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O Mito Da “Produção Simples De Mercadorias”

2020

O artigo que aqui apresentamos é uma tradução de The myth of “simple commodity production”, de Cristopher J. Arthur, escrito em 2005 para a coletânea Marx Myths & Legends (Marx Mitos e Lendas) publicada pelo site marxmyths.org. O artigo está sendo traduzido e publicado com a autorização direta do autor e pode ser encontrado em sua língua original no endereço https://chrisarthur.net/the-myth-of-simple-commodity-production/

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE provided by Universidade Federal de Mato Grosso do Sul: UFMS / SEER - Sistema Eletrônico de... Recebido em: 15/10/2019 Aprovado em: 21/01/2020 Publicado em: 22/05/2020 [TRADUÇÃO] O MITO DA “PRODUÇÃO SIMPLES DE MERCADORIAS” Jadir Antunes1 Universidade Estadual do Oeste de Paraná THE MYTH OF “SIMPLE COMMODITY PRODUCTION” 2 Por Christopher J. Arthur [Tradução Jadir Antunes] 1. AOS LEITORES O artigo que aqui apresentamos é uma tradução de The myth of “simple commodity production”, de Cristopher J. Arthur, escrito em 2005 para a coletânea Marx Myths & Legends (Marx Mitos e Lendas) publicada pelo site marxmyths.org. O artigo está sendo traduzido e publicado com a autorização direta do autor e pode ser encontrado em sua língua original no endereço https://chrisarthur.net/the-myth-of-simplecommodity-production/. O artigo tem, para aqueles que se ocupam da interpretação do pensamento de Marx pelas palavras do próprio Marx, uma considerável importância. O artigo de Arthur gira em torno de uma questão central para se ter uma reflexão filosófica e dialética sobre O Capital: o problema de por onde se deve começar a exposição do pensamento. Arthur mostra que a partir de uma falsa interpretação de Engels, e da introdução por ele de um falso conceito – o de produção mercantil simples –, gerações e mais gerações de marxistas seguiram o caminho errado do darwinismo, do cientificismo, do economicismo, do evolucionismo e do historicismo. 1 Professor Associado do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: [email protected]. ORICD: https://orcid.org/0000-0002-6985-7139. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1904038403983877. 2 Traduzido de ARTHUR, Cristopher J. The myth of “simple commodity production”. In: BLUNDEN, Andy. LUCAS, Rob. Marx Myths & Legends. 2005. Disponível em: <https://www.marxists.org/subject/marxmyths/index.htm>. 173 Seguindo esta falsa interpretação de Engels, acreditou-se por um longo tempo que a exposição da crítica da economia política começaria em O Capital – em sua Seção I sobre a mercadoria e o dinheiro –, pela exposição do conceito de produção mercantil simples – uma forma de produção historicamente existente que teria precedido a forma capitalista – e que apenas na Seção II Marx avançaria para a exposição da produção mercantil capitalista enquanto tal. Nesta leitura de Engels, a exposição dialética de O Capital – e de sua relação com a Ciência da Lógica de Hegel – daria lugar a uma exposição historicista e evolucionista muito distante do caráter dialético e revolucionário da exposição elaborada por Marx. Por este caminho aberto por Engels, diversas gerações de marxistas se perderam desde o final do século XIX pelos becos sem saída do parlamentarismo e do reformismo. Arthur nos sugere, ainda que não desenvolva claramente neste artigo, que o caminho para uma interpretação correta de O Capital seria aquele caminho aberto por Lênin no começo do século XX, a partir de sua leitura da Ciência da Lógica em 1914, que desembocara nos acontecimentos revolucionários de outubro de 1917. Christopher J. Arthur é britânico, formou-se nas universidades de Nottingham e de Oxford – Inglaterra –, e ensinou filosofia por 25 anos na Universidade de Sussex, tendo artigos publicados em numerosos livros e revistas. É autor dos livros A Nova Dialética e o Capital de Marx (2002) e Dialética do Trabalho: Marx e sua relação com Hegel (1986). Editou e introduziu A Ideologia Alemã de Marx e Engels em 1970, com uma edição revisada em 1974; Lei e Marxismo, com uma terceira impressão em 1989, de Pashukanis; Engels Hoje: uma apreciação centenária (1996); e com Geert Reuten produziu A circulação do Capital: ensaios sobre o Volume II do Capital de Marx (1998). Também publicou um resumo com uma introdução de O Capital chamado de O Capital de Marx: edição para estudantes (1992). Todo este material encontra-se publicado em inglês. O tradutor 174 The New Palgrave: A Dictionary of Economics de 1987 mostrou muito bem a refinada e profissional sabedoria dos economistas. O artigo “Karl Marx” foi escrito pelo reconhecido teórico marxista do dia Ernest Mandel. Este trabalho multi-volumoso inclui um número suficiente de artigos sobre marxismo que torna possível a publicação em separado de um volume especial chamado The New Palgrave: Marxian Economics – 1990, no qual a visão geral de Mandel teve um lugar privilegiado. Mandel referiu-se “ao que Marx chama de ‘produção simples de mercadorias’ – ‘einfache Waren-produktion’”3. Nesta semioficial expressão foi declarado o mais duradouro mito da marxologia. Mandel seguiu uma tradição muito longa e antiga. Paul Sweezy em seu muito conhecido texto clássico A teoria do desenvolvimento capitalista diz que “Marx começa analisando a “produção simples de mercadorias” ...’4. (Note-se que, como Mandel, Sweezy não cita nenhuma prova referencial em Marx). Antes de Sweezy ainda, nos anos 30, Oskar Lange, explicando a teoria do valor de Marx, diz que Marx começa com a tal noção: “Marx a chamava de ‘einfache Warenproduktion’”5, diz Lange. Ele continuamente usa a mesma expressão no resto do artigo. Mas há algo de estranho sobre isto: a) ele nunca cita a frase; apenas as palavras “produção simples de mercadorias” aparecem; b) esta é a única expressão germânica no artigo; como se fosse um peculiar e intraduzível termo técnico de Marx; mas o termo não apenas não é intraduzível, como na verdade não pertence a Marx. A última e mais recente autoridade, R. L. Meek, em seu ensaio de 1967 sobre o “Método Econômico de Karl Marx” alegou que Marx tinha um modelo “chamado de ‘produção simples de mercadorias’”.6 Mas a verdade simples é que Marx nunca chamou nada de “einfache Warenproduktion” e que este termo não pode ser encontrado em seus escritos.7 Quem, então, o introduziu? O termo aparece no Prefácio e Suplemento de Engels em sua edição do Volume III de O Capital, e foi interpolado por ele no interior do próprio texto de Marx (essa perspectiva geral os leitores podem deduzir do editorial que cerca e suporta a passagem que contém tal termo). 3 Mandel: Karl Marx, p. 4. Sweezy: Theory of Capitalist Development, p. 23. 5 Lange: Marxian Economics and Modern Economic Theory. In: Review of Economic Studies, volume II, 1935-35, p. 195. 6 Meek: Studies in the Labour Theory of Value, (segunda edição de 1973). Apêndice, p. 303. 7 Em inglês nós encontramos uma referência para ele em Teorias sobre a mais-valia, Parte II, p. 501 – Marx-Engels Collected Works (MECW), volume 32, p. 132. Mas no original alemão está escrito “blose Waarenproduction”, isto é, “produção pura de mercadorias”: Marx: “Para a crítica...”. Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA). Seção II Tomo 3.3., p. 1.123. 