UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO III – EDUCAÇÃO FÍSICA
ESPECIALIZAÇÃO EM METODOLOGIA DO ENSINO E DA PESQUISA EM
EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTE E LAZER
CAPOEIRA E MERCADORIA: POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS
SUPERADORAS
BENEDITO CARLOS LIBÓRIO CAIRES ARAÚJO
Salvador
2006
BENEDITO CARLOS LIBÓRIO CAIRES ARAÚJO
CAPOEIRA E MERCADORIA: POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS
SUPERADORAS
Monografia apresentada ao Departamento III –
Educação Física, Faculdade de Educação,
Universidade Federal da Bahia, como requisito
para obtenção do grau de especialista em
Educação Física.
Orientadora: Dra. Micheli Ortega Escobar
Salvador
2006
ii
Termo de aprovação
Benedito Carlos Libório Caires Araújo
CAPOEIRA E MERCADORIA: POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS
SUPERADORAS
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de
Especialista no curso em Metodologia do Ensino e da Pesquisa em Educação
Física, Esporte e Lazer do Departamento III – Educação Física da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da Bahia, banca formada pelos
professores:
Orientadora
Doutora Micheli Ortega Escobar
Examinadora
Mestra Adriana D’Agostini
Examinador
Pesquisador Frederico José de Abreu
Salvador, 16 de setembro de 2006
iii
RESUMO
O presente estudo tem como objeto de investigação o processo de
mercadorização da capoeira e as possibilidades de articulá-la a uma proposta
pedagógica socialista. A questão que tentaremos responder é: como ocorreu o
processo de mercadorização da capoeira nas décadas de 1930 e 1940, e quais
elementos presentes nesta prática social que permitem articulá-la a uma
proposta pedagógica socialista? A hipótese que defendemos é que através da
apreensão do processo de produção de mercadorias poderemos explicar a
capoeira em seu desenvolvimento histórico, o que propicia a identificação de
possibilidades de articulá-la a uma proposta pedagógica socialista. Buscamos
compreender a capoeira como produto cultural que contém em si
características das relações mais gerais da sociedade capitalista, no contexto
de constituição do mercado mundial. Para tanto, utilizamos o método
materialista histórico dialético, que nos da possibilidade de compreender em
essência este objeto de estudo. Nesta perspectiva, a capoeira é vista como
uma manifestação humana não estando deslocada de sua base material. Em
suma, buscaremos compreender como a capoeira, de mera atividade de
vadios 1 transforma-se, no interior deste tão disputado jogo de interesses, em
uma mercadoria.
Palavras-chave: Capoeira, Mercadoria e Prática Pedagógica Superadora.
1
A princípio a capoeira era prática de vadios, inclusive denominada de vadiação, ou vadiagem.
Incluída no código penal de 1890 da República dos Estados Unidos do Brasil, no capitulo XVIII
capoeiras e vadios.
iv
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS
vi
INTRODUÇÃO
01
1 MARCO TEÓRICO-METODOLÓGICO
05
2 O PROCESSO DE MERCADORIZAÇÃO DA CAPOEIRA
11
2.1 Brasil: nova forma produtiva
11
2.2 Capoeira Mercantil: base de análise da capoeira moderna
15
2.3 Inserção do ‘Capoeira’ na sociedade de classes
21
3.CAPOEIRA E EDUCAÇÃO
27
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
38
5 REFERÊNCIAS
42
ANEXO
v
AGRADECIMENTOS
Aos capoeiras que construíram esse legado, de tanta importância, que me liga ao meu
passado, meu momento e minhas projeções, e de tão importante, são deles as respostas que
mais me interessam;
Aos colegas de Especialização, que com esse feito, deixam os nomes na história, os
tijolinhos;
Ao Movimento Estudantil de Educação Física, por me mostrar o caminho, ainda em
tempo, do sentido das coisas;
Ao Batukegê, em especial a Zé Miguel de Jesus Monteiro, amizade, compreensão e
lealdade;
Ao Grupo de Estudos, Festas Anticapitalista (GEFA), o apoio para enfrentar monstros,
Para além do Capital;
A Confraria Catarinense de Capoeira, por manter a esperança e o chão desse trabalho;
Aos Libórios e os Caires que enchem esse mundo, minha ligação ancestral;
Magnólio (Cássio Adriano Barros da Silva), Arapá (Daniel Ramos Moreira), Sande
(Érick Menezes Sande), Jacaré (Abdon), Gildásio, Tom, André Cazuza Vinagre, Reginaldo
Loupinho, amigos eternos de uma infância diferente;
Tchon - Vitor Neves Gomes – e Grace – Graciano Régis Nogueira, os anos dizem: - O
que é pra sempre? Que seja eterno;
A José Antonio de Souza Neto, Zequinha de Abreu Chibata, ou Zézo. A insanidade que
faz sentido, aquele que se importa com todos, quando tudo conspira contra;
Ao meu compadre, João Marcos Araújo Silva (Alemão), a minha comadre Susana Pinto
(Sussuca), a Nandinha e a minha amada afilhada que no corrido mundo dos estudos sempre
ficam na lembrança;
A Roseane Soares Almeida, no exemplo da grandeza - sua fibra, sua fibra, sua fibra;
Cláudio Lira Santos Jr., Mona, na sagacidade da estratégia me ensinou muito, muito
mais do que imagina;
A Érika Suru(ru)agy, sua força, a força e di com força, imensa na luta sempre;
A Adriana D’AGOSTIni, a calma, a serenidade e a paciência. A água;
A MAUro Titton a rigidez, a solidez e a sustentação. A pedra;
A Amália e Cristina, síntese dos contrários;
A Romão, Neto de Paula e Dorea: o universal, o particular; e o singular;
Raquel e Silvana na superação das contradições, os saltos qualitativos;
A Justina Franchi Galina, 15 minutos de “Surpresa!”;
A Melissa Michelotti Veras, a mão, ação, criação;
A Carol Jaques Cubas, o sorriso, o choro, sempre o sorriso, nunca o choro;
A Fátima Moraes (Bagé) Garcia e ao Super Leon Trotsky Aranha Vermelho Triangulo,
sem alusão às “competências”, aprendi a aprender com vocês;
vi
A
CarolZINHA,
felicidade,
maternidade,
fraternidade,
dignidade,
sagacidade,
fragilidade, maturidade... idade
Fernando Pereira Candido, RÓsangêla, Ademirrrrr Quintilio Lazarini Billylico Cianorte,
nesta ordem... a busca, a consistência e a sabedoria,. Indissociáveis;
A Paulo Sérgio Tumolo, por nos dar o melhor de sua força de trabalho. Algumas
passagens são para você, PILHAaaDO;
Ao batedor Frederico ZÉ Abreu, que com seus trabalhos, a surpresa do companheiro, a
visão e seu legado, importantes nas nossas divergências no futebol baiano. “NÊGO!!!”;
Ao melhor orientador que alguém poderia ter, nosso Rei, Fleuri, a aparência dos
fenômenos sempre nos engana.
Aos imprescindíveis: Drauzio Penzzoni Annunciato (beligerante como um cavaquinho),
Márcio Penna Corte Real (Um lorde, é ninhuma, pai), Bruno Emmanuel Santana (Meu Tio, a
confiança, eterno carinho, “Hahai, Adeildo”) Marcos Cordeiro - de Deus - Bueno (Canguru, o
exemplo de dignidade), cientistas, amigos e companheiros TERRÍVEIS, que alegram e
estimulam o melhor espaço de Santa Catarina, o Núcleo MOVER. A super Lia, a maravilhosa
Ivanete, o Ibérico, além Tejo, ouvido questionador de muitas conversas Mário Jorge Cardoso
Coelho de Freitas.
A Zélia e Natalia, na confusão do mundo contemporâneo, a certeza de que as relações
se humanizam;
A minha amiga Alessandra Libório, um passado, para um futuro, nossa eterna ligação;
A Carlos Emilio Libório, a capoeira, a infância, as nossas vidas, mesmo quando não
sabemos bem o que fazer com elas;
As cinco “Donas” do meu destino:
Micheli, meu desafio;
Hassiba, minha força;
Celi, minha gratidão;
Socorro, minha vida;
Bartira, se não tudo, meu coração;
À Antonio Carlos Caires Araújo, o meu espelho, sempre a contradição. De Dom Basílio
a Paris, de Benedito a Lacan, o mundo é nosso... “Bem aventurados sejam os homens de boa
fé...”
vii
INTRODUÇÃO
Lá no céu vai quem merece, na terra vale quem tem
[...] (D.P. apud in CD WALDEMAR E
CANJIQUINHA, faixa 11, 1997)
Buscamos, na monografia, ora apresentada, compreender a capoeira
como produto cultural que contém em si características das relações mais
gerais da sociedade capitalista em formação, e suas especificidades no próprio
desenvolvimento do Brasil e em particular no Recôncavo Baiano do século XX.
Alguns esclarecimentos se fazem necessários na introdução do tema: a
capoeira é uma manifestação humana, e, por isto, encontra-se submetida à
forma como a sociedade se desenvolve. Dai a necessidade no contexto desta
monografia de compreender a sociedade brasileira nos decênios de 1930 e
1940, momento emblemático representado pela consolidação do projeto de
oficialização da Luta Regional Baiana. Nessa direção, a forma como a
sociedade
capitalista
se
estrutura
é
a
chave
para
compreender
o
desenvolvimento da capoeira, nas décadas de 1930, 1940. Assim, situamos
historicamente o fenômeno, analisando-o a partir do que entendemos como
essencial para desvelar sua forma atual, entendido enquanto processo de
mercadorização. Em suma, buscamos compreender como a capoeira, de mera
atividade de vadios transforma-se, no interior deste tão disputado jogo de
interesses, em uma mercadoria.
