de Sacrobosco.
Pre-print, junho de 2022. Disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.6614975
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AS FONTES LITERÁRIAS DO TRATADO DA ESFERA
DE SACROBOSCO
Roberto de Andrade Martins
Resumo: O Tratado da Esfera de Johannes de Sacrobosco, escrito no início do século XIII, foi
um dos mais famosos textos astronômicos jamais escritos. Ao longo dessa obra, o autor citou
trechos de três poetas latinos clássicos: Virgílio, Lucano e Ovídio. Este artigo descreve essas
citações e seu contexto na obra de Sacrobosco, procurando interpretar o motivo pelo qual o autor
introduziu essas menções. Comparando a ocorrência de citações literárias no Tratado da Esfera
com aquilo que pode ser encontrado em outras obras de conteúdo astronômico anteriores, da
mesma época e posteriores, é apresentada a interpretação de que o objetivo principal era fornecer
esclarecimentos sobre os próprios textos literários, cujas menções a fenômenos astronômicos
podiam ser obscuras ou incompreensíveis para os leitores.
Palavras-chave: Sacrobosco, Johannes de; Tratado da Esfera; história da astronomia; astronomia
medieval; literatura e astronomia; astronomia cultural
1. INTRODUÇÃO
O Tratado da Esfera de Johannes de Sacrobosco, escrito no início do século XIII, foi um
dos mais famosos textos astronômicos jamais escritos. Durante a Idade Média foi reproduzido
e estudado sob forma de inúmeros manuscritos, e depois do desenvolvimento da imprensa
foram publicadas mais de 200 edições dessa obra. Lynn Thorndike, em seu estudo sobre o
Tratado da Esfera, indica várias das fontes de informação em que Sacrobosco se baseou para
escrever esse texto, como Alfraganus, Ptolomeu e Macrobius. Certamente Sacrobosco utilizou
diversas fontes astronômicas e filosóficas, mas além disso é notável o grande número de pontos
em que ele cita poetas clássicos: Virgílio, Ovídio, Lucano.
Os livros sobre história da astronomia não costumam se referir aos textos literários clássicos.
Mesmo uma obra tão ampla como o Système du Monde, de Pierre Duhem, passa por alto esse
tipo de fontes (Duhem, 1913-1959). No entanto, um estudo mais cuidadoso mostra que,
paralelamente às discussões astronômicas dos matemáticos e dos filósofos, houve uma longa
tradição astronômica e astrológica que fez parte da literatura clássica, não apenas entre os
autores romanos mas também entre os gregos (por exemplo, Hesíodo). Em obras poéticas –
como também em obras que falam sobre a vida no campo – encontramos muitas vezes
descrições dos fenômenos celestes e de suas influências sobre fenômenos terrestres.
Os textos literários clássicos citados por Sacrobosco são as Geórgicas de Virgílio, a Farsália
de Lucano, e quatro obras de Ovídio: Metamorfoses, Tristia, Ex Ponto e Fastos. Por que teria
1
Roberto de Andrade Martins
Sacrobosco citado essas obras? Seria comum, na Idade Média, apresentar citações literárias?
Tais citações cumprem algum papel essencial ao texto, ou seriam dispensáveis? O presente
trabalho analisa as partes relevantes desses textos, procurando esclarecer se Sacrobosco os
utilizou apenas para ilustrar sua obra, ou se realmente extraiu dos mesmos informações
específicas que não seriam encontradas com facilidade em outras fontes.
Além de estudar as fontes literárias clássicas citadas por Sacrobosco, este trabalho analisa
essa tradição astronômica paralela e pouco conhecida, mostrando sua forte influência em
autores anteriores a Sacrobosco (como, por exemplo, Macrobius e Martianus Capella). É
importante resgatar a tradição astronômica literária, sem cujo conhecimento torna-se difícil
compreender o desenvolvimento de obras tão importantes quanto o Tratado da Esfera.1
2. O TRATADO DA ESFERA
Johannes de Sacrobosco2 (ou John of Holywood) nasceu na Inglaterra ou Escócia no final
do século XII e morreu em Paris, em 1244 ou 1256 (Daly, 1970; Thorndike, 1949). Acreditase que ele estudou em Oxford, tornou-se um cânone da ordem de Santo Agostinho e em 1220
mudou-se para Paris, onde lecionou matemática e permaneceu até seu falecimento. Pouco
depois de mudar-se para a França, aproximadamente em 1230, completou sua obra mais
famosa, De Sphæra, um pequeno tratado astronômico baseado em Ptolomeu, em obras
astronômicas árabes (especialmente Alfraganus) e outras fontes.
Essa obra apresenta os conceitos astronômicos fundamentais, sem empregar cálculos
matemáticos, utilizando uma forma adequada para os estudos medievais do quadrivium, as
quatro disciplinas matemáticas, que eram: aritmética, geometria, música e astronomia. Esse
Tratado da Esfera começou a ser utilizado como livro texto na Universidade de Paris,
propagando-se rapidamente por toda a Europa. Antes do final do século XIII já havia se tornado
extremamente popular. Logo passou a constituir-se leitura obrigatória não apenas na
Universidade de Paris, mas também em Bologna, Oxford, Viena e outras universidades
(Gingerich, 1988). Até o século XV, o Tratado da Esfera foi estudado e reproduzido sob a
forma de manuscritos. Depois da invenção da imprensa de tipos móveis, essa obra foi um dos
primeiros livros científicos publicados. Posteriormente, houve mais de 200 edições do texto de
Sacrobosco, geralmente com adições e comentários, que circularam até o século XVIII. Foi o
tratado astronômico mais popular de todos os tempos.
A popularidade do Tratado da Esfera pode ser atribuída à sua clareza e à sua simplicidade.
É uma obra astronômica que se dedica aos conceitos básicos, deixando de lado quase todos os
aspectos matemáticos. É um trabalho bem estruturado, curto, que ocupa menos de 30 folhas nos
incunábulos e menos do que isso em edições e traduções recentes.
3. AS FONTES DE SACROBOSCO
Quais foram as fontes em que Sacrobosco se baseou para escrever o Tratado da Esfera? Ele
mencionou astrônomos como Cláudio Ptolomeu (séc. II d.C.) e Alfragano ou Abū al-ʿAbbās
Aḥmad ibn Muḥammad ibn Kathīr al-Farghānī (aprox. 800/805–870). Não mencionou
Aristóteles, mas o pensamento aristotélico é o fundo filosófico básico do livro. Lynn Thorndike
supõe que ele utilizou também algumas obras medievais que não citou (Thorndike, 1949, pp.
19-21), como as de Guillaume de Conches (aprox. 1080-1150) e Macrobius Ambrosius
1
O presente trabalho foi redigido em 2002-2003. Uma primeira versão, curta, foi apresentada em um
evento realizado em 2002 e publicada no ano seguinte (Martins, 2003). Esta versão completa nunca foi
publicada, anteriormente.
2 Há muitas grafias diferentes do nome latinizado desse autor. Por motivo que desconheço, os
bibliotecários preferem utilizar a grafia Joannes de Sacro Bosco e os historiadores da ciência geralmente
utilizam a forma Johannes de Sacrobosco, que será empregada aqui.
2
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
Theodosius (aprox. 370-430 d.C.), além de outros filósofos e astrônomos. Compreendemos
com facilidade o uso dessas fontes por Sacrobosco. Porém, o aspecto curioso é que o Tratado
da Esfera se refere em muitos lugares a autores clássicos que não eram nem filósofos, nem
astrônomos: Virgílio, Ovídio, Lucano.3 Ele não apenas indica seus nomes, mas também
transcreve trechos de suas obras.
Dois dos textos literários clássicos são citados em vários pontos: Georgicæ, de Virgílio –
nove citações; Pharsalia, de Lucano – oito citações. Há também menções de quatro obras
Ovídio: Metamorphoses; Ex Ponto; Tristia; Fasti (uma referência de cada um desses livros).
Finalmente, devemos indicar que Sacrobosco citou quatro outras passagens em verso sem
mencionar seus autores. Uma delas é do poeta Ausonius, do século IV. As outras não foram
identificadas. Não vamos nos deter nesses pontos mais obscuros.
Qual era o objetivo do uso desses autores clássicos em um texto astronômico? Por que teria
Sacrobosco citado essas obras? Seria comum, na Idade Média, apresentar citações literárias?
Tais citações cumprem algum papel essencial ao texto, ou seriam dispensáveis? Podemos
imaginar diversas explicações: talvez ele quisesse ostentar sua erudição; ou então, para
esclarecer os conceitos com o uso de imagens literárias; ou para tornar o texto mais sugestivo.
No entanto, não é evidente qual teria sido o objetivo de Sacrobosco, quando utilizava essas
menções de poetas clássicos.
4. RELEVÂNCIA ASTRONÔMICA DOS TEXTOS LITERÁRIOS
A escolha dos textos literários utilizados por Sacrobosco não parece ter sido arbitrária. Dois
dos clássicos utilizados por Sacrobosco (as Geórgicas e os Fastos) possuem relevância
astronômica bastante direta. As Geórgicas de Virgílio são um poema didático sobre a vida no
campo, com informações a respeito de agricultura, pecuária, etc. A determinação das estações
do ano propícias a cada atividade depende de informações astronômicas que estão, portanto,
presentes em grande quantidade. Os Fastos de Ovídio, por outro lado, são uma descrição
pormenorizada do calendário romano.4 São fenômenos astronômicos que determinam as datas
mais importantes do ano e, por isso, era natural que houvesse referências astronômicas nesta
obra, com a indicação bastante detalhada do surgimento e desaparecimento das várias
constelações e estrelas com o passar dos meses.
Além das citações que Sacrobosco efetivamente utilizou no Tratado da Esfera, as Geórgicas
e os Fastos contêm muitas outras partes relevantes para a astronomia, às quais ele poderia ter
se referido.
