Intermedialidade
na cena contemporânea: o uso de dispositivos
DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1414573101222014145
audiovisuais em “Justo uma imagem”e “Otro”
Intermedialidade na cena
contemporânea: o uso de dispositivos
audiovisuais em “Justo uma
imagem”e “Otro”
Art-ethnography and mythodology in art: practices to
develop the f(r)iction actor
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro1
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
Urdimento, v.1, n.22, p145 - 156, julho 2014
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Intermedialidade na cena contemporânea: o uso de dispositivos audiovisuais em “Justo uma imagem”e “Otro”
Resumo
Abstract
O artigo investiga o uso de dispositivos audiovisuais em produções intermediais contemporâneas. A interação entre corpo e imagem estabelece
novas dramaturgias e processos de recepção fragmentados e dinâmicos. Há
um jogo que se instaura a partir de uma
dupla proposição: a presença do ator e
a presença da imagem. “Otro”, de Enrique Diaz e “Justo uma imagem”, de Filipe Ribeiro são os espetáculos analisados.
The paper investigates the use of
audiovisual devices in contemporary intermediais productions. The interaction
between body and image establishes new
dramaturgies and fragmented dynamic
reception process. There is a game established from a dual proposition: the presence of the actor and the presence of the
image. “Otro”, Enrique Diaz and “Just an
image” by Filipe Ribeiro performances are
analyzed.
Palavras-Chave: Intermedialidade; imagem; ator.
Keywords: Intermediality; image; actor.
ISSN: 1414.5731
¹ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Profa Dra. Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC/ECO-UFRJ). Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
[email protected]
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Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
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audiovisuais em “Justo uma imagem”e “Otro”
A Intermedialidade nas encenações contemporâneas
A intermedialidade é um conceito, de certa forma recente, que configura um
campo de pesquisa interdisciplinar. Adoto intermedialidade na concepção da pesquisadora canadense Izabella Pluta e de Patrice Pavis por considerar que o conceito
dá conta de modo mais amplo da complexidade das relações entre teatro e tecnologia, constituindo um campo heterogêneo de análise no qual o ator é peça-chave,
“testemunha ativa e participante direto do processo intermedial”, aquele que promove “o encontro entre a teatralidade e a intermediação” (Pluta, 2011, p. 53). Segundo Patrice Pavis, “formado com base no modelo de intertextualidade, o termo
intermedialidade designa trocas entre os meios de comunicação, principalmente
no que diz respeito a suas propriedades específicas e a seu impacto sobre a representação teatral” (Pavis, 2011, p. 212).
O termo intermedial tem suas origens nos anos 1980, nas pesquisas dos alemães
Jürgen E. Muller, Jens Schröter, Yvonne Spielmann, nos estudos dos pesquisadores
canadenses do Centre de Recherche sur l’Intermedialité: André Gaudreault, Silvestra
Mariniello e demais pesquisadores; e da Fedération Internationale de la Recherche
Théâtrale, da qual Pluta é associada. Há de se notar que a dificuldade de se conceituar
espetáculos intermediais, pela pluralidade de dispositivos e suas inter-relações espaço-temporais, leva a uma complexificação de teorias a respeito. Pluta alerta para um
fechamento dos estudos teatrais contemporâneos sobre o tema intermedialidade,
citando o caso do estudioso Slawomir Swiontek que escreve uma obra em 2003, intitulada Sobre as possibilidades de aplicação de alguns novos métodos de pesquisa na
ciência do teatro (perspectiva e limitações), inteiramente consagrada aos novos modos de cena contemporâneos, sem contudo citar experiências intermediais. O curioso é que Swiontek faz parte do grupo Intermediality in Theatre and Performance da
Federação Internacional de Pesquisa Teatral (FIRT). O risco, com isso, é de que caiamos em uma espécie de fechamento dos estudos teatrais a esse respeito devido ao
hibridismo do campo e à dificuldade que se tem em criar um quadro conceitual que
possa legitimar e aprofundar as análises de espetáculos intermediais. Não é possível
investigar dispositivos e cena isoladamente, uma vez que a metodologia compreende a articulação entre ambos, e quando falo de metodologia refiro-me sobretudo ao
trabalho prático, sobre o qual os estudos convergem. Nesse sentido, as artes plásticas
e a performance, ao contrário do teatro, há algum tempo conseguiram dar conta de
teorias, com inúmeros escritos sobre o tema. Arte, ciência e tecnologia não deveriam
mais ser dissociadas na crítica contemporânea, pelo menos não mais como campos
autônomos. O hibridismo é condição de existência de saberes cujas fronteiras são
sistematicamente ultrapassadas, intercambiadas, gerando uma profusão de correlações e possibilidades, daí a dificuldade, quando falamos de dispositivos na cena
contemporânea, de analisar seus usos através de uma “teoria da intermedialidade”.