A questão a ser respondida portanto é: A compreensão da capoeira
enquanto mercadoria possibilita articulá-la às teorias pedagógicas críticas do
campo da Educação e da Educação Física?
1
Nestes termos, consideramos como objetivo mais geral formular,
partindo da investigação do processo de mercadorização da capoeira, uma
ação superadora, subsidiada pelas proposições pedagógicas 1 das teorias da
Educação e Educação Física, vinculadas ao projeto histórico de sociedade
socialista.
É necessário situar que neste contexto de análise a capoeira deve ser
entendida por uma determinada reflexão pedagógica “Nessa perspectiva de
entendimento, a reflexão pedagógica tem algumas características específicas:
é ‘diagnóstica, judicativa e teleológica’ (Souza, 1987: 178-83)” (COLETIVO DE
AUTORES, 1992, p. 25). São por essas determinações que propomos esse
trabalho numa esfera de relações que estejam em sintonia com a superação do
atual projeto de sociedade.
Dada a relevância do Materialista Histórico Dialético, para analisar,
compreender e explicar a vida social em sua totalidade, este método nos
permite conhecer a realidade em essência, percebendo as mediações
ocorridas entre os fenômenos e suas determinações mais gerais e específicas.
Motivo que buscamos orientação neste método, para compreendermos a
essência do objeto de estudo em questão. Sendo que, nesta perspectiva, a
capoeira é vista como uma manifestação humana que se encontra em total
relação com sua base material.
Para compreender a estrutura da capoeira enquanto mercadoria,
utilizamos como referência os capítulos I, II, III, IV e V de O Capital, de Karl
1
Pensamos que “A teoria pedagógica é a explicação elucidativa sobre o que se entende por
pedagógico e didático para daí se abordar o conhecimento [...] O programa específico, por sua
vez, significa uma dada organização e sistematização do conhecimento selecionado. [...]
(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 23)
2
Marx, a fim de entender o desenvolvimento da mercadoria (forma mercantil 2 )
no seio da sociedade capitalista 3 , compreendendo a capoeira inserida no
contexto histórico social de como o homem produz a vida, em especial o
entendimento da relação da produção dos bens culturais e de mercadorias na
cidade de Salvador nas décadas de 1930 e 1940.
Assim, discutimos as relações do trabalho abstrato e a unidade do valor,
já presentes na capoeira denominada Regional (década de 1930, em Salvador,
Bahia) e Angola (decênio de 1940 da Cidade da Bahia 4 ), que no nosso
entendimento, representam as matrizes para a capoeira na forma capital,
presente nos dias de hoje em todos os Estados da federação e mais 132
paises.
No primeiro capítulo, tratamos das questões de ordem teóricometodológicas. Para tanto, nos fundamentamos nas explicações sobre a
realidade com base no pensamento marxiano. Estas explicações são
originadas por um método que permite extrair propostas para a produção de
conhecimento científico. Sobretudo, um conhecimento científico capaz de
desvelar aparências e mostrar em essência a realidade, em prol de uma
transformação.
No
segundo
capítulo
destacamos
dados
que
nos
levaram
à
compreensão da relação da capoeira com a conjuntura global do capital e seus
2
Forma mercantil é a forma que as relações humanas assumem uma nova forma de produzir e
trocar seus produtos do trabalho útil com outros homens, constituindo pela primeira vez a
unidade interna da mercadoria (valor de uso e valor de troca = valor) e unidade interna do
trabalho (trabalho útil e trabalho abstrato).
3
Sociedade alicerçada na forma capital, forma socialmente construída historicamente partindo
da forma natural de produzir a vida, o trabalho. Trabalho útil gera valor útil, que posteriormente
assume a forma mercantil (M-M) – trabalho abstrato e trabalho útil gerando valor (valor de uso
e valor de troca) e finalmente, a forma do trabalho produtivo, que gera mais valia, a forma
capital(D-M-D’).
4
Cidade de Salvador na forma como os antigos moradores do Estado da Bahia se referiam a
ela nos inicio do século XX.
3
desdobramentos históricos e apresentamos dados sobre a sociedade brasileira
nos períodos das décadas de 1930 e 1940. Neste particular, buscamos
explicitar as matrizes do processo de mercadorização em que se encontra a
capoeira nos dias atuais.
No capítulo terceiro, partindo da contribuição das teorias pedagógicas
críticas do campo da Educação e da Educação Física (COLETIVO DE
AUTORES,
1992),
buscamos
identificar
elementos
da
capoeira
que
possibilitem a construção de uma proposição que atenda os interesses
históricos da classe revolucionária.
A hipótese que defendemos é que através da apreensão do processo de
produção
de
mercadorias
poderemos
explicar
a
capoeira
em
seu
desenvolvimento histórico. Nesta perspectiva, o entendimento da essência da
capoeira propicia a identificação de possibilidades de articulá-la as propostas
pedagógicas ligados aos interesses históricos da classe revolucionária.
Assim, indicamos que, os estudos acerca da temática que tomamos por
base, embora mostrem que a capoeira está subsumida à lógica do capital, ou
seja, dentro de um processo de mercadorização, ainda assim, acreditamos na
possibilidade de encontrar elementos nesta prática social, que associados a
uma teoria pedagógica vinculadas ao projeto socialista, possam servir para
uma proposta de formação humana na capoeira, que ascendam as
consciências de seus praticantes para além do capital.
4
1. MARCO TEÓRICO-METODOLÓGICO
O estudo delineou-se a partir da abordagem do materialismo histórico
dialético. As explicações sobre a realidade no pensamento de Marx, são
direcionadas por um método que nos permite extrair uma proposta para a
produção de conhecimento científico. A sua preocupação consiste em
diferenciar o que aparece enquanto essência ou aparência na realidade, o real
concreto. Michel Löwy explicita o porquê de nossas opções teóricas para o
tratamento desse objeto de estudo.
O marxismo foi o primeiro a colocar o problema do
condicionamento histórico e social do pensamento
e a (desmascarar) as ideologias de classe por
detrás do discurso pretensamente neutro e objetivo
dos economistas e outros cientistas sociais.
(LÖWY, 1994, p.99)
A busca da essência da capoeira, parte do entendimento, de que os
fenômenos constituem-se em movimentos contraditórios, e a capoeiragem 5
não é diferente. A compreensão histórica da origem e desenvolvimento dos
fenômenos permite, por sua vez, o entendimento de totalidade, que os constitui
e por eles é constituída através de suas relações.
Assim, contradição, historicidade e totalidade são categorias essenciais
para a análise da capoeira, pois são categorias metodológicas que articuladas
à categorias empíricas permitem apreender o real concreto, ou seja, apreender
as múltiplas determinações que compõem uma dada formação. Ou, nas
5
Termo utilizado entre os capoeiras para designar a cultura da capoeira compreendida
enquanto complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes e outras
aptidões e hábitos adquiridos pelos capoeiras. Com isso não desconsideramos as
determinações mais gerais que condicionam a vida no modo de produção capitalista.
Neste trabalho utilizaremos os termos: a capoeira, prática social; o capoeira, o praticante da
capoeira; capoeiragem, ambiente social dos capoeiras; capoeirista, praticante de movimentos
de capoeira, sem envolvimento com o ambiente social dos capoeiras.
5
palavras de Andery,
Se o real é em si contraditório e seu eterno
movimento, eterno fazer-se e refazer-se, é dado
por esse movimento de antagonismos, o
pensamento, a ciência devem buscar desvendar
esse movimento que é a chave da compreensão,
seja da economia, da história, de qualquer outra
ciência. Dado que o movimento é a manifestação
da contradição, esta necessita ser desvendada
para que se compreenda o fenômeno, o que
implica compreender seu movimento (ANDERY et
all, 1996, p.410).
Dando continuidade, observemos como Andery, apoiada em Marx, ao
apresentar as ações humanas de forma contraditória, nega o caráter imutável,
pronto e harmônico das relações sociais:
Nessa perspectiva, os fenômenos não existem de
maneira isolada ou simplesmente somados. Os
fenômenos no seu movimento constituem-se a
partir de múltiplas determinações. Desta forma, o
fenômeno faz parte da totalidade, que o direciona,
ao mesmo tempo que este a determina. “No corpo
da sociedade todas as relações coexistem
simultaneamente” (MARX apud ANDERY et al,
1996, p.412).
Assim, tomamos com base no concreto as possibilidades de entender
onde se aplicam as categorias universais e as categorias empíricas
necessárias ao exercício de desvelar o fenômeno da capoeira, estas nos
indicam a melhor forma de enxergar, no limite deste trabalho, as relações que
compreendem o objeto em causa.
[...] a realidade não se apresenta aos homens à
primeira vista, sob o aspecto de um objeto que
cumpre
intuir,
analisar
e
compreender
teoricamente, cujo pólo oposto e complementar
seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que
existe fora do mundo e apartado do mundo [...]