4 175 Em seu prefácio Engels declarava que no começo do Volume I de O Capital “Marx toma a produção simples de mercadorias como seu pressuposto histórico, e somente mais tarde, partindo desta base, chega ao capital”: a vantagem disso era que ele poderia proceder “da mercadoria em sua forma simples e não de uma forma conceitual e historicamente secundária: a mercadoria como uma coisa já modificada pelo capitalismo”8. Isto é de fato um erro de leitura: Marx nunca usou a expressão “produção simples de mercadorias” no Capital. Além disso, é certo que Marx nunca se referiu à produção capitalista de mercadorias como uma forma secundária e derivada 9. Marx certamente não desenvolveu a ideia da “produção simples de mercadorias” ao ponto colocado por este nível de discussão, especialmente nos primeiros capítulos de O Capital. Mais exatamente, como a primeira sentença do Volume I deixa claro, a circulação simples discutida nos primeiros capítulos já é a circulação da economia capitalista. A única ocorrência do termo “produção simples de mercadorias” no conjunto dos três volumes de O Capital ocorre no volume III, mas isto está em uma passagem dada a nós subsequentemente ao trabalho editorial de Engels, como ele próprio nos diz numa nota10. Isto agora é possível de ser verificado conferindo-se o próprio manuscrito, que tem sido publicado na Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA). Ali fica claro que o parágrafo inteiro foi inserido por Engels (como, certamente, estava na página seguinte sobre a “missão histórica” do capital)11. Mais tarde Engels inseriu a frase “e produção de mercadorias em geral”.12 Não é usual que um editor imponha sua própria leitura ao texto. Por que, então, Engels teria feito isto? A razão pode ser estabelecida com alguma precisão. Contudo, primeiro, notemos que o espírito de Engels era primariamente histórico. Em sua revisão da Contribuição para a crítica da economia política de 1859 de Marx, ele propôs o que veio a ser conhecido como o método “lógico-histórico” (a propósito, outro termo nunca usado por Marx). Quando respondeu às primeiras provas tipográficas de O Capital, Engels reagiu propondo a adição de um apêndice especial na questão da forma-valor, advertindo que o valor tomava a forma de uma prova tirada da história13. (Marx ignorava 8 Marx: O Capital, Volume III, Prefácio de Engels, p. 103. Há uma passagem em que Marx pressupõe o trabalhador como proprietário de seu próprio produto (Marx: O Capital, Volume I, pp. 729-30). Mas esta passagem está escrita de um modo hipotético. Eu argumento que isto vai contra os fatos reais em Arthur: The New Dialectic and Marx’s Capital - capítulo 6. 10 Marx: O Capital, Volume III, pp. 370-71. 11 Compare a versão do Volume II em Marx-Engels Werke, Tomo 25, pp. 271-73, com o manuscrito de 1863-65 dele na MEGA, Seção II, Tomo 4.2, pp. 334-36. 12 Marx: O Capital, Volume III, p. 965. 13 Carta de Engels para Marx de 16 de junho de 1867; em Marx-Engels Selected Correspondence, p. 186. 9 176 este aviso). Contudo, quando Engels veio a escrever os Prefácios para O Capital I em 1883, 1886 e 1890 ele não sugere que a primeira parte seria histórica. Nem faz referência à “produção simples de mercadorias” em seu Prefácio para o Volume II. Foi somente em 1894 no Prefácio para o Volume III que ele apareceu com a ideia no contexto do julgamento do que tem sido chamado “the prize-essay competition” [prêmios ganhos pela competição] (no qual as pessoas são postas em competição por Engels, em seu Prefácio para o Volume II, para resolver o problema da geração de uma taxa de lucro uniforme na base da lei do valor). Isto nos dá o contexto necessário para compreendermos a intervenção de Engels. Engels envolveu-se na discussão da “produção simples de mercadorias” porque semeou a ideia de que no terceiro volume do Capital Marx abandonara a lei do valor em favor de outro princípio de determinação dos