As outras obras clássicas citadas no Tratado da Esfera, no entanto, possuem poucas
conexões com a astronomia. A Farsália de Lucano, também denominada Sobre a guerra civil,
é uma obra de natureza histórica. As Metamorfoses de Ovídio contêm principalmente relatos
mitológicos; Tristia e Ex Ponto são séries de cartas escritas por Ovídio, durante seu exílio. Não
esperaríamos encontrar um grande número de informações astronômicas em nenhum desses
livros e, de fato, eles não contêm uma quantidade significativa de conexões com a astronomia.
Apesar disso, têm um pequeno número de trechos onde aparecem efetivamente alguns
enunciados astronômicos relevantes.
Há um aspecto interessantes que devemos comentar. Essas e outras obras literárias antigas,
que não se destinavam a transmitir informações astronômicas, continham efetivamente certo
número de trechos associados a fenômenos astronômicos, como os citados por Sacrobosco, que
mostram que a cultura clássica estava impregnada por tais conhecimentos. Geralmente, tais
informações aparecem de forma natural, em contextos adequados, sendo indícios de que a
3
Publius Vergilius Maro (70-19 a.C.), Publius Ovidius Naso (43 a.C.-18 d.C.) e Marcus Annaeus
Lucanus (39-65 d.C.). Serão utilizados aqui os nome aportuguesados desses autores.
4 Foi conservada apenas a descrição dos seis primeiros meses do ano romano.
3
Roberto de Andrade Martins
astronomia fazia parte da cultura geral, naquela época. De fato, há uma grande variedade de
campos de conhecimento que, na Antiguidade clássica, estavam diretamente conectados à
astronomia: a mitologia (pois os planetas e as constelações tinham relação com deuses e outros
seres sobrenaturais); a geografia (pois as direções geográficas e as divisões da superfície da
Terra dependiam de conhecimentos astronômicos); a meteorologia (pois o clima variava ao
longo do ano e parecia depender do aparecimento de certos astros ou constelações); a navegação
(pois os antigos pilotos se orientavam pelas estrelas, quando atravessavam o Mediterrâneo);
agricultura, pecuária e caça (pois havia ciclos anuais envolvendo as plantas e os animais, que
pareciam ser regidos pelos astros); a astrologia (que às vezes era inseparável da astronomia); a
medicina (pois os fenômenos celestes pareciam ser a causa de epidemias e as doenças
individuais eram associadas ao horóscopo de cada pessoa); o calendário (por motivos já
mencionados); as festas religiosas (relacionadas com o ciclo anual, com fases da Lua, com o
surgimento de constelações) e diversas técnicas, incluindo a alquimia e a magia (que
consideramos superstições, mas faziam parte da cultura antiga).5
Vamos analisar a seguir todos os trechos dessas obras que são citados no Tratado da Esfera.
Depois de analisa-los, procuraremos esclarecer se Sacrobosco os utilizou apenas para ilustrar
sua obra, ou se realmente extraiu dos mesmos informações específicas que não seriam
encontradas com facilidade em outras fontes.
5. AS GEÓRGICAS
Das fontes literárias usadas por Sacrobosco, o maior número de menções é às Geórgicas de
Virgílio6. Há nove citações, que aparecem espalhadas no Tratado da Esfera (capítulos 2, 3 e 4).
Oito das nove citações são extraídas de dois pequenos trechos do livro I das Geórgicas; a citação
restante é tirada do final do livro II.
Virgílio era de uma família de criadores de rebanhos. As Geórgicas são consideradas como
um conjunto de poemas didáticos sobre a vida no campo. Cada um dos quatro livros tem um
tema principal. O primeiro livro trata da agricultura, o segundo sobre cultivo de árvores, o
terceiro sobre pecuária e o quarto sobre abelhas. As Geórgicas, assim como outras obras de
Virgílio, foram adotadas como textos de estudo literário durante a Idade Média, tornando-se
parte da cultura erudita transmitida nas universidades.
O primeiro dos trechos do livro I citado por Sacrobosco (Virgílio, Geórgicas I, 215-230)
descreve os sinais celestes adequados para realizar a semeadura de diferentes tipos de grãos. O
segundo trecho, que vem logo em seguida (Virgílio, Geórgicas I, 231-251), fala sobre as
diferentes zonas celestes (e zonas terrestres correspondentes). Por fim, o terceiro trecho
(Virgílio, Geórgicas II, 475-483) descreve alguns fenômenos envolvendo o Sol e a Lua, como:
eclipses, a maior duração das noites no inverno e a influência celeste nos terremotos e marés.7
Trata-se, portanto, de trechos das Geórgicas que abordam assuntos de relevância
astronômica. Podemos nos perguntar, no entanto, se esses são os únicos trechos dessa obra de
Virgílio onde são tratados temas astronômicos; e se há algum motivo especial para que
Sacrobosco se refira a esses trechos e a esta autoridade.
5
A respeito dos aspectos culturais mais amplos da Astronomia na Antiguidade, pode-se consultar
Martins, 2021 [nota adicionada em 2022].
6 Publius Vergilius Maro viveu aproximadamente de 70 a 19 a.C. e escreveu as Geórgicas entre 37 e 30
a.C.
7 No caso de todas as obras clássicas citadas por Sacrobosco, não vamos indicar aqui a página de
nenhuma edição ou tradução específica e sim a localização do trecho de acordo com as edições
tradicionais, apontando o número do livro em algarismos romanos e os versos em algarismos arábicos.
4
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
Vejamos agora as citações, onde o trecho em negrito é a parte citada por Sacrobosco no
Tratado da Esfera. Em cada uma delas, vamos fornecer primeiro a tradução para o português,
depois o texto em latim.
Na primavera são semeadas as favas; a ti também, alfafa, os sulcos aceitam e retorna o
cuidado anual do painço, quando o Touro brilhante, com seus chifres dourados abre o ano,
ante cuja ameaça a estrela do cão se esconde. (Virgílio, Geórgicas I, 215-218)
Uere fabis satio; tum te quoque, medica, putres / accipiunt sulci et milio uenit annua cura, /
candidus auratis aperit cum cornibus annum / Taurus et auerso cedens Canis occidit astro.
Vejamos o contexto do Tratado da Esfera em que essa menção aparece e que é uma
explicação do significado de “nascimento cósmico” de uma constelação:
[...] o signo com o qual e no qual o Sol nasce na manhã diz-se que nasce cosmicamente. E
este nascimento é dito próprio e principal e quotidiano. Temos um exemplo desse nascimento
nas Geórgicas, onde é ensinada a plantação das favas e do milho alvo no tempo da primavera,
quando o Sol está em Touro, assim: “O touro branco com chifres brilhantes abre o ano, / e o
cão, cedendo à estrela adversa, se põe.” (Sacrobosco, 2006, pp. 13v-14r)8
Uma parte da mesma passagem é citada em outro ponto do Tratado da Esfera:
O ocaso é helíaco quando o Sol se aproxima de um signo e por sua presença e luminosidade
não permite que este seja visto. Um exemplo disso está no verso citado, a saber: “E o cão,
cedendo à estrela adversa, se põe”. (Sacrobosco, 2006, p. 14v)
Vejamos os trechos seguintes das Geórgicas que são citados por Sacrobosco.
Mas se for para colheitas de trigo e da ervilhaca resistente que te esforças arando o solo, e se
as espigas são teu único objetivo, deixa que as filhas de Atlas se ocultem no amanhecer, e
que a estrela de Creta, da coroa de fogo, parta, antes que coloque nos sulcos a semente que
lhes é devida, ou então entregarás a esperança do ano prematuramente à terra que não coopera.
(Virgílio, Geórgicas I, 219-224)
At si triticeam in messem robustaque farra / exercebis humum solisque instabis aristis, / ante
tibi Eoæ Atlantides abscondantur / Cnosiaque ardentis decedat stella Coronæ, / debita quam
sulcis committas semina quamque / inuitæ properes anni spem credere terræ.
No Tratado da Esfera, essa citação é utilizada na explicação do significado de “ocaso
cósmico” de uma constelação:
O ocaso cósmico diz respeito à oposição, a saber, quando o Sol se ergue com um signo, cujo
signo oposto se põe cosmicamente. Esse ocaso é citado nas Geórgicas, onde é ensinado o semear
do trigo no final do outono, quando o Sol está em Escorpião. Pois quando ele se ergue com o
Sol, o Touro, signo que lhe é oposto, onde estão as Plêiades, se põe. Assim: “Quando diante de
ti as Atlântidas se escondem, / entregue a semente, como é devido, ao sulco.” (Sacrobosco, 2006,
p. 14r)
Ao fazer essa menção às Geórgicas, Sacrobosco omitiu um trecho intermediário, que
utilizou, no entanto, em outro ponto do Tratado da Esfera:
8
Para facilitar a consulta dos pontos do Tratado da Esfera aqui citados, vamos indicar a paginação de
nossa edição acompanhada de tradução (Sacrobosco, 2006), que está disponível gratuitamente na
Internet. A tradução do trecho correspondente, no Tratado da Esfera, não é idêntico à tradução da obra
latina correspondente, porque as fontes das traduções utilizadas são diferentes.
5
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O nascimento é helíaco ou solar quando o signo ou estrela pode ser visto por causa da
distância do Sol até ele; enquanto previamente não podia ser visto pela proximidade do Sol. [...]
Virgílio, nas Geórgicas: “E a estrela de Gnosos da coroa flamejante desce.” A qual, estando
perto de Escorpião, não era visível enquanto o Sol estava em Escorpião. (Sacrobosco, 2006, p.
14v)
Sacrobosco utilizou um trecho das Geórgicas que se refere à divisão do céu (e da Terra) em
cinco zonas geográficas:
O Sol dourado controla os astros do mundo, dividindo para isso seu orbe em doze partes
exatas. O céu contém cinco zonas; sobre uma das quais brilha sempre o Sol, sempre rubra
e tórrida pelas suas chamas; em volta dos extremos, para a direita e para a esquerda9, estão as
regiões cinzentas, enrijecidas pelo gelo, e negras pela chuva; entre essas duas e a zona do meio
os deuses concederam aos mortais duas outras, e foi traçado um caminho que passa por ambas,
onde gira obliquamente o círculo dos signos. (Virgílio, Geórgicas I, 231-239)
Idcirco certis dimensum partibus orbem / per duodena regit mundi sol aureus astra. quinque
tenent cælum zonæ: quarum una corusco / semper sole rubens et torrida semper ab igni;
/ quam circum extremæ dextra læuaque trahuntur / cæruleæ, glacie concretæ atque imbribus
atris; / has inter mediamque duæ mortalibus ægris / munere concessæ diuum, et uia secta per
ambas, / obliquus qua se signorum uerteret ordo.