(KOSIK, 2002, p. 13-14)
6
Nesse sentido, Começamos o nosso exercício compreendendo o que é
o capital em essência. Ele é uma relação social, uma contradição em processo,
a valorização do valor, síntese de múltiplas e complexas determinações.
No bojo destes pressupostos decorre o entendimento de que na
sociedade das mercadorias a capoeira na forma mercantil além do valor de uso
passa a ter também ‘valor de troca’ 6 , constituindo uma unidade em contradição,
distanciado-se daquilo que a identifica como produto do trabalho humano. A
realização desse fenômeno é reforçado pelo caráter fetichista construído pelo
arcabouço cultural da capoeira construídos a partir de sua forma mercantil
como: hierarquização (titulação-graduação), caráter pedagógico, potencialidade
de inserção social entre outras.
Destarte, as relações de produção da vida que decorrem da
subordinação do trabalho ao capital perpassam todas as dimensões da vida
humana. Em outras palavras, para entender a capoeira é necessário
compreender a sociedade em que ela foi desenvolvida e suas formas
especificas de desdobramento. Por sua vez, a gênese da sociedade capitalista
se encontra na figura da mercadoria, e não é por acaso que, a capoeira a partir
de determinado momento histórico, assume esse caráter com características
singulares, mas determinada pela forma social do capital.
Consideramos assim que por mais que existam diferenciações pontuais
na forma capitalista brasileira, as leis gerais de produção da vida nesse
6
Uma parte dos componentes internos do valor da mercadoria. Valor de troca é a forma de
expressão do valor, não é particularidade do valor, ou seja, não compõe junto com o valor de
uso a mercadoria, valor de uso e valor de trocas são componentes da mercadoria, mas não do
seu VALOR. Manifestada na sociedade mercantil no momento efêmero da troca entre produtos
do trabalho humano. Nesse caso fazendo alusão a mercadoria dinheiro, que seu ‘valor útil’ é
ser o equivalente geral de outras mercadorias, puro valor de troca.
VALOR é o quantum de tempo socialmente necessário para produzir uma mercadoria, só pode
haver valor se houver mercadoria. Por isso, o entendimento da mercadoria, na sua
concreticidade, é a chave para o entendimento do capital
7
sistema, se aplicam a ela e determinam a cultura produzida em seu interior,
inclusive a prática da capoeira. As mediações entre a forma geral e a forma
capoeira 7 , é a tarefa que nos propomos a realizar.
Nesta direção, as especificidades da conjuntura histórico-espacial que
definem as práticas culturais são desveladas quando apreendemos a essência
de seu movimento, ela nos indica a forma inicial e como historicamente
chegamos a sua estrutura atual. Assim compreendemos, quando afirma Marx
que “[...] Mesmo quando uma sociedade descobriu a pista da lei natural do seu
desenvolvimento, [...] ela não pode saltar nem suprimir por decreto as suas
fases naturais de desenvolvimento [...]” (MARX, 1988, p. 19). Como foram os
70 anos, da década de 1930 até o século XXI, a esteira em que se
desenvolveu a capoeira do Recôncavo Baiano na forma mercantil, em sua
forma capital, enquanto mercadoria inserida no estágio mais avançado da
economia global.
Alguns documentos apresentados para análise estão presentes nos
sítios de internet, que demonstram a adequação dessa manifestação aos
interesses do capital, os principais sítios consultados foram: ABADA-Capoeira 8 ,
Capoeira Brasil 9 , Muzenza 10 , etc.
Destacando essa pequena amostra de detalhes públicos, fica claro que:
o desenvolvimento da capoeira expressa-se tal qual as forças produtivas do
grande capital; a expansão e a organização dos capoeiras atende a lógica
7
Características especificas da capoeira na sociedade capitalistas, sendo apreendida pelas
categorias empíricas do objetos capoeira.
8
www.abadacapoeira.com.br, esse é o endereço do portal, mas existem diversas páginas do
grupo no mundo. Instituição centrada na figura de José Tadeu Cardoso – Mestre Camisa.
9
www.capoeirabrasil.com , portal de Los Angeles, Mestre Boneco – Beto Simas. Nesse caso
existem mais dois Mestres: Paulinho Sabiá – Paulo César da Silva Sousa; Paulão – Paulo
Sales Neto.
10
www.muzenza.com . Site do “Mestre Burguês” – Antonio Carlos Menezes
8
burguesa atual; e, a chave da compreensão da capoeira no seu estágio atual
encontra-se na forma celular da capoeira de 1930.
Neste sentido, Marx nos indica o caminho a ser tomado através da
metáfora do microscópio 11 e dos “reagentes”, que para o trato com o
conhecimento social devem ser substituídos por ferramentas de pensamento.
[...] A forma do valor, cuja figura acabada é a forma
do dinheiro, é muito simples e vazia de conteúdo.
Mesmo assim, o espírito humano tem procurado
fundamentá-la em vão há mais de 2000 anos [...]
Por quê? Porque o corpo desenvolvido é mais fácil
de estudar do que a célula do corpo. [...] (MARX,
1988, p. 17-18)
Assim, gostaríamos de chamar a atenção para uma questão
fundamental relacionada ao nosso esforço por melhor compreender a capoeira
nos anos de 1930 e 1940: o que é capoeira enquanto mercadoria?
Mediante a análise de conteúdo de obras sobre a temática capoeira,
identificamos que os escritos partem daquilo que deveriam explicar, “[...] por
outro lado, teve êxito, ao menos aproximado, a análise de formas muito mais
complicadas e replenas de conteúdo [...]” (MARX, 1988, p. 18), ou seja, do
corpo desenvolvido da capoeira, de modo que chamamos atenção para a
necessidade de melhor compreender a gênese da mesma, em conhecer sua
célula no interior da sociedade de classes.
Nos próximos capítulos, buscamos apresentar uma análise inicial desta
temática, para tanto, nos referenciamos em estudos: da Sociologia Brasileira
Moderna 12 , afim de melhor compreender a composição estrutural histórica do
11
Termo usado por Marx no prefácio da 1ª edição em Alemão “[...] na análise das formas
econômicas não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de
abstrair deve substituir ambos.” (MARX, 1988, p. 18)
12
Termo utilizado por Antonio Candido, no prefácio de Raízes do Brasil, nomeando, assim, a
fase inicial dos estudos científicos brasileiros no campo da sociologia da década de 1930. Mas
centralmente nas obras: Casa Grande Senzala, Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, Sérgio
9
Brasil; da Educação (autores que reivindicam o projeto socialista como
horizonte social); da Educação Física, especificamente, a cultura corporal 13
(COLETIVO DE AUTORES, 1992) e de pesquisadores que versam sobre a
capoeira e trazem mais elementos de análise na compreensão desse
fenômeno.
Buarque de Holanda; Formação do Brasil Contemporâneo; Revolução Burguesa no Brasil,
Florestan Fernandes.
13
Termo desenvolvido no COLETIVO DE AUTORES, que conceitua o movimento humano, que
se consiste na ação reflexiva entre homem e ambiente. A partir desse termo, esse livro traz
para o campo da Educação Física o referencial do Materialismo Histórico Dialético como
método de análise do objeto da Educação Física, no qual aprofundaremos em capítulos
posteriores.
10
2. O PROCESSO DE MERCADORIZAÇÃO DA CAPOEIRA
2.1 – BRASIL: NOVA FORMA PRODUTIVA
Nesta seção realizamos uma breve digressão histórica focada na prática
social da capoeira nas décadas de 30 e 40 do século XX, quando acontecem
as transições estruturais dessa manifestação, a fim de explicitar o que, a nosso
ver, representa a transformação desta de bem cultural, entendida aqui
enquanto prática social cujo produto restringe-se ao seu valor de uso, à
mercadoria, quando, vê-se negado o seu valor de uso a fim de constituir-se
enquanto valor de troca.
Chamamos a atenção que para compreender a ascensão do movimento
da capoeira, partiremos do movimento social que a gerou, a fim de entender as
transições mais gerais da sociedade brasileira, fruto de um capitalismo tardio
situado na periferia do mercado mundial.
De acordo com Fernandes, 2006, podemos identificar como “espírito
revolucionário” no Brasil o rompimento com a lógica estrutural que o
caracterizava desde os tempos de colônia, que só haveria de acontecer no final
do século XIX, na constituição de uma elite nacional com relativa autonomia
nos setores econômicos, capaz de promover as mudanças estruturais que se
concretizariam nos anos 1920 a 1930.
Nesse
sentido
buscamos
evidenciar
o
que
denominamos
de
“coincidências” históricas entre a ascensão social da capoeira e a constituição
do “Estado Burguês brasileiro”.
11
Antes de avançarmos no debate acima citado, gostaríamos de explicitar
a ampla variedade de significações para a acepção sobre capoeira em estudos
anteriores:
São diversas as acepções e proveniências para o
termo “capoeira”. Marinho (1945) é um dos
primeiros autores a reunir os estudos dos principais
dicionaristas em língua portuguesa sobre “capoeira”
até sua época, verificando “uma discordância
quanto à origem da palavra capoeira” e requerendo
esclarecimento
para o
assunto
(p.11-13).
