411
Sousas Chichorros e Sousas de Arronches: um
enigma heráldico
Miguel Metelo de Seixas e João Bernardo Galvão-Telles
Aos olhos dos genealogistas de todas as épocas, a estirpe medieval dos Sousões
ocupou, pelo seu poder e prestígio, um lugar ímpar no seio da nobreza portucalense.
Do ponto de vista heráldico, tal posição de destaque traduziu-se em algumas
idiossincrasias que a distinguem das demais linhagens coetâneas. Logo à partida,
porém, e mesmo sem nada conhecer de tais especiicidades, a simples consulta de
qualquer armorial colocará o interessado perante uma curiosidade evidente: aos
Sousas que permaneceram no reino de Portugal são atribuídas duas armas diferentes,
umas correspondentes ao ramo dito do Prado (ou, mais remotamente, Chichorro), as
outras ao ramo dito de Arronches. Salvo variações menores e abstraindo de alguma
oscilação ao longo dos séculos (sobretudo no que toca à representação dos quartéis
com as armas reais), ambas consistem num esquartelado: as primeiras combinam
as insígnias régias portuguesas com as leonesas (ig. 1); as segundas, com os antigos
sinais próprios da linhagem – em campo de vermelho, uma caderna de crescentes de
prata (ig. 2). Esta diversidade apresenta-se como um caso pouco comum na heráldica
portuguesa, uma vez que ao mesmo apelido se vêem assim associadas duas armas
Fig. 1 - Armas dos
Sousas Chichorros
ou do Prado.
Fig. 2 - Armas
dos Sousas de
Arronches.
412
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
substancialmente diferentes, na medida em que os seus elementos constitutivos
apenas convergem na opção formal da partição do escudo em quatro e na apresentação
dos sinais de entroncamento na linhagem régia. Para cúmulo do espanto, um dos
ramos chega a omitir, no seu esquartelado, os emblemas especíicos da estirpe, ou
seja, a caderna de crescentes que os Sousões tão ufanamente ostentaram! (ig. 3)
Tal desfasamento entre armas de duas linhagens que evocam uma origem comum e
usam o mesmo sobrenome vem colocar uma série de questões sobre a relação entre
heráldica, onomástica, estrutura da família, formas de construção da identidade
linhagística e de transmissão da memória e do património na nobreza portuguesa
medieval. Assim, procuraremos desvendar o enigma heráldico colocado pelas armas
dos Sousas, para a partir dele relectirmos sobre essas questões mais genéricas.
Principiemos por fazer um ponto da situação
no que se refere aos estudos até agora dedicados
à heráldica desta linhagem. São vários os autores
que se têm debruçado sobre as armas dos Sousas,
começando pelo clássico estudo de Braamcamp
Freire nos Brasões da Sala de Sintra, de 18991.
O título desta obra pode, porém, induzir em
certo erro, pois que nela a heráldica serve tãosomente de ponto de partida para digressões de
natureza histórica e genealógica, sem evidenciar
preocupação marcante com o estudo das insígnias
Fig. 3 - Armas dos antigos Sousas ou propriamente ditas. Assim, no capítulo dedicado
Sousões.
aos Sousas, Braamcamp Freire apenas se referiu às
respectivas armas de forma esporádica e descritiva2, sem cuidar de aprofundar as
circunstâncias históricas da formação e existência dos emblemas. A multiplicidade e
brevidade das referências heráldicas traduzem a vontade do autor em deinir as armas
usadas por cada ramo da família, sem intenção de explicar o porquê das escolhas.
Neste sentido, a obra de Braamcamp Freire, percorrida por um rigor constante
no que se refere à dimensão heurística, denota uma valia diferenciada quanto às
1
FREIRE, Anselmo Braamcamp, Brasões da Sala de Sintra, (introdução de Luís Bivar Guerra), Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973, vol. I, pp. 201-298. A primeira edição, ainda com a graia de Brasões
da Sala de Cintra, é de Lisboa, Francisco Luiz Gonçalves, 1899-1905, 3 volumes; dada a escassez de exemplares
desta primeira edição e o manifesto interesse do público, a obra foi reimpressa em Coimbra, pela Imprensa da
Universidade, entre 1921 (ano da morte do autor) e 1930; teve uma 3.ª edição em 1973, acima citada, com estudo
de Luís de Bivar Guerra; e, por im, a mesma instituição veio a realizar uma 4.ª edição em 1996.
2
FREIRE, Brasões..., vol. I, pp. 201, 209, 211, 212, 225-226, 229, 235, 237, 239, 276, 279, 282-283.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
413
áreas da genealogia e da heráldica. No primeiro destes campos, o seu contributo
aigura-se inegável para a regeneração epistemológica da disciplina e para a sua
valorização como forma de escrever história. No segundo, pelo contrário, o autor
progride sobretudo nos aspectos metodológicos, podendo mesmo ser considerado
como o criador de um saber heráldico fundamentado em fontes referenciadas,
mas não demonstra propensão para alterar a noção da disciplina então vista como
instrumento auxiliar ao serviço do historiador, usado para mera comprovação de
identidades e cronologias.
Abordagem diferente foi a de António Machado de Faria, a quem se deve um
dos textos mais marcantes para a renovação dos estudos de heráldica medieval
portuguesa, publicado em 1944 e intitulado Origens da Heráldica Medieval
Portuguesa3. Não obstante diversos aspectos especulativos e discutíveis, que o
autor aliás apresentou como tais, este trabalho constituiu uma primeira tentativa
de fornecer uma visão global do aparecimento e uso dos emblemas heráldicos
medievais. Uma das principais teses do autor reportou-se à constituição de famílias
heráldicas, ou seja, ao fenómeno de mimetismo das armas de diferentes linhagens
por via genealógica4. Para ilustrar esta sua tese, Machado de Faria juntou, no inal
do seu opúsculo, um quadro com a divulgação dos crescentes, tendo como ponto de
partida a caderna dos Sousões (ig. 3), que fez remontar a D. Mendo Viegas de Sousa,
e exempliicando a transmissão desses móveis heráldicos, por via de descendência
consanguínea, aos Sousas de Arronches, Pintos, Briteiros (de D. Mendo Rodrigues de
Briteiros), Alardos, Meireles, Carvalhos, Pessoas, Homens, Gatos e Barbosas.
Em trabalho vindo a lume em 1965, Francisco de Simas Alves de Azevedo
tratou de analisar a origem e a difusão das armas dos Sousas, salientando que o uso
da caderna de crescentes devia remontar ao conde D. Mendo Gonçalves de Sousa,
o Sousão, mordomo-mor, não obstante só se encontrar documentado nas pessoas
dos seus ilhos D. Gonçalo († 1239), igualmente mordomo-mor, e D. Vasco Mendes
de Sousa († 1242)5, bem como nas armas de D. Mendo Rodrigues de Briteiros6. Ao
CABRAL, António Machado de Faria de P., Origens da Heráldica Medieval Portuguesa, Porto, Imprensa
Portuguesa, 1944.
4
Para um estado da questão deste assunto, cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVãO-TELLES, João
Bernardo, “Em redor das armas dos Ataídes: a problemática da «família heráldica» das bandas”, Armas e Troféus,
2008, IX série, pp. 53-95.
5
Sendo certo que o escudo que ornamenta o seu túmulo se apresenta hoje liso, este autor assinalou contudo a presença do crescente, sinal da linhagem dos Sousas, no pomo da espada igurada na respectiva tampa
sepulcral: “Dom Vasco Mendes, décédé en 1242, semble avoir, sur son tombeau, un croissant sur le pommeau de
son épée”. AZEVEDO, Francisco de Simas Alves de, “Un fameux écartelé portugais”, Archivum Heraldicum, 1965,
n.º 2-3, pp. 29-34, p. 29.
6
AZEVEDO, “Un fameux écartelé…”, pp. 29-34.
3
414
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
considerar a disposição peculiar dos crescentes em caderna, este autor evidenciou o
seguinte:
“On peut interpréter le lunel comme étant quatre croissants mis en croix;
les armes des rois du Portugal étaient formées seulement jusque vers l’an
1248, date de l’accession d’Alphonse III, de cinq écussons besantés mis en
croix […]. On peut admettre que les armes des Sousa, comme celles des
rois du Portugal, sont issues de l’idée de la Croisade.”7
Além do efeito de mimetismo em relação às armas régias portuguesas, Simas
Alves de Azevedo apontou ainda outra hipótese interpretativa para a caderna de
crescentes dos Sousas, como cristianização de um sinal conotado com o inimigo
islâmico: assim, ao apoderar-se dos crescentes tradicionalmente ostentados pelos
mouros e ao dispô-los de forma a aludir ao símbolo da cruz, tal emblema estaria
a signiicar, recordar e invocar a vitória das forças cristãs. O autor concentrou-se,
de seguida, na descrição de alguns monumentos que permitem traçar a origem
das armas dos Sousas de Arronches (ig. 2), limitando-se porém a explicar que o
esquartelamento das armas antigas da linhagem com as do reino traduzia a aliança
matrimonial de uma herdeira da estirpe com um bastardo régio, no caso D. Afonso
Dinis, ilho de D. Afonso III. O mesmo autor haveria de retomar o tema da heráldica
dos Sousas em 1982, dedicando, desta vez, atenção especial ao outro grande ramo,
o dos Chichorros8. Começando por arrolar as fontes modernas para tais armas,
Simas Alves de Azevedo aceitou, implicitamente, o desconhecimento de vestígios ou
referências anteriores ao século XV. Não obstante, considerou, como adiante veremos
com mais atenção, que o esquartelado deste ramo devia remontar a Martim Afonso
de Sousa, o da Batalha Real, “progenitor de todos – segundo parece – os Sousas que
esquartelaram Portugal-antigo e Leão”9. Mas foi sempre prudente, salientando que a
sua posição a este respeito devia ser considerada como hipótese, uma vez que a fonte
mais antiga para o conhecimento deste esquartelado recuava apenas a 1469: era o
túmulo de D. frei Gonçalo de Sousa, comendador-mor da Ordem de Cristo10. O autor
7
AZEVEDO, “Un fameux écartelé…”, p. 30. Sobre o culto da Santa Cruz e a sua transposição para o universo da heráldica, cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVãO-TELLES, João Bernardo, “«Nem a poder de brancos
unicórnios…» Relexos do ideal de Cruzada e de Reconquista nas armas medievais dos Teixeiras”, Revista Dislivro
Histórica, n.º 1, 2008, pp. 113-130.
8
AZEVEDO, Francisco de Simas Alves de, “As armas dos Sousas, ditos do Prado”, in Comunicaciones al
XV Congreso Internacional de las Ciencias Genealogica y Heraldica. Madrid 19-26 – IX - 1982, Madrid, Instituto
Salazar y Castro, 1983, tomo III, pp. 521-531, pp. 527-528.
9
AZEVEDO, “As armas…”, p. 525.
10
AZEVEDO, “As armas…”, p. 526. Apontou ainda este autor a existência de uma pedra de armas conservada no Museu Regional de Évora e que, pelas suas características estilísticas, considerou anterior, atribuindo-a,
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
415
mencionou, por im, o uso destas mesmas armas por parte de diversos membros da
linhagem de inais do século XV em diante, com especial referência a Luís Álvares de
Sousa, que mais à frente estudaremos com pormenor.
O marquês de Abrantes, por sua vez, analisou as insígnias primitivas da
linhagem dos Sousas, por via do estudo pormenorizado do panteão desta família no
claustro do mosteiro de Alcobaça11. Chamando a atenção para o carácter excepcional
de tal conjunto lapidar para o conhecimento da heráldica da nobreza portucalense
do século XIII, o autor percorreu-o com minúcia, de forma a evidenciar todos os
elementos emblemáticos, relacionando-os com os epigráicos e iconográicos. Desta
análise, ressaltaram duas ideias principais.
Em primeiro lugar, as pedras dos Sousões apresentam uma profusão de
igurações do tema primordial do crescente, entendido como sinal da família: a mais
comum de todas elas é a da caderna, em que se hão-de cristalizar as armas quando se
ixarem; mas vêem-se também conjuntos de cinco cadernas em aspa, conjuntos de um
crescente com uma estrela, dois crescentes um sobre o outro, e uma intrigante pedra
só com três crescentes alinhados em faixa, que o marquês de Abrantes considerou
como representação vexilar. Os sinais dos Sousões ora se apresentam contidos dentro
de escudos, ora a ornamentar um objecto ou peça de vestuário (caso da sela e da
gualdrapa do cavalo), ora simplesmente soltos, por vezes com um valor decorativo
notável, como acontece com a caderna incompleta que enquadra a igura do cavaleiro.
Concluía o marquês de Abrantes: “será de realçar a profusão com que os crescentes,
isolados ou formando caderna, nos surgem. E, perante a vetusticidade destes
monumentos, somos forçados a concluir que, efectivamente, as primitivas armas dos
«de Sousa» eram realmente formadas a partir de crescentes isolados ou constituindo
uma ou mais cadernas”, para chamar a atenção, mais adiante, para a “variedade que,
ainal, conirma a liberdade e vitalidade plásticas da nossa heráldica medieval”12.