preços. No método de Marx os valores são um estágio no processo geral de formação dos “preços de produção” do Volume III. Mas, se tais valores não estão empiricamente presentes porque estão superados por estes preços de produção, por que seriam por isso meramente fictícios? Engels reagiu a esta possibilidade interpretando os estágios da exposição de Marx historicamente numa ordem que assegurava que os valores estavam de fato empiricamente visíveis, mas, naturalmente, no passado, antes da modificação operada pelo capitalismo. Assim, quando em resposta ao Volume III de O Capital Conrad Schmidt apresentou a tese de que o “valor” discutido no Volume I era uma “ficção necessária”, Engels escreveu a ele argumentando que o valor era real apenas para propósitos práticos no estágio da “produção simples de mercadorias”14. Antes ainda de escrever para Schmidt, Engels escreveu para Werner Sombart no mesmo sentido, argumentando que “o valor tinha uma direta e real existência” somente “quando a troca de mercadorias começou”, mas “esta realização direta do valor... já não acontece mais”, para “o valor do modo de produção capitalista... [ele] está completamente escondido” 15. Engels estava tão fortemente convencido disso que escreveu um artigo especial sobre esta questão, que foi colocado como um Suplemento à segunda edição do Volume III de O Capital. O artigo estava ali inserido exatamente para dissipar qualquer dúvida de que “o que está envolvido é não somente um processo lógico, mas também histórico”. Após desenvolver consideravelmente este ponto, Engels conclui que “a lei do valor de Marx aplica-se 14 Carta de Marx para Schmidt de 12 de março de 1895; em Marx-Engels Selected Correspondence, pp. 481-85. 15 Carta de 11 de março de 1895; em Marx-Engels Selected Correspondence, p. 481. 177 universalmente, tanto quanto se aplica qualquer lei econômica, para o período inteiro da produção simples de mercadorias, isto é, até o tempo em que é submetida a uma modificação com o início da forma de produção capitalista.16 É verdade que Engels era capaz de citar uma passagem extraída do manuscrito do terceiro volume no qual algo como a ideia de um estágio da produção simples de mercadorias fora mencionado por Marx. Agarrando-se entusiasticamente a isso, Engels reclamou que “se Marx tivesse sido capaz de avançar também até o terceiro volume, sem dúvida teria elaborado esta passagem significativamente”17. Contudo, é tão certo quanto possível que Marx teria decidido ser este um falso caminho e o teria eliminado! Certamente, as numerosas referências no Capital à produção pré-capitalista são usadas por Marx sem nenhum intento sistemático. Engels, Sweezy e Meek, todos (erroneamente) acreditavam que o Capital iniciava pela “produção simples de mercadorias”, e ainda caracterizavam seu status. Para Sweezy, a virtude da “produção simples de mercadorias” era sua clareza teórica como ponto de partida para uma derivação lógica, e não sua suposta realidade empírica como parte de uma “história corrigida” como era para Engels. Meek colocara-se numa posição ambígua: a “produção simples de mercadorias” não era um mito, argumentava ele, mas uma mitodologia18. A crença de que Marx começara com alguma coisa que chamava de “produção simples de mercadorias”, isto sim era o mito real! A economia de Marx tem sido ensinada a gerações de estudantes sobre a base de uma distinção entre produção capitalista e “produção simples de mercadorias”. Contudo, esta distinção vem de Engels, e não de Marx. Retornemos ao presente e vejamos o mais popular e lido trabalho sobre Marx: O Capital de Marx, de Ben Fine. Desde sua primeira edição em 1975 tem sido reeditado várias vezes. Até a terceira edição de 1989 ainda podia-se ler o seguinte: “Marx chamou tal situação de produção simples de mercadorias”19. Somente na quarta edição de 2003 esta passagem é modificada por “denominado frequentemente de produção simples de mercadorias” 20. A mais comumente usada edição inglesa de O Capital atualmente tem uma Introdução de Mandel 16 Marx: O Capital III, Suplemento de Engels, pp. 1.033 e 1.037. Marx: O Capital III, Suplemento de Engels, p. 1.034; a passagem inteira de Marx está nas páginas 27778. 