Retraçar um percurso histórico que vai desde a origem do uso das tecnologias
da cena pode contribuir para compreender de que modo novas formas de atuação
foram sendo criadas em uma perspectiva de “multidimensionalidade artística” (Pluta, 2011, p. 22). Não é de hoje que tais tecnologias refletem o diálogo entre diversas
formas artísticas e linguagens. Historicamente, adquirem novos matizes através de
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contextos sociais, políticos e econômicos que influenciam, dinamizam e recriam o
espaço teatral. Nesse sentido, a formação do ator, a recepção da obra, os processos
de criação são objetos relevantes de análise por sofrerem efeitos diretos provenientes das transformações históricas pelas quais o teatro passa.
É evidente que as tecnologias não podem e não devem ser vistas como recursos externos, como algo “exterior” à cena que, ao serem excluídas, permitem a
retomada e/ou a preservação da especificidade do teatro. Esse é o pensamento de alguns críticos, diretores, atores, professores e demais representantes da classe teatral
quando se colocam contrários ao uso das tecnologias da cena, argumentando que
o teatro independe delas. É claro que espetáculos são realizados sem que haja o uso
direto de tais recursos, basta retomar o conceito de espaço vazio do diretor inglês
Peter Brook1. Questiono, porém, a lógica alienante desse desmembramento em um
contexto de globalização, de excessos (de imagens) e de interculturalidade2.
Os dispositivos como parte inefável do processo criativo
Na contemporaneidade, os dispositivos não são ferramentas ou objetos que integrados ao espaço teatral são responsáveis pela criação de imagens. Os dispositivos são eles mesmos parte inefável do processo criativo. Sem eles, a cena é outra
ou inexiste enquanto tal. O dispositivo pode, inclusive, não ter sua materialidade na
cena; a visibilidade não é condição a priori de existência, por exemplo, uma sequência de ações pode ser criada tomando como referência um determinado dispositivo
cinematográfico, seja ele a montagem, um tipo de enquadramento, uma referência
imagética, uma forma de captação. A noção de dispositivo é ampla e merece nesse
estudo um aprofundamento; são muitas definições do termo que vão desde a materialidade de um aparelho aos efeitos das relações produzidas entre imagem, espectador, ator, espaço. Segundo Albera e Tortajada (2011), na obra Cine-Dispositifs, “de
sua definição mais concreta a sua definição mais abstrata, o dispositivo nos remete à
significação comum de um agenciamento” (Albera e Torajada, 2011, p. 13). Segundo
os autores, entre o empirismo e a epistemologia, há um grande lastro conceitual que
deve ser levado em consideração. Seus usos e efeitos são investigados em campos
distintos de debate, da origem do cinema, passando pela investigação filosófica de
Foucault e o estudo do panopticon, às investigações, entre outros, de Bachelard e de
Agamben, este último a quem aprofundarei nesse estudo.
Giorgio Agamben retoma a concepção de dispositivo desenvolvida por Foucault baseando-se na idéia de que o dispositivo engloba o “dito e o não-dito” (Foucault, 1978, p. 299-300) e, ainda que, o dispositivo é “a rede que se estabelece entre
estes elementos” (Ibidem). Agamben destaca três pontos importantes na concepção
de Foucault: a “rede” composta por “um conjunto heterogêneo, linguístico e não
-linguístico que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título [...]” (Agamben,
2009, p. 29), que “o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se
2
“Posso chegar a um espaço vazio qualquer e usá-lo como espaço
de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra
pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma
ação teatral”. (Brook, 2008, p. 7).