Essa passagem é mencionada por Sacrobosco ao explicar as cinco zonas geográficas:
Deve ser notado ainda que os quatro paralelos menores, a saber, os dois trópicos, o paralelo
Ártico e o paralelo Antártico, distinguem no céu cinco zonas ou regiões. Por isso, Virgílio, nas
Geórgicas: “O céu tem cinco zonas, das quais uma pelo ardor / do Sol está sempre vermelha, e
sempre tórrida pelo fogo.” São distinguidas também igual número de regiões na Terra,
diretamente abaixo das ditas zonas. (Sacrobosco, 2006, p. 13r)
O trecho seguinte das Geórgicas que foi utilizado por Sacrobosco se refere aos polos
celestes:
E assim como o mundo sobe em direção à Cítia e os picos Rifeus, da mesma forma ele desce
para a Líbia e para o Sul. Este polo se mantém sempre acima de nós; o outro [polo], abaixo
de nossos pés, é visto do Styx e pelas profundezas do Manes. Aqui [região Norte] desliza a
grande Serpente [Draco] com suas voltas sinuosas entre as duas Ursas e em volta delas como
um rio; as Ursas que temem mergulhar nas águas do Oceano. Lá [região Sul], dizem, ou que
reina a silenciosa escuridão eterna da noite, sob as dobras do manto tenebroso da noite; ou então
que a Aurora, aos nos deixar, retorna para eles e lhes traz de volta o dia; e que quando o primeiro
alento dos cavalos do Sol nos sopra do oriente, nessa hora o rubro pôr-do-Sol começa a acender
os fogos. (Virgílio, Geórgicas I, 240-251)
Mundus, ut ad Scythiam Riphæasque arduus arces / consurgit, premitur Libyæ deuexus in
Austros. / Hic uertex nobis semper sublimis; at illum / sub pedibus Styx atra uidet
Manesque profundi. / Maximus hic flexu sinuoso elabitur Anguis / circum perque duas in
morem fluminis Arctos, / Arctos Oceani metuentis æquore tingi. / Illic, ut perhibent, aut
intempesta silet nox / semper et obtenta densentur nocte tenebræ; / aut redit a nobis Aurora
diemque reducit, / nosque ubi primus equis Oriens adflauit anhelis / illic sera rubens accendit
lumina Vesper.
9
Para o Norte e para o Sul. Nos mapas antigos, o Norte ficava do lado direito.
6
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
Quando Sacrobosco cita o primeiro trecho grifado acima, ele troca uma das palavras,
utilizando “Hic vertex nobis semper sublimis, at illum / sub pedibus Styx atra tenet Manesque
profundi”, em vez de “atra uidet Manesque profundi”.
No Tratado da Esfera, esse primeiro trecho é mencionado duas vezes, quando Sacrobosco
esclarece o que são os polos do mundo, ou polos celestes. A primeira passagem é esta:
Esses dois pontos no firmamento são ambos imóveis; são chamados de polos do mundo,
porque terminam o eixo da esfera. O mundo gira sobre eles. Um deles sempre nos é visível, o
outro realmente sempre é ocultado. Por isso Virgílio, no primeiro [livro] das Geórgicas: “Seu
vértice sempre acima para nós; mas aquele / sob os pés do negro Styx é visto pelos manes das
profundezas.” (Sacrobosco, 2006, p. 8r)
Em outro ponto, ele utiliza a mesma citação ao explicar que “em nossa localidade” (ou seja,
na Europa) as estrelas que estão em torno do polo celeste norte nunca se põem, estão sempre
visíveis; e completa com outro trecho da mesma passagem das Geórgicas, que descreve que a
constelação da Ursa nunca mergulha no oceano:
[...] em nossa localidade, essas estrelas nunca se põem. Por isso Virgílio: “Este vértice está
sempre acima de nós / mas o outro é visto pelos manes profundos do Styx sob nossos pés”. [...]
Também Virgílio nas Geórgicas assim diz: “Arctos temerosa de tocar a onda do oceano”.
(Sacrobosco, 2006, p. 20r)
O último dos trechos das Geórgicas que foi empregado por Sacrobosco é este:
Quanto a mim, primeiramente, Musas mais doces do que tudo, cujos emblemas sagrados eu
levo, movido por um forte amor, aceitem-me e mostrem-me os caminhos do céu e os astros, os
variados eclipses do Sol e as obras da Lua; de onde vêm os terremotos, por qual força os
mares profundos se inflam, rompendo todas as barreiras e depois retornando para seu próprio
lugar; por que o Sol de inverno se apressa tanto para o Oceano, ou o que retarda a noite
demorada. (Virgílio, Geórgicas II, 475-483)
Me uero primum dulces ante omnia Musae, / quarum sacra fero ingenti percussus amore, /
accipiant caelique uias et sidera monstrent, / defectus solis uarios lunaeque labores; / unde
tremor terris, qua ui maria alta tumescant / obicibus ruptis rursusque in se ipsa residant, / quid
tantum Oceano properent se tingere soles / hiberni, uel quae tardis mora noctibus obstet.
Sacrobosco cita (Tratado da Esfera, cap. 4) uma única frase desse trecho: “Defectus lunæ
varios solisque labores”, invertendo na realidade o texto original, que diz: “defectus solis uarios
lunæque labores” (Sacrobosco, 2006, p. 28r). Talvez Sacrobosco tenha feito a citação de
memória, já que inverteu as posições do Sol e da Lua; ou pode ter utilizado um manuscrito que
apresentasse essa variante.
O contexto em que Sacrobosco apresenta esse texto de Virgílio é uma descrição sobre os
eclipses, onde ele explica que os da Lua são visíveis de todas as partes da Terra, enquanto que
os eclipses do Sol são visíveis apenas em uma região da Terra:
E deve ser notado que quando ocorre um eclipse da Lua, ele é visível em todos os lugares na
Terra. Mas quando ocorre um eclipse do Sol, isso não é assim. Realmente, ele pode ser visível
em um clima e não em outro, o que acontece por causa dos diferentes pontos de vista nos
diferentes climas. Por isso Virgílio exprime de forma muito apta e concisa a natureza de cada
eclipse: “Defeitos variados da Lua, e dos trabalhos do Sol”. (Sacrobosco, 2006, p. 28r)
7
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Deve-se notar que ele atribui a Virgílio uma elegante síntese da natureza dos eclipses, mas
no trecho em questão o poeta romano não tenta explicar a causa ou natureza dos eclipses e sim
indicar alguns fenômenos associados ao Sol e à Lua.
O que as citações de Virgílio acrescentam ao texto de Sacrobosco? É difícil compreender.
Cada alusão a Virgílio apresentada no Tratado da Esfera é um enunciado truncado, que só é
compreensível para os que conhecem todo o parágrafo de onde foi extraído. No entanto, mesmo
supondo que os leitores do Tratado da Esfera conheciam o texto completo de Virgílio, adicionar
essas citações não esclarece os conceitos que Sacrobosco estava apresentando. Além disso,
Virgílio não era uma autoridade sobre temas de astronomia, que pudesse dar mais segurança às
ideias que Sacrobosco estava expondo. Assim, não se consegue perceber facilmente por qual
motivo Sacrobosco introduziu essas citações, em um livro tão conciso.
A análise dos outros exemplos também nos traz perplexidades semelhantes. Porém, antes de
passar às citações dos demais autores, é importante assinalar que existem vários outros trechos
das Geórgicas que abordam temas astronômicos e que poderiam ter sido citados por Sacrobosco
– mas que ele não mencionou. Vejamos alguns exemplos.
6. O QUE SACROBOSCO NÃO CITOU
Logo no início do primeiro livro, por exemplo, Virgílio escreve: “O que faz o campo se
alegrar, sob que estrelas, Mecenas, deve-se revolver a terra [...]?” (Virgílio, Geórgicas I, 1-2).
Logo depois, há uma invocação aos astros celestes: “Vós, ó gloriosas luzes do mundo, que
conduzis pelo céu o caminho do ano” (Virgílio, Geórgicas I, 5-6). Mais adiante, Virgílio se
interroga sobre o futuro de César, que talvez se torne uma estrela nos céus, para cuidar da Terra
– e descreve algumas constelações celestes, entre as quais a de Escorpião, que deixaria entre
suas garras um espaço para a estrela de César (Virgílio, Geórgicas I, 24-42). Um pouco depois,
ao se referir às estações do ano, Virgílio utiliza o termo técnico “solstício” para indicar o verão:
“Orai por solstícios úmidos e invernos serenos, ó agricultores” (Virgílio, Geórgicas I, 100-101).
Ao descrever os primórdios da humanidade, Virgílio indica que “o navegante inicialmente
contou as estrelas e lhes deu nomes: Plêiades, Híades e Arctos – a brilhante filha de Lycaon”
(Virgílio, Geórgicas I, 137-138).
Antes do primeiro trecho que é efetivamente citado por Sacrobosco há um outro em que são
indicados também sinais astronômicos importantes para os agricultores, com referências a
Arcturus, a Serpente, Abydos, etc. Aparece então uma menção clara do equinócio, quando
descreve: “Quando Libra equiparar as horas do dia às do sono e dividir o globo pela metade
entre luz e sombra, então colocai a trabalhar vossos bois, homens; semeai os campos com
cevada até o limite das chuvas do inverno intratável” (Virgílio, Geórgicas I, 208-211).