18 Meek: Studies in the Labour Theory of Value – segunda edição de 1973, Apêndice, p. 304. 19 Fine: Marx’s Capital, terceira edição, p. 11. 20 Fine: Marx’s Capital (quarta edição com A. Saad-Filho), p. 22. Isto foi resultado da publicação de minha exposição sobre o mito, começando primeiro com “Engels como intérprete da economia de Marx”, 1996, e ainda com “Contra o Método Lógico-histórico: Derivação Dialética versus Lógica Linear”, 1997. 17 178 que diz que Marx não poderia começar pela produção capitalista, isto é, pela “produção generalizada de mercadorias”, porque esta surge, lógica e historicamente, da “produção simples de mercadorias”.21 Como pode ocorrer que ninguém nunca tenha olhado para ver se Marx teria mesmo afirmado na Seção I de O Capital que partia da suposta produção simples de mercadorias? Face à completa ausência de referências seguras em Marx sobre tal situação resta a falência extraordinária dessa falsa escola marxista. A explicação é que por trás deste mito há outra mentira: que Marx e Engels eram a mesma pessoa! O grande testemunho disso é o absurdo da edição de uma Collected Works com 50 volumes devotados aos dois autores que juntos publicaram poucos trabalhos. Meek, em todo seu trabalho, estava absolutamente inconsciente desse tratamento dado a Marx e Engels como uma única pessoa. Durante toda sua obra, Meek cita livremente palavras de Engels quando se propunha mostrar o ponto de vista de Marx. Por exemplo, diz ele citando Engels: Eu ainda penso que estava certo em dar ênfase ao “método lógicohistórico” de Marx: certamente, se alguma vez eu pensei assim, foi porque subestimei a extensão pelo qual o trabalho econômico de Marx era guiado por ele... a transição lógica no Capital de Marx (da relação mercantil como tal para a forma “capitalisticamente modificada” desta relação) é apresentada por ele como “imagem-espelhada” de uma transição histórica (da produção “simples” para a produção “capitalista” de mercadorias)...22 O “por ele” nesta citação é simplesmente falso, porque todo o material citado nesta passagem não vem de Marx, mas de Engels. Contudo, se Engels em seu Prefácio estava seguro de que todo mundo sabia que Marx começara com a produção simples de mercadorias, isto pode parecer ter sido causado pelo pequeno livro Doutrinas econômicas de Karl Marx, de Karl Kautsky23. O livro de Kautsky apareceu em 1887 e teve um sucesso imediato vendendo 5 mil cópias rapidamente24. Neste livro, a “produção simples de mercadorias” é mencionada no primeiro capítulo25. Também há referências sobre ela durante todo o último capítulo. Sem 21 Marx: O Capital I, Introdução de Mandel, pp. 13-14. Possivelmente Mandel criou a expressão complementar “produção generalizada de mercadorias”. 22 Meek: Studies in the Labour Theory of Value, Introdução para a Segunda Edição (1973), p. xv. 23 Paul Hampton chamou minha atenção para o trabalho de Kautsky. 24 De acordo com Engels em uma carta para Sorge de 16 de setembro de 1887; em Engels 1887-90, MECW Volume 48, p. 104. 25 Kautsky: Economic Doctrines of Karl Marx, pp 19-20. 