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Tomo o termo “interculturalidade” segundo a concepção de Nestor
García Canclini: “[...] interculturalidade implica que os diferentes são
o que são, em relação de negociação, conlito e empréstimos recíprocos” (Canclini, 2009, p. 17).
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inscreve sempre numa relação de poder” (Ibidem) e, por último, “[...] resulta de um
cruzamento de relações de poder e de relações de saber”(Ibidem). O filósofo realiza
uma busca genealógica do termo na obra foucaultiana, não apenas tentando identificar quando este aparece, mas compreendendo historicamente seu uso. Relendo
a obra de Hypollite, a quem Foucault consagrava como mestre, Agamben encontra
na leitura de Hegel4 conceitos importantes do pensamento posteriormente desenvolvido por Foucault, a idéia da positividade hegeliana e sua oposição entre “religião
natural e religião positiva”, o que caracteriza a oposição entre razão e história; liberdade de escolha individual versus submissão aos elementos históricos. Agamben não
se propõe apenas investigar o que Foucault exaustivamente analisou mas, além disso, busca situar o dispositivo em outro contexto, ampliando seu poder de ação para
além das conexões de poder, entendendo como dispositivo “[...] também a caneta,
a escritura, a literatura, a filosofia, os telefones celulares e – por que não – a própria
linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos [...]”(Agamben, 2009, p. 41). Ao
fazer isso, estabelece uma tríplice relação entre os dispositivos, os seres viventes (ou
as substâncias) e os sujeitos. Seres viventes são, segundo ele, “o lugar dos múltiplos
processos de subjetivação: o usuário de telefones celulares, o navegador na internet,
o escritor de contos, o apaixonado por tango, o não global etc.” (Ibidem).
Há três aspectos fundamentais a este estudo, analisados por Agamben: a concepção ampliada de dispositivo (a escritura, o celular, um objeto artístico, a própria
linguagem); a ideia de que não existe um uso correto dos dispositivos, uma vez que
os processos pelos quais estamos submersos são incontroláveis pela sua dinâmica de
repetição autofágica e, por último, a reflexão das condições de intervenção sobre os
processos de subjetivação, “ponto de fuga de toda a política” (Ibidem, p. 51), o que
implica refletirmos sobre a co-relação entre seus modos de criação, uma vez que
estamos falando de arte, e suas formas de recepção, como podemos lê-la e, aqui,
entendo a leitura como àquela proposta por Barthes, o que tange a compreensão da
leitura como rede, emaranhado de referências.
Nesse sentido, as artes não estão alheias aos agenciamentos históricos pelos
quais os dispositivos são construídos e relidos à medida que cada vez mais se presentificam em novos processos de criação cênica. A própria ideia de cena é transformada
ininterruptamente pela estimulação e experienciação de novos modos de utilização
dos dispositivos5. Nesse novo cenário, em que as fronteiras entre as artes deflagram
territórios híbridos de pesquisa, o teatro se insere em debates avançados, por exemplo, na área das artes plásticas quando esta problematiza o registro de imagens do
cotidiano e sua deflagração na ruptura do tempo presente. A partir dos anos 60, os
processos artísticos ganharam outra conotação ao serem elevados à própria obra,
i.e., passa-se a entender “a obra como processo” (Da Costa, 2009, p. 19), tomando o
presente, a vivência do acontecimento como material poético-reflexivo. O esvanecimento, a fluidez e a impermanência dos objetos artísticos, somados à indefinição de
fronteiras entre campos artísticos distintos, transforma o espectador em agenciador
4 Hypollite dedica-se à obra de Hegel, O espírito do Cristianismo e o
seu Destino e A positividade da religião cristã, no livro Introduction à
La philosophie de l’histoire de Hegel.
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5 Escrevi o artigo “Teatro e cinema: uma perspectiva histórica” que trata das modiicações históricas e o uso de dispositivos audiovisuais na
história do teatro. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n. 23, 2011, p. 23-34.