Em segundo lugar, ao veriicar a diversidade de contornos dos escudos (que
associou à presença de orlas ou bordaduras) e, bem assim, as variações na disposição
dos crescentes, o marquês de Abrantes aventou a seguinte hipótese: “Não podemos
deixar de crer que aqueles elementos teriam um signiicado e este seria, naturalmente,
como mera possibilidade, ao herói de Aljubarrota. Simas Alves de Azevedo salientou porém a inexistência de
qualquer registo documental que permitisse fundamentar tal atribuição.
11
ABRANTES E FONTES, D. Luiz Gonzaga de Lancastre e Távora, Marquês de, “Apontamentos de
Armaria Medieval Portuguesa - III - A heráldica dos «Sousões» no Claustro do Silêncio, de Alcobaça”, Armas e
Troféus, V série, tomo I, n.º 1, 2 e 3, 1981, pp. 54-72.
12
ABRANTES E FONTES, “Apontamentos de Armaria…”, pp. 68 e 72.
416
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
o de constituírem «diferenciações»”13. O autor aproximou então as igurações de
Alcobaça com as do túmulo do já mencionado Vasco Mendes de Sousa, existente
no mosteiro de Pombeiro de Riba de Vizela, o qual apresenta um escudo (hoje liso
mas que em tempos teria sido pintado) com o mesmo tipo de orla incisa14. Contudo,
salientou que a ideia da existência de tais diferenças heráldicas num período tão
remoto se situava no “campo das meras conjecturas, incomprováveis”15.
Face à multiplicidade das manifestações heráldicas dos Sousões do século
XIII, parecia o marquês de Abrantes oscilar, assim, entre duas concepções opostas:
por um lado, apontava o carácter espontâneo e a liberdade de representação dos
sinais que, mais tarde, numa obra de síntese, classiicaria de “proto-heráldicos”16; por
outro, procurava classiicar as variações observadas na representação das insígnias
como diferenças plenamente heráldicas, isto é, como armas pessoais, destinadas à
identiicação individual mediante a sua integração numa lógica ou sistema coerente
de diferenciação.
Mário Barroca abordou igualmente a heráldica dos Sousões no seu
inventário da epigraia medieval portuguesa, ao tratar do mesmo conjunto
lapidar de Alcobaça. No domínio da heráldica, além de assinalar e descrever as
manifestações aí presentes, este autor salientou em particular a importância da
lápide sepulcral do conde D. Gonçalo Mendes de Sousa: “Devemos sublinhar
que esta representação heráldica deve ser a primeira iguração (pelo menos
sobrevivente) de um brasão pertencente à Nobreza portuguesa. Anteriores a ela
apenas encontramos representações de armas reais.”17 Além desta inovação –
salientou Barroca –, a inscrição sepulcral do conde D. Gonçalo apresenta ainda
outra, não de somenos importância e que se deve associar estreitamente à presença
das armas: o facto de, pela primeira vez, “referir Sousa como nome de família”18.
Já em trabalho da nossa lavra, em edição comemorativa do terceiro centenário
do nascimento do 1.º marquês de Pombal, tivemos ensejo de perorar sobre a
heráldica dos Carvalhos, assinalando a sua inserção na família heráldica das cadernas
de crescentes dos Sousas. No que diz respeito às armas desta última linhagem, a
ABRANTES E FONTES, “Apontamentos de Armaria…”, p. 69.
O marquês de Abrantes não se referiu à presença de um crescente no pomo da espada igurada na tampa
do mesmo túmulo, elemento anteriormente observado por Simas Alves de Azevedo, como dissemos.
15
ABRANTES E FONTES, “Apontamentos de Armaria…”, p. 71.
16
ABRANTES, Marquês de, Introdução ao estudo da heráldica, Lisboa, ICALP, 1992, pp. 21-30.
17
BARROCA, Mário Jorge, Epigraia Medieval Portuguesa (862-1422), s.l., Fundação Calouste Gulbenkian /
Fundação para a Ciência e a Tecnologia / Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2000, vol. II, tomo I, p. 803.
18
BARROCA, Epigraia Medieval…, vol. II, tomo I, p. 803.
13
14
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
417
nossa abordagem centrou-se então essencialmente na explicação do fenómeno de
mimetismo formal e na compreensão dos factores de interpretação lendária que lhe
estavam associados e explicavam a assunção e a manutenção de tais sinais19.
Posteriormente, ao proceder ao levantamento heráldico do concelho de
Fronteira, tivemos oportunidade de traçar, a pretexto da existência de uma moderna
pedra com as armas dos duques de Palmela, uma breve resenha genealógica sobre os
Sousas e de tecer algumas considerações sobre os respectivos usos heráldicos20. No
que respeita ao ramo dos Sousas Chichorros ou do Prado (ig. 1), airmámos ser
“sem dúvida o prestígio da ascendência real de Castela-Leão que
determinará a escolha das armas dos Sousas Chichorros, calhando nas
armas de Leão precisamente porque as de Castela já compunham as do
infante D. Afonso, senhor de Portalegre, que usava um esquartelado
Portugal Antigo / Castela”.
Quanto às armas dos Sousas de Arronches (ig. 2), dissemos que a opção pelo
uso da caderna de crescentes residia
“na importância da união de Afonso Dinis, pois D. Maria Pais Ribeira
era a chefe de uma linhagem de vetustas tradições e prestígio ímpar
(…), [sendo] possível que a recuperação destas primitivas armas pelo
ramo dos Sousas de Arronches esteja relacionada com [a] representação
e cheia do nome, bem como com a herança de parte do seu património”.
Posteriormente, quando estudámos a monumental fonte da praça do Império,
em Lisboa, retomámos sucintamente a análise das armas dos Sousas do Prado (ig.
1), reairmando que as mesmas se ligavam à histórica igura do bastardo Martim
Afonso, o Chichorro. Explicitámos então que
“como membro da Casa Real, ainda que ilegítimo, Martim Afonso podia
fazer uso das armas reais portuguesas, mas tinha de as modiicar por
forma a assinalar que não era o chefe da linhagem. (…) Para diferençar
as suas armas, Martim Afonso escolheu um procedimento usual para
esse efeito: recorreu ao esquartelamento (…). Nas armas assumidas por
Martim Afonso iguram pois no lugar de honra os quartéis com as quinas
(…), conjugados com quartéis em que igura em campo de prata um leão
GALVãO-TELLES, João Bernardo; SEIXAS, Miguel Metelo de, Sebastião José de Carvalho e Melo, 1.º
Conde de Oeiras, 1.º Marquês de Pombal. Memória genealógica e heráldica nos trezentos anos do seu nascimento
(13 de Maio de 1699 – 13 de Maio de 1999), Oeiras, Universidade Lusíada / Câmara Municipal de Oeiras, 1999,
pp. 55-61.
20
SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, Heráldica no concelho de Fronteira,
Fronteira, Universidade Lusíada / Câmara Municipal de Lisboa, 2002, pp. 219-226.
19
418
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
de púrpura. Estas segundas armas provêm também elas da ascendência
régia de Martim Afonso, pois sua avó paterna D. Urraca (casada com o
rei D. Afonso II de Portugal) provinha das Casas reais de Castela e Leão.
Foi às armas falantes deste último reino que Martim Afonso foi buscar os
quartéis dos leões das suas armas.” 21
Temos hoje de reconhecer que esta apreciação – ao airmarmos que o recurso ao
esquartelado para diferençar armas seria já um procedimento usual e ao assumirmos,
desde logo, que a composição heráldica dos Sousas Chichorros foi usada por Martim
Afonso – assentou numa base empírica, sem provas concludentes nesse sentido;
assim como foi empírica a dedução de que o leão se reportava à ascendência materna
de D. Afonso III.
A observação subsequente da cruz processional de Santo André de Mafra,
magníico exemplar de ourivesaria trecentista que ostenta na sua base seis botões
esmaltados de conteúdo heráldico alusivos a Diogo Afonso de Sousa e a D. Violante
Pacheco, sua mulher, permitiu, por sua vez, uma abordagem mais aprofundada do
tema22. Desde logo, foi a partir desta relexão que questionámos se o uso de uma
partição heráldica aparentemente tão comum – o esquartelado – já o seria no
século XIV, apontando, com base em Faustino Menéndez Pidal de Navascués23, que
a difusão deste modelo resultou, por imitação e moda, do esquartelado das armas
reais de Castela e Leão adoptado em 1230 pelo rei Fernando III. E no que respeita,
em particular, à formação do conjunto heráldico dos Sousas de Arronches, presente
num dos botões esmaltados, apontámos que
“o esquartelado assumido por D. Diogo Afonso de Sousa representava pois a
união, na sua pessoa, de um ramo ilegítimo da Casa Real com a mais antiga e
gloriosa linhagem de Portugal”.
Nesta iguração das armas de Diogo Afonso veriicámos, porém, que os esmaltes
dos quartéis com as quinas se apresentavam na ordem contrária, ou seja, com o
campo de azul e os escudetes de prata (ig. 4). Esta inversão foi também observada
no botão heráldico referente ao pai daquele prócere, o bastardo régio Afonso
21
SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVãO-TELLES, João Bernardo, (Coordenação), Peregrinações Heráldicas
Olisiponenses. A freguesia de Santa Maria de Belém, Lisboa, Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém /
Universidade Lusíada de Lisboa, 2005, pp. 258-260.
22
SEIXAS, Miguel Metelo de, “Contributo para o estudo do sistema de diferenças da Casa Real portuguesa:
os botões esmaltados armoriados da cruz processional de Santo André de Mafra”, Tabardo, n.º 3, 2006, pp. 29-54.
23
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Faustino, Heráldica Medieval Española – I – La Casa Real de
Leon y Castilla, Madrid, Hidalguía, 1982, pp. 88-91.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
419
Fig. 4 - Armas de Diogo
Afonso de Sousa.
Fig. 5 - Armas de Afonso
Dinis, ilho bastardo de
D. Afonso III.
Dinis (ig. 5), o que nos levou a pôr em causa o uso tradicionalmente atribuído
das armas ditas de Portugal-Antigo (de prata, cinco escudetes de azul em cruz,
cada escudete carregado de besantes do campo) (ig. 6) a todos os ilhos ilegítimos
dos reis de Portugal durante a primeira dinastia. Para sustentar a inviabilidade
desta tese, estabelecemos um quadro comparativo das armas usadas pelos ilhos
legítimos e ilegítimos de D. Afonso III, a partir do qual pudemos concluir que era
então hábito, na Casa Real portuguesa, todos os seus membros diferençarem as
suas insígnias mediante, por um lado, “a recuperação do elemento fundamental
das armas de Portugal, as quinas, embora não necessariamente na sua disposição
em cruz, nem, segundo tudo indicia, nos seus esmaltes originais”; e, por outro,
o recurso a um de vários estratagemas heráldicos: a combinação de armas em
esquartelado; o acrescentamento de uma bordadura; a disposição das iguras
tradicionais numa partição nova, como o palado; ou, inalmente, a combinação
de armas em franchado. Esta análise possibilitou, por conseguinte, perceber a
existência de um sistema de diferenciação das armas da primeira dinastia real
portuguesa (abrangendo membros legítimos e bastardos), no qual as insígnias dos
Sousas de Arronches se inseriram. Adiante, retomaremos com mais pormenor esta
abordagem.
Mais recentemente, Alexandra Pelúcia, na sua obra sobre Martim Afonso de
Sousa, idalgo do ramo dos Sousas Chichorros que, no século XVI, desempenhou papel
importante na consolidação do império ultramarino, abordou também a questão
da heráldica ostentada por este ramo da linhagem24. Fê-lo, aliás, num contexto de
24
PELÚCIA, Alexandra, Martim Afonso de Sousa e a sua linhagem: trajectórias de uma elite no império de
D. João III e de D. Sebastião, Lisboa, Centro de História de Além-Mar, 2009.
420
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
análise da própria identidade desta estirpe e da sua
airmação, em particular perante os parentes Sousas
de Arronches, na sequência do desmembramento da
primitiva casa de Sousa, no tempo do rei D. Dinis.
Neste sentido, salientou a autora que “na primeira
metade do século XIV, mais do que uma simples
reviviicação da linhagem ancestral, estava em curso
um processo de composição e interiorização de uma
identidade renovada”25. Ora, tal processo operouse, segundo Alexandra Pelúcia, não apenas através
Fig. 6 - Armas de Portugal-Antigo.
da referência ao ilustre passado da primeva estirpe
portucalense, mas também pelo evidenciar do seu
vínculo de sangue com as Casas Reais portuguesa e castelhano-leonesa, neste último
caso em nítida distinção face ao referido ramo rival. A valorização desta segunda
ligação decorria, no entender da autora, do casamento, em 1341, de Vasco Martins de
Sousa com D. Inês Dias Manuel (bisneta paterna, por via bastarda, do rei Fernando
III de Castela26), matrimónio do qual nasceu Martim Afonso de Sousa, chamado o
da Batalha Real pela sua intervenção no campo de Aljubarrota, ao lado de D. João I
de Portugal.