Ainda no livro primeiro das Geórgicas, Virgílio se refere aos dias fastos e nefastos do ciclo
lunar, indicando por exemplo que o quinto dia (a partir da Lua nova) deve ser evitado, que o
sétimo e o décimo são dias de sorte e que o nono é benéfico para renegados e negativo para
ladrões (Virgílio, Geórgicas I, 276-286). É compreensível que Sacrobosco não tenha
mencionado essa passagem, pois o Tratado da Esfera não trata sobre esse tipo de assunto.
Outro trecho se refere à redução da duração dos dias, no outono, quando os homens devem
observar os astros e ter cuidado com as tempestades (Virgílio, Geórgicas I, 311-312) e à
necessidade de observar os meses e os signos celestes nos quais Saturno, o astro frígido, se
afasta; e entre quais fogos celestes Cyllenius vagueia em seu orbe (Virgílio, Geórgicas I, 335337). Depois, Virgílio indica que Júpiter estabeleceu avisos através da Lua e de outros sinais,
para que os agricultores pudessem prever calor, chuvas, ventos e frios (Virgílio, Geórgicas I,
351-355).
Portanto, embora tenha feito várias referências às Geórgicas, Sacrobosco não se preocupou
em indicar todas as passagens onde havia menção aos fenômenos astronômicos. Qual o critério
que ele usou para selecionar as citações? Não é possível descobrir isso.
8
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
7. A FARSÁLIA
Oito das citações literárias que aparecem no Tratado da Esfera são da obra de Lucano sobre
a guerra civil (Farsália).10 A primeira citação é parte do discurso de Pompeu, no segundo livro
da Farsália, onde ele descreve todos os lugares que conquistou:
Não deixei nenhuma parte do mundo intocado; toda a Terra, em qualquer lugar sob o Sol,
está ocupada por meus troféus. De um lado, o Norte conhece minhas vitórias pelas águas geladas
do Phasis; a zona quente me é conhecida nas praias do Egito e em Syene, onde a sombra não
se dobra para nenhum lado; meu poder é temido no poente, onde o Baetis [na Espanha], o
mais longínquo dos rios, encontra a maré. (Lucano, Farsália II, 583-589)
Pars mundi mihi nulla vacat; sed tota tenetur / Terra meis, quocunque iacet sub sole, tropaeis.
/ Hinc me victorem gelidas ad Phasidos undas / Arctos habet; calidas medius mihi cognitus axis
/ Aegypto atque umbras nusquam flectente Syene; / occasus mea iura timent Tethynque
fugacem / qui ferit Hesperius post omnia flumina Baetis.
Sacrobosco utilizou essa citação para falar sobre o Trópico de Câncer.
Para aqueles cujo zênite está no Trópico de Câncer, acontece que o Sol passa uma vez por
ano pelo zênite de suas cabeças, a saber, quando está no primeiro ponto de Câncer; e então, em
uma hora de um dia do ano todo, sua sombra é perpendicular. Diz-se que a cidade de Syene está
situada assim. Por isso Lucano: “A sombra de Syene que nunca se inclina”. Deve-se entender
isso ao meio dia de um único dia; para todo o resto do ano, para eles a sombra cai para o norte.
(Sacrobosco, 2006, pp. 20v-21r)
Note-se que a citação isolada de Lucano não é útil, porque Sacrobosco precisa esclarecer
que existe um único dia do ano no qual, ao meio-dia, a sobre é vertical, ou seja, não se inclina
para o Sul nem para o Norte. O texto de Lucano não ajuda a esclarecer o conceito que o Tratado
da Esfera está expondo.
Três das menções que Sacrobosco apresenta da Farsália são trechos contíguos, do terceiro
livro, onde Lucano se refere às conquistas de Alexandre e à reunião de diferentes povos durante
a guerra. As três citações desses trechos descrevem relações entre fenômenos ou constelações
celestes e regiões da Terra.
Os Capadócios ferozes vieram; e os homens que acham o solo do Monte Amanus duro
demais para cultivar; e os Armênios, que residem onde o Niphates rola ao longo de seu curso
sinuoso. Os Coatras abandonaram suas florestas que chegam aos céus; vós, Árabes entrastes
em um mundo que vos era desconhecido e vos maravilhastes porque a sombra das árvores
não caía para a esquerda [para o Sul]. (Lucano, Farsália, III, 243-248)
Venere feroces / Cappadoces, duri populus non cultor Amani, / Armeniusque tenens
volventem saxa Niphatem. / Aethera tangentes silvas liquere Choatrae. / Ignotum vobis,
Arabes, venistis in orbem / umbras mirati nemorum non ire sinistras.
Sacrobosco citou esse trecho da Farsália em um ponto onde explica que, dependendo do
local considerado sobre a superfície da Terra, as sombras de objetos verticais nunca ficam na
direção sul:
Por isso Lucano, falando sobre os Árabes que vieram a Roma ajudar Pompeu, diz: “Vocês,
árabes, vieram a um mundo que lhes era desconhecido / e se maravilharam porque a sombra das
10 Marcus Annaeus Lucanus (39-65 d.C.) escreveu esta obra nos últimos anos de sua vida. O tema
principal de Pharsalia, ou De Bello Civili (Sobre a Guerra Civil), é a guerra entre Júlio César e Pompeu.
O título do poema é uma referência à batalha de Pharsalus, que ocorreu em 48 a.C.
9
Roberto de Andrade Martins
árvores nunca fica para a esquerda”, pois em seu lugar as sombras ficavam algumas vezes para
sua direita, algumas vezes para sua esquerda, algumas vezes perpendicular, algumas vezes
orientais, algumas vezes ocidentais. Mas quando vieram a Roma, que está além do Trópico de
Câncer, então suas sombras estavam sempre setentrionais. (Sacrobosco, 2006, p. 20v)
O trecho seguinte se refere à visibilidade das estrelas próximas ao polo celeste norte,
dependendo do ponto geográfico onde está o observador:
Os remotos Orestas também foram perturbados pelo furor de Roma, e os chefes de
Carmania (onde o céu, começando a se inclinar para o Sul, vê pelo menos uma parte da
Ursa mergulhar abaixo do horizonte, e onde Bootes, que se põe rapidamente, é visível
apenas durante uma pequena porção da noite); [...] (Lucano, Farsália, III, 249-252)
Tunc furor extremos movit Romanus Orestas / Carmanosque duces, quorum iam flexus
in Austrum / aether non totam mergi tamen aspicit Arcton; / lucet et exigua velox ibi nocte
Bootes.
Esse trecho da Farsália é utilizado por Sacrobosco para explicar que para aqueles que estão
na região próxima ao Equador – diferente do que ocorre para os habitantes da Europa – as
estrelas próximas ao polo celeste norte vão nascer e se por:
Para eles, também, as estrelas que estão próximas dos polos nascem e põem, e igualmente
para outros que habitam perto da equinocial. Portanto Lucano assim diz: “Então a fúria romana
moveu as Orestas remotas, / e os líderes Carmanios, cujo éter agora girava / para o Sul, no
entanto não vêem Arcton bastante submerso, / e o veloz Bootes brilha na noite escassa”.
(Sacrobosco, 2006, p. 20r)
A passagem seguinte da Farsália que foi utilizada por Sacrobosco menciona a relação entre
o norte da África e os signos do zodíaco:
[...] e a terra da Etiópia, que não é coberta por nenhuma parte do zodíaco, a não ser
pela perna do Touro e pela ponta do seu chifre que se projeta; e a terra onde o grandioso
Eufrates e o Tigre rápido erguem suas cabeças. (Lucano, Farsália, III, 253-257)
Aethiopumque solum quod non premeretur ab ulla / signiferi regione poli, nisi poplite
lapso / ultima curvati procedret ungula Tauri; / quaque caput rapido tollit cum Tigride
magnus / Euphrates.
Sacrobosco mencionou esse trecho ao tratar a relação entre as regiões da Terra e os círculos
paralelos:
Também se deve notar que a Etiópia, ou uma parte dela, está além do Trópico de Câncer.
Por isso Lucano: “E a Etiópia que sozinha não é tocada / por nenhuma região do polo que
transporta os signos, / exceto a ponta do casco de Taurus saltitante”. (Sacrobosco, 2006, p. 21r)
Outro trecho da Farsália descreve que, certa noite, os guerreiros de um exército receavam a
chegada da manhã, quando seria necessário começar a batalha. Mas seu chefe os incitou à
guerra, e então eles rogaram para que a manhã chegasse logo. Lucao então assinalou que as
noites eram curtas naquela época do ano, porque o Sol já estava próximo da constelação de
Câncer, e que “era curta a noite que então pendia sobre o arqueiro da Tessália”:
Antes que seu líder falasse, todos eles olhavam as estrelas do céu com olhos lacrimosos, e
tremiam quando o polo da Ursa girava; mas agora, quando sua exortação penetrou em seus
corações, oraram pela luz do dia. E naquela estação o céu não demorou a mergulhar as estrelas
no mar; pois o Sol estava na constelação de Gêmeos, quando seu disco atinge seu ponto mais
10
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
alto e Câncer está próximo; então a noite curta atirou flechas da Tessália. (Lucano, Farsália,
IV, 521-528)
Cum sidera caeli / ante dulcis voces oculis umentibus omnes / aspicerent flexoque Ursae
temone paverent, / idem, cum fortes animos praecepta subissent, / optavere diem. Nec segnis
vergere ponto / tunc erat astra polus; nem sol Ledaca tenebat / sidera, vicino cum lux altissima
Cancro est / tunc nox Thessalicas urguebat parva sagittas.
Sacrobosco utilizou essa citação no capítulo 3 do Tratado da Esfera, onde procura explicar
o que são os nascimentos e ocasos crônicos das constelações, que acontecem quando a noite
está começando. O trecho relevante é este:
O ocaso crônico é uma questão de oposição. Por isso Lucano assim diz: “Então a noite curta
atirou flechas da Tessália”. (Sacrobosco, 2006, p. 14v)
A alusão, isolada do seu contexto, é incompreensível; e não esclarece o conceito de ocaso
crônico, ou seja, não ajuda o leitor do Tratado da Esfera a compreender seu significado.