Posteriormente, Rego (1968, p.17) compreende em
seu trabalho mais de trinta significações para
“capoeira” e seus derivados, desde “cesto” de aves
ou “capões” – provindo do Português - até “mato
que foi cortado” - atribuído ao Tupi autóctone,
constatando a divergência presente em Marinho
(1945) sobre a proveniência do vocábulo. Rego
(1968) encontra o registro do vocábulo em Portugal
em 1712 e afirma seu conhecimento em todo
território colonial brasileiro em diversas acepções
(p.25), do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Araújo
(1997, p.76) indica a existência já no século XVI,
tanto no Brasil quanto em Portugal, com pelo
menos cinco significados distintos entre si, sendo
sua acepção principal relacionada ao “local
apropriado para guardar galináceos de capão de
qualquer espécie. (ANNUNCIATO, 2006, p. 7)
A primeira menção oficial à prática de capoeira data de 25 de Abril de
1789, neste contexto a capoeira era vista enquanto prática criminal, de acordo
com Nireu Cavalcante, o registro policial cita a prisão de Adão, pardo, escravo,
acusado de ser “capoeira” (“O Capoeira”, Jornal do Brasil, 15/11/1789, citando
do códice 24, Tribunal da Relação, livro 10, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro).
É mister na história da capoeira dos séculos XVIII e XIX essa relação
entre marginalidade e sua prática, traço que é confirmado por historiadores,
que versam sobre essa temática.
Segundo Soares (1994), a transição da situação social dos capoeiras,
ligados às práticas pouco respeitáveis da sociedade é o que constrói o
argumento de que os capoeiras de outrora, estavam engajados no “mercado de
12
trabalho” como seguranças, leões de chácara e outras funções que utilizavam
das valências “beligerantes” dos capoeiras do século XIX e inicio de XX.
Neste sentido faz-se necessário chamar atenção para as diferenças
entre categorias fundamentais da tradição marxista: força de trabalho, meios de
produção e mercadoria.
O argumento que levantamos é que a capoeira só passa a se estruturar
na forma como conhecemos, graças as transformações sociais desencadeadas
por uma elite com características burguesas 14 Assim, o burguês e a burguesia,
termos tratados com tanto cuidado por Florestan Fernandes, se organizam de
forma a superar as antigas classes dominantes (Igreja e Aristocracia Rural) nos
séculos XIX e XX.
É preciso não se enganar quanto a isso. Assim
como, no século XVIII, a Guerra da Independência
americana tocou o sino de alarme para a classe
média européia, no século XIX a Guerra Civil norteamericana tocou-o para a classe operária européia.
[...] Uma nação deve e pode aprender das outras.
Mesmo quando uma sociedade descobriu a pista
da lei natural do seu desenvolvimento [...] (MARX,
1988, p. 19)
Feito este parêntese, acentuamos que no final do século XIX e início do
século XX a capoeira ainda não se constituía como uma mercadoria, mas,
como uma qualificação que habilitava os capoeiras a ingressarem no mercado
de trabalho. Acreditamos que o período histórico de maior proeminência para
esta expressão do fenômeno ocorre no final do século XIX. Segundo Abreu
(2005, p.10) iniciada pelos, “[...] capoeiras baianos [...] que formaram a tradição
do jogo da capoeira baiana, hoje universalizada como o jogo da capoeira”.
14
A burguesia possui um processo histórico diferenciado no seu aspecto fenomênico, mas as
características essenciais a definem como presentes no Estado nação Brasil pelos espíritos
liberais crescentes nas capitais e nas suas representações sociais como o movimento
abolicionista e republicano defendido pelos políticos liberais
13
Entretanto, a luta pela sobrevivência no novo sistema social atribui
características distintas para capoeira em diferentes locais.
As documentações presentes nos estudos de PIRES (2001) e SOARES
(1994; 2001) nos trazem um panorama carioca da capoeira no Império e
primeira República. No caso da Bahia, ABREU (2003; 2005) trouxe os
elementos dessa manifestação que se apresentava de forma diversa. No caso
de Pernambuco, SILVA (2006, p.44) descreve a capoeira deste período como
prática de valentões: “[...] os capoeiras de Pernambuco mais especificamente
de Recife, [...] ficaram conhecidos como os Brabos”. Apesar de considerarmos
neste estudo as expressões da capoeira nestas três localidades, estamos
cientes de que houve práticas semelhantes em diversas regiões do Brasil.
No Rio de Janeiro do século XIX, os capoeiras assumiram uma
perspectiva mais beligerante e organizativa, como ANNUNCIATO descreve, ao
contrário da Bahia, que trazia aspectos mais lúdicos em sua prática:
Os registros policiais baianos não fazem menção à
“capoeira”. Mesmo a partir do código penal de
1890, o enquadramento legal não se dava pelo
artigo 402, mas, por exemplo, pelo artigo 303 por
“lesões corporais”. Pires (2004, p.161) alude à
“possibilidade de existência de uma intensidade
lúdica maior entre praticantes baianos”, afirmando
que “alguns aspectos lúdicos se revelaram muito
mais pelos indícios orais do que pelos contidos nos
registros jurídicos e policiais” (ANNUNCIATO,
2006, p. 09).
Os registros relativos à prática da capoeira no século XIX, no geral,
referem-se a: prática de valentões, atividade lúdico-recreativa, manifestação
criminal, dentre outras. A explicação sobre este primeiro período histórico, 1888
à 1941, responde, assim, a finalidade de contextualizar o terreno sob o qual se
14
edificaria, a partir da década de 1930, uma nova forma de manifestação da
capoeira.
Nesta direção, iniciamos um segundo momento do debate, neste
buscamos analisar a adaptação da capoeira aos valores sociais burgueses, a
nosso ver, a origem da pseudo-dualidade 15 fundamental da capoeira
mercantil 16 , se origina nas décadas de 1930 e 1940. Neste sentido, articular o
desenvolvimento da capoeira com seus respectivos contextos históricos nos
séculos XIX e XX, na região do Recôncavo Baiano 17 , constitui a chave para o
entendimento da relação da capoeira no mundo capitalista 18 .
2.2 – CAPOEIRA MERCANTIL: BASE DE ANÁLISE DA CAPOEIRA MODERNA
Para compreender melhor essa relação, iniciamos nossa investigação, a
partir da análise sobre a essência da sociedade capitalista, como aludido por
Marx (1988, p. 45): “como uma ‘imensa coleção de mercadorias’ [...]”. O ponto
de partida, neste sentido, será a identificação de um momento histórico em um
lugar específico: a cidade de Salvador da década de 1930. Neste contexto
acentuamos que do encontro entre José Cisnando Lima e Manoel dos Reis
15
Essa expressão por nós cunhada, representa o restrito espaço das perspectivas de mercado,
presentes na manifestação da Luta Regional Baiana e no Centro Esportivo de Capoeira Angola
(posteriormente definidas nesse trabalho), as duas máximas referências de trato comercial do
ritual da capoeira.
16
Essa expressão por nós cunhada, representa o restrito espaço das perspectivas de mercado,
presentes na manifestação da Luta Regional Baiana e no Centro Esportivo de Capoeira Angola
(posteriormente definidas nesse trabalho), as duas máximas referências de trato comercial do
ritual da capoeira.
17
Cabe aqui uma ressalva. Segundo Florestan Fernandes, o Brasil viveu um capitalismo
específico de periferia do mercado mundial, assumindo características do modo de produção
agrária de monocultura extrativista. Isso reflete toda composição social da Bahia até meados
do século XX, onde se inicia, pelo menos nas capitais brasileiras, uma urbanização burguesa
aos moldes europeus do século XIX.
18
Mesmo que de forma atrasada, o Brasil possui uma aceleração em pólos industriais para se
alinhar a concorrência mundial e entrar não como produtor de matérias primas, mas como
produtor de mercadorias industriais.
15
Machado surge os elementos essenciais para a mundialização dessa
manifestação sete décadas depois.
Alguns esclarecimentos sobre essas duas personalidades se fazem
necessários. Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba, a maior personalidade
da capoeira moderna 19 . O nome mais festejado da historia da capoeira de
todos os tempos. José Cisnando Lima é o responsável pela formação da
primeira turma de capoeira composta por estudantes de medicina, além de ter
dado uma nova forma a elementos tradicionais da capoeira. O detalhe é que
eram quase todos cearenses, incluindo ele. Naquela época a Faculdade de
Medicina da Bahia (primeira do Brasil) era uma referência nacional, em ensino
superior, onde estudavam os filhos da elite do Nordeste do Brasil.
As referências consultadas sobre a história da capoeira 20 coincidem em
relação à importância desse encontro. Acreditamos que esta passagem
histórica representa a crisálida da expansão da capoeira quatro decênios após
a década de 30, do século passado, ademais, corresponde ao dado histórico
sobre capoeira mais documentado até os dias atuais.
Note a interpretação dada ao encontro pelo aluno mais velho do mestre
Bimba, ainda vivo, Dr. Decânio, “Cisnando trazia no bolso uma senha... [sic] o
acesso ao Palácio e ao Interventor da Bahia, o Ten. Juracy Magalhães”
(DECÂNIO FILHO, 1996-B). A citação reflete a importância desse momento
que, em suma, possibilitou: a permissão oficial da prática da Luta Regional
Baiana, do registro oficial do Centro de Cultura Física Regional e do título de
professor de Educação Física a Manoel dos Reis Machado.
19
Termo designado à prática da capoeira que se inicia nos anos 1930 até os dias atuais.
DECÂNIO FILHO (1996-A; 1996-B), ABREU (1999), VIERA (1990), ALMEIDA (1982) e
outros.