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da obra, aquele que, partindo de sua experiência enquanto sujeito, com suas referências de mundo, é capaz de atuar não apenas enquanto leitor ou espectador da obra,
mas como criador, agente, participante ativo do processo artístico. Arlindo Machado, em seu artigo “Regimes de imersão e modos de agenciamento”, analisa novas
formas narrativas concebidas para tecnologias digitais, criando a figura do receptor
ativo e imerso, o “interator”, “o sujeito que se deixa emergir na simulação, espécie
de demiurgo que faz desencadear os acontecimentos da diegese” (Machado, 2009,
p. 71). O uso do dispositivo no teatro amplia o sentido do “interator” ao desvirtuar o
foco da narrativa e ampliá-la através de uma dupla experiência sensorial. Podemos
afirmar que, entre a tela e o palco, o espectador é convidado a estabelecer uma rede
de relações na tentativa de elaboração dos sentidos da cena – a chamada “quarta dimensão” segundo Abel Gance ao se referir à junção entre imagem e realidade.
Nesse sentido, tem-se a idéia de multiplicidade/multidimensionalidade na recepção
do espectador teatral que se vê em função dupla ao desdobrar/ressignificar agenciamentos provenientes de naturezas diversas. O corpo virtual e o corpo real, se assim
podemos chamar, são todo o tempo atravessados por uma composição que apenas o
espectador pode realizar, a partir de suas escolhas. O que vejo? Para onde meu olhar
é lançado? O que fixo? Como enquadro a cena? O duplo agenciamento promove a
ruptura do tempo presente e configura um novo tipo de recepção.
O Otro da imagem espectral: a dupla interação do dispositivo
WEm Otro, de Enrique Diaz e Cristina Moura, atores discutem a alteridade a
partir do uso de elementos autobiográficos. O corpo é tradutor de imagens, sensações, afetos. Corpo-fluxo que, na articulação com imagens-documentais e imagens
-paisagens, se metamorfoseia na busca por outros lugares, outros registros, outras
possibilidades. “O eu é um outro” (Rimbaud, 2008, p. 109), o outro aqui é um ponto
náufrago no espaço da encenação, um ponto que nunca se encontra no lugar que
deveria estar. Realizado a partir de diversas experiências dos atores do “Coletivo Improviso” pela cidade do Rio de Janeiro, o espetáculo é um mosaico de fragmentos
dessas vivências, muitas das quais documentadas em imagens audiovisuais, de autoria do artista Felipe Ribeiro.
O espaço cênico apresenta um grande telão ao fundo, ele é amplo, não tem
coxia (os atores ficam o tempo todo em cena), um chão de ladrilhos azuis demarca o
espaço central que se encontra com o telão ao fundo. Nas laterais, pisos de ladrilhos
preto e branco, cadeiras e mesas acabam de compor o espaço que se assemelha ao
espaço de um bar. A narrativa anuncia vozes dissonantes, “eus” à procura de uma
nova subjetividade; frágeis, descortinam seus des-afetos, idiossincracias, faltas, inapetências, desejos, angústias, olhares diante de um mundo igualmente fragmentado,
representado por palavras-imagens e por imagens que levam a mais palavras. Ambas
se heterogeneizam, perpetuando-se no espaço ambíguo, múltiplo; algumas vezes,
parece ser a sala de ensaio, a sala de casa, a sala da casa do amigo, e assim por diante. O espaço da cena torna-se cotidianamente conhecido, facilmente identificável,
sim o outro é um eu. Nessa relação especular, a tela e a cena, como um amálgama,
unem-se criando um terceiro espaço polimórfico, transparente, espaço de percep-
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ção do espectador, multissensorial, no desejo de articulação de narrativas, as nossas
e as dos atores; no desejo de articulação das imagens projetadas com os corpos
que dançam, se expandem, vibram, ficam nus, se cobrem, se lançam no espaço, se
aproximam e se afastam. O dispositivo audiovisual amplia o sentido da percepção do
espectador. Diante das sucessivas cenas, atores se revezam, sozinhos ou em grupo,
trocando suas experiências. As imagens projetadas documentam os acontecimentos
sem contudo sublinhar o sentido do que é dito, estimulando o espectador a criar
conexões a partir da articulação das narrativas apresentadas. Vê-se claramente que o
dispositivo é ferramenta de criação e não se pode dissociá-lo da cena.