Sigamos, então, o quadro em que Alexandra Pelúcia retratou a construção da
memória linhagística destes Sousas Chichorros, em especial no que respeita às suas
opções heráldicas. Martim Afonso de Sousa, o da Batalha Real, funcionou como o
herói de referência para a refundação da linhagem27. O seu nome é ele próprio deveras
signiicativo, em dois sentidos: correspondeu, por um lado, a uma estratégia de
ixação de antropónimos, com a recorrência da conjugação Martim Afonso a prestar
nítida alusão ao bastardo régio de D. Afonso III, abandonando desta maneira o seu
valor original de patronímico; representou, por outro, a cristalização do apelido de
Sousa como nome de referência da linhagem (apenas um ramo colateral continuou
a fazer uso da alcunha de Chichorro, mas sempre em conjugação com Sousa). A
mesma autora apontou de seguida a circunstância da escolha das armas deste ramo
dos Sousas, o esquartelado de Portugal-Antigo e Leão, parecendo associá-la, embora
não explicitamente, ao combatente de Aljubarrota:
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 49.
SãO PAYO, Luiz de Mello Vaz de, “A família de Martim Afonso de Sousa «o da Batalha Real»”, Armas e
Troféus, II série, tomo VI, n.º 3, Out.-Dez. 1965, pp. 366-367.
27
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 40.
25
26
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
421
“Relexo adicional da especiicidade e da coesão do grupo, que se teriam
manifestado mais ostensivamente desde os meados de Trezentos e
encontrado uma primeira igura de eleição em Martim Afonso de Sousa,
o da Batalha Real, correspondeu ao esquartelamento do brasão de armas
dos Sousas Chichorro.”28
Não obstante tal aproximação, Alexandra Pelúcia ressalvou declaradamente o
desconhecimento quanto ao momento de adopção desse esquartelado dos Sousas
Chichorros. Em contrapartida, apresentou como incontroversa a mensagem nele
contida:
“enquanto os homónimos de Arronches incorporaram na sua
representação a caderna de crescentes de prata, marca de referência dos
Sousas ancestrais, conjugando-as [sic] com as armas reais portuguesas,
os Chichorros elegeram como símbolos próprios as quinas, de modo a
propalar a descendência da dinastia Afonsina, associando-as ao leão dos
Manuéis castelhanos, que estabelecia conexão com a Casa Real do país
vizinho, num pleno aproveitamento do «dote» trazido por D. Inês Dias
Manuel a Vasco Martins de Sousa e transmitido à progénie de ambos.
[…] Enim, airmavam-se iéis depositários do apelido Sousa, mas, tão
ou mais relevante, descendentes e parentes de reis, não por única, mas
por dupla linha.”29
Desta forma, o esquartelado de Portugal-Antigo e Leão permitia que estes
Sousas Chichorros comungassem da “valiosa ideologia de realeza”, remetendo-os para
o tempo mítico da formação do próprio reino no esforço da Reconquista peninsular.
Não obstante a prosápia desta linhagem, Alexandra Pelúcia registou o seu
relativo apagamento heráldico, quando comparada com o ramo dos Sousas de
Arronches, pelo menos no que diz respeito à sua exclusão dos armoriais da transição
da Idade Média para a Moderna. Baseando-se em Braamcamp Freire, com efeito, a
autora veriicou que as armas dos Sousas Chichorros estão ausentes de três grandes
códices iluminados desta época (o Livro Antigo dos Reis d’Armas, o Livro do ArmeiroMor e o Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas), bem como do tecto da sala dos
brasões do paço de Sintra30. Destacou também que, à falta da heráldica dos Sousas
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 41.
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 41.
30
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 42. As referências de Braamcamp Freire constam da listagem
geral que este autor fez das armas patentes no tecto da sala de Sintra, e depois do capítulo que dedicou especiicamente à família Sousa. Cfr. FREIRE, Brasões …, vol. I, respectivamente pp. 32-39 e 201-298; SEIXAS, Miguel
Metelo de, “A sala dos brasões do paço real de Sintra: pistas para o seu estudo e compreensão”, no prelo. Para um
28
29
422
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
Chichorros, se contrapôs, nos citados armoriais, o relevo dado às insígnias dos
Sousas de Arronches (ig. 2); o que, para a investigadora, expressa inequivocamente a
emulação existente entre os dois ramos da família: “A chave do problema remontava
ao último quartel do século XIII, à rivalidade entre as famílias nucleares das irmãs
D. Maria e D. Constança Mendes de Sousa”31. Nos armoriais manuelinos, o ramo
de Arronches parece deter a cheia da linhagem, embora o não seja em termos
meramente genealógicos (com a ressalva de que se aplica um critério possivelmente
anacrónico), uma vez que D. Maria era a mais velha das duas irmãs. De qualquer
modo, Alexandra Pelúcia registou uma anedota consignada pelo cronista de Ásia,
bem expressiva da rivalidade que, ainda na primeira metade do século XVI, ecoava
pela Índia entre os dois ramos pela cheia da Casa, concluindo:
“Não custa admitir que as discussões travadas na Índia eram relexo
de um debate semelhante, mais largo e antigo, que encontrava a sua
principal arena de expressão dentro das fronteiras do Reino”32.
Evidenciada a ausência das armas dos Sousas Chichorros nas referidas fontes, a
autora indicou, todavia, que subsistem ou há notícia de diversas manifestações dessas
insígnias que estariam patentes no reino: na sepultura de Luís Álvares de Sousa na
capela de Santo António da igreja de São Francisco, no Porto, datada de 1474; na de
João de Sousa, falecido em 1515 e sepultado na igreja de Ferreira do Alentejo; e na
de Gonçalo de Sousa, o Lavrador, sepultado na igreja do Espinheiro, perto de Évora,
em 151633. Alexandra Pelúcia mencionou ainda, mas sem lhe dedicar atenção por
se tratar de um ramo afastado do tronco da linhagem, a mais antiga representação
heráldica conhecida dos Sousas Chichorros34: a da já citada sepultura do homónimo
D. frei Gonçalo de Sousa, comendador-mor da Ordem de Cristo, chanceler e alferesmor do infante D. Henrique, datada de 1469, proveniente da capela de São Jorge
no convento de Tomar e hoje conservada no Museu Arqueológico do Carmo, em
Lisboa35. Mesmo sem apresentar elementos heráldicos, o túmulo de D. João de Sousa,
estado da questão do arrolamento e estudo dos demais armoriais portugueses coevos, veja-se SEIXAS, Miguel
Metelo de, “As insígnias municipais e os primeiros armoriais portugueses: razões de uma ausência”, Ler História,
n.º 58, 2010, pp. 155-179.
31
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 42.
32
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 43.
33
Cfr. FREIRE Anselmo Braamcamp, As sepulturas do Espinheiro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1901, p. 20.
34
PELÚCIA, Martim Afonso de Sousa…, p. 43.
35
Cfr. BARROCA, Mário Jorge, “Epigraia medieval”, in ARNAUD, José Morais; FERNANDES, Carla
Varela, Construindo a Memória. As Colecções do Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa, Associação dos
Arqueólogos Portugueses, 2005, pp. 375-376. Recorde-se que já Simas Alves de Azevedo assinalara este como o
exemplar mais remoto das armas dos Sousas Chichorros. Registamos, também, a presença das armas dos Sousas
Chichorros no solar dos Cogominhos, em Évora (hoje Albergaria Solar de Monfalim), que Túlio Espanca associou
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
423
falecido em 1513 e enterrado na capela de Ceia do convento de São Francisco, na
referida cidade de Évora, alude expressamente ao parentesco (aliás incorrecto) de
Martim Afonso de Sousa, o da Batalha Real, avô do sepultado, como primo do rei
D. Fernando36.
A referida autora destacou ainda que a valorização do vínculo genealógico
às famílias reais portuguesa e castelhano-leonesa por parte dos Sousas Chichorros
perpassou pelas quadras heráldicas de João Rodrigues de Sá e Meneses, aliás parente
próximo, por ainidade, daquela estirpe. Nestas composições, com efeito, ao tratar
dos Sousas, o trovador mencionou apenas o ramo Chichorro:
“De duas armas rreaes,
Com quynas, & cõ lyões,
Souzas fazem quarteirões,
Por serem fylhos carnaes,
De dous rreys por soçesões.
Dum que teue tal valor
Que foy par demperador,
Doutro em Portugual seu par,
O prymeyro no rreynar
Prymeyro conquistador.”37
A argumentação de Alexandra Pelúcia sobre o signiicado das armas deste
ramo dos Sousas enquanto representação de uma identidade linhagística que
privilegiava a sua dupla origem régia assentou numa erudição assinalável e num
inquestionável domínio da mentalidade coeva. Bem como no conhecimento
actualizado das problemáticas e dos desaios da história social em cruzamento com
outras disciplinas, nomeadamente a etnologia e a antropologia. Contudo, cremos
que a autora não explorou até ao im as fontes heráldicas disponíveis, e parece-nos
à igura de um outro D. Gonçalo de Sousa, detentor do edifício em meados do século XVI. Parece-nos, no entanto, que essa pedra de armas, na ausência de elementos documentais e visto a sua coniguração estilística, poderá
ser anterior. Vd. ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal. Concelho de Évora, Lisboa, Academia Nacional
de Belas-Artes, 1966, tomo VII, vol. 1, p. 191; vol. 2, fotograia II, est. CCCLXII-4.
36
A autora citou ainda outros túmulos importantes, igualmente não armoriados, como o de Martim
Afonso Chichorro I no mosteiro de Santa Clara de Santarém, e o de Rui de Sousa na capela de Nossa Senhora do
Rosário, na igreja dos Lóios, também em Évora.
37
SÁ, João Rodrigues de, “Coplas declarando alguns escudos de armas de algumas linhagens de Portugal,
que sabia donde vinham”, apud SãO PAYO, Conde de (D. António), Cancioneiro d’Armaria, Lisboa, s.n., 1929, p.
36. Dom João Ribeiro Gayo, bispo de Malaca, seguiu o exemplo do seu antecessor e, nas suas trovas heráldicas
escritas na segunda metade do século XVI, intituladas “Templo da Honra de Portugal”, apenas registou as armas
dos Sousas Chichorros, em termos semelhantes: “Dous escudos venerados / de Portugal e Leão / ao travez esquartelados / armas dos Souzas são / mui dignos de seus passados”. SãO PAYO, Cancioneiro…, p. 62.
424
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
que estas podem conduzir a análise das armas dos Sousas Chichorros numa direcção
um pouco diferente.
Apesar de ignorar a data de formação do respectivo esquartelado, Alexandra
Pelúcia baseou a construção do seu raciocínio no pressuposto de que a composição
heráldica daquele ramo dos Sousas se teria formado na geração de Martim Afonso
de Sousa, o da Batalha Real, espelhando assim a sua ascendência paterna (as quinas)
e materna (o leão). A questão que se nos aigura crucial colocar neste momento é,
por conseguinte, a de saber se a presença dos quartéis do leão nas armas dos Sousas
Chichorros se reportará efectivamente à ascendência castelhano-leonesa daquele
prócere por via dos Manuéis.
Para tentarmos responder a esta indagação, torna-se relevante perceber se é
possível referir a existência de um “leão dos Manuéis
castelhanos”, como o designou a mesma autora. De
que forma – podemos então perguntar – se constituiu
e transmitiu em Portugal a memória heráldica da
linhagem dos Manuéis?
As suas insígnias tiveram origem no infante
D. Manuel, ilho de Fernando III de Castela e Leão,
que adoptou as seguintes armas: esquartelado, I e IV
de vermelho, uma mão alada de ouro empunhando
uma espada de prata; II e III de prata, um leão de
Fig. 7 - Armas do infante
D. púrpura (ig. 7). Tal composição repetia a partição do
Manuel, filho de D. Fernando III
escudo inaugurada pelo progenitor, evidenciando a
de Castela-Leão, depois armas
importância do fenómeno de mimetismo formal tão
dos Manuéis.
característico da heráldica desta época. Fazendo eco
e conirmando o carácter voluntário da imitação,
D. João Manuel, ilho
do fundador deste ramo da Casa Real castelhano-leonesa, escreveu uma obra em
que tratou de explicar a origem das suas armas, salientando declaradamente o
paralelismo com o esquartelado régio: “Et así son las nuestras armas alas e leones en
cuarterones, como son las armas de los reyes castiellos et leones en cuarterones”38.