20
16
O mundo na década de 1930, já havia passado por uma revolução
socialista, uma guerra mundial e pela expansão do mercado mundial de forma
gigantesca, dadas as contribuições do modelo taylorista-fordista 21 de produção.
A necessidade de novos mercados obrigavam as políticas internacionais a
apoiar, em várias esferas de influência, progressos em países 22 que vivem a
margem do mercado.
No bojo destas transformações, Juracy Magalhães 23 , aos 26 anos
assume o cargo de interventor do Estado da Bahia, contrariando a tradicional
elite baiana. Iniciando ações políticas que romperam com a lógica das elites
agrárias ligadas ao passado do ciclo do açúcar e tabaco, responsáveis pela
institucionalização da prática da capoeira.
Assim, a emergência da capoeira enquanto uma prática oficializada
apresenta-se em um cenário de ampla efervescência política e cultural. A
oficialização da capoeira, no bojo das reivindicações estéticas da Semana de
21
Modo de organização da produção no início do século XX, onde Taylor sistematiza os
métodos de produção fabril. Ele consegue, mediante o estudo científico dos gestos dos
trabalhadores, um grau elevado de controle sobre seus movimentos. Acontece a divisão
exacerbada dos momentos da produção, levando a implementação das linhas de montagem,
que permitem diminuir o tempo de produção de mercadorias. Esse modelo teve finalidade de
construir bens de consumo, como automóveis, a preços muito mais baixos e elevando os
salários de seus funcionários, possibilitando o consumo em larga escala de seus produtos.
22
O que os pensadores marxianos chamam de inicio da tranformação do capitalismo
dependente
23
Juracy Magalhães, natural do Ceará (outra coincidência?), representante do movimento
Tenentista*1, insere-se neste contexto, pela via do Estado populista*2 da era Vargas*3.
*1
– Movimento dentro das forças armadas brasileiras, liderada por jovens oficiais, que desejava
o fim da política do café com leite e sintonizava com idéias democráticas de influência liberal,
pregadas por Vargas nos anos de 1930.
*2
– Historicamente, no entanto, o termo populismo acabou por ser identificado com certos
fenômenos políticos típicos da América Latina, principalmente a partir dos anos 1930, estando
associado à industrialização, à urbanização e à dissolução das estruturas políticas oligárquicas
em que o poder político encontra-se firmemente na mão de aristocracias rurais.
*3
– Um mecanismo de integração das massas populares à vida política, mas realizou tal
incorporação de forma “subordinada”, colocando a figura de um líder carismático e autoritário
como interlocutor entre as massas e o aparelho de Estado, favorecendo o desenvolvimento
econômico e social, mas dentro de uma moldura estritamente burguesa.
17
Arte Moderna de 22 24 , respondia, neste contexto, a necessidade do Estado
Getulista para a construção de uma política pautada no nacionalismo.
Neste contexto, o Estado brasileiro apresentava-se em transição de uma
elite aristocrática de influência Ibérica 25 , de base econômica agrária, a uma
elite industrial burguesa, com uma identidade construída à luz de países como
França,
Inglaterra
e
Estados
Unidos.
Vejamos
como
Marx
trata
o
desenvolvimento tardio no interior do ciclo de desenvolvimento econômico
mundial:
[...] não se trata do grau mais elevado ou mais
baixo de desenvolvimento dos antagonismos
sociais que decorrem das leis naturais da produção
capitalista. [...] dessas tendências que atuam e se
impõem com necessidade férrea. O país
industrialmente mais desenvolvido mostra ao
menos desenvolvido tão somente a imagem do
próprio futuro (MARX, 1988, p. 18).
Essa assertiva é situada no Brasil por Florestan Fernandes, quando
afirma a vulgaridade da utilização do termo burguesia, situando no tempo
econômico com relação à conjuntura da revolução burguesa no Brasil:
[...] existe ou não uma "Revolução Burguesa" no
Brasil? Há uma tendência, bastante forte e
generalizada, no sentido de negá-la, como se
admiti-la implicasse pensar a história brasileira
segundo esquemas repetitivos da história de outros
povos, em particular da Europa moderna. A questão
estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse
que a história do Brasil teria de ser uma repetição
deformada e anacrônica da história daqueles
povos. Mas não se trata disso. Trata-se, ao
contrário, de determinar como se processou a
absorção de um padrão estrutural e dinâmico de
organização da economia, da sociedade e da
24
Semana que inaugura a fase modernista dos artistas brasileiros (mais restrito a capital do
Estado de São Paulo, centro econômico do país), rompendo com os padrões estéticos
importados da Europa.
25
Termo com o que HOLANDA (1995), refere-se a Espanha e Portugal, que possuem
semelhanças em suas composições sociais e como expandiram sua cultura para as suas
colônias americanas.
18
cultura. Sem a universalização do trabalho
assalariado e a expansão da ordem social
competitiva, como iríamos organizar uma economia
de mercado de bases monetárias e capitalistas? É
dessa perspectiva que o "burguês" e a "Revolução
Burguesa" aparecem no horizonte da análise
sociológica. Não tivemos todo o passado da Europa
mas reproduzimos de forma peculiar o seu passado
recente, pois este era parte do próprio processo de
implantação e desenvolvimento da civilização
ocidental moderna no Brasil. Falar em Revolução
Burguesa, nesse sentido, consiste em procurar os
agentes humanos das grandes transformações
histórico-sociais
que
estão
por
trás
da
desagregação do regime escravocrata-senhorial e
da formação de uma sociedade de classes no Brasil
(FERNANDES, 2006, p. 37).
Neste contexto, buscava-se nas manifestações populares, a exemplo da
capoeira, as referências para uma construção forçosa e muitas vezes
equivocada de conceitos relacionados a elementos da cultura corporal 26 :
esporte 27 , ginástica 28 , arte marcial 29 , etc. Esses equívocos conceituais, que
ainda povoam o senso comum e alguns escritos, deram a base do
entendimento da prática da capoeira. Enquanto luta 30 , forma de sua gênese,
seus elementos podem ser associados a diversos seguimentos que a
potencializam enquanto: jogo (esporte), ginástica, e elementos que traduzem a
forma como os homens se relacionam no momento histórico e na forma
comercial destes aspectos citados. Acentuamos, assim, que a amplitude de
26
Termo desenvolvido no coletivo de autores de 1992 para designar ação corporal humana,
ação consciente de transformação da natureza, transformando-se simultaneamente.
27
Segundo Bracht, 2003, esporte é a fase avançada do jogo, que assume características
espetacularizantes e generalizantes, traduzido por regras, expansão e seleção. Todo esporte é
jogo, mas nem todo jogo é esporte.
28
Segundo Langlade & Langlade (1970), o termo significa “exercitar o corpo nu” (gimnus).
Prática surgida na Grécia Antiga (mais específico na Cidade-Estado Atenas), numa sociedade
escravista e tinha o sentido da exercitar do corpo, com o objetivo do mantê-lo belo e prepará-lo
para as atividades de guerra. Por conta da divisão social do trabalho, os gregos atenienses
tinham longos períodos de ócio
29
As Artes Marciais – em homenagem ao deus da mitologia greaco-romana (Marte – Ares) –
são técnicas e práticas de combate militares, desenvolvidas para guerra (luta com sentido da
guerra). Toda arte marcial é luta, mas nem toda luta é arte marcial. Nesse caso são lutas
desenvolvidas para essa finalidade no corpo militar: pugilato (boxe), esgrima, entre outras.
30
Luta é caracterizada pela idéia agonista, de sobrepujar o outro (física, ideológica, política
entre outras formas de luta).
19
usos para a capoeira demonstra sua capacidade enquanto elemento da cultura
corporal, de ser explorada em diversas formas e espaços ideológicos.
Note. A idéia de Estado nacional, segundo Chauí, é desenvolvida pelo
movimento do Romantismo, “[...] Em outras palavras, com o Romantismo
surgiram as idéias de arte popular e cultura popular como manifestações da
tradição ou espírito de um povo [...] (CHAUÍ, 2003, p. 288). No Brasil esse
movimento encontra nos índios a inspiração que precisava, só incluindo os
negros na terceira fase do Romantismo brasileiro, Castro Alves (Condor) 31 ,
poeta abolicionista (político liberal), utiliza a figura do negro, enquanto escravo,
como tema de seus poemas.
Portanto, somente no Modernismo evidencia-se um modo de vida
representativo da identidade da nação brasileira, visto que os intelectuais
brasileiros, à moda dos “Intelectuais e artistas europeus consideravam que a
nacionalidade constituíra o espírito de um povo, o qual se exprimia na língua,
nos costumes, na religião, nas artes e nas tradições nacionais” (Idem, ibidem,
p. 288).
É mister notar que essa idéia de representação de brasilidade
acompanha a capoeira desde antes de sua inserção na sociedade civil, nos
meados da década de 30, do século passado, até os dias de hoje.
[...] essa corrente artística coincide com uma
situação histórico [sic] determinada, qual seja, a
consolidação e o fortalecimento dos Estados
nacionais, que passaram a ser definidos pela
unidade de língua e religião e pela unidade
territorial ou política. Surge a idéia política de nação
e, com ela, o fenômeno do nacionalismo (ibidem, p.