Em outro trecho da Farsália, Pompeu interroga um navegador árabe sobre como ele se
orienta pelas estrelas, e recebe a seguinte resposta:
Todos os signos que se movem e fluem pelo céu enganam o pobre marinheiro, porque [o
céu] está mudando sempre; não damos atenção a essas estrelas; mas a [estrela] polar, que nunca
mergulha abaixo das ondas, o eixo mais brilhante das Ursas gêmeas, é ela que guia o nosso
navio. (LUCANO, Farsália, VIII, 172-176)
Signifero quaecumque fluunt labentia caelo / numquam stante polo miseros fallentia nautas,
/ sidera non sequimur; sed, qui non mergitur undis / axis inocciduus gemina clarissimus Arcto,
/ ille regit puppes.
Esse texto é mencionado em um ponto onde Sacrobosco se refere à visibilidade perene do
polo norte celeste, para os que vivem na Europa:
Mas em nossa localidade, essas estrelas nunca se põem. [...] E Lucano: “Eixo que nunca se
põe, brilhando com as Ursas gêmeas”. (Sacrobosco, 2006, p. 20r)
Há duas outras citações que são tiradas de trechos contíguos da Farsália, onde Lucano
descreve um templo da Líbia dedicado a Amon. Ele comenta que essa é a única parte da Líbia
onde há grandes árvores verdes, que lá crescem por causa de uma fonte; e comenta:
Mas apesar disso o Sol não encontra impedimento, quando o orbe do dia se encontra
colocado no zênite: as árvores quase não podem abrigar seus próprios troncos, pois a sombra
projetada por seus raios é muito pequena. Foi determinado que aqui é o lugar onde o círculo
do solstício superior atinge os signos do meio, equidistantes dos polos. [...] Mas a sombra
das pessoas (se elas existem) que estão separadas de nós pelo fogo da Líbia cai para o Sul,
enquanto a nossa vai para o Norte. (Lucano, Farsália IX, 528-532; 538-539)
Hic quoque nil obstat Phoebo, cum cardine summo / stat librata dies; truncum vix protegit
arbor: / tam brevis in medium radiis conpellitur umbra. / Deprehensum est hunc esse locum,
qua circulus alti / solstitii medium signorum percutit orbem. / [...] At tibi, quaecumque es
Libyco gens igne dirempta, / in Noton umbra cadit, quae nobis exit in Arcton.
No Tratato da Esfera, esse trecho é mencionado quando Sacrobosco está explicando o que
acontece para as pessoas que vivem na região do Equador.
E isso é o que diz Alfragano, que para eles o verão e o inverno são de uma igual compleição:
pois esses dois tempos, que para nós são inverno e verão, são dois invernos para eles. E a
11
Roberto de Andrade Martins
diferença fica clara nesses versos de Lucano: “Entende-se que este é o lugar onde o círculo / do
alto solstício atinge o meio do orbe dos signos”. Aqui Lucano chama a equinocial de círculo do
alto solstício, sobre o qual ocorrem dois solstícios elevados para aqueles que estão sob a
equinocial. Ele chama o zodíaco de orbe dos signos, o qual é dividido em duas metades ou
cortado ao meio pela equinocial; atinge, isto é, divide. (Sacrobosco, 2006, p. 19v)
O último trecho da Farsália utilizado por Sacrobosco é bastante complexo, referindo-se ao
movimento das constelações quando vistas por pessoas do norte da África:
Cada um dos polos está à mesma distância deles [os habitantes da Líbia]; e os signos fugidios
passam pelo meio do céu. Essas [constelações] não se movem obliquamente: Escorpião,
quando emerge do horizonte, não está mais reto [próximo da perpendicular] do que Touro;
e Áries não cede seu tempo a Libra; nem Virgem faz Peixes descer lentamente. Chiron
[Sagitário] sobe tão alto quanto Gêmeos, e o Capricórnio úmido tão alto quanto o Câncer
ardente; e Leão não sobe mais alto do que Aquário. (Lucano, Farsália IX, 542-543; 533537)
Procul axis uterque est, / et fuga signorum medio rapit omnia caelo. / Non obliqua meant,
nec Tauro Scorpios exit / rectior, aut Aries donat sua tempora Librae, / aut Astraea iubet
lentos descendere Pisces. / Par Geminis Chiron, et idem, quod Carcinus ardens, / umidos
Aegoceros, nec plus Leo tollitur Urna.
Este trecho da Farsália é de grande dificuldade, exigindo para sua explicação um bom
conhecimento sobre astronomia e sobre a relação entre a latitude do observador e a aparência
celeste. Um leitor “comum” da Farsália dificilmente entenderia o significado desses trechos
sem o auxílio de uma pessoa versada em astronomia. O Tratado da Esfera menciona esse trecho
quando está explicando os movimentos das constelações do Zodíaco, quando vistas por uma
pessoa da região equatorial:
Eis realmente a regra: dois arcos quaisquer do zodíaco, iguais e igualmente distantes de um
dos quatro pontos já mencionados, possuem iguais ascensões. Daí se segue que signos opostos
possuem ascensões iguais. E isso é o que Lucano diz falando sobre a marcha de Cato na Líbia,
perto da equinocial: “Eles não se movem obliquamente, nem Escorpião sai mais reto do que
Touro, / nem Áries cede seu tempo a Libra, / nem Astrea pede a Peixes para descer lentamente.
/ Chiron é par com Gêmeos, e o Carcino ardente é igual / ao úmido Aegloceros, nem o Leão se
move mais do que a Urna”. Aqui Lucano diz que para os que estão sob a equinocial, signos
opostos possuem igual ascensão e ocaso. (Sacrobosco, 2006, p. 15v)
8. OVÍDIO
O trecho das Metamorfoses11 citado por Sacrobosco é parte da introdução da obra, onde
Ovídio descreve a criação do universo pelos deuses. Lá ocorre uma referência às zonas
geográficas terrestres:
Assim como a abóbada celeste é cortada por duas zonas à direita [Norte] e duas à esquerda
[Sul] e uma quinta [zona] no meio, mais ardente do que essas, assim a providência de Deus
marcou a massa que estava no meio com igual número de zonas, e as mesmas regiões foram
marcadas sobre a Terra. Dessas, a zona central não pode ser habitada por causa do calor; a
neve profunda cobre duas; e duas ele colocou no meio e lhes deu clima temperado, misturando
calor e fogo. (Ovídio, Metamorfoses, I, 45-51)
Utque duae dextra caelum totidemque sinistra / parte seccant zonaed, quinta est ardentior
illis, / sic onus inclusum numero distinxit eodem / dura dei, totidemque plagae tellure
11 Publius Ovidius Naso (43 a.C.-18 d.C.) escreveu as Metamorphoses em torno do ano 8 d.C. A temática
da obra é a mitologia grega e romana, abordando as transformações sofridas pelos personagens.
12
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
premuntur. / Quarum quae media est, non est habitabilis aestu; / nix tegir altra duas; totidem
inter utramque locavit / temperiemque dedit mixta cum frigore flamma.
No Tratado da Esfera, há uma menção a esse trecho quando Sacrobosco está explicando as
cinco faixas celestes e as cinco faixas terrestres correspondentes, limitadas pelos trópicos e
pelos círculos polares:
Deve ser notado ainda que os quatro paralelos menores, a saber, os dois trópicos, o paralelo
Ártico e o paralelo Antártico, distinguem no céu cinco zonas ou regiões. [...] Por isso, Ovídio,
no primeiro das Metamorfoses: “E zonas em igual número são marcadas na terra. / Delas, a que
está no meio não é habitável por causa do calor; / a neve recobre as duas superiores; e entre elas
ele colocou outras / temperadas, dando-lhe uma mistura de frio com fogo.” (Sacrobosco, 2006,
p. 13r)
Duas outras citações de Ovídio são retiradas das cartas que ele escreveu no exílio – uma
delas em Tristia e a outra em Ex Ponto. Na primeira delas, Ovídio lamenta a ocasião em que,
ao ser desterrado, precisou tomar um navio e partir, em meio a um mar tempestuoso.
O Guardião [Bootes] da Ursa do Erimanto mergulha no oceano e com suas estrelas
torna tempestuosas as águas do mar. No entanto, não estou sulcando as águas do mar Jônio
por minha própria vontade, mas obrigado a ser audaz por causa do medo. (Ovídio, Tristia I, 4,
1-4)
Tingitur oceano custos Erymanthidos ursae, / aequoreasque suo sidere turbat aquas. /
Non tamen Ionium non nostra findimus aequor / sponte, sed audaces cogirmur esse metu.
A citação desse trecho ocorre no Tratado da Esfera em um ponto em que Sacrobosco está
explicando que as estrelas e constelações próximas ao polo norte celeste são sempre visíveis
para os habitantes da Europa, mas podem nascer e se por para os habitantes próximos ao
Equador.
Ovídio, também, sobre a mesma estrela: “O guardião da ursa de Erimanto mergulha no
oceano / e com sua estrela perturba as águas do mar”. Ou seja, ela se põe verticalmente. Mas em
nossa localidade, essas estrelas nunca se põem. (Sacrobosco, 2006, p. 20r)
A segunda carta citada acima foi escrita por Ovídio a seu amigo Severus, e nela o poeta
lamenta que já está no exílio há 4 anos e que há uma guerra em curso:
Voltando ao meu tema, querido amigo, lamento que combates cruéis se adicionem aos meus
infortúnios. Desde que eu me separei de ti, lançado às margens do próprio Styx, o nascer das
Plêiades já está trazendo o quarto outono. (Ovídio, Ex Ponto I, 8, 25-28)
Sed memor unde abii, queror, o iucunde sodalis, / accedant nostris saeva quod arma malis. /
Ut careo vobis, Stygia detrusus in oras, / quattuor autumnos Pleias orta facit.