Como assinalou Menéndez Pidal, a diferença escolhida para as armas do infante
D. Manuel deve situar-se na sequência das de seu irmão mais velho, D. Henrique
(o qual conservou intactos os quartéis de Castela e trocou de igura nos de Leão,
38
Tractado que izo don Juan Manuel sobre las armas que fueron dadas a su padre el infante don Manuel,
apud MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…, p. 99.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
425
substituindo o animal homónimo por uma cruz, mas mantendo os esmaltes originais),
consistindo pois numa espécie de diferença subordinada. A introdução da mão alada
como móvel principal das armas de D. Manuel, em lugar do castelo, constituiu uma
escolha inédita na heráldica castelhana coeva. A explicação da origem desta igura
não é linear: D. João Manuel forneceu a este respeito algumas alusões alegóricas39
que Menéndez Pidal apontou como precoces para o quadro mental da época e ao
gosto das relações simbológicas que depois haveriam de se tornar procedimento
comum nos tratados heráldicos; mais tarde, quis ver-se na mão alada um hieróglifo,
alusivo ao nome do infante e da estirpe dele descendente (mano-ala, em castelhano,
ou manu-aile, em francês); e ainda se pretendeu, a partir da associação que D. João
Manuel já estabelecera no seu tratado, descortinar na mão alada uma referência à
dinastia dos Ângelos, imperadores bizantinos ascendentes maternos do infante ilho
de Fernando III, em homenagem aos quais se escolhera comprovadamente o nome
de Manuel, então inusitado na Península Ibérica, como declarava, embora com
prudência, Gonzalo Argote de Molina no inal do século XVI:
“Por la buena memoria del qual [Emperador Manuel Ángel] parece, aver
vsado el Infante don Manuel deste nombre. […] Y juntamente parece,
que conirma esto, aver vsado por Armas de vna Ala dorada, y mano de
Angel com vna espada desnuda en campo roxo. La mano del Angel por
alusion del apellido de Angelo, vsado en el linage de sus abuelos.”40
Esta última hipótese apresenta-se como verosímil, quer pelo prestígio da águia
bicéfala bizantina, quer pela combinação com o nome próprio, e depois de família,
que reenviava para a mesma procedência genealógica imperial; isto sem desprimor
da explicação simbólica abstracta ou do jogo de palavras, que podem perfeitamente
ter vindo sobrepor-se à alusão inicial. Seja qual for a sua origem e signiicado, o
esquartelado do leão com a mão alada tornou-se na insígnia exclusiva dos membros
da linhagem dos Manuéis nos seus diversos ramos peninsulares. Conforme era
hábito na época, os vários membros da estirpe usaram armas idênticas, como forma
de salientar a sua pertença a uma mesma estrutura cognática de parentesco: “La larga
descendencia del infante prosiguió sus armas en Castilla, Portugal y Aragón, ya sin
nuevas diferencias, según uso constante de entonces”41.
Assim, a espada signiicaria fortaleza, justiça, cruz, e a asa aludiria ao anjo que teria vaticinado o sucesso
da linhagem na vingança da morte de Cristo.
40
ARGOTE DE MOLINA, Gonzalo, Nobleza del Andalucía (coordinación Jesús Paniagua Pérez; introducción Margarita Torres Sevilla-Quiñones de León), León, Universidad de León, 2004, ls. 189-189v (1.ª edição de
1588).
41
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…, p. 101.
39
426
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
O sinal distintivo e exclusivo da linhagem dos Manuéis foi, assim, a mão alada,
ao passo que o leão era partilhado por vários outros ramos da Casa Real castelhanoleonesa. Podemos veriicar, aliás, que os descendentes portugueses daquela estirpe
recorreram sempre à iguração da mão alada, como o demonstram todas as suas
manifestações heráldicas conhecidas: os selos de D. Isabel Afonso, ilha do infante
D. Afonso, senhor de Portalegre e irmão do rei D. Dinis, e de D. Violante Manuel
(por sua vez ilha do mencionado infante D. Manuel, fundador da linhagem
homónima)42; o túmulo da designada infantinha, no deambulatório da sé de Lisboa,
que se presume ser D. Constança Afonso, irmã da anterior D. Isabel Afonso43; o selo
da rainha D. Constança Manuel, mulher de D. Pedro I44; e o túmulo do rei D. Fernando
I, ilho destes, actualmente observável no Museu do Carmo, em Lisboa45. Mais
42
O marquês de Abrantes estudou este selo, datado de 1324, de que publicou uma fotograia, descrevendo
o seu conteúdo heráldico do seguinte modo: “um quadrado-lobado carregado com um escudo de tipo peninsular
em que se contêm dois lobos passantes e sotopostos. Nos lóbulos verticais, colocam-se castelos e, nos horizontais,
os cinco escudetes bezantados e apontados em cruz das armas ditas de Portugal-Antigo. Quanto às reentrâncias
do quadrado-lobado, essas, encontram-se preenchidas alternadamente por castelos e leões.” ABRANTES, D. Luiz
de Lancastre e Távora, Marquês de, O Estudo da Sigilograia Medieval Portuguesa. I. Panorama dos estudos sigilográicos no nosso País e normas para a sua sistematização. II. Esboço de um Corpus Esfragístico Medieval Português,
Lisboa, ICALP, 1983, p. 265. A análise da fotograia permite-nos, contudo, divergir da descrição deste autor, pois
as referidas reentrâncias parecem-nos sem dúvida preenchidas alternadamente com uma mão alada e um leão,
reenviando assim, por inteiro, para os sinais da estirpe materna da tumulada: a linhagem dos Manuéis. O marquês
de Abrantes pode ter sido induzido em erro, na sua observação do selo, pela gravura publicada por D. António
Caetano de Sousa, em que efectivamente aparecem dois castelos em vez das mãos. Cfr. SOUSA, D. António
Caetano de, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, desde a sua origem até o presente, com as Familias
illustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança, justiicada com instrumentos, e Escritores
de inviolavel fé, e oferecida a elRey D. Joaõ V. Nosso Senhor, Lisboa, Na Oicina de Joseph Antonio da Sylva, 1738,
tomo IV, extra-texto G, estampa XXI. Na expectativa de poder tirar a dúvida, fomos tentar observar o selo, que
não se encontra na cota indicada pelo marquês de Abrantes, mas sim em ANTT, Colecção Especial, Cx. 72, m.
25, n.º 1, conforme eiciente pesquisa de Joana Braga e Odete Santos, a quem agradecemos. A observação directa
conirmou a presença das mãos aladas empunhando espadas, nos quadrantes superior dextro e inferior sinistro.
43
Para um estado da questão da identiicação da tumulada, cfr. FERNANDES, Carla Varela, Memórias
de Pedra. Escultura tumular medieval da sé de Lisboa, Lisboa, IPPAR, 2001, pp. 61-72. Esta autora seguiu, no
domínio heráldico, as conclusões do marquês de Abrantes. As insígnias dos Manuéis encontram-se amplamente
representadas neste sarcófago, em conjugação com as armas reais portuguesas (tal como acontece no túmulo do
rei D. Fernando); além de oito escudos alternados nas quatro faces da arca, o exemplar da sé de Lisboa, datável da
primeira metade do século XIV, traz ainda mais dois representados no almofadão sobre o qual assenta a cabeça
da jacente: à dextra as armas de Portugal, à sinistra as de Manuel.
44
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Faustino, “Algunos Monumentos Heráldicos portugueses en
España”, Armas e Troféus, II série, tomo IV, n.º 1, 1963, pp. 34-43, p. 40; e MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS,
Heráldica Medieval…, p. 101. O centro do selo quadrilobado, com data de 1346, é ocupado por um escudo com
as armas reais portuguesas, ao redor do qual se distribuem dois escudetes de Aragão nas ilhargas, uma mão alada
no lóbulo superior e um leão no inferior.
45
Ver, por todos, FERNANDES, Carla Varela, A Imagem de um Rei. A análise do túmulo de D. Fernando I,
Lisboa, Museu Arqueológico do Carmo, 2009. A heráldica dos Manuéis está amplamente representada no túmulo deste monarca, já que a respectiva tampa apresenta quatro escudos das armas reais portuguesas em cada um
dos frontais e mais um em cada facial, a que correspondem outros tantos na arca, com idêntica disposição, com
as armas daquela estirpe castelhano-leonesa. O túmulo deste rei, datável de 1378-1381, esteve originalmente
colocado na igreja de São Francisco de Santarém, de onde transitou, no século XIX, para o Museu Arqueológico
do Carmo, em Lisboa, onde actualmente se encontra. Conforme apontou Carla Varela Fernandes, a valorização
da rainha D. Constança Manuel por parte do seu ilho não se traduzia apenas na relevância plástica da iguração
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
427
signiicativo se mostra, porém, o escudo de armas que adorna o duplo arco da capela
de Santo António, na igreja de São Francisco do Porto, instituída pelo já mencionado
Luís Álvares de Sousa. Vejamos porquê.
Neste magníico trabalho heráldico observa-se a presença do esquartelado de
Portugal-Antigo e da mão alada, completado por uma bordadura de castelos que
circunda todos os quartéis. Em redor do escudo, por sua vez, igura uma ampla
caderna de crescentes, elemento que se repete nas arquivoltas e nos colunelos do
arco. Tais armas (ig. 8), por serem inquestionavelmente complexas, causaram já
estranheza a alguns estudiosos.
O primeiro a debruçar-se sobre as mesmas terá sido
Armando de Mattos, que arrolou
a manifestação em As pedras-dearmas do Porto46, procedendo
apressadamente à sua identiicação
como Sousas de Arronches por
causa da presença da caderna
de crescentes que envolve o
escudo. Este erro foi corrigido
por Carlos da Silva Lopes, que
apontou o facto indubitável de
Luís Álvares de Sousa pertencer
aos Sousas Chichorros, advogando
Fig. 8 - Armas de Luís Álvares de Sousa.
também que a pedra apresentava
as armas simpliicadas quer deste mesmo ramo dos Sousas, quer dos Manuéis, em
ambos os casos com omissão dos quartéis do leão47. Semelhante entendimento foi
das armas dos Manuéis no túmulo de D. Fernando. Na verdade, tal relação preferencial determinou a própria
escolha do lugar de tumulação em Santarém: o rei seguiu o exemplo de sua mãe, que já se encontrava sepultada no convento de São Domingos; mais ainda, decidiu transferir o túmulo materno para o espaço sepulcral
autónomo, comummente designado de coro alto, que mandou erigir para si próprio na igreja de São Francisco
da mesma vila. Deste modo, os túmulos de D. Constança Manuel e do seu régio ilho partilhavam, por vontade
deste, o mesmo espaço sagrado. Existe no Museu Municipal de Santarém a face mutilada de uma arca tumular
proveniente do convento de São Domingos, decorada com escudos de armas dos Manuéis; faz sentido que se
trate do primitivo túmulo da mãe do rei D. Fernando. Cfr. SEQUEIRA, Gustavo de Matos, Inventário Artístico
de Portugal. Distrito de Santarém, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, vol. III, p. 70 e estampa CXIV.
46
MATTOS, Armando de, As pedras de armas do Porto, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1953, n.os CII
e CXL.
47
LOPES, Carlos da Silva, “A capela sepulcral de Luís Álvares de Sousa na igreja de S. Francisco do Porto”,
Armas e Troféus, II série, tomo VI, n.º 2, Abr.-Jun. 1965, pp. 137-147.
428
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
laconicamente expresso por Luiz de Mello Vaz de São Payo, que, referindo-se ao
mesmo monumento, declarou que “as armas são as dos Sousas e dos Manuéis, as que
de certo [Luís Álvares de Sousa] usara em vida”48. Em artigo mais recente, Francisco
de Simas Alves de Azevedo – antecipando o entendimento propalado por Alexandra
Pelúcia –, e a pretexto da mesma pedra de Luís Álvares, airmou peremptoriamente:
“Argumento de que o leão dos Sousas do Prado é o do reino de Leão, via
armas dos Manuéis, creio que o oferece uma outra pedra de armas, não
menos interessante heraldicamente, e valiosa artisticamente, existente
ainda no seu lugar originário.”49
O autor apontou que os Sousas Chichorros, nas suas armas, aludiam à sua origem
na Casa Real de Castela-Leão através da sua antepassada D. Inês Dias Manuel; e se
o ramo primogénito optara por fazê-lo recorrendo ao leão, já Luís Álvares – que
descendia por linha materna e secundogénita dos Sousas Chichorros – diferençou as
suas armas substituindo aquele animal pela mão alada.
Em boa verdade, no letreiro que acompanha as suas armas, Luís Álvares aludiu
de forma clara às linhagens de que se orgulhava de proceder: a dos Sousas (em
consonância com o nome que ele próprio ostentava), a da dinastia régia portuguesa50
e a dos Manuéis. Veriica-se, pois, existir uma total coincidência entre as insígnias
iguradas no emblema heráldico e as famílias invocadas na respectiva epígrafe,
circunstância que o sepultado acentuou ao concluir a evocação genealógica da sua
ascendência com a expressão “donde lhe pertencem estas armas”51. Devemos salientar
que, no caso dos Manuéis, Luís Álvares de Sousa mencionou expressamente a sua
bisavó “D. Ignez ilha de D. João Manoel irmã da infante D. Constance madre d’elrei
D. Fernando”, veriicando-se, assim, uma associação directa desta linhagem com o uso
da mão alada, como de resto vimos suceder em todos os demais casos acima aludidos.