Em uma das cenas, Daniela se apresenta: “eu vou dizer que meu nome é Daniela,
que eu moro em Niterói, em Icaraí, na Rua Mém de Sá, que eu estudo Sociologia na
UFF, que eu namoro o Felipe que está super apaixonado por mim, eu não sei se estou
apaixonada por ele, isso eu não vou dizer. Eu estou em Niterói”. Vemos na tela, o cais
das barcas Rio-Niterói, um trecho da baía de Guanabara com alguns barcos pequenos, barcos de pesca. Imagens-paisagem. Daniela tem um encontro marcado com
Felipe lá. Sabemos disso porque Felipe está em cena, ao lado de Daniela e de outro
ator que diz que ele e Felipe escreveram juntos um cartaz onde se lê: “Preciso atravessar a baía de Guanabara vendado para fazer uma surpresa para a mulher que amo.
Alguém pode me acompanhar?”. O outro ator é responsável por filmar a experiência,
ele afirma ter tido apenas doze minutos de fita. Eles mostram o cartaz para a plateia
e um jogo se instaura. Percebemos que as imagens a que assistimos foram manipuladas, questionamos a veracidade delas e o sentido de mostrá-las. Depois, compreendemos que o interessante do jogo é o que as imagens não revelam. No filme, Felipe
entra na barca vendado e é ajudado por uma passageira, Vânia. O filme não tem som,
Felipe nos diz, ele é o narrador, junto com os outros dois atores, da cena. Uma cena
composta por imagens pré-gravadas, mas que ganha sentido na narração dos atores.
Através de uma narrativa descritiva, de imagens-paisagens e imagens-documentais
cria-se um registro sensorial, poético. O encontro entre Daniela e Felipe não ocorre
porque ela resolve ir embora. Na fratura da ausência, no hiato de uma procura que
não se concretiza, o filme termina; não vimos o rosto de Vânia, mas o imaginamos
(ela aparece de costas); sabemos de sua solidariedade, do desejo de ajudar Felipe, de
suas mãos delicadas e firmes; não vimos tampouco o encontro entre Felipe e Daniela,
mas percebemos a falta diante do fracasso da espera. Náufragos, continuamos tais
quais os atores-personagens: eles também náufragos de si mesmos e da própria imagem. Interessante analisar a articulação entre cena fílmica e cena teatral, bem como
o encontro proveniente de ambas. O dispositivo audiovisual inaugura um espaço poético-reflexivo ao utilizar dois tipos de imagens: a imagem documental e a imagem
-paisagem. Assistimos à travessia Rio-Niterói e ao périplo do personagem em busca
do seu amor; o realismo da imagem, proveniente do caráter documental, adquire um
estatuto ficcional no encontro com os mesmos “personagens” da história na cena.
Eles estão lá, na nossa frente, no tempo presente, apesar de narrar uma imagem passada, mas tragicamente revivida através da narração. O filme aproxima-se, portanto,
da memória, do sonho e não apenas do sentido inequívoco do depoimento porque
não há apenas uma exposição do que é dito, uma reiteração do verbo, mas a revelação do que a palavra não consegue explicitar. Retomamos aqui o sentido de rede
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proposto por Agamben: o dispositivo audiovisual funciona como espécie de rede de
articulação dos três espaços citados anteriormente: o fílmico, o teatral e o encontro
entre ambos, aquele que se concretiza no campo de percepção do espectador. O
segundo estatuto citado, a imagem paisagem, é caracterizada por Ribeiro como uma
imagem contemplativa. Para Ribeiro, a escolha das imagens deveria ter um propósito. Nada foi escolhido gratuitamente, nem deveria servir como “tela de proteção”. O
interesse pelas imagens veio do desejo de mobilizar a escuta do espectador de modo
diverso, através do que o artista chama de “contemplação”.
Normalmente, a relação com a imagem é ou cenário ou é recorte, um bando de
coisa junto, vira um grande sampler, um inventário do nada [... Estava muito
interessado em ativar a platéia pela contemplação. O teatro icou muito forte: se
você está numa peça em que o espectador contempla, ele não tem participação,
ele é uma mera testemunha distanciada. Comecei a me interessar por uma forma
de me aproximar, para me aproximar preciso estar distante, como compensar esse
oxímoro? É a distância que faz o espectador chegar… tanto tempo olhando para
uma coisa que não é mais sobre a forma da coisa, mas é sobre um outro lugar.
Preciso ultrapassar o tempo de contemplação da imagem6.