Essa passagem é mencionada por Sacrobosco ao explicar o que significa o nascimento
crônico ou temporal de um astro ou constelação:
O nascimento é crônico ou temporal quando um signo ou estrela, depois do ocaso do Sol,
surge sobre o horizonte no lado do oriente de forma crônica, a saber, à noite. É chamado de
temporal, porque o tempo dos matemáticos nasce com o ocaso do Sol. Sobre esse nascimento
temos em Sobre o Ponto de Ovídio, onde ele lamenta seu exílio prolongado, dizendo: “O
nascimento das Plêiades faz quatro outonos”, indicando pelos quatro outonos os quatro anos que
tinham passado desde que fora enviado para o exílio. (Sacrobosco, 2006, p. 14r)
13
Roberto de Andrade Martins
Sacrobosco apresenta também uma citação dos Fastos de Ovídio.
Quando esse dia tiver amanhecido, não acreditai mais nos ventos; nesta estação, a brisa é
inconstante; durante seis dias estarão descerradas as portas da prisão de Éolo, que ficarão
escancaradas. Agora o leve Aquário assenta-se, com sua urna inclinada; cabe a ti, ó Peixe,
acolher agora os cavalos celestes [do Sol]. (Ovídio, Fastos, II, 453-458)
Orta dies fuerit, tu desine credere ventis; / perdidit illius temporis aura fidem; / flamina non
constant, et sex reserata diebus / carceris Aeolii ianua lata patet. / Iam levis obliqua subsedit
Aquarius urna: / proximus aetherios excipe, Piscis, equos.
A única parte deste trecho que é citada por Sacrobosco é “Iam senis obliqua subsedit
Aquarius urna”, que nas edições atuais consta como “Iam levis obliqua subsedit Aquarius urna”.
O nascimento é helíaco ou solar quando o signo ou estrela pode ser visto por causa da
distância do Sol até ele; enquanto previamente não podia ser visto pela proximidade do Sol.
Ovídio coloca um exemplo disso no livro dos Fastos, assim: “Agora o Aquário idoso assentase com sua urna inclinada”. (Sacrobosco, 2006, p. 14v)
De todas as obras de Ovídio utilizadas por Sacrobosco, a única que esperaríamos ver citada
(e várias vezes) seriam os Fastos. Realmente, nesta obra Ovídio procura descrever todo o
calendário romano e aparecem constantemente referências aos fenômenos celestes, incluindo o
surgimento e o ocaso das várias constelações. No entanto, Sacrobosco apresenta uma única
citação dessa obra, como também das outras três obras de Ovídio que utiliza e que não possuem
temática astronômica predominante.
9. A ASTRONOMIA NA VIDA ANTIGA
Vamos agora examinar o problema sob o ponto de vista inverso: Qual o conteúdo
astronômico na literatura antiga? As passagens relevantes de Lucano, Ovídio, Virgílio e outros
escritores que se referem a fenômenos celestes são, às vezes, de difícil compreensão. Por quê
os poetas e outros escritores inseriam descrições astronômicas em seus livros?
A tradição grega mostra que havia, na Antiguidade, uma relação íntima entre a agricultura e
a astronomia, e que alguns conhecimentos sobre os astros eram considerados de grande
utilidade.
No Prometeu Acorrentado de Ésquilo, escrito aproximadamente em 460 a.C., o personagem
principal descreve um estágio da humanidade em que as pessoas viviam como animais, sem
conhecer o modo de construir um móvel ou uma casa, vivendo em cavernas. Então, Prometeu
começou a ensinar-lhes sobre as estações do ano e sobre os astros:
Eles não possuíam nem os sinais fixos do frio do inverno, nem da primavera, quando ela
surge vestida de flores, nem uma marca segura do calor do Sol, com frutos que derretem.
Labutavam completamente sem conhecimento, até que eu lhes mostrei o nascimento das
estrelas, e seu ocaso, por mais obscuro que fosse. (ÉSQUILO, Prometeu acorrentado, 456-461)
O conhecimento sobre os astros é, aqui, o símbolo principal da transformação do homem
primitivo em homem civilizado. Segundo esta obra, somente depois disso Prometeu lhes ensina
os números, a escrita, o cuidado com os animais e outros conhecimentos úteis. A astronomia
teria vindo antes de todo o resto.
No mundo antigo, o estudo dos céus era relevante para a compreensão de muitos temas. A
navegação exigia o conhecimento das estrelas, pois não existiam bússolas. Era necessário
conhecer as estrelas e saber utilizá-las para dirigir o rumo do navio. Para desenhar mapas
14
As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
geográficos eram necessárias as coordenadas de cada lugar e isso só podia ser conhecido
astronomicamente. As mudanças climáticas de locais em diferentes latitudes e as diferenças
entre a duração dos dias e das noites em cada lugar eram estudadas utilizando a astronomia.
O ano era descrito por meio dos fenômenos celestes de cada época e o surgimento ou ocaso
das constelações (ou de certas estrelas específicas) indicava as mudanças de estações e de clima:
o calor, o frio, as chuvas, os ventos. A agricultura dependia do conhecimento dessas mudanças
e as estrelas determinavam o melhor momento para lançar as sementes ao solo, para cortar
árvores, ou para a colheita dos grãos. Cada momento do ano, determinado pelo que acontecia
no céu, era mais adequado para os cuidados com a pecuária, para a caça de determinados
animais e para a reprodução dos animais domésticos.
Os navegantes e os pescadores precisavam conhecer as marés, que dependiam da Lua; e os
ventos e tempestades, que eram regidos pelos astros. Os médicos estudavam a astronomia,
porque as epidemias e as doenças individuais eram determinadas ou influenciadas pelas
mudanças anuais e por fatores astrológicos. O prognóstico e a escolha do tratamento (remédios,
purgantes, sangrias etc.) dependiam dos astros. O início das estações e todo o calendário anual,
incluindo as festas religiosas, era determinado por fenômenos celestes.
A sociedade antiga estava completamente envolvida em crenças astrológicas (que hoje em
dia consideramos superstição), que determinavam a escolha de dias propícios ou inadequados
para cada atividade (desde o dia e hora de um casamento, até o momento para começar o estudo
da gramática). Quase todas as técnicas – carpintaria, engenharia, culinária etc. – dependiam do
conhecimento astrológico. A metalurgia não era possível, naquela época, sem conhecer as
relações entre os planetas e cada metal.
No mundo antigo, a astronomia estava relacionada a muitíssimos aspectos da vida e todos
precisavam conhecer pelo menos alguns deles. A antiga literatura naturalmente tratava de temas
astronômicos, porque eles estavam incorporados à vida das pessoas. Além disso, os poetas
empregaram um simbolismo que costumava estar associado aos fenômenos celestes, e a
mitologia tinha relações estreitas com a visão de mundo daquela época.
Na República de Platão, Glaucon também indica a importância prática do estudo da
astronomia: “A observação das estações e dos meses e anos é tão essencial para um general
quanto para um fazendeiro ou navegante” (Platão, República, VII, 527). Virgílio nos declara
que foi Júpiter quem estabeleceu os signos celestes, pela Lua e outros astros, para que os
agricultores pudessem prever calor, chuvas, ventos, frio e calor (Virgilio, Geórgicas I, 351355). O mesmo poeta diz que os navegantes contaram as estrelas e lhes atribuíram nomes (ibid.,
I, 137-138).
O conhecimento astronômico era parte fundamental da vida naquele tempo e por isso aparece
nos escritos dos mais antigos poetas gregos, Homero e Hesíodo. Em particular, a obra Os
trabalhos e os dias de Hesíodo é o texto mais antigo que conhecemos onde são apresentadas as
influências celestes na agricultura. Nem todas as obras antigas sobre agricultura continham
informações sobre as estações do ano e a influência dos astros no plantio. A obra de Catão, por
exemplo, não contém tal tipo de informação. No entanto, um dos livros da obra de Varro, que
trata sobre o plantio dos grãos, inclui muitas informações desse tipo.
Os textos literários gregos e romanos continham referências astronômicas porque a
astronomia era parte da vida de todos, e a literatura descrevia a vida. Autores como Cícero
tinham grande interesse pelo estudo dos astros – e ele traduziu do grego para o latim os
Fenômenos de Aratos de Solis. Referindo-se a Cícero, Emma Gee afirmou: “As estrelas e a
poesia caminham juntas para os romanos” (Gee, 2001, p. 533).
A situação mudou complemente durante o período da revolução científica (século XVII),
quando a astronomia se afastou da vida das pessoas e, ao mesmo tempo, a astrologia e outras
crenças sobre os astros entraram em decadência. Até o século XVII havia, no entanto, muitos
15
Roberto de Andrade Martins
livros que mantiveram os ensinamentos antigos sobre a astronomia prática, apoiando-se sobre
os textos antigos.
Os historiadores da astronomia têm, geralmente, uma visão distorcida sobre esse período
mais antigos, porque somente veem no passado aquilo que atualmente consideramos como
fazendo parte da astronomia.
10. O USO DE CITAÇÕES LITERÁRIAS POR OUTROS AUTORES
Para tentar esclarecer o uso que Sacrobosco fez das menções literárias, vamos agora
investigar se outros autores que escreveram sobre astronomia no período medieval também
faziam citações dos poetas. Começaremos por um autor muito antigo, do início da Idade Média:
Martianus Minneus Felix Capella (séc. V d.C.), que influenciou todo o desenvolvimento da
educação medieval, tendo sido um dos primeiros desenvolver o sistema das sete artes liberais.
Sua obra De nuptiis Philologiae et Mercurii (Sobre o casamento da Filologia com Mercúrio)
contém uma seção sobre astronomia e lá podemos encontrar algumas citações dos poetas
clássicos romanos. Porém, os autores e obras citados por Sacrobosco não aparecem lá de forma
significativa. Mesmo quando as citações feitas por Sacrobosco e Capella estão próximas, no
original romano, os trechos selecionados são diferentes. Por exemplo: Martianus Capella, ao
descrever a forma esférica da Terra e suas consequências astronômicas (Capella, De nuptiis
Philologiae et Mercurii, VI.592; Capella, 1977, p. 221), menciona um trecho das Geórgicas de
Virgílio que não é citado por Sacrobosco, embora este cite duas outras frases do mesmo trecho.
Abaixo, as frases em negrito são as citadas por Sacrobosco; a frase em itálico é citada por
Capella.