Parece-nos, por conseguinte, que a representação deste móvel heráldico sempre quis
signiicar, tão-somente, a estirpe dos Manuéis, ponto inal, não se nos aigurando
possível extrapolar a sua presença para uma associação indirecta à Casa Real de Leão,
via aquela linhagem, pois nenhuma fonte disponível nos sugere tal signiicado. Em
48
SãO PAYO, “A família…”, Armas e Troféus, II série, tomo VI, n.º 3, Out.-Dez. 1965, pp. 365-383, tomo
VII, n.º 1, Jan.-Mar. 1966, pp. 135-153, n.º 2, Abr.-Ago. 1966, pp. 194-213, e n.º 3, Out.-Dez. 1966, pp. 295-316,
pp. 366-367, p. 142.
49
AZEVEDO, “As armas…”, pp. 527-528.
50
No caso da linhagem régia, além da iguração do Portugal-Antigo, veriica-se ainda a presença de alguns
elementos que aproximam a heráldica de Luís Alvares de Sousa dos usos costumeiros da Casa Real Portuguesa:
o anjo tenente do escudo; a colocação do elmo de frente; e a introdução da bordadura de castelos em redor de
todo o esquartelado.
51
LOPES, “A capela sepulcral…”, p. 139.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
429
conclusão, julgamos ser inviável referir-se um “leão dos Manuéis castelhanos”; o que
existe é a mão alada dos Manuéis castelhanos, depois também difundida em Portugal.
Tal asserção abre caminho para outra procura: se admitirmos que o esquartelado
de Portugal-Antigo e Leão já era usado no tempo de Martim Afonso de Sousa, o da
Batalha Real, nada impede, a nosso ver, que tal composição existisse antes; assim
sendo, poderá a presença do leão nas armas dos Sousas Chichorros aludir à Casa Real
castelhano-leonesa por outra via que não a dos Manuéis?
É inevitável termos de admitir que os ascendentes de Martim Afonso de Sousa,
o da Batalha Real, izeram uso de armas próprias. E esta evidência será tão mais
verdadeira se chegarmos à geração de Martim Afonso, o Chichorro, ilho natural
do Bolonhês. A heráldica, com efeito, era então um elemento indispensável na
representação social de alguém com semelhante estatuto, que não podia deixar de
a ostentar nas mais diversas circunstâncias da sua vida: no selo que constituiria
a prova da sua personalidade jurídica; no equipamento bélico que o identiicaria
na hoste régia e em combate; no monumento fúnebre que trataria de transmitir à
posteridade a sua imagem e memória; além de outros espaços e objectos em que a
heráldica serviria como forma de airmação e posse. Quando não de construção de
uma identidade social quer do indivíduo, quer da linhagem.
Simas Alves de Azevedo, a respeito das armas eventualmente ostentadas pelos
primeiros membros da linhagem dos Sousas Chichorros, airmou:
“Julgo lícito presumir, tendo em vista os costumes heráldicos da família
real portuguesa, anteriormente ao século XIV, que os citados Martim
Afonso Chichorro, Martim Afonso de Sousa Chichorro e Vasco Martins
de Sousa tenham usado as armas do rei de Portugal, apenas tendo como
diferença a supressão da bordadura de castelos.”52
A suposição deste autor enquadrou-se no entendimento propalado por vários
heraldistas, desde o século XVII, de que os bastardos régios da primeira dinastia
portuguesa teriam feito uso das armas de Portugal-Antigo (ig. 6) como forma de
assinalar a sua origem ilegítima. Dando voz a esta teoria, com efeito, Armando de
Mattos, em meados do século XX, asseverara que
“Em tôdas as armas das famílias que se destroncaram por bastardia da casa
real portuguesa, se mantêm as quinas gloriosas de Portugal, ao contrário,
bem curiosamente, daqueles ramos colaterais, cujo desenvolvimento foi
legítimo. (…) Assim, vemos que, até ao im do século XV, foi apanágio
52
AZEVEDO, “As armas…”, p. 525.
430
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
dos bastardos, o quartel de Portugal-antigo, como hoje se lhe chama,
que era o escudo das armas nacionais sem a bordadura dos castelos que
D. Afonso III trazia em suas armas como diferença de ilho segundo.
Esta fase, divide-se, porém, em duas. A primeira, até D. João I; a segunda,
prolonga-se a D. João II. O que as caracterisa é o seguinte: na primeira,
o quartel de Portugal-antigo, aparece sempre sem alteração, sòsinho ou
esquartelado nalgum composto; na segunda, embora se mantenham as
suas peças, já têm um arrumo diverso, tendo perdido, um pouco, o seu
aspecto inicial bem inconfundível”53.
Ora, já no início do presente texto, quando nos
referimos aos botões esmaltados da cruz processional
de Santo André de Mafra, tivemos oportunidade de
airmar que tal tese, a nosso ver, se encontra actualmente
afastada. Para uma melhor compreensão do que então
aventámos, recentremos a nossa análise, com mais
pormenor, nas gerações subsequentes a D. Afonso III,
tanto mais que elas também correspondem à formação
do ramo especíico dos Sousas Chichorros, procurando
Fig. 9 - Armas reais ou de
descortinar o que se conhece sobre os usos heráldicos de Portugal-Moderno.
toda essa descendência régia.
Na geração dos ilhos daquele monarca, D. Dinis, herdeiro do trono, sucedeu
nas armas reais que seu pai havia adoptado, ou seja, no conjunto formado pelas quinas
e pela bordadura de castelos (ig. 9). No que respeita aos demais ilhos legítimos e
ilegítimos do Bolonhês, encontramos os seguintes usos heráldicos:
- A adopção das armas de Portugal-Antigo nos casos de D. Urraca Afonso,
inumada em São João de Tarouca, em cuja tampa de sepulcro é possível observar
um escudo com cinco quinas; no de D. Branca, que nos seus selos ostentou as armas
de Portugal-Antigo rodeadas dos sinais da sua ascendência régia castelhanoleonesa, sem que houvesse contudo fusão destas insígnias num mesmo escudo54;
53
MATTOS, Armando de, A Heráldica dos Bastardos Reais Portugueses, Porto, F. Machado & C.ª. Lda.,
1940, pp. 11-12.
54
Conforme duas modalidades do seu selo, datado de 1312, publicadas por Faustino Menéndez Pidal e pelo
marquês de Abrantes: ao centro, Portugal-Antigo, em redor, formando como que uma bordadura componada,
reservas em que se alternam castelos e leões. MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, “Algunos Monumentos…”,
pp. 38-40; ABRANTES, O Estudo da Sigilograia…, p. 234. No túmulo da infanta, conservado no mosteiro de Las
Huelgas de Burgos, os sinais linhagísticos revelam-se ligeiramente diferentes, na medida em que as faces do sarcófago se apresentam inteiramente recobertas por escudos de Portugal-Moderno e Castela-Leão, alternados e conigurando um reticulado de nítida inspiração na arte mudéjar. Cfr. MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, “Algunos
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
431
e no do túmulo originalmente sito na igreja de Santa Clara de Santarém e hoje
conservado no Museu Municipal desta cidade, atribuído a Martim Afonso
Chichorro mas que nada impede que fosse de seu irmão Rodrigo Afonso55;
- A alteração dos esmaltes originais do Portugal-Antigo, como ocorreu no já
mencionado caso do bastardo D. Afonso Dinis, em que o campo surge de azul
carregado de escudetes de prata56 (ig. 5);
- A conjugação do Portugal-Antigo com outras armas diferentes, mediante
o recurso a uma partição do escudo; estão neste caso os esquartelados de D.
Branca57 (ig. 10) e de D. Afonso58 (ig. 11), e o escudo palado de D. Leonor
Afonso59 (ig. 12).
O exame das armas arroladas nesta geração permite-nos retirar desde já algumas
conclusões: veriica-se pela primeira vez, na heráldica dos membros da Casa Real
portuguesa, a partição de um escudo em quatro, adoptando-se o modelo esquartelado, no
qual sobressai o respeito pela simetria (dois pares de quartéis iguais) conforme o exemplo
castelhano-leonês de Fernando III, e o modelo palado, constituindo este último o
Monumentos…”, pp. 38-40, e LIMA, João Paulo de Abreu e, Armas de Portugal. Origem. Evolução. Signiicado,
Lisboa, Inapa, 1998 p. 37.
55
Cfr. BEIRANTE, Maria Ângela V. da Rocha, Santarém Medieval, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa,
1980, p. 156; SEQUEIRA, Inventário Artístico…, vol. III, p. 70. A atribuição deste túmulo a Martim Afonso é
conjectural, baseando-se em indícios de dois géneros: o de este varão deter comprovadamente diversos bens no
termo de Santarém e se encontrar aí ligado à colegiada de Santa Maria da Alcáçova; e o de constarem as armas de
Portugal-Antigo no túmulo. Note-se, porém, que os mesmíssimos factores se poderiam aplicar a Rodrigo Afonso,
também bastardo de D. Afonso III, que Sotto Mayor Pizarro apontou como provável irmão inteiro de Martim
Afonso, aliás seu testamenteiro e herdeiro dos seus bens escalabitanos. Cfr. PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor,
Linhagens Medievais Portuguesas: genealogias e estratégias (1279-1325), Porto, Centro de Estudos de Genealogia,
Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, 1999, vol. I, p. 174.
56
SEIXAS, Contributo para o estudo…, pp. 29 e 38-45.
57
O selo da vila de Cifuentes, cujo senhorio D. Branca detinha, datado de 1299, apresenta numa face, como
armas próprias e falantes, sete fontes jorrando de uns penedos; e na outra um escudo referente à sua senhora, com um
esquartelado de Castela e Portugal-Antigo. Cfr. MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…, p. 127.
58
O infante D. Afonso usava um esquartelado de Portugal-Antigo e Castela, conforme transparece no
seu selo, estudado e publicado em MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, “Algunos Monumentos…”, p. 40; e
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…, p. 128, a partir da gravura publicada por Salazar y
Castro nas Pruebas de la Historia de la Casa de Lara, p. 632, que por sua vez o observou numa carta de privilégio
da Casa de Nájera, datada de 1299.
59
Conforme o seu selo, datável de 1290, estudado e publicado pelo marquês de Abrantes. O selo contém
ao centro um escudo palado de quatro, o primeiro e terceiro carregados cada um de três escudetes semeados de
besantes, o segundo carregado de três castelos e o quarto carregado de dois castelos acompanhados em ponta de
cinco besantes; o escudo insere-se num quadrilobado no qual aquele autor airmou igurarem quatro lores-de-lis, o que não parece evidente na fotograia. ABRANTES, O Estudo da Sigilograia…, pp. 234-235. A observação
directa do referido selo veio revelar outra leitura dos elementos inseridos nos lóbulos: no do chefe igura, de facto,
uma lor-de-lis, completada por um castelo no da dextra e por um escudete semeado de besantes no da sinistra. O
lóbulo da ponta foi cerceado, não sendo possível qualquer leitura. Desta forma, os lóbulos estão carregados com
os sinais respeitantes a D. Leonor: a quina e o castelo das Casas Reais de Portugal e Castela, a lor-de-lis dos de
Soverosa, terra de que ela era senhora. ANTT, Cabido da Sé de Coimbra, 2.ª incorporação, maço 84, doc. n.º 3869
(trata-se da carta dirigida por D. Leonor Afonso a um juiz de Mortágua, terra cujo senhorio ela detinha, acerca
de um litígio de um herdamento em Soverosa, envolvendo nomeadamente um Domingos Joanes de Soverosa).
432
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
Fig. 10 - Armas da infanta
D. Branca, ilha de
D. Afonso III.
Fig. 11 - Armas do infante
D. Afonso, ilho de
D. Afonso III.
Fig. 12 -Armas da infanta
D. Leonor Afonso, ilha de
D. Afonso III.
Fig. 13 - Armas de D. Maria
Afonso, ilha bastarda de
D. Dinis.
Fig. 14 - Armas de
Afonso Sanches, ilho
bastardo de D. Dinis.
Fig. 15 - Armas de
Fernão Sanches, ilho
bastardo de D. Dinis.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
433
único caso em que os escudetes do Portugal-Antigo abandonaram a sua iguração
tradicional em cruz; revela-se a aludida alteração dos esmaltes iniciais do PortugalAntigo, circunstância que nos abre caminho para a compreensão da inluência da cor
na primitiva heráldica (a pedra não nos conta tudo o que foi a heráldica medieval…);
e perpetua-se, por im, o uso do Portugal-Antigo (ou mesmo, num caso, do PortugalModerno), aparentemente contraditório com a complexidade do sistema de
diferenciação observado.