Em outra cena, Enrique Diaz senta-se em uma cadeira de frente para uma pequena mesa e um laptop, iluminado apenas pelo pequeno foco de luz de um abajur.
Aqui, a leitura interessa. Interessa também termos o foco nas imagens na tela. As imagens não estão em movimento, são fotos. O movimento acontece na montagem das
palavras que Diaz lê. Um texto que escreveu sobre um dia comum na sua vida, descreve tudo o que fez, descreve trajetos. Da saída de casa, o encontro com o porteiro
Cícero, que é o porteiro e o santo padroeiro; com a gata Nina, deitada na portaria,
que é a gata e a personagem de A gaivota. Diaz descreve a sensação de que “nunca
está onde deveria”, já deveria estar à meia hora no DETRAN para renovar sua carteira
de motorista. O táxi, o ensaio, a visita à médica; vemos imagens documentais: o porteiro Cícero; Nina, a gata; o taxista Everaldo; Silvana, a atendente do DETRAN que não
queria ser filmada; Wenden, o menino de rua que pede dinheiro em frente ao Bob’s
do Largo do Machado.
Mais uma vez, ver a imagem narrada não se reduz a uma reiteração do já visto.
O texto poético acompanha o trajeto, o fluxo, o caminho percorrido pelos corpos;
que só poderiam mesmo ser fotogramas. O espectador é convidado, deste modo,
a ser mais uma vez o outro do percurso, juntando o que vê, o que ouve com o que
percebe. A percepção é um estado de coisas. A percepção não está na visibilidade
da matéria, mas nas suas sinapses, nos entrecruzamentos, naquilo que a palavra não
consegue representar, não consegue dizer, mas que o espectador, testemunha da
narrativa, percebe, imagina, cria. A rede se multiplica. Na tela, imagens se desdobram
em inúmeros quadrados como tecidos de uma célula cancerígena, multiplicam-se
com rapidez, uma imagem leva a outra, a outra e juntas compõe imagens irreconhecíveis, poéticas, dialógicas, imagens de animais, imagem-molécula. Diaz finaliza:
[...] as coisas vibravam, muitos pontinhos luminosos vibrando, luxo de pontinhos dando forma aquela matéria. Parecia um ilme de icção cientíica, é muito
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Entrevista concedida a mim em 2011.
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audiovisuais em “Justo uma imagem”e “Otro”
bonito, matéria se reorganizava, um estado de coisa, estado de mesa, de cadeira,
um estado de lava, que tinha uma potência tão grande, uma espécie de gozo calmo, desapegado total, e eu não ouvia o que ela falava, mas eu sabia que eu tava
entendendo tudo, eu sabia que eu não tava no que eu via, o que eu via tava fora
de mim, mas que eu tava profundamente no que eu via, impregnando as coisas
que estavam ali e sendo afetado por elas, eu sabia que aquilo era na direção de
um pertencimento maior, que a pele das coisas não servia para separar mas para
juntar, se você for caminhando pela pele das coisas, você vai se ver numa hora
pelo lado de dentro da pele sem rasgar nenhum tecido, você vai estar dentro e vai
estar fora e vai estar dentro de novo, você vai ver que não tem dentro, não tem
fora [...] eu não me alcançava mais, o que eu via não precisava mais de mim, o
que eu via estava cheio de mim, eu era de graça, eu era de pura graça, eu era sim7.
Justo uma imagem: obra-ensaio intermedial
Em Justo uma imagem, Felipe Ribeiro dirige a bailarina e atriz Denise Stutz em
um monólogo sobre a relação entre a dança contemporânea e o cinema; sobre a
arte de Jorge Sélaron, escultor chileno que faleceu recentemente na escadaria que
esculpiu ao longo de vinte anos, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Na estreia,
assisti ao espetáculo ao lado de Sélaron, muito comovido pelo que considerava ser
também uma homenagem. Segundo Stutz e Ribeiro, “é uma obra-ensaio que acontece entre a casualidade pop da Lapa e sua apropriação cênica minimal. É também
uma história de amor”.8
O espaço é vazio de objetos, não há cenário, apenas um banco de madeira e um
grande telão ao fundo, onde imagens são projetadas ao vivo por Ribeiro, que utiliza
um software de exibição chamado Modul8 VJ(Modulate)9. O programa permite, de
modo rápido e seguro, a escolha ao vivo das imagens que se deseja projetar: utilizando diferentes canais, as imagens podem ser projetadas e moduladas em formatos e
tamanhos distintos na cena; é a ideia da projeção em tempo real. Essa tecnologia é
cada vez mais utilizada por vjs, na arte contemporânea, em instalações interativas, na
liveart, no teatro e em produções audiovisuais.