E assim como o mundo sobe em direção à Cítia e os picos Rifeus, da mesma forma ele desce
para a Líbia e para o Sul. Este pólo se mantém sempre acima de nós; o outro [pólo], abaixo
de nossos pés, é visto do Styx e pelas profundezas do Manes. Aqui [região Norte] desliza a
grande Serpente [Draco] com suas voltas sinuosas entre as duas Ursas e em volta delas como
um rio; as Ursas que temem mergulhar nas águas do Oceano. Lá [região Sul], dizem, ou que
reina a silenciosa escuridão eterna da noite, sob as dobras do manto tenebroso da noite; ou então
que a Aurora, aos nos deixar, retorna para eles e lhes traz de volta o dia; e que quando o primeiro
alento dos cavalos do Sol nos sopra do oriente, nessa hora o rubro pôr-do-Sol começa a acender
os fogos. (Virgílio, Geórgicas I, 240-251)
Mundus, ut ad Scythiam Riphæasque arduus arces / consurgit, premitur Libyæ deuexus in
Austros. / Hic uertex nobis semper sublimis; at illum / sub pedibus Styx atra uidet
Manesque profundi. / Maximus hic flexu sinuoso elabitur Anguis / circum perque duas in
morem fluminis Arctos, / Arctos Oceani metuentis æquore tingi. / Illic, ut perhibent, aut
intempesta silet nox / semper et obtenta densentur nocte tenebræ; / aut redit a nobis Aurora
diemque reducit, / nosque ubi primus equis Oriens adflauit anhelis / illic sera rubens accendit
lumina Vesper.
Encontramos uma semelhança muito maior examinando outra obra medieval, chamada
Commentarii in Somnium Scipionis (Comentários sobre o Sonho de Cipião), escrita por
Macrobius Ambrosius Theodosius (século V d.C.). Há uma grande similaridade entre as
menções literárias do Tratado da Esfera e as que aparecem nos Comentários sobre o Sonho de
Cipião. É provável que Sacrobosco tenha lido e utilizada essa obra (que era muito popular),
embora não a cite.
Macróbio se refere sempre a Virgílio com grande respeito, não simplesmente por seu valor
literário, mas por sua erudição, seu conhecimento amplo e supostamente infalível.
Em um eclipse, o Sol não sofre nenhuma perda, mas somos privados de sua luz; por outro
lado, quando ocorre um eclipse da Lua, ela sofre uma privação dos raios solares, com os quais
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As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
ela dá claridade à noite. Virgílio, que tinha grande treino em todas as artes, estava ciente disso
quando falou sobre “Os muitos eclipses do Sol, as muitas obras da Lua”. (Macrobius,
Commentarii in Somnium Scipionis, I.15.12; Macrobius, 1952, p. 150; citação de Geórgicas
II.478)
Embora a esfera celeste esteja sempre girando em torno da Terra de leste para oeste, o eixo
polar que sustenta a Grande Ursa, por estar acima de nós, será sempre visível para nós, por mais
que gire no turbilháo celeste; e ele sempre mostrará “as Ursas que não querem mergulhar abaixo
da superfície do oceano” [Geórgicas I.246]. O pólo Sul, por outro lado, enterrado longe de nossa
visão, por assim dizer, pela localização de nossa morada, nunca se mostrará a nós, nem as
estrelas com as quais ele sem dúvida é adornado. E era isso que Virgílio, conhecendo muito bem
os caminhos da natureza, queria indicar quando disse: “Um pólo está sempre acima de nós,
enquanto o outro, abaixo de nossos pés, é visto pelo negro Styx e pelas sombras infernais”.
(Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, I.16.5; Macrobius, 1952, p. 153; citação de
Geórgicas I.246)
Nessas duas citações, Macróbio esclarece conceitos astronômicos e logo depois os aplica
para explicar o significado daquilo que Virgílio escreveu. Seria esse o objetivo das menções
aos poetas – explicar o que eles haviam escrito?
É claro que um signo que se ergue com o Sol e se põe com ele não é visível, e mesmo as
constelações vizinhas são ocultas por ele. A estrela do Cão, por estar perto do Touro, não é
visível naquela época, ficando oculta pela luz do Sol, que está próximo. Por isso Virgílio
comenta, “O Touro branco como a neve com chifres dourados prenuncia o ano, e o Cão se
desvanece, retirando-se diante da estrela que o confronta” [Geórgicas I.246]. Isso não quer dizer
que quando o Touro e o Sol estão em conjunção, a estrela do Cão, que está perto do Touro,
começa a se por; em vez disso ele diz que ela “se desvanece” quando Touro contém o Sol,
porque ela se torna invisível, com o Sol tão perto dela. (Macrobius, Commentarii in Somnium
Scipionis, I.18.14-15; Macrobius, 1952, p. 161)
Devemos nos lembrar que os nomes Saturno, Júpiter e Marte não têm nada a ver com a
natureza desses planetas mas são ficções da mente humana, que “numera as estrelas e lhes dá
nomes”. (Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, I.19.18; Macrobius, 1952, p. 166;
citação de Geórgicas I.137)
Com relação aos cinco cinturões, peço-lhes que não pensem que Virgílio e Cícero, os dois
fundadores da eloquência romana, discordam em suas opiniões porque o último diz que os
cinturões envolvem a Terra e o primeiro que os cinturões, que ele chama pelo nome grego de
zonas, “mantêm o céu” [Geórgicas I.233]. Mais adiante será mostrado que ambos estão corretos
e que não há contradição. (Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, II.5.7; Macrobius,
1952, p. 201)
[...] agora nos cabe questionar o significado de certas palavras de Virgílio, um poeta que
nunca foi encontrado em erro com relação a nenhum assunto: “A graça dos deuses concedeu
duas zonas aos frágeis mortais; e um caminho foi cortado entre elas, onde pode girar o arranjo
oblíquo dos signos”. (Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, II.8.1; Macrobius, 1952,
p. 212; citação de Geórgicas I.237-239)
O zodíaco passa entre as duas zonas temperadas [inter ambas] e não através delas [per
ambas]. Não é raro que ele [Virgílio] substitua per por inter, como podemos ver em uma outra
passagem: “semelhante a um rio, acima e através das duas Ursas” [Geórgicas I.245]. A
constelação do Dragão não atravessa as Ursas; ela as circunda e passa entre elas mas não através
delas. (Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, II.8.6-7; Macrobius, 1952, p. 213)
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Roberto de Andrade Martins
É uma verdade inquestionável, de que Cícero estava ciente e que Virgílio tinha em mente
quando disse: “Não há lugar para a morte aqui” [Geórgicas IV.226]. É uma verdade
inquestionável, digo, que dentro do universo vivo nada perece; as coisas que parecem morrer
apenas mudam de aparência [...] (Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, II.12.13;
Macrobius, 1952, p. 224)
Macrobius também cita Lucano, que é outro autor muito citado por Sacrobosco.
Quando o Sol atinge Câncer, ao meio-dia, como ele está diretamente sobre a cidade [de
Syene], nenhum objeto lança sombras sobre a terra, nem mesmo um gnômon ou a lâmina de um
relógio de Sol, que marca a passagem das horas no marcador. Isso é o que o poeta Lucano queria
exprimir, embora sua afirmação seja inadequada; pois as palavras “Syene nunca produz
sombras” [Lucano, Pharsalia II.587] se refere ao fenômeno mas confunde a verdade, Dizer que
nunca lança sombras é incorreto; a única ocasião em que isso ocorre foi relatada e explicada
acima. (Macrobius, Commentarii in Somnium Scipionis, II.7.15-16; Macrobius, 1952, p. 211)
Vemos nessas citações que Macróbio sempre se refere a Virgílio de forma respeitosa, não
simplesmente por seu valor literário mas por sua erudição, seu conhecimento amplo e infalível:
“Virgílio, que estudou todas as artes”; “Virgílio, que tinha um conhecimento completo sobre os
caminhos da natureza”; “Virgílio, um poeta que nunca foi encontrado em erro com relação a
nenhum assunto”. O mesmo tipo de atitude pode ser encontrado em muitos outros autores
posteriores – como Dante, por exemplo.
Muitas das menções do Tratado da Esfera são as mesmas que aparecem nos Comentários
sobre o Sonho de Cipião. É possível que o objetivo de Sacrobosco tivesse sido o mesmo de
Macróbio – esclarecer o que os poetas haviam escrito. Mas há uma distância temporal de muitos
séculos entre eles.
Há um caso relevante muito mais próximo de Sacrobosco: a obra Dragmaticon philosophiæ
(Diálogo sobre filosofía natural) de Guillaume de Conches (aprox. 1090-1160). Esse texto,
escrito em 1148, apresenta a filosofia natural e, especialmente, o conhecimento astronômico,
sob a forma de um diálogo. O uso de citações literárias é pequeño, mas duas das que ele
apresenta são relevantes para nosso estudo.
Na primeira, Guillaume de Conches descreveu a diferença entre os movimentos das estrellas
observados de diferentes pontos da Terra, e então ele citou a Farsália de Lucano (IX.533) onde
o poeta diz que aqueles que vivem perto do Equador veem todas as constelações subindo e
descendo sem obliquidade. Guillaume comentou: “E isto é o que Lucano queria transmitir
quando falou sobre aqueles que vivem na região tórrida [...]” (Guillaume de Conches,
Dragmaticon philosophiæ III.6.5; Guillaume de Conches, 1997, p. 49). Percebe-se que o
significado do trecho de Lucano não era evidente e que Guillaume está tentando esclarecer o
que o poeta dizia.
Na outra passagem relevante de Guillaume de Conches, o autor explicou as cinco zonas da
Terra e logo em seguida comentou que Virgílio tinha sido criticado porque havia descrito cinco
zonas no céu e não na Terra. Então, Guillaume esclareceu que é possível falar sobre as cinco
zonas no céu e também na Terra, explicando o que Virgílio havia escrito e indicando que ele
estava correto (Guillaume de Conches, Dragmaticon philosophiæ VI.3.2; Guillaume de
Conches, 1997, p. 124).