179 dúvida, a interpretação de Kautsky teve uma influência duradoura, pois o livro foi reimpresso várias vezes. Mas seria apressado dizer que Kautsky teria inventado o termo. Engels chamou a atenção de Kautsky para a importância da “produção simples de mercadorias” numa carta de 26 de junho de 1884 26. Por isso, a prioridade do termo pertence a Engels. A autoridade de Engels como intérprete do pensamento de Marx é tão evidente que os textos oficiais básicos de marxismo por muito tempo repetiram seus pontos de vista sobre a matéria. Agora, vejamos a situação do indexador “ortodoxo”. Desde que Engels disse isso, parece ser verdadeiro que a Parte 1 do Capital I trata da produção simples de mercadorias: mas não há nenhuma menção dela ali por Marx. Isto não preveniu Dona Torr, por exemplo, de indexar não menos que vinte páginas do Volume I sob o título “Produção Simples de Mercadorias”. Se não há referências sobre isso então se inventa uma ficção. Isso estava assim em uma edição de 1938 do Capital baseada em uma reedição da edição de Engels. Qualquer um hoje que queira seguir minhas observações sobre a “produção simples de mercadorias” poderá descobrir por conta própria um fato muito estranho. Na Marx-Engels Collected Works os três volumes do Capital estão indexados juntos no fim do volume 37. Quando consultamos este índex podemos ver que há uma referência direta relacionada com a “produção simples de mercadorias”, e outra relacionada com a produção capitalista. Estas duas referências estão nas páginas do Volume I, mas nada deste tipo aparece ali. Por contraste, as três ocorrências do termo do Volume III, mencionadas acima, não estão listadas. (Como pode alguém conduzir a pesquisa sobre esta base!). A solução para este mistério é que este índex tem sido compilado simplesmente juntando o índex existente dos volumes separados e previamente preparados por Moscou; algumas poucas adições falsas foram suprimidas, mas nenhuma tentativa foi feita para se obter a necessária concordância. Os índex para os Volumes II e III foram compilados nos anos 50 para a Foreign Languages Publishing House. A pessoa que compilou o índex para o Volume II e que evidentemente conhecia o termo “produção simples de mercadorias” não é digna de ser mencionada (um fato interessante por si mesmo). O Volume I, publicado em 1954, não teve um índice de todas as matérias, mas quando os três volumes foram novamente publicados pela Progress 26 Marx e Engels Selected Correspondence, p. 377. 180 Publisher o Volume I ganhou um índex mais tarde; desta vez a pessoa responsável introduziu um par de termos fictícios. Devemos lamentar que os índexes da nova edição do Volume I da MEGA também fez concessões para o mito da “produção simples de mercadorias”. Para a primeira edição (1867), a MEGA fornece três páginas de referências para a “Warenproduktion – einfache”. Mas em nenhuma destas páginas aparece o termo, e na minha opinião nada ali aparece com esse significado. Contudo, quando a MEGA fornece o manuscrito original do Volume III, muito corretamente não lista o termo em seu índice. Aqui, tratei do problema das edições em seu âmbito estritamente filológico. Por trás deste erro, escondem-se importantes questões interpretativas e substantivas. Eu infelizmente acredito que Engels estava seriamente errado. Contudo, está aberto para qualquer um sustentar a leitura de Engels em um ou em ambos os aspectos. Mas no futuro espero que as pessoas não digam “que Marx chamou de produção simples de mercadorias”, mas “que Engels chamou de produção simples de mercadorias”. Eu tenho argumentado em outro lugar que a leitura do Capital de Engels estava muito errada27. Mas, sendo assim, como pode ocorrer que o mito tenha ficado indiscutido? Enquanto a autoridade de Engels for importante nesta questão, será necessária uma presente predisposição congênita nos leitores de O Capital para encontrar o conceito de “produção simples de mercadorias”. Há