288)
31
Alusão a 3ª geração do Romantismo brasileiro, chamado de condoreirismo. Destaca-se
Castro Alves por uma posição política liberal, em favor do fim da escravidão
20
Mas como, neste contexto, a capoeira se transforma em mercadoria 32 ?
E ainda: Qual era a necessidade do Mestre Bimba, e dos estudantes de
medicina no decênio de 1930? Inicialmente consideramos que a capoeira se
constitui como elemento da cultura corporal do ambiente da classe proletária,
que assume a lógica social (capital) da Cidade da Bahia 33 do inicio do século
XX. Na próxima questão damos continuidade a análise.
2.3 – INSERÇÃO DO ‘CAPOEIRA’ NA SOCIEDADE DE CLASSES 34
Percebam, após a abolição da escravidão (13 de maio de 1888) as
frentes de trabalho menos qualificadas passam a ser ocupadas pelos exescravos, dada às novas condições das forças produtivas e nível técnico que
eram necessários para outros postos. Neste contexto, os capoeiras eram
absorvidos no mercado de trabalho por uma qualificação beligerante,
característica dos praticantes desse momento histórico.
A escola, por sua vez, era um privilégio para um segmento muito restrito
da sociedade, no qual, certamente, não estavam incluídos os ex escravos. A
capoeira, nesse contexto, apresenta-se como um instrumento a serviço dos
Aparelhos Repressores do Estado, da Burguesia e da Aristocracia.
A força de trabalho 35 do leão de chácara ou do malandro do cais do
porto que constituíram a capoeira dos anos 10, 20 e 30 do século XX no
Recôncavo Baiano, ainda não se realiza sob a forma ritual da capoeira. Marx,
32
“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas
propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie.” (MARX, 1988, p. 45).
33
Termo utilizado por Antonio Risério, 2003, para designar como os mais antigos chamavam a
cidade de Salvador, ainda alcançando no interior por esse mesmo termo.
34
Utilizamos esse subtítulo fazendo uma alusão ao livro do Florestan Fernandes, intitulado A
inclusão do Negro na sociedade de Classes.
35
Em O Capital, Marx define a força de trabalho como um dos elementos mais importantes da
forma capital, D-M-D’, que é conseguido pela forma da mais valia. Trabalho produtor de maisvalor.
21
(1988) no capítulo I – A Mercadoria – nos mostra que a forma social da força
de trabalho depende de sua relação e forma com os donos da propriedade
privada.
A capoeira assumirá o seu valor mercantil, quando o Mestre Bimba e
seus alunos instituem a capoeira enquanto um conhecimento a ser comprado
sob a materialização da “luta” 36 . Valor de uso para os alunos e valor de troca
para o Mestre Bimba.
Vejam. A capoeira em seu conjunto de valores constitui um arcabouço
gestual, que do nosso ponto de vista, se constrói através das relações dos
capoeiras. Partindo dos escritos de Abreu (2003 e 2005), a introdução de
instrumentos musicais (berimbaus e outros instrumentos percussivos 37 ),
normas e regras de jogo, foram introduzidos no final do século XIX e começo
do século XX, o que indica essa enorme divergência entre as estruturas e
lógicas das rodas de diferentes espaços. Como é possível constatar através
dos Relatórios Técnicos Científicos (2002, 2003-A e 2003-B) da disciplina
Ensino e Pesquisa na Roda de Capoeira (Atividade Curricular em Comunidade
– EDC 464).
Essa relação é desenvolvida principalmente no processo de ensinoaprendizagem, elemento notoriamente privilegiado no mundo dos capoeiras. E
é sob esse signo de um conhecimento materializado em luta, que a capoeira
encontra na contradição interna entre produção e consumo sua forma de
mercadoria.
36
Luta que por relações sociais que a determina, assume o caráter de jogo, um jogo que se
estrutura pela luta com finalidades lúdicas.
37
A introdução de instrumentos como atabaque só acontecem nos anos de 1940 e 1950, o
Mestre Canjiquinha (Washigton Bruno da Silva – 1925-1994) em Rêgo (1968) introduz o
instrumento por conta dos shows folclóricos. Mestre Bimba considerava um instrumento
sagrado, por isso não o colocava no seu ritual da Regional.
22
Assim, a capoeira se constitui enquanto mercadoria quando passa a ter
possibilidade de troca. O Capoeira deve possuir alguma coisa para ser trocada,
seu conhecimento materializado no ensino-aprendizagem da capoeira, passa a
ter valor de uso para os que vão consumi-la. Esse valor de uso consiste, nesse
momento histórico, em apreensão de um bem cultural em forma de luta-ritual, a
única genuinamente brasileira 38
Por sua vez, a capoeira passa a ter valor, quando suas relações são
regidas pelos desígnios do desejo da troca. A vontade daquele que consome
institui os movimentos mais ligados a uma estética herdada da ginástica militar,
o sistema de ensino se adapta, nestes termos, a lógica capital 39 . A
necessidade de legitimação da capoeira frente às instituições escolares de
educação; educação física surge na exigência de métodos ginásticos
sistematizados; apoiados nas ciências naturais, especialmente médicas, a fim
de atribuir um caráter de cientificidade as práticas da capoeira; no horizonte
das necessidades mais gerais a que estavam submetidas as práticas corporais:
formar o novo trabalhador, organizado, respeitando a hierarquia da fábrica,
refletindo os mesmo padrões de patentes militares.
Em outras palavras, a capoeira precisava se adequar às normas sociais,
incorporando assim, via instituições militares, do positivismo, a idéia de ordem
e progresso. No bojo dessas transformações acentuamos que um dos
elementos mais significativos da época é que as atividades da capoeira
passaram a ser executadas em ambientes fechados e em horários pré38
Argumento utilizado com muita freqüência nas literaturas que endossam as idéias de estado
nação brasileiro, que desde o inicio do século XX, conclamam a capoeira como: método de
ginástica nacional, luta genuinamente brasileira, prática ludo-revreativa do ‘povo brasileiro’
entre outras. O que está longe daquilo que defendemos como cultura humana universal.
39
As oito seqüências do Mestre Bimba do ensino da Luta Regional. Subdivididas com o
objetivo de aprendizado do movimento em períodos mais curtos (produção), 6 meses e
completo domínio da seqüência de ensino
23
determinados. Essa forma de organização do trato com a capoeira é, então,
difundida para resto do Brasil e na atualidade, nos mais de 132 países em que
se pratica capoeira, como nos mostram os dados organizados por (FALCÃO,
2004).
Isso tudo não seria possível sem que o valor de uso da capoeira fosse
socialmente reconhecido nas décadas de 1920 e 1930.
A forma capital 40 da capoeira se inicia na ruptura interna entre seu valor
de uso (cultura corporal socialmente construída pela classe trabalhadora) e o
valor de troca (mercadoria socialmente vendida como objeto da indústria
cultural de massa).
Vejam como isso ilustra o momento dos Estudantes de medicina e sua
relação mercantil com o Mestre Bimba, o que evidência, em nossa opinião, a
necessidade dos estudantes de se relacionar com a capoeira como um “[...]
objeto de consumo” (MARX, 1988, p. 45) ao se apropriarem de uma prática da
capoeira, enquanto atividade formal, na esfera da circulação de mercadorias, já
eivada de uma áurea mística, ela se apresentava como produto que para ser
consumido pelos alunos, via-se negado de seu valor de uso pelo seu produtor,
“[...] Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer
que seja a forma social desta. [...]” (MARX, 1988, p. 45).
A necessidade do Mestre Bimba, por sua vez, era o que Marx denomina
“[...] meio de subsistência” (MARX, 1988, p. 45), necessitava, em outras
palavras, trocar o produto da sua força de trabalho por outras mercadorias, ali
materializada enquanto um conhecimento prático da ‘Luta Regional Baiana’.
40
Segundo os estudos sobre O Capital, a forma capital é Dinheiro – Mercadoria – mais
Dinheiro (D-M-D’), construindo a formula síntese do capitalismo. A estrutura ampliada pela mais
valia.
24
Por sua vez, surgia em 23 de fevereiro de 1941 (DECÂNIO FILHO,
1996-B), um pólo de aglutinação dos tradicionais capoeiras 41 que se
colocavam em oposição ao movimento da ‘Regional Baiana’. Com o apoio dos
intelectuais e algumas figuras de força política, Vicente Ferreira Pastinha,
Mestre Pastinha, inaugura o Centro Esportivo de Capoeira Angola 42 da mesma
forma que a Regional, assume elementos como: uniformes, sistema de ensino
formal, etc. Pastinha, e seus alunos outorgavam os guardiões das tradições da
capoeira, ou melhor, os donos da tradição 43 .
Assim – tanto no movimento da Regional Baiana, quanto no Centro
Esportivo Angola – eram necessárias transformações na forma da capoeira
para ela ter valor 44 , ser socialmente reconhecida, mas quando subsumida a
relação da mercadoria ocorre um distanciamento daquele que a produz, ou
seja, um estranhamento do homem com produto de seu trabalho.
Só podemos encontrar a forma capital, se analisarmos a capoeira a
partir da forma mercantil, ou seja, para produzir mais valor, ela teria que
produzir valor, e só existe valor se existir valor útil fruto de trabalho concreto.
Daí a importância do nosso trabalho.