Nos dois casos, Lucano e Virgílio não são mencionados para ajudar a compreensão da
astronomia, mas sim o contrário: a exposição sobre astronomia esclarece o significado do que
os poetas diziam. Assim, vemos que um autor muito mais próximo a Sacrobosco, sob o ponto
de vista cronológico, tinha a mesma atitude que Macrobius, no uso de citações literárias.
11. CITAÇÕES POÉTICAS NO SÉCULO XVI
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As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
Outra fonte relevante para ser apresentada é um texto anônimo e sem data, “De ortu poetico”,
que foi publicado várias vezes durante o século XVI como um apêndice do Tratado da Esfera
de Sacrobosco. Ele apareceu em uma edição de 1543 publicada em Wittenberg (Sacrobosco,
1543) e depois foi reproduzido, por exemplo, na Sphaera emendata (Sacrobosco, 1550) editada
por Élie Vinet (1509-1587), que teve um grande número de edições. O título completo deste
apêndice é: “De ortv poético, hoc est, exempla ortvs et occasus stellarum fixarum, ex uariis
autoribus collecta, & ad studiosorum vtilitatem diligenter explicata, incerto auctore”, mostrando
que o seu autor era desconhecido nessa época (meados do século XVI). Como o título indica, o
tema principal desse apêndice é apresentar descrições poéticas do nascimento e ocaso das
estrelas (e constelações). Os principais autores utilizados eram Virgílio, Ovídio e Hesíodo, além
de textos agrícolas. O próprio título também mostra que essas menções astronômicas poéticas
precisavam ser explicadas. Depois de uma introdução geral, onde esclarece os principais
conceitos, o autor desconhecido apresenta uma análise detalhada de citações de Virgílio e de
Hesíodo, e depois outras mais sucintas. A existência dessa obra e sua ampla divulgação no
século XVI mostra que os leitores dos poetas clássicos precisavam de elucidações para
compreender suas alusões a fenômenos astronômicos. Publicada no século XVI, essa obra
poderia ser muito anterior – não o sabemos. Talvez fosse um texto medieval.
O último autor que vamos comparar com Sacrobosco é o astrônomo espanhol Jerónimo de
Chaves, que escreveu um grande comentário ao Tratado da Esfera em vernáculo. No Prólogo
de seu livro, Chaves informou que um dos seus objetivos era
[...] dar prazer e consolo aos que entendem os livros latinos; apresentando e exemplificando
muitas demonstrações, figuras e tabelas de apoio que muitas vezes faltam a esses livros latinos.
E juntamente declarando em alguns escólios curtos certos lugares e versos obscuros de Poetas,
que eu vi e li muitas vezes serem mencionados e indicados, mas raramente bem declarados.
(Chaves, 1545, fols. iii,r-iii,v)
Examinando os pontos em que Chaves apresenta citações dos poetas, é possível perceber
que seu objetivo era esclarecer as menções astronômicas obscuras na literatura, como neste
exemplo:
Quando o Autor falou sobre o nascimento cósmico, trouxe um verso de Virgílio para
exemplificar, que assim diz em latim: Candidus auratis aperit cum cornibus annum, e logo
juntamente com esse coloca outro verso do mesmo Virgílio que diz: Taurus et adverso caedens
Canis occidit Astro. E baseia de tal maneira o primeiro com o segundo, que o Touro do segundo
verso entra com a construção do primeiro, e o Autor apresentou o restante do verso falando do
ocaso helíaco; e é uma parte da qual se adiciona com a primeira por uma copulativa, cuja
declaração de ambos é esta. Que então se semeiem as favas e o milho alvo, quando o Touro
formoso e resplandecente, com seus chifres dourados, abre o ano; e a estrela Canícula, que dá
lugar à estrela contrária (a saber, o Sol) for ocultada pelo ocaso helíaco. Por aí, parece que a
opinião de Virgílio é que o Sol está no signo de Touro, e juntamente ocorre o ocaso helíaco da
Canícula, quando se referem a semear as favas e o milho alvo. Por causa disso, alguns pensaram
ou quiseram sentir que a Canícula, no tempo de Virgílio, estivesse no signo do Touro; e quando
o Sol viesse a esse signo do Touro, ocorresse o ocaso helíaco da Canícula. Outros forneceram
muitos sentidos diferentes deste; e foram tantos e tão variados, que até agora não vi sentido nem
parecer algum que me enquadrasse e que concluísse de forma verdadeira. Por isso, muitas vezes
pensando qual sentido lhe pudesse dar que não fosse alheio ao seu propósito e que, ao mesmo
tempo, não repugnasse à Astrologia, e se conformasse e enquadrasse com a letra do verso,
ocorreu-me um tal sentido, que aqui escrevo brevemente, declarando-o do modo mais fácil e
claro que me é possível. (Chaves, 1545, fols. lviii,v-lix,r)
19
Roberto de Andrade Martins
Em seguida, Chaves adicionou cinco páginas de esclarecimentos. Algo semelhante ocorre
em outros lugares desta obra, como ao discutir uma menção a Lucano:
Sobre o verso de Lucano, falando sobre os Árabes, os quais se maravilharam quando vieram
a Roma, porque as sombras das árvores, bosques e arbustos não se estendiam para o lado
esquerdo, como faziam na sua terra, a Arábia; deve-se notar que os Astrônomos, Geógrafos,
Poetas e Filósofos não consideram a posição do céu e do horizonte da mesma maneira. Pois os
Astrônomos consideram a parte Ocidental como a direita; e a causa é porque o Astrônomo, para
considerar os movimentos dos planetas e orbes celestes, dirige o rosto para o lado Meridional,
deixando o Polo Ártico nas costas [...] (Chaves, 1545, fols. lxiii,r)
Como no exemplo indicado de Virgílio, Chaves também apresentou aqui uma grande
explicação a respeito de Lucano.
A análise do comentário de Jerónimo de Chaves mostra claramente que, para ele, era
necessário esclarecer os textos dos poetas, porque eles não eram facilmente compreendidos. É
claro que há um intervalo de três séculos entre Sacrobosco e Chaves e também em relação à
publicação do “De ortu poetico”. Mas sabemos que muitas universidades continuavam
seguindo os padrões medievais, e é razoável supor que não havia diferenças significativas entre
os dois contextos acadêmicos, no que se refere ao estudo dos poetas latinos e à necessidade de
explicar as menções astronômicas de suas obras.
12. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presença de menções astronômicas na literatura antiga (e também no período medieval e
no renascimento) é facilmente compreensível, pela importância e utilidade da astronomia na
vida daquela época. Porém, nosso problema é o inverso: por que Sacrobosco (e outros autores
antigos que escreveram sobre astronomia) citaram obras literárias? Logo no início deste artigo,
apresentamos algumas possibilidades: Para exibir erudição? Para esclarecer conceitos? Para
tornar o texto mais sugestivo? É claro que mencionar pessoas famosas sempre adicionou
prestígio aos autores e esse poderia ser um motivo para citar os poetas clássicos. No entanto,
não parece ser o motivo principal.
O Tratado da Esfera foi elaborado para os estudantes medievais do Quadrivium – aritmética,
geometria, música e astronomia. Esses estudantes já haviam estudado anteriormente o Trivium
– lógica, gramática e retórica – e, nos estudos gramaticais, haviam sido apresentados à literatura
clássica. Seria natural utilizar citações de autores que eles haviam estudado, para que pudesse
associar os novos ensinamentos a coisas que já eram conhecidas.
Durante o estudo dos poetas clássicos, certamente os estudantes medievais já havia
encontrado textos com referências a diversos fenômenos astronômicos, e isso poderia trazer um
interesse pelo esclarecimento dessas menções. A gramática mais utilizada durante a Idade
Média era a Institutiones grammaticae de Priscianus Caesariensis (aprox. 500 d.C.), que
continha muitas referências a Virgílio e que incluía versos de temas astronômicos (Leff, 1992,
p. 313). Seria natural, portanto, incluir no Tratado da Esfera algumas menções familiares aos
estudantes.
Sabe-se que o astrônomo Georg von Peuerbach (1423-1461), tendo obtido seu título de
Mestre em Artes na Universidade de Viena em 1453, lecionou depois sobre poesia latina
clássica (incluindo Virgílio) nessa universidade (Shank, 2014, p. 392). Como em 1454 ele já
estava lecionando sobre sua obra Theoricae novae planetarum (ibid.; North, 1992, p. 357),
pode-se concluir que ele combinou o ensino de astronomia com o da literatura latina. Havia,
portanto, uma associação harmoniosa entre o ensino das duas disciplinas, pelo menos nessa
época (século XV). Acredito que o mesmo poderia ser dito sobre a época de Sacrobosco.
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As fontes literárias do Tratado da Esfera de Sacrobosco
A análise interna do Tratado da Esfera não permite esclarecer o que suscitou a inclusão das
menções literárias na obra. No entanto, a comparação com outros textos anteriores, da mesma
época e posteriores indicou uma preocupação constante em proporcionar esclarecimentos
astronômicos para a compreensão dos textos poéticos. Não é possível excluir outros propósitos
por parte de Sacrobosco, mas é plausível que sua intenção principal fosse o uso da astronomia
para explicar as citações literárias, e não o oposto. Podemos concluir com uma citação do
famoso retórico romano Marcus Fabius Quintilianus (aprox. 35-100 d.C.):
Não é suficiente ter lido os poetas, apenas; cada tipo de escritor deve ser estudado
cuidadosamente, não apenas em relação ao tema, mas também quanto ao vocabulário; pois as
palavras frequentemente adquirem autoridade por causa de seu uso por um autor particular. E
esse treino não pode ser considerado completo se terminar antes do conhecimento da música,
pois o professor de literatura tem que falar sobre métrica e ritmo; e se, além disso, ele ignorar a
astronomia, não poderá compreender os poetas; pois eles (para mencionar apenas um aspecto)
frequentemente dão suas indicações sobre o tempo usando como referência o nascimento e o
ocaso das estrelas. (Quintilianus, Institutio oratoria, I.4.4)
AGRADECIMENTOS
O autor é grato pelo apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), sem o qual teria sido impossível realizar a presente pesquisa.
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