três considerações que ofereço para explicar essa questão. a) A primeira geração de marxistas, tais como Engels e Kautsky (que estavam também entusiasmados com Darwin), acreditava que Marx fizera uma contribuição excepcionalmente poderosa à crítica da economia política, tanto que diferenciou sistematicamente os modos de produção sobre uma base histórica. O capitalismo era uma formação social historicamente específica. Ambos confundiram esta genial ideia de Marx com um imperativo metodológico para explicar as coisas em termos de suas origens e desenvolvimento históricos, apesar de apropriadamente dialético. O que faltou a Engels e Kautsky foi aceitar a possibilidade de que Marx tendia para uma ordem rigorosamente lógica de conceitos, empregando não uma dialética histórica, mas uma dialética 27 Arthur: The New Dialectic and Marx’s Capital – capítulo 2. 181 sistemática do tipo fundada na lógica de Hegel, onde um começo abstrato é sequencialmente concretizado. b) A geração seguinte de marxistas incluiu aqueles educados nos departamentos “Econômicos”, que absorveram uma metodologia diferente, chamada de modelo. Eles naturalmente “encontraram” no Capital um número grande de tais “modelos”, começando pela “produção simples de mercadorias”. Eles leram o Capital como uma sequência de mais e mais complexos modelos que se aproximavam mais e mais do objeto real. c) Antes do Capital aparecer, Hegel era um “cachorro morto” a tal ponto que ninguém estava em condições de entender a extensão da influência de seu pensamento sobre Marx. A dialética de Marx em O Capital não era nada familiar até mesmo para os leitores mais inteligentes. Mesmo que Marx tivesse providenciado um guia de leitura ou uma introdução mais didática metodologicamente, os leitores teriam encontrado muitas dificuldades para entendê-lo. Sem isso, ficaram perdidos. No Posfácio à segunda edição do Volume I, Marx certamente pôs mais problemas que soluções. Isto me sugere que o próprio Marx não tinha muita clareza sobre essas questões. A “obscuridade” do sistemático método dialético de argumentação pode não estar ali meramente pelo interesse de popularização, de alguma forma ele pode ter sido obscurecido pelo próprio Marx. Qualquer tentativa de recuperá-lo pode bem requerer alguma reconstrução de nossos argumentos. Mas isto nos leva para muito além do ponto pretendido neste artigo. Publicado em Abril de 2005. ARTHUR, Cristopher J. The myth of “simple commodity production”. In: BLUNDEN, Andy. LUCAS, Rob. Marx Myths & Legends. 2005. 182 NOTAS 1. Mandel: Karl Marx, p.4. 2. Sweezy: Theory of Capitalist Development p. 23. 3. Lange: Marxian Economics and Modern Economic Theory”; in: Review of Economic Studies Vol. II 1934-35, p. 195, p. 198. Lange continuamente usa a mesma expressão no resto do artigo. Mas há alguma coisa estranha nisso: a) ele nunca traduz a frase, as palavras “produção simples de mercadorias” nunca aparecem; b) existe apenas a expressão germânica no artigo; como se fosse um termo técnico peculiar e intraduzível de Marx; mas ele não é intraduzível, e nem pertence a Marx. 4. Meek: Studies in the Labour Theory of Value, (2nd ed. 1973). Apêndice p. 303. 5. Em inglês nós encontramos uma referência em Theories of Surplus Value, Part II, p.501, Marx-Engels Collected Works (MECW) Vol. 32 p.132. Mas no original alemão está “blose Waarenproduction”, isto é, produção pura de mercadorias: Marx: “Zur Kritik...” Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA) Abt. II, Band. 3.3, p. 1123. 6. Marx: Capital - Volume III, Prefácio de Engels, p. 103. 7. Há uma passagem em que Marx pressupõe o trabalhador proprietário de seu próprio produto (Marx: Capital Volume I, pp. 729-30). Mas esta passagem está escrita de um modo hipotético. Eu argumentei que isto é contrário aos fatos em Arthur: The New Dialectic and Marx’s “Capital” - Capítulo 6. 