Se passarmos à geração dos netos de D. Afonso III, para lá do rei D. Afonso IV,
que manteve o uso das armas reais modernas (ou seja, com a bordadura de castelos),
podemos encontrar:
- A permanência do uso do Portugal-Antigo (ig. 6) no selo de D. Maria Afonso60
e no túmulo de D. Pedro, conde de Barcelos, em São João de Tarouca61;
- A conjugação do Portugal-Antigo (ou uma sua variante, num único caso) com armas
diferentes, através da partição do escudo ou da introdução de uma peça; temos, assim,
os escudos esquartelados de outra D. Maria Afonso62 (ig. 13), de Afonso Sanches
60
Atente-se que é a primeira do nome (a distinguir de uma sua meia-irmã homónima, mais nova), que
veio a casar com D. João Afonso de Lacerda, ilho de D. Afonso de Lacerda. Esta D. Maria Afonso e seu marido
jaziam ambos sepultados no mosteiro de São Domingos de Santarém. O seu selo apresenta um escudo de PortugalAntigo acompanhado em ponta por duas lores-de-lis, iguras estas que o seu sogro D. Afonso de Lacerda introduzira nas suas armas como forma de lembrar a sua ascendência materna capetíngea por via de sua mãe Branca de
França, ilha de São Luís (Luís IX de França) e mulher do infante D. Fernando de Castela e Leão. Cfr. MENÉNDEZ
PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…, pp. 110-119. O selo vem reproduzido em gravura por SOUSA,
Historia Genealogica…, tomo IV, extra-texto H, estampa XXVII, e em fotograia em ABRANTES, O Estudo da
Sigilograia…, pp. 260-261. Na mutilada lápide sepulcral de D. Maria Afonso e
D. João Afonso de Lacerda, hoje
no Museu Municipal de Santarém, podem observar-se, ladeando os pés da igura masculina, duas lores-de-lis. Cfr.
SEQUEIRA, Inventário Artístico…, p. 70 e estampa CXIV.
61
Cfr. FERNANDES, Carla Varela, “D. Pedro, conde de Barcelos, e a escolha de S. João de Tarouca como
«locus» sepulcral”, in Cister. Espaços, Territórios, Paisagens. Actas do Colóquio, Lisboa, Instituto Português de
Património e Arqueologia, 2000, pp. 443-450.
62
O túmulo atribuído a D. Maria Afonso no mosteiro de São Dinis de Odivelas apresenta escudos esquartelados com as armas de Leão no primeiro quartel (com o leão voltado), Portugal-Antigo nos segundo e terceiro,
e Castela no quarto. A atribuição tradicional foi contestada por Carla Varela Fernandes, que aponta argumentos
relevantes para inviabilizar a identiicação da igura jazente como D. Maria Afonso, e propõe em alternativa que se
trate do infante D. João, ilho do rei D. Afonso IV e de sua mulher D. Beatriz. Não discutiremos aqui a justeza dos
argumentos apresentados por esta autora, a não ser na medida em que tocam matéria heráldica. Diz, com efeito,
Carla Varela Gomes que “Se aceitássemos que este túmulo pertenceu a D. Maria Afonso (II), então, as armas teriam
difícil explicação: as de Portugal fariam sentido, urna vez que era ilha de D. Dinis, mas as de Castela e Leão parecem-me menos aceitáveis ou, pelo menos, de mais difícil explicação, pois não só não se sabe quem foi a mãe desta
bastarda, como diicilmente podemos aceitar tratar-se de alguém que pertencesse à família real castelhana, sendo,
depois, totalmente ignorada pelas fontes”. Ora, como o presente trabalho pretende evidenciar, os escudos do túmulo
de Odivelas encaixam perfeitamente na lógica da família real na geração dos netos de D. Afonso III. A solução para
este enigma poderá residir num indício que a referida autora revela, ao deinir o túmulo, na sua actual constituição,
como “uma obra híbrida, que junta, provavelmente, partes de dois túmulos diferentes”. Assim, propomos que se veja
no jazente a igura de D. João, como demonstra Carla Varela Fernandes, e na arca as armas de D. Maria Afonso.
Note-se ainda que aquele infante, tendo morrido aos dois anos de idade, não teria razão para ter armas próprias,
a que não poderia ter dado uso. FERNANDES, Carla Varela, “Proposta de identiicação de um jacente medieval.
O Infante D. João”, Artis, n.º 5, 2006, pp. 73-87.
434
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
(neste caso com a partição a ser formada por uma cruz carregada de castelos)63 (ig.
14), de D. Isabel Afonso64 (ig. 11) e de Diogo Afonso de Sousa (mantendo-se nos
quartéis das quinas a inversão de esmaltes já veriicada nas armas de seu pai)65 (ig.
4); o franchado de Fernão Sanches66 (ig. 15); e a bordadura adoptada por Lourenço
Afonso Sanches usava pois um escudo de prata com uma cruz de vermelho carregada de castelos de ouro,
cantonada por quatro conjuntos de cinco escudetes de azul postos em cruz, besantados do campo. No seu caso,
podemos ter a certeza dos esmaltes porque eles aparecem na iguração da sua bandeira, numa iluminura castelhana realizada quando Afonso Sanches se encontrava junto de seu sobrinho, o rei Afonso XI. Facto assinalado em
ABRANTES, D. Luís Gonzaga de Lancastre e Távora, Marquês de, “Apontamentos de Armaria Medieval Portuguesa
– I – A bandeira heráldica de D. Afonso Sanches”, Arquivo de Cascais – Boletim Cultural do Município, n.º 4, 1982, pp.
79-90, declarando porém o autor desconhecer a origem e localização dessa iluminura (p. 6). Estas vêm explicitadas
por PARDO DE GUEVARA Y VALDÉS, Eduardo, Manual de Heráldica Española (prólogo de Faustino Menéndez
Pidal), Madrid, Aldaba Ediciones, 1987, pp. 13-15, que, reproduzindo-a, identiicou a iluminura como uma cópia
do Libro de las Coronaciónes do mosteiro de São Lourenço do Escorial. São também conhecidos os selos tanto de
Afonso Sanches como de D. Teresa Martins, sua mulher, publicados e estudados por ABRANTES, O Estudo da
Sigilograia…, pp. 259-269, onde se refere uma bibliograia relativamente vasta que tais selos (sobretudo o segundo)
despertaram. Existem ainda variadas manifestações líticas das armas deste bastardo de D. Dinis, nomeadamente as
várias pedras de fecho de abóbada que se podem ver na igreja de Vila do Conde, onde jaz sepultado com sua mulher
(sendo algumas delas coevas, outras posteriores); e as do castelo de Albuquerque, algumas das quais se encontram
hoje no Museu Provincial de Badajoz. Cfr. A Igreja de Santa Clara de Vila do Conde. Boletim da Direcção-Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais, n.o 14, Lisboa, Ministério das Obras Públicas, 1938; FERREIRA, José Augusto,
Os Túmulos do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, Porto, Marques Abreu, 1925; BARROCA, Epigraia
Medieval…, vol. II, tomo 2, pp. 1296-1313 e 1403-1409. Há ainda uma representação das armas de Afonso Sanches
gravadas na cruz oferecida ao mesmo convento vila-condense. Cfr. ROSAS, Lúcia Maria Cardoso, “Sculpture et
Orfèvrerie”, in Aux Conins du Moyen-Age. Art Portugais XIIe – XVe siècle, s.l., Fondation Europalia International,
1991, p. 94. Assinale-se, por im, a curiosa circunstância das armas de Afonso Sanches terem sido retomadas na
carta de brasão de armas dada em 1567 a Gaspar Gil Carrilho, capitão de cavalos natural de Castelo de Vide, por
ser alegadamente descendente daquele bastardo régio. BORREGO, Nuno, Cartas de Brasão de Armas, vol. I, Lisboa,
Guarda-Mor, 2003, p. 185.
64
Já atrás, ao tratar da disseminação das insígnias dos Manuéis, referimos e descrevemos o selo de D. Isabel
Afonso, que foi primeiro publicado em gravura por SOUSA, Historia Genealogica…, tomo IV, extra-texto G, estampa XXI; e depois em fotograia por ABRANTES, O Estudo da Sigilograia…, p. 265. Tal selo traz, porém, apenas a
iguração das armas do marido de D. Isabel, D. João de Castela, o Torto, acompanhadas das memórias heráldicas das
linhagens a que ela pertencia tanto por via paterna como materna. Em contrapartida, o túmulo de um ilho do casal,
na igreja paroquial de Santa Maria de Dueñas, ostenta quatro escudos, três dos quais alusivos às armas paternas
(tanto as armas próprias de D. João, um esquartelado de Leão e Suábia, como as que ele usava como senhor da
Biscaia, e que eram as da linhagem de Haro: dois lobos passantes e sotopostos), e o último alusivo às armas maternas,
com um esquartelado de Portugal-Antigo e Castela. MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…,
pp. 123-124. Pode concluir-se, por conseguinte, que o uso deste esquartelado se perpetuou desde o infante D. Afonso
até ao seu neto, passando, naturalmente, por sua ilha D. Isabel.
65
Diogo Afonso de Sousa trazia portanto por armas um esquartelado de Portugal-Antigo com os esmaltes
invertidos e de Sousa, sendo esta a mais antiga manifestação cromática conhecida dos antigos sinais desta linhagem:
de vermelho, uma caderna de crescentes de prata. Cfr. SEIXAS, Contributo para o estudo…, pp. 29 e 45-47. Não
se conhecem fontes certas para as armas do seu irmão inteiro Pedro Afonso de Sousa, mas o túmulo de uma neta
deste, D. Branca de Vilhena, sepultada na igreja de São Domingos de Guimarães, exibe curiosas insígnias heráldicas.
Vêem-se na tampa sepulcral, a ladear a inscrição, dois escudos: o primeiro é das armas dos Manuéis, em referência
ao pai da sepultada, D. Henrique Manuel, conde de Seia; o segundo é um esquartelado de Portugal-Antigo e de uma
lor-de-lis, devendo ser referente a D. Beatriz de Sousa, mãe da sepultada, a qual D. Beatriz era, por sua vez, ilha
do mencionado Pedro Afonso de Sousa e de D. Elvira de Nóboa. Foi formulada a hipótese de estas últimas armas
remeterem para a ascendência Sousa (o Portugal-Antigo; e quem sabe se não traria os esmaltes invertidos como nos
escudos de Afonso Dinis e de Diogo Afonso de Sousa?) e Nóboa ou eventualmente Enxara (da barregã de D. Afonso
III e mãe de Afonso Dinis). Cfr. NÓBREGA, Artur Vaz-Osório da, Pedras de Armas e Armas Tumulares do Distrito
de Braga. Cidade de Guimarães, Braga, Assembleia Distrital de Braga, 1985, vol. VII, tomo 2, pp. 304-308.
66
Fernão Sanches trouxe um escudo franchado com Portugal-Antigo em cada um dos campos, tal como
aparece quer no seu túmulo, hoje no Museu Arqueológico do Carmo, quer no seu selo. Sobre o primeiro, datável
63
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
435
Gil67 (ig. 16).
Da apreciação dos usos heráldicos desta segunda geração é igualmente possível
retirarmos algumas ilações: mostra-se desde logo evidente a proliferação dos escudos
esquartelados, aparecendo todavia a primeira quebra de simetria dado que, nas armas
da segunda D. Maria Afonso, aos dois quartéis de Portugal-Antigo se contrapõem um
quartel de Leão e outro de Castela; surge, depois, uma nova partição – o franchado
–, derivada do esquartelado; denota-se, por outro lado, o desaparecimento do
palado, certamente por se ter revelado uma partição
pouco estética e de reduzida eicácia do ponto de vista
da identiicação imediata e unívoca do utente das armas;
ocorre, de novo, o recurso à representação de uma
bordadura como forma de diferença; e introduzem-se,
pela primeira vez, sinais heráldicos externos às Casas Reais
portuguesa e castelhano-leonesa (até então, em todas as
formas de conjugação das quinas se havia recorrido ao
castelo e/ou ao leão), emergindo em concreto a iguração
da caderna de crescentes dos Sousas e uma cruz da
Ordem do Hospital, alusiva à condição de Lourenço Gil;
e subsiste a aparente contradição, face a um sistema de
Fig. 16 - Armas de frei
Lourenço Gil, ilho de Gil
Afonso e este ilho bastardo de
D. Afonso III.
de 1329-1335 e proveniente da capela de Nossa Senhora da Oliveira de Santarém, anexa ao convento de São
Domingos, vd. BARROCA, Epigraia Medieval…, vol. 2, tomo 2, pp. 1535-1541; e FERNANDES, Carla Varela,
“Vida, Fama e Morte. Relexões sobre a Colecção de Escultura Gótica”, in ARNAUD; FERNANDES, Construindo
a Memória…, pp. 300-309. Seguindo a indicação de PIZARRO, Linhagens…, vol. 1, p. 198, fomos consultar o
exemplar esfragístico em B.N.P. (Reservados), Pergaminhos, 49P. Tal como assinalou este autor, encontra-se
também apenso ao mesmo documento o selo quadrilobado de D. Froilhe Anes de Sousa, mulher de Fernão
Sanches. Tal selo apresenta ao centro o escudo do marido, e em cada um dos lóbulos uma cruz lorida e vazia,
alusiva aos sinais da linhagem de Briteiros. Cfr., sobre estas armas, ABRANTES, D. Luís Gonzaga de Lancastre
e Távora, Marquês de, “Apontamentos de Armaria Medieval Portuguesa. VIII – As Armas da Linhagem dos
de Briteiros”, Boletim de Trabalhos Históricos, vol. XXXVI, 1985, pp. 65-73. Carlos da Silva Lopes apontou que
Fernão Sanches teria usado “um escudo franchado de prata e de azul, tendo na prata as cinco quinas de azul,
e no azul cinco escudetes de prata carregados de arruelas do campo”, veriicando-se portanto uma inversão
dos esmaltes, à semelhança do que sucedeu nas armas de Afonso Dinis. Tal atribuição, embora verosímil, deve
considerar-se com a devida reserva, uma vez que aquele autor não aduziu provas que viessem corroborar o
cromatismo apresentado. LOPES, Carlos da Silva, “Notas Heráldicas. A propósito de uma cruz do século XIV”,
O Concelho de Mafra, n.º 370, 18 de Julho de 1943, pp. 1-4.