No início de Justo uma imagem, assistimos a um corpo que dança, a mão direita da bailarina busca uma forma no espaço, parece esculpir, escrever no espaço. Ao
fundo, no telão, uma imagem que lembra ondas provenientes de um aparelho de TV.
A sombra do corpo projetada na tela gera a percepção de três dimensões: o corpo, a
sombra, a projeção. A escadaria de Sélaron passa, Stutz é um corpo que sobe, se mistura aos mosaicos da escadaria. Corpo-Imagem. Em seguida, Sélaron fala de seu trabalho, ele está na escadaria, fala da importância do “rojo”, do vermelho, em sua obra
e em sua vida. As imagens ganham um caráter documental, tem-se a impressão de
estar assistindo a um documentário sobre o pintor. Stutz ganha um status de espectadora, nos vemos projetados no seu silêncio atento, ela mais próxima à imagem, nos
aproxima também, tamanha a escuta atenta, que se revela através de um corpo vivo,
preciso, apesar de aparentemente imóvel. O modo como Stutz vê a cena é alvo de
interesse dos espectadores. Imagens do Rio de Janeiro aparecem, ela adquire, então,
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Texto retirado do registro audiovisual do espetáculo.
Site de Felipe Ribeiro e Denise Stutz onde se pode assistir o espetáculo na íntegra: http://www.denisefelipe.com.br/doxa/Justo_uma_
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Imagem.html
http://www.modul8.ch/
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uma estranheza nos gestos, um corpo nada cotidiano, plástico, hierático, corpo-objeto, corpo-totem que se confunde com a paisagem urbana da cidade. A articulação
entre os movimentos do corpo de Stutz e as imagens projetadas revela uma espécie
de terceiro lugar. Ora, trata-se de um corpo-imagem, ora vemos a imagem-corpo.
O corpo se mistura de tal forma à imagem projetada da cidade do Rio de Janeiro que
não podemos mais dissociar um do outro. É como se estivéssemos diante de um terceiro espaço – nem cênico, nem audiovisual; espaço de fusão e de experiência.
Segundo Izabella Pluta, a poética do espetáculo intermedial nasce da ruptura
de diversos pontos de vista, “é a coexistência da cena viva e da tela que impõe uma
visão prismática” (Pluta, 2011, p. 162). Há todo um questionamento sobre os modos de percepção desse tipo de espetáculo, que se modificam de acordo com os
tamanho das superfícies de projeção (seja ela, o corpo do ator, uma TV, uma tela
pequena, média ou grande) e da relação com o material projetado, o que constitui
novas abordagens dramatúrgicas. Como janelas abertas a outras dimensões, o uso
de dispositivos audiovisuais leva a uma espécie de organização hipertextual, a percepção torna-se fragmentária.
O estudo da relação do corpo como parte da projeção faz-se necessário e a escolha de Justo uma imagem vai ao encontro da complexidade do debate ao revelar
uma estética intermedial: o espetáculo não é passível de classificação, é híbrido, não
se trata de dança ou de instalação, ou de cinema, mas da imbricação de uma cena
expandida. Ao utilizar o dispositivo audiovisual, o diretor pretende discutir o estatuto
de visibilidade da imagem ao desconstruir a “formação do olhar”. O diretor, Felipe
Ribeiro, lê um texto que escreveu sobre uma imagem que fez quando procurava o
mar no alto da escadaria da Lapa. Um texto sobre o modo de olhar as coisas, “acostumado com a centralidade, com os pontos de fuga, com a perspectiva”. Na tela,
vemos projetada a imagem descrita por Ribeiro. O corpo de Stutz, ao lado direito do
quadro, compõe a paisagem. Ao lado do poste, vibra em ondas como o mar, reagindo ao texto de Ribeiro, como se materializasse no corpo a dúvida, o questionamento
sobre o modo de olhar; um olhar viciado na incapacidade de estranhamento do real.