Nos parágrafos anteriores tratamos de elementos, mesmo que de forma
inicial, em que buscamos explicar a capoeira em seu desenvolvimento
41
Após as alterações da prática da capoeira realizadas pêlo grupo de Mestre Bimba, por uma
relação de antagonismo, surge o grupo dos praticantes que defendem a tradição da capoeira
42
Os termos utilizados para denominação da manifestação dessa escola de capoeira, são a
clara expressão de: Esporte numa conceituação equivocada de jogo; Capoeira como prática
permitida legalmente; e Angola como referencia a uma africanidade, que está ligado a uma
ancestralidade dos escravos vindos nos séculos XVI à XVIII denominados Bantos, segundo
Risério (2004, pp. 158-171)
43
Trataremos desse conceito em trabalhos que desdobraram o conceito de cultura, tratados
por EAGLETON (2005) e AHMAD (1999-A, 1999-B e 2002).
44
A Forma mercantil de produção. Trabalho abstrato é o componente do valor, ou seja,
quantidade de horas de gelatina de trabalho [uma abstração para equalizar os diversos tipos de
trabalhos (qualitativamente e quantitativamente diferentes) possibilitando a troca] a unidade do
valor é “hora de trabalho”.
25
histórico, propiciando a identificação de possibilidades de articulá-la a uma
proposta pedagógica socialista.
A Regional e a Angola construíram no espaço da capoeira, metodologias
eivadas de elementos que dizem mais respeito a lógica burguesa, do que a
lógica do trabalhador. Mestre Bimba considerava essa ação como uma
evolução, tirando a capoeira “[...] debaixo da pata do boi [...]” (BIMBA, apud
DECÂNIO FILHO, 1996-B).
Dedicaremos a próxima seção à identificação de elementos da capoeira
que permitam articulá-la a uma proposta pedagógica socialista, com base
teórica no Materialismo Histórico Dialético. Faremos tal abordagem inicialmente
a partir dos apontamentos de alguns estudiosos da perspectiva da teoria crítico
superadora,
que
indicam
procedimentos
metodológicos
no
trato
do
conhecimento da cultura corporal, em específico da capoeira.
26
3. CAPOEIRA E EDUCAÇÃO
Nesse capítulo a referência principal da análise é a organização do
trabalho pedagógico e sua relação com a capoeira. Concebemos como
trabalho pedagógico a organização global do trabalho humano. Utilizamos o
termo organização do trabalho pedagógico como exemplo ilustrativo da
institucionalização pela qual a capoeira vem passando, ademais, expressa
nossa preocupação com o que aponta FALCÃO (1996), ABIB (2004) e REIS
(2000) sobre a inserção da cultura popular na escola, mais especificamente, a
capoeira na escola capitalista.
As transformações da capoeira, em particular, no que se refere à
mudança de bem cultural à bem de consumo, tem como cerne a relação
pedagógica. A necessidade de adaptação a lógica de mercado, por sua vez,
traz para esse universo questões tais como: alterações nas relações de poder:
mestre – aluno, grupo de capoeira, comunidade da capoeira e, reforço do
fetiche da graduação – titulação, associado a lógica da hierarquia militar, como
ilustrado por Annunciato, 2006 e Silva, 2006.
As práticas docentes da capoeira na atualidade refletem a grande
influência da Educação Física Militar e Tecnicista.
No Brasil, especificamente nas quatro primeiras
décadas do século XX, foi marcante no sistema
educacional a influência dos Métodos Ginásticos e
da Instituição Militar. Ressalta-se que o auge da
militarização da escola corresponde à execução do
projeto de sociedade idealizado pela ditadura do
Estado Novo. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.
53).
Aulas subdivididas em aquecimento, alongamento, exercícios específicos
de ginástica, demonstram a concepção de ensino predominante na área, e
27
possivelmente suas tendências. Este foi um processo iniciado na capoeira com
Mestre Bimba, difundido e ampliado nos anos de 1960 e 1970, nas grandes
metrópoles nacionais, em que as necessidades de expansão e disseminação
pelos grandes grupos do Brasil 45 adequaram-se ao modelo burguês de
sociedade, assumindo características de grandes corporações capitalistas.
Esse referencial também é responsável, em grande parte pela expansão da
capoeira no mundo.
A necessidade da crítica radical, como postura intelectual, emana,
nessas condições, do reconhecimento da impossibilidade de uma mudança
estrutural na capoeira, sem o enfrentamento das contradições reais sob as
quais se materializam os problemas da educação/capoeira, isto por que, o
trabalho pedagógico é uma prática que não existe isoladamente da prática
social coletiva, consequentemente as formas que o trabalho pedagógico
assume na capoeira têm íntima relação com as formas de organização social.
É preciso que cada educador tenha bem claro: qual
o projeto de sociedade e de homem que persegue?
Quais os interesses de classe que defende? Quais
os valores, a ética e a moral que elege para
consolidar através de sua prática? Como articula
suas aulas com este projeto maior de homem e de
sociedade? (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.
26)
A concepção de capoeira que iremos adotar nesta análise relaciona-se
com a perspectiva difundida na obra do Coletivo de Autores(1992).
O conceito de cultura corporal, segundo o Coletivo de Autores (1992),
tem como base a história das atividades corporais, buscando desenvolver uma
reflexão pedagógica, a partir da compreensão de que o ser humano, conceito
45
Grandes organizações de capoeira iniciada nos anos 1960 e 1970 que a partir da forma
mercantil, constroem nos anos subseqüentes as relações de adequação da capoeira ao
modelo capital expansionista transnacional.
28
ontológico, produz, materialmente, sua existência pelo trabalho, considerando
esse elemento como exclusivo da ação 46 humana e pelas condições
econômicas que o caracterizam, que lhe dão sentido, sob condições
determinadas.
Neste contexto, as atividades da cultura corporal, em especifico a
capoeira, desenvolveram-se a partir das atividades produtivas inerentes a
existência humana, inseridas assim, nos processos de produção e das relações
de classes sociais decorrentes.
Visto sob esse prisma, o acúmulo de conhecimento, acerca da capoeira,
foi historicamente construído e produzido socialmente.
A visão de historicidade possibilita uma outra lógica para o trato com os
conhecimentos da cultura corporal, pois permite compreender os elementos,
neste caso os elementos da capoeira, como fruto da ação humana, na relação
com a natureza e entre os próprios seres humanos, entendendo-os enquanto
sujeitos históricos e sociais, capazes de interferir, tanto no plano individual,
quanto no plano social, caracterizando o conhecimento humano como produto
da sua ação.
Assim, a capoeira é produto da atividade humana, cujas categorias,
princípios e leis emergem da interação do lógico e do histórico, do meio social,
econômico, político e nos embates gerados pelos diferentes interesses de
classes sociais decorrentes.
Neste sentido, como vimos, o desenvolvimento da capoeira ocorreu no
seio da luta de classes. E na sociedade capitalista, os interesses da classe
detentora da força de trabalho são diferentes e antagônicos da classe
46
Ação consciente de intervenção no espaço que o circunda, alterando, articulando e
projetando ações futuras, que diferencia o homem de qualquer outra atividade existente na
natureza – aptidão física? Prática corporal?
29
proprietária dos meios de produção, expressando a necessidade de “uma ação
prática, no sentido de transformar a sociedade de forma que os trabalhadores
possam usufruir do resultado do seu trabalho” (COLETIVO DE AUTORES,
1992 p. 24), consequentemente, usufruir dos elementos da cultura corporal
produzida pela humanidade, que são conhecimentos que ligam o homem ao
que lhe é mais essencial, sua corporalidade, sua existência.
Os fundamentos do referencial marxista de educação tem como
principais elementos: consciência e a formação multilateral e politécnica do
homem e a unidade entre atividade e a inserção da educação na prática social.
Dando continuidade à analise dos fundamentos observamos que o
conceito de trabalho na educação construído e defendido por Demerval Saviani
tem como pressupostos que “A natureza humana não é dada ao homem, mas
é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. [...] (ibid, 2005, p. 7),
assumindo assim o principio da ação transformadora do trabalho.
Desta forma, considerado o fato de que o trabalho está ligado
diretamente a todas as formas de produzir a vida, a educação, a educação
física (cultura corporal) e a capoeira se sustenta mediante a relação dos
homens com outros homens (sociedade) e com a natureza. Assim, destacamos
que o trabalho na forma capital ou na forma mercantil carrega em essência a
forma “trabalho útil” transformadora da natureza.
Temos consciência que na sociedade em que acontece a luta de classes
(mercantil – nobreza, clero, servos e escravos, capital – burgueses e
proletários) as contradições se expressam em todas as esferas, na capoeira
não poderia ser diferente, defendemos, pois, referenciados em Gadotti seu
elemento revolucionário:
30
Se, amanhã uma educação transformadora for
possível é porque, hoje, no interior de uma
educação conservadora, os elementos de uma
educação, de uma outra educação, libertadora,
formam-se dentro dessa educação. (GADOTTI,
2004, p.77)
Nesse sentido, dando continuidade a citação de Gadotti, afirmamos que:
como vimos é verdade que não será a educação, quiçá a capoeira, que
possibilitará à superação da ordem atual, ou seja, que a superação do projeto
histórico capitalista não se decidirá com o advento da capoeira como veículo de
superação, entretanto, estamos convencidos da importância de sua vinculação
como mecanismo de luta, no campo da disputa, da valorização da capoeira
como mais uma possibilidade de formação das classes populares.
É preciso que cada educador tenha bem claro: qual
o projeto de sociedade e de homem que persegue?