67
Na arca tumular de frei Lourenço Gil, na igreja de Santa Luzia (anteriormente chamada de São Brás),
em Lisboa, pode observar-se um escudo com uma cruz pátea acompanhada em orla por oito escudetes, cada
um dos quais carregado de cinco besantes. Trata-se de uma forma de incluir no mesmo escudo uma referência
à origem familiar (as quinas) e à função religiosa e militar que ele desempenhava, como comendador de São
Brás, na Ordem do Hospital. Como o seu pai, Gil Afonso, bastardo de D. Afonso III, era também ele membro
da mesma ordem e comendador de São Brás, pode aventar-se a hipótese de ter feito uso, anteriormente ao ilho,
de armas semelhantes. Cfr. SEIXAS, Contributo para o estudo…, p. 40; VILLAS-BOAS, Ruy Gonçalo de, Igreja
de S. Brás e Santa Luzia, Comenda da Ordem de Malta, separata de Filermo, 1998/1999, p. 169; e BARROCA,
Epigraia Medieval…, vol. II, tomo 2, pp. 1671-1675.
436
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
diferenciação complexo, decorrente da continuação do uso do Portugal-Antigo por
várias personagens da linhagem régia.
Terminada, desta forma, a observação dos usos heráldicos dos membros da
Casa Real portuguesa nas duas gerações abaixo de D. Afonso III, podemos airmar –
a nosso ver com alguma segurança – que:
• As gerações oriundas por via ilegítima dos reis de Portugal mantiveram a
iguração das quinas nas suas armas, mas não ao contrário do que sucedeu com
os ramos legítimos, como Armando de Mattos sustentou; na verdade, as quinas,
e em particular a sua representação especíica sob a forma de Portugal-Antigo,
não constituíram apanágio dos bastardos régios, pois foram indistintamente
usadas por descendentes legítimos e ilegítimos tanto de D. Afonso III como de
D. Dinis;
• O campo de Portugal-Antigo, nesta época, não surgiu sempre na sua
composição própria e habitual (isto é, de prata, cinco escudetes de azul postos em
cruz, cada escudete carregado de besantes do campo), sem qualquer alteração:
recordamos as armas de Afonso Dinis (ig. 5) e de Diogo Afonso de Sousa (ig. 4),
seu ilho, onde ocorreu a inversão dos esmaltes, as de D. Leonor Afonso (ig. 12),
com as quinas em grupos de três e em pala, e as de Lourenço Gil (ig. 16), onde
os escudetes surgem em número de sete e em bordadura; a iguração das quinas
numa composição diferente do Portugal-Antigo aconteceu, por conseguinte, em
momento signiicativamente anterior ao proposto por Armando de Mattos;
• Foi dominante, embora não exclusiva, a iguração do Portugal-Antigo em
esquartelado com outras insígnias; perpetuando-se, também, o seu uso sob a
forma plena.
Num sistema dominado por esquemas progressivamente complexos de
diferenciação das armas, mantendo muito embora como denominador comum a
iguração das quinas e em particular sob a forma de Portugal-Antigo, como explicar
a permanência desta composição de forma indiferenciada e em vários membros
coevos da descendência régia?
Ora, em nosso entender, o que verdadeiramente aconteceu é que para além de
uma série de armas individuais e bem demarcadas umas das outras, encontramos
também, nas mesmas gerações, um uso difuso e indiferenciado dos antigos sinais
da linhagem régia, isto é, os escudetes em cruz, carregados de besantes, vulgo
Portugal-Antigo, sem mais. Notemos que dois destes casos – os túmulos de D. Urraca
Afonso e de D. Pedro, conde de Barcelos – são provenientes do mesmo cenóbio de
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
437
São João de Tarouca68; e que outros três – o túmulo atribuível a Martim Afonso ou
Rodrigo Afonso, um capitel armoriado e uma pedra de armas hoje inserta na fachada,
por cima da rosácea – se inserem todos no convento de Santa Clara de Santarém69. Tal
facto pode levar-nos a relectir sobre esta coincidência, que não saberia ser fortuita:
a heráldica constituía então uma forma privilegiada de apropriação simbólica das
igrejas (sobretudo das monásticas) por parte da nobreza, produzindo o que Laurent
Hablot chamou de heraldização do espaço sagrado70. Ora, nos casos de Santa Clara
de Santarém e de São João de Tarouca, o conjunto de túmulos monumentais e
elementos decorativos das igrejas, ao ostentarem escudos denotativos da pertença à
dinastia real, vinham reforçar a ligação entre esta e aqueles cenóbios. A presença de
monumentos fúnebres decorados com as mesmas insígnias, referentes à dinastia real,
marcava assim a continuidade dessa ligação, transposta em gerações sucessivas, e
assinalava a sua perenidade, por estar gravada na pedra e inserida no espaço sagrado.
Deste modo, as armas de Portugal-Antigo, longe de constituírem uma identiicação
individual dos membros da linhagem régia (e muito menos, como vimos, um sinal
de bastardia), pretendiam precisamente o contrário: apontar uma ligação sanguínea
difusa, que incluía na mesma noção de linhagem todos os membros que usassem
as respectivas insígnias. Como assinalou Menéndez Pidal, no contexto ibérico, o
processo de ixação das formas heráldicas revelou-se muito mais lento que na área
clássica, sendo os sinais usados com grande frequência em suportes decorativos e
formais muito variados até épocas tardias71; daí a sobrevivência de um entendimento
e de um uso arcaico dos sinais da Casa Real portuguesa, as quinas, em simultâneo
com a ocorrência de armas individuais e diferençadas. No panteão régio de Alcobaça,
numerosos túmulos coevos dão-nos a imagem de uma verdadeira profusão de quinas,
castelos e leões igurados dentro e fora de escudos, assinalando assim a ligação
Já foi assinalado que, no caso de São João de Tarouca, a ligação remontava às primeiras gerações da dinastia
régia, uma vez que o mosteiro já havia sido escolhido como local de sepultamento por D. Aldara, ilha de uma outra
D. Urraca Afonso e neta do primeiro rei de Portugal. FERNANDES, “D. Pedro, Conde de Barcelos…”, p. 446.
69
Veja-se a fotograia do capitel em SEQUEIRA, Inventário Artístico…, vol. III, estampa CXXIII; recorde-se outrossim que hoje apenas se conserva, no Museu Municipal de Santarém, um fragmento inferior da lápide
sepulcral conjunta de D. Maria Afonso e de seu marido D. João Afonso de Lacerda, originária do mesmo convento de Santa Clara. É legítimo presumir que tal lápide contivesse as armas da sepultada, as quais poderiam
corresponder ao que ela usava nos seus selos, isto é, um escudo de Portugal-Antigo rodeado dos sinais das demais
ascendências régias, tanto suas como do seu marido.
70
HABLOT, Laurent, "L’héraldisation du sacré auxXIIe-XIIIe siècles, une mise en scène de la religionchevaleresque ?", in AURELL. M. (dir.), Actes du colloque Chevalerie et christianisme aux XIIe et XIIIe siècles, Rennes,
2011, p. 211-233.
71
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Faustino, “Los comienzos del uso conjunto de varias armerias:
cuando, como y por que”, Hidalguía, n.º 200, 1987, p. 309. Por área clássica, entende este autor designar, grosso
modo, os territórios centrais do antigo império carolíngio, onde se veriicou o surgimento da heráldica: a área
franco-inglesa, o nordeste ibérico, o norte de Itália e a antiga Lotaríngia e Alemanha ocidental.
68
438
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
dos sepultados às três dinastias do Ocidente peninsular72. Mas a ostentação deste
género de sinais genéricos era compatível com a de armas de carácter individual e
diferenciado; com efeito, os próprios reis de Portugal, que a partir de D. Afonso III
izeram uso sistemático das armas régias com a inovação da bordadura introduzida
por este monarca, não recuaram perante o uso do Portugal-Antigo. Assim o provam
alguns exemplares conhecidos de pedras de armas deste rei e dos seus sucessores
D. Dinis e D. Pedro I, bem como, de forma mais recorrente, a numária emitida por
toda a I Dinastia73.
Parece ter havido, por conseguinte, a perpetuação de sinais linhagísticos
genéricos, exibidos de forma indiferenciada por todos aqueles que mediante eles
manifestavam a sua pertença à dinastia real, a par do uso simultâneo de armas
especiicamente indicativas de determinados indivíduos, cuja composição foi depois,
por vezes, continuada pela respectiva descendência, formando então a heráldica
própria de um ramo da família original.
Diremos por conseguinte, à laia de uma conclusão global neste ponto da
matéria, que a iguração das quinas é universal nos membros da Casa Real portuguesa
desta época, sem distinção quanto à natureza da iliação, sendo preponderante a
sua representação sob a forma do Portugal-Antigo, de preferência conjugada em
esquartelado com outras insígnias, a princípio apenas retomadas da Casa Real
castelhano-leonesa e depois colhidas também na emblemática de outras linhagens
ou instituições. E que o uso de escudos simplesmente carregados com o PortugalAntigo se inscrevia numa lógica primitiva da heráldica medieval portuguesa, que na
época em estudo foi convivendo com aquele outro entendimento, mais moderno e
mais inspirado nas práticas transpirenaicas.
Regressemos aos Sousas! Em face do que acabámos de expor, e em sentido oposto
ao propalado por Simas Alves de Azevedo, advogamos nós ser lícito presumir que o
bastardo régio Martim Afonso, o Chichorro, e depois os seus sucessores, terão feito
uso de armas esquarteladas, simétricas, compostas pelo quartel de Portugal-Antigo
e por uma outra insígnia adoptada da heráldica castelhano-leonesa. Qual seria ela?
72
Cfr. SILVA, José Custódio Vieira da, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, Instituto Português
do Património Arquitectónico, 2003, pp. 45-55, sobretudo a tampa da arca (III) de infante, que Menéndez Pidal
atribuiu a um ilho do casal régio D. Afonso III e D. Beatriz. MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica
Medieval..., pp. 127-128.
73
Cfr. BARROCA, Mário Jorge, Epigraia Medieval portuguesa (862-1422), Porto, Fundação Calouste
Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2000, vol. II, t. 1, n.º 352, pp. 884-888 (D. Afonso III); vol. II,
t. 2, n.º 508, pp. 1313-1320 e n.º 532, pp. 1416-1417 (D. Dinis); vol. II, t. 2, n.º 625, pp. 1729-1736 (D. Pedro I).
VAZ, J. Ferraro, Nvmaria medieval portuguesa. 1128-1383, Lisboa, s.n., 1960.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
439
Se atentarmos nos mencionados usos heráldicos dos ilhos de D. Afonso III,
veriicamos que dois deles – D. Afonso e D. Branca – ostentaram as duas modalidades
possíveis do esquartelado simétrico das quinas portuguesas com o castelo castelhano
(invertendo-se em cada caso a respectiva precedência) (igs. 11 e 10). Na geração
seguinte, vemos que D. Maria Afonso, nas armas que usou, opôs às quinas um
leão e um castelo (ig. 13), quebrando assim a simetria até então imperante nos
escudos esquartelados; e os seus irmãos Fernão Sanches e Afonso Sanches, por seu
lado, adoptaram modelos quadripartidos inéditos, o primeiro com a introdução
do franchado (ig. 15), o segundo com o recurso a uma cruz carregada de castelos
para formar a partição do próprio escudo (ig. 14), parecendo existir uma súbita
necessidade de fugir à composição tradicional do esquartelado simétrico, ainda que
mantendo o seu espírito. Porque razão terá tal acontecido? Provavelmente, porque
todas as possibilidades de recurso aos esquartelados simétricos de Portugal-Antigo
com as insígnias castelhano-leonesas já estariam ocupadas por outros membros
da linhagem régia portuguesa. Assim sendo, temos de dar como provável que o
esquartelado das quinas com o leão já estaria em uso nessa época. Ora, que outro
ramo o ostentaria senão aquele que daria origem directa aos Sousas Chichorros, que
gerações mais tarde faziam uso comprovado dessa mesma composição?
Acreditamos, em suma, que o esquartelado de Portugal-Antigo e de Leão foi
usado, desde logo e em primeiro lugar, por Martim Afonso, o Chichorro, e depois
pelas gerações subsequentes, cujas manifestações heráldicas se ignoram até surgir a
primeira representação conhecida, a do aludido D. frei Gonçalo de Sousa, datada de
1469.