Aos poucos, o corpo dança uma espécie de desejo de liberdade, o desejo de ruptura
com a perspectiva. O corpo parece se descolar da imagem e desconstrói através do
movimento o olhar descrito por Ribeiro. O diretor retoma a experiência das imagens
criadas para o “Otro”, das “imagens contemplativas” para romper com ela em um movimento que, nesta experiência, vai da tela ao corpo. Algumas categorias de interação
corpo-imagem são, portanto, investigadas: 1) o corpo como imagem, constituindo
ele mesmo superfície de projeção, matéria inseparável; 2) o corpo como intervenção
da imagem, seu contraponto, como um arranhão na película, atua como ferramenta
de desconstrução do quadro; 3) o corpo como propulsor de outra realidade, expande
a imagem, rompe literalmente com o quadro, explode sua função cênica.
Em outro momento do espetáculo, imagens documentais da cidade do Rio de
Janeiro à noite, do bairro da Lapa, são projetadas. Stutz é alguém que vê; que está
dentro da imagem e fora dela, seu corpo é atravessado pelas imagens das pessoas que
passam, da multidão de pedestres, um corpo que reage à vida. Corpo-sensação que é
parte da paisagem urbana, mas é também aquele que não pertence, é sobre-posição,
está em trânsito livre, é o fora-da-imagem, a que se refere Deleuze. A reflexão sobre
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Intermedialidade na cena contemporânea: o uso de dispositivos
audiovisuais em “Justo uma imagem”e “Otro”
a relação do corpo no espaço cênico em interação com imagens projetadas nos leva
a analisar a criação de um espaço-tempo intermediário, uma espécie de entre-lugar:
entre o espaço-tempo da cena e o espaço-tempo da projeção existe um terceiro,
fruto de ambos, um ponto-síntese proveniente das reconfigurações intermediais e
dos deslocamentos provocados pela interface do ator com a imagem.
A re-coniguração intermedial da cena provoca um reagrupamento de componentes do espetáculo que são, em primeiro lugar, deslocados, depois modiicados,
reconigurados e mesmo transigurados de uma maneira intermedial [...] compreendemos toda sorte de inluências da lógica digital, assim como as hibridações
das mídias da natureza diferente no universo do espetáculo (Pluta, 2011, p. 88).10
(Tradução nossa).
Ao final de Justo uma imagem, Stutz dança ao som do funk “Roçando em mim”
explodindo o sentido do corpo e da palavra. “Roçando em mim” se transforma em “o
santo em mim” em uma clara referência à cultura afro-brasileira e seus rituais religiosos. O corpo de Stutz, “corpo-santo”, se liberta do aprisionamento das linhas duras,
da influência renascentista do modo de olhar, a que se referiu Ribeiro, se liberta da
perspectiva. Aqui, também, o corpo é um outro e, no encontro com a imagem, se
expande, se desloca, se metamorfoseia.
Referências
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BROOK, Peter. A Porta Aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
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COUCHOT, Edmond. Automatização de técnicas figurativas: rumo à imagem autônoma. In: Arte, Ciência e Tecnologia. Passado, presente e desafios. São Paulo: UNESP,
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DA COSTA, José. Teatro Contemporâneo no Brasil. Criações partilhadas e presença
diferida. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.
FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits, v.III. Paris: Gallimard, 1978.
La re-coniguration intermédiale de la scène provoque alors un
regroupement des composants de spectacle qui sont déplacées, en
premier lieu, puis modiiées, reconigurées et même transigurée d’une
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manière intermédiale […] nous comprenons toutes sortes d’inluences
de la logique numérique ainsi que des hybridations des médias de
nature différente sur l’univers du spectacle
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LÉVY, P. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Ed. 34, 1993.
MACHADO, Arlindo. Regimes de imersão e modos de agenciamento. In: Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2009, p. 71-84.
PAVIS, Patrice. A análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2011.
PLUTA, Izabella. L’Acteur et l’Intermédialité. Les nouveaux enjeux pour l’interprète et
la scène à l’ère technologique. Lausanne: L’Age d’Homme, 2011.
RIMBAUD, Arthur. Carta dita do vidente. In: Rimbaud por Ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2008.
Recebido em 16/08/2013
Aprovado em 27/06/2014
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