8. Marx: Capital - Volume III, p. 370 e p. 371n. 9. Compare a versão do Volume III em Marx-Engels Werke, Band 25, pp. 271-73, com o Manuscrito de 1863-65 da MEGA Abt. II, Band 4.2, pp. 334-36. 10. Marx: Capital - Volume III, p. 965. 11. Engels: carta para Marx de 16 de junho de 1867; in: Marx and Engels Selected Correspondence, p.186. 12. Carta para Schmidt de 12 de março de 1895; in: Marx and Engels Selected Correspondence, p.481-85. 13. Carta de 11 de março de 1895; in: Marx and Engels Selected Correspondence, p.481. 14. Marx: Capital III - Suplemento de Engels, pp.1033 e 1037. 15. Marx: Capital III - Suplemento de Engels, p. 1034; a passagem completa de Marx está nas pp. 277-78. 16. Meek: Studies – Segunda edição de 1973, Apêndice p.304. 17. Fine: Marx’s “Capital” - Terceira edição, p. 11. 183 18. Fine: Marx’s “Capital” (quarta edição com A. Saad-Filho) p. 22. Isto foi o resultado da publicação de minha exposição sobre o mito, começando primeiro com “Engels as Interpreter of Marx’s Economics”, 1996; e então ainda com “Against the LogicalHistorical Method: Dialectical Derivation versus Linear Logic”, 1997. 19. Marx: Capital I - Introdução de Mandel, pp. 13-14. Possivelmente Mandel tenha criado a expressão complementar “produção generalizada de mercadorias”. 20. Meek: Studies in the Labour Theory of Value - Introdução para a Segunda edição, (1973) p. xv. 21. Paul Hampton chamou minha atenção para o trabalho de Kautsky. 22. De acordo com Engels em carta para Sorge de 16 de setembro de 1887; in: Engels 1887-90, MECW Vol. 48 p. 104. 23. Kautsky: Economic Doctrines of Karl Marx, pp. 19-20. 24. Marx and Engels Selected Correspondence, p. 377. 25. Arthur: The New Dialectic and Marx’s “Capital” - Capítulo 2. 184 REFERÊNCIAS Arthur, Christopher J. ‘Engels as Interpreter of Marx’s Economics’, in: Engels Today: A Centenary Appreciation, editado por C. J. Arthur (Basingstoke: Macmillan Press) 1996. Arthur, Christopher J. ‘Against the Logical-Historical Method: Dialectical Derivation versus Linear Logic’, in: New Investigations of Marx’s Method, editado por F. Moseley e M. Campbell (New Jersey: Humanities Press) 1997. Arthur, Christopher J. The New Dialectic and Marx’s ‘Capital’. Leiden: Brill, 2002. Engels, Friedrich. Letters 1887-90. Marx, Karl and Frederick Engels Collected Works Volume 48. London: Lawrence & Wishart, 2001. Fine, Ben. Marx’s Capital, third edition. Basingstoke: Macmillan Education, 1989. Fine, Ben (com A. Saad-Filho). Marx’s ‘Capital’, quarta edição. London: Pluto Press,2003. Kautsky, Karl. 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Die Gestaltungen des Gesamtprozesses, in: Karl Marx und Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA). Abteilung II, Band 4.2. Berlin: Dietz Verlag, 1992. 185 Marx, Karl. Das Kapital Erster Band 1867: Karl Marx und Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA), Abteilung II Band 5. Berlin: Dietz-Verlag, 1983. Marx, Karl. Economic Manuscript of 1861-63: Marx, Karl and Frederick Engels Collected Works Volume 32. London: Lawrence & Wishart, 1989. Marx, Karl. Theories of Surplus Value, Part II. London: Lawrence & Wishart, 1969. Marx, Karl. Zur Kritik der politischen Ökonomie (Ms. 1861-63) - Karl Marx und Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA), Abteilung II Band 3.3. Berlin: DietzVerlag, 1978. Marx, Karl and Frederick Engels Selected Correspondence. Moscow: Progress, 1965. Meek, Ronald L. Studies in the Labour Theory of Value, 2nd ed. London: Lawrence & Wishart, 1973. Sweezy, Paul M. The Theory of Capitalist Development, 1942. New York: Monthly Review Press, 1970. 186