No que respeita às insígnias dos Sousas de Arronches (ig. 2), temos um
testemunho invulgar que, de certo modo, nos relata o seu aparecimento: a mencionada
cruz processional de Santo André de Mafra, em cujos botões esmaltados iguram as
armas do bastardo régio Afonso Dinis, as atribuíveis à sua mulher Maria Peres Ribeira
e as do ilho de ambos, Diogo Afonso de Sousa. Já vimos que o ilho ilegítimo de D.
Dinis usava como armas próprias um Portugal-Antigo com os esmaltes invertidos
(ig. 5); a herdeira da Casa de Sousa é identiicada, naturalmente, com as armas
ancestrais desta linhagem: o escudo de vermelho com uma caderna de crescentes
de prata, que os heraldistas passaram a referir como Sousa-Antigo; e, na pessoa do
referido ilho deste casal, surge pela primeira vez o esquartelado de Portugal-Antigo
440
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
e Sousa74 . A cruz de Mafra assinala, assim, o momento de criação desta composição
e merece que nos detenhamos um pouco mais na sua mensagem heráldica.
Se Diogo Afonso podia ostentar as armas de seu pai, já diferençadas como
estavam em relação ao rei seu avô, porque não o fez? Talvez por ser ilho segundo:
elas poderiam caber ao seu irmão Pedro Afonso, exilado em Castela. Acreditamos
todavia que assim não sucedeu, porque a descendência deste, estabelecida em
Córdova, também conjugou as insígnias régias portuguesas com as de outra
linhagem, neste caso a dinastia real castelhana, optando por uma composição em
franchado75 (ig. 17).
O que estaria então por trás desta vontade de conjugar os sinais da dinastia régia
com os dos Sousas? Cremos que a resposta é facilitada
pela convergência entre heráldica e onomástica. Diogo
Afonso adoptou o apelido de Sousa, que icou como
elemento identiicativo da sua descendência. As razões
de tal escolha são fáceis de perceber, quando se tem em
mente o prestígio da estirpe mas também a espinhosa
questão do desmantelamento da herança patrimonial
e simbólica dos Sousões, em grande parte por acção
de dois reis sucessivos, D. Afonso III e D. Dinis, que
Fig. 17 - Armas dos Sousas de
Córdova ou de Hernán Núñez. montaram uma autêntica estratégia de diluição da
74
Ainda com os esmaltes invertidos, como trazia o pai. Não é fácil datar o abandono desta variação cromática e o consequente retorno às armas de Portugal-Antigo, uma vez que os exemplares que conhecemos para as
gerações seguintes são em pedra não colorida. Salvo melhor opinião, a primeira representação cromática das armas dos Sousas de Arronches em que surge o Portugal-Antigo nos seus esmaltes originais consiste no armorial da
colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, datável de inais do século XIV ou princípios do seguinte.
Cfr. FERROS, Luís, “A decoração heráldica do tecto da igreja da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira”, in Actas
do Congresso Histórico de Guimarães e Sua Colegiada. 850.º Aniversário da Batalha de S. Mamede (1128-1978),
Guimarães: s/n, 1981, vol. IV, p. 395. Uma fotograia a cores da arquitrave em que se insere este escudo pode ser
vista em LIMA, Armas de Portugal…, p. 107.
75
Estas armas são atribuídas ao seu ilho Vasco Afonso de Sousa, sepultado em Córdova. Deste descendem
os Sousas ditos de Córdova ou de Hernán Nuñez, cuja genealogia e heráldica foi primeiro tratada, em Portugal,
por D. António Caetano de Sousa, o qual, seguindo a obra de frei Jerónimo de Sousa, Descripción Genealogica
de la Illustre Casa de Sousa, com muchas de las Grandes, y todas las Reales, que de ella participan, transcreve o
letreiro do sepulcro de Vasco Afonso de Sousa e de sua mulher D. Maria Garcia Carrilho na capela de Santa Maria
da catedral de Córdova, referindo que “nella se vê a sua sepultura com as Armas, que esculpimos no Capitulo I”.
Esta gravura apresenta um franchado de Castela e Portugal-Antigo. SOUSA, Historia Genealogica…,, tomo XII,
pp. 597-697, a citação vem na p. 606 e a gravura na p. 597. Mais tarde, FREIRE, Brasões…, vol. I, p. 276, retomou
as indicações heráldicas de D. António Caetano de Sousa sem lhes acrescentar novidade alguma e citando outra
fonte espanhola, anónima: Descripcion genealogica y historial de la ilustre Casa de Sousa, Madrid, 1770, p. 259.
Esta obra, conforme se pode ver pelo catálogo em linha da Biblioteca Nacional de España, foi dada à estampa na
Imprenta de Francisco Xavier Garcia no referido ano de 1770, e recentemente reimpressa na Corunha (edições
Órbigo, 2009). Menéndez Pidal, por sua vez, voltando a mencionar a mesma fonte setecentista consultada por
Braamcamp Freire, declarou que o ramo dos Sousas de Fernán Núñez trazia um franchado de Portugal-Antigo e
Castela. MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Heráldica Medieval…, p. 66.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
441
mais prestigiada linhagem portucalense nas malhas da Casa Real76. As armas dos
Sousas de Arronches (ig. 2) demonstram o sucesso de tal estratégia: as cadernas dos
Sousões não sobreviveram na sua forma pura, original, mas apenas em conjugação
com os sinais régios. E o esquartelado assim resultante assinala também que este
ramo se considerou, desde o início, como legítimo sucessor da herança dos últimos
Sousões. Já não se trata de meras memórias linhagísticas, de valor evocativo, mas
verdadeiramente de novos sinais identitários de um ramo da linhagem, que poderá
invocar por eles a sua ascendência régia, decerto, mas também a sucessão patrimonial
e simbólica daquela vetusta casa. Note-se que, no caso de Diogo Afonso de Sousa, a
adopção do apelido e o esquartelamento das armas ocorrem em simultâneo na sua
pessoa, pelo que nome e armas constituem dois elementos deinidores da geração
dele oriunda e seriam ambos ostentados e invocados pelos seus descendentes como
sinal e prova da pertença a esta linhagem.
Retomemos a questão inicial e vejamos se, face ao exposto, possuímos agora
pistas para a resolução do enigma heráldico das duas armas dos Sousas. Vimos que
as do ramo Chichorro surgiram provavelmente na geração dos ilhos de D. Afonso III
e que se aplicaram a um bastardo régio e à sua descendência num contexto em que
ainda não se veriicava a sua associação ao apelido de Sousa. Daí resultou a aparente
descontinuidade entre os dois elementos identiicativos da linhagem, armas e nome,
bem como a ausência, na composição heráldica adoptada, de quaisquer sinais distintivos
dos Sousões. Como o escudo já seria esquartelado antes da adopção do apelido, e
como já existiria ligação da descendência de Martim Afonso Chichorro àquele sinal
gráico identitário, isso invalidava (ou pelo menos tornava menos viável ou apetecível)
a inserção de novos elementos. De modo que as armas dos Sousas Chichorros (ig. 1)
aludem, na verdade, ao carácter diferido da construção da sua identidade linhagística:
a heráldica funcionou, aqui, como primeiro elemento identitário, a onomástica veio
depois; daí resultou a divergência entre uma e outra. Tal fenómeno inseria-se dentro
das práticas típicas da heráldica arcaica do Ocidente ibérico:
“Desde el punto de vista de la historia social y humana notemos que los
76
O tema já foi abundantemente tratado por diversos autores, de que destacamos MATTOSO, José, Ricoshomens, infanções e cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII, Lisboa, Guimarães Editores,
1985, pp. 46-50; MATTOSO, José, Identiicação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325),
Lisboa, Editorial Estampa, …., vol. I, pp. 115-160; KRUS, Luís, “O rei herdeiro dos Condes: D. Dinis e a herança
dos Sousas”, in Passado, Memória e Poder na Sociedade Medieval Portuguesa. Estudos, Redondo, Patrimonia, 1994,
pp. 58-99; GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média, Carnaxide, Difel Difusão
Editorial, 1995, pp. 65-66; PIZARRO, Linhagens…, vol. 1, pp. 166-167; e GAMEIRO, Odília Filomena Alves,
A construção das memórias nobiliárquicas portuguesas. O passado da linhagem dos senhores de Sousa, Lisboa,
Sociedade Histórica para a Independência de Portugal, 2000, pp. 59-71.
442
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
emblemas heráldicos así entendidos fueron la primera marca existente
de pertenencia a un linaje, antes de que se señalara el hecho mediante
un apellido común, y que esta marca se amplía enseguida a la inclusión
en el linaje materno, lo que tardaría aún varios siglos en ser señalado en
los apelativos.” 77
Deste modo, a interpretação do esquartelado atribuível a Martim Afonso,
o Chichorro, como armas de Sousas Chichorros foi um fenómeno posterior: os
seus descendentes perpetuaram as suas armas e mais tarde, provavelmente por
emulação com o outro ramo concorrente à herança patrimonial e simbólica dos
Sousões, colaram-lhes o apelido. E os sinais distintivos dos descendentes do
bastardo de D. Afonso III tornaram-se, assim, nas armas dos Sousas Chichorros.
Em contrapartida, as armas dos Sousas de Arronches (ig. 2) não foram criadas
por um bastardo régio, mas sim por um ilho dum bastardo régio e duma senhora da
casa de Sousa. Assim, neste caso, o primeiro a usar um escudo com armas conjugadas
fundiu nelas os sinais paternos (as insígnias régias diferençadas) com os antigos
sinais dos Sousões. E chamou-se, precisamente, Diogo Afonso de Sousa: ostentou
pois, de imediato, o apelido em consonância com as armas maternas. Além da alusão
à origem régia, realizada unicamente por via da presença das quinas, o fundador
do novo ramo assumia-se assim duplamente como herdeiro da mais prestigiada
linhagem portucalense. A sua descendência agnática reconheceu-se, essencialmente,
nesses dois sinais identitários, que passaram a estabelecer uma relação de equivalência
entre si: aquele esquartelado representava o novo ramo da antiga linhagem, agora
fundida com o sangue real. Tanto assim, que mais ninguém usou as antigas armas
plenas dos Sousas. Vivia-se, pois, o momento em que a construção da identidade
linhagística passava pela adopção simultânea de um elemento identitário icónico
(as armas) e de outro linguístico (o nome), ambos passíveis de representação gráica
(desenho ou escrita) nos lugares e objectos de memória, nos quais igurariam amiúde
em conjunto e complemento um do outro.
O enigma das duas armas diferentes parece ter, assim, uma solução à vista: elas
corresponderam a cargas semióticas distintas e a momentos diferentes nas estratégias
de construção de identidade das linhagens: as dos Sousas Chichorros com carácter
arcaico, as dos Sousas de Arronches com carácter novo. As duas armas apenas tinham
dois factores em comum: a presença dos sinais que provavam a ligação à Casa Real
portuguesa; e a adopção de armas combinadas sob a forma esquartelada.
77
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, “Los comienzos…”, p. 308.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
443
Neste último ponto, o presente artigo toca numa problemática complexa: a do
surgimento de combinação de armas e, em particular, do esquartelado na heráldica
medieval portuguesa. Queremos salientar a necessidade de entendimento da
conjugação de armas na sociedade medieval portuguesa não por via da aplicação
de um modelo teórico estruturalista, como aquele que Nassiet delineou para
a sociedade francesa78, mas antes tendo em atenção as variações semióticas da
heráldica, cujos sinais, manifestando uma aparente continuidade e semelhança
formal, podem induzir a interpretações arriscadas. Neste ponto, a relexão de partida
sobre o fenómeno de conjugação de armas poderá ser fornecida pela visão genérica
traçada por Menéndez Pidal para os reinos que viriam a formar a Espanha79. E, no
caso português, o entendimento de tal fenómeno tem de passar pelo arrolamento das
fontes de armas combinadas e pelo estudo das estruturas de parentesco que, tanto do
ponto de vista mental como patrimonial e simbólico, lhes poderão estar associadas.
E permitirão, eventualmente, compreendê-las.
Os desenhos do presente artigo são da autoria de Duarte Vilardebó Loureiro.
78
Veja-se particularmente NASSIET, Michel, “Nom et blason. Un discours de la iliation et de l’alliance
(XIV—XVIIIe siècle)”, L’Homme, tome 34, n.º 129, 1994, pp. 5-30; e, do mesmo autor, “Signes de parenté, signes
de seigneurie: un système idéologique (XVe – XVIe siècle)”, Mémoires de la Société d’Histoire et d’Archéologie de
Bretagne, tome LXVIII, 1991, pp. 175-232.
79
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, “Los comienzos…”.
ESTUDOS DE HER ÁLDICA MEDIEVAL
444
Esquema 1: Antiga linhagem dos Sousas e suas ligações à Casa Real portuguesa.
HERÁLDICA DE FAMÍLIA
445
Esquema 2: Descendência de D. Afonso III (resumida).