Quais os interesses de classe que defende? Quais
os valores, a ética e a moral que elege para
consolidar através de sua prática? Como articula
suas aulas com este projeto maior de homem e de
sociedade? (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.
26)
Na citação acima, dizemos ‘SIM’ a todas as questões. Dar as costas a
uma manifestação que é considerada crime, pelo código penal dos Estados
Unidos do Brasil de 1890, e que se transformou, tornando-se hoje em uma
atividade praticada oficialmente em quase todos os países do mundo. É negar
o conhecimento produzido pelos trabalhadores.
Se tomarmos as informações fornecidas pelo presidente
da Confederação Brasileira de Capoeira (CBC), Sérgio
Luiz de Souza Vieira, a capoeira começa o novo milênio
com presença comprovada em 132 países. Se tomarmos
apenas a referência esportiva, ainda que haja mudanças
freqüentes, o fato é que existem hoje no Brasil, 78 Ligas
Regionais e Municipais, 24 Federações Estaduais, 01
Confederação Brasileira, 01 Associação Brasileira de
Árbitros, 01 Associação Brasileira de Capoeira Especial
e Adaptada. No âmbito internacional existe a Federação
Internacional de Capoeira (FICA), que coordena os
trabalhos das Federações Nacionais de Capoeira
31
existentes no Canadá, Portugal, Argentina, França, além
da Confederação Brasileira de Capoeira. A FICA está
organizando também Federações Nacionais nos EUA,
Espanha, Noruega, Japão, Israel, Colômbia, Inglaterra,
Bélgica, Singapura, Estônia, Rússia, Alemanha, Itália e
Suíça (FALCÃO, 2004, p. 03)
Dando continuidade:
No Brasil, a partir da década de 1970, a capoeira vem
sendo disseminada no contexto educacional, desde o
ensino fundamental até as universidades, tanto públicas
quanto particulares. Nesse complexo movimento, às
vezes como disciplina curricular, às vezes como projeto
de extensão, ou simplesmente como atividade
extraclasse, ela vem despertando interesse jamais
verificado anteriormente, por parte da comunidade
educacional institucionalizada. Nos últimos anos, ela tem
encontrado, nas universidades, um ambiente fértil para
se disseminar e tem sido bastante utilizada como objeto
de pesquisa pelas mais diversas áreas do conhecimento.
Ademais, já se encontra presente, na condição de
componente curricular, em cerca de vinte universidades
brasileiras, dentre elas, Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Universidade de São Paulo (USP), Universidade de
Brasília (UnB), Universidade Gama Filho (UGF),
Universidade
Católica
de
Salvador
(UCSAL),
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
(FALCÃO, 2004, p. 05)
Com esses dados, Falcão destaca a relevância de estudos que
exploram esse tema, numa perspectiva diferenciada, a partir de marcos
teóricos que nos permitam apreender esse movimento, explicando-o de forma
que possa ser apropriado pelos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil e do
mundo.
Dada à importância da Escola do Trabalho, buscamos nos referenciar
nos seus pressupostos, em prol de uma educação em sintonia com a
transformação ideológica da forma produtiva capitalista.
O contexto histórico em que se edifica o pensamento de Pistrak é o da
ascensão das massas na Revolução Russa (1917), o que chamaremos de
32
experiência do socialismo real. Nessa circunstância, a pedagogia dos oratórios
associada ao ‘Antigo Regime’, passava a ser inadequada ao novo momento
histórico.
A Revolução de 1917 47 ao criar novas relações entre os homens,
exigia deles novas posturas (formação de homens e mulheres vinculados ao
presente, desalienados, cuja base do bem comum superasse o individualismo
e o egoísmo), daí a importância da renovação dos métodos de ensino. Fazia-se
necessário superar as formas de educação tradicional em direção a uma teoria
pedagógica revolucionária, sem a qual, não seria possível uma prática
pedagógica revolucionária.
Ao abordar esta problemática, PISTRAK (2003) nos diz que:
A essência destes objetivos é a formação de um
homem que se considere como membro da
coletividade internacional constituída pela classe
operária em luta contra o regime agonizante e por
uma vida nova, por um novo regime social em que
as classes sociais não existam mais. Em termos
mais concretos, é preciso que a nova geração
compreenda em primeiro lugar, qual é a natureza
da luta travada atualmente pela humanidade; em
segundo lugar, qual o espaço ocupado pela classe
explorada nesta luta; em terceiro lugar, qual o
espaço que deve ser ocupado por cada
adolescente; e, finalmente, é que cada um saiba,
em seus respectivos espaços, travar a luta pela
destruição das formas inúteis, substituindo-as por
um novo edifício.(Ibidem, p.31)
E complementa:
A educação comunista deve orientar a escola em
função destes objetivos colocando-os na base do
seu trabalho pedagógico. (Ibidem, p. 31)
47
Estamos aqui, nos referindo a revolução de outubro de 1917, conhecida como revolução
Bolchevik. Esta ocorreu após a revolução de fevereiro do mesmo ano
33
Buscamos com a análise da experiência da escola Lepechinsky
compreender Pistrak como um educador vinculado às classes populares,
enquanto pensador revolucionário e militante em seu próprio tempo.
Para efeito dessa interlocução destacaremos sinteticamente, sob a
forma de proposições, os fundamentos da escola do trabalho e assim faremos
as devidas alusões ao movimento da capoeira:
1.
Pensar e fazer uma escola que seja educadora do povo. Pensamento
segundo o qual a escolarização do povo constituía a base das transformações
culturais necessárias ao processo de construção coletiva da nova sociedade. A
escola do trabalho visava, sobretudo, atender a demandas de educação do
sujeito social da revolução.
2.
Educação é mais que ensino. Reivindica a necessidade de superar uma
concepção de escola reduzida a ‘ensino’; ao passo que fizessem parte de um
mesmo programa de formação os diversos aspectos da vida das pessoas –
trabalho, estudo, atividades culturais, políticas.
3.
A vida escolar deve estar centrada na vida produtiva. De acordo com o
autor a partir do momento em que a escola passasse a assumir a lógica da
vida, seria imprescindível romper com a pedagogia da palavra e construir uma
pedagogia da ação. À escola caberia a própria vida e não a preparação teórica
para a vida.
4.
A escola precisa vincular-se ao movimento social e ao mundo do
trabalho. Exemplifica o argumento supra citado. De acordo com o autor uma
escola do trabalho deveria refletir a realidade palpitante da vida. Daí a inclusão
como atividades pedagógicas: o trabalho social da escola, o envolvimento dos
adolescentes em atividades sociais produtivas da comunidade, a preocupação
34
com a apropriação da ciência, do trabalho e de sua organização e, por fim, o
vínculo entre auto-organização dos educandos e movimentos sociais mais
gerais.
5.
A auto-organização dos educandos como base do processo pedagógico
da escola. Argumento segundo o qual a participação autônoma, ativa e criativa
dos educandos, de acordo com as condições de desenvolvimento de cada
idade, nos processos de estudo de trabalho e de gestão dos problemas da
escola deve realizar-se como uma necessidade. Assim, buscava-se instituir
práticas que favorecessem a participação social igualmente consciente e ativa.
6.
Pensar em um jeito de desenvolver o ensino que seja coerente com o
método dialético de interpretação da realidade. Trata da organização do
trabalho pedagógico a partir dos sistemas dos complexos temáticos 48 , segundo
o qual o ensino deve ser organizado a partir de temas socialmente
significativos, através dos quais os educandos analisariam a dinâmica e as
relações existentes entre aspectos diferentes de uma mesma realidade.
7.
Sem teoria pedagógica revolucionária não há prática pedagógica
revolucionária. De acordo com Pistrak a nova escola seria construída
coletivamente, para isso, os educadores deveriam dominar as teorias
pedagógicas em direção à ampliação da autonomia.
Com base nesses fundamentos passamos a pensar a capoeira e o trato
pedagógico, tendo como ponto de partida a compreensão do seu processo de
mercadorização, identificando possibilidades de contribuir para a construção de
uma teoria pedagógica revolucionária.
48
Tema abordado em outros estudos vinculados a LEPEL/FACED/UFBA, que incluem
determinados elementos da cultura humana, no nosso caso especifico, a cultura corporal e em
particular a capoeira
35
Para tanto abordamos a capoeira na concepção de cultura corporal
sistematizada no livro Metodologia do Ensino de Educação Física 49 (1992). Na
apresentação do livro encontram-se traçadas as finalidades e compromissos a
que se propõe a nova abordagem:
Um livro de metodologia da Educação Física não
pode ser um mero receituário de atividades, uma
lista de novos exercícios e de novos jogos. Mais do
que isso, deve fornecer elementos teóricos para a
assimilação consciente do conhecimento, de modo
que possa auxiliar o professor a pensar
autonomamente. A apropriação ativa e consciente
do conhecimento é uma das formas de
emancipação humana. Por isso mesmo, o domínio
do conhecimento permite ao professor tomar
consciência de que não é um livro que o ajudará a
enfrentar os problemas da sala de aula, mas a
própria re-elaboração dos conhecimentos e de suas
experiências cotidianas (Coletivo de Autores, 1992
pág. 17-18).
Pensar a capoeira no bojo das contradições sociais, como ferramenta
capaz de favorecer “[...] A apropriação ativa e consciente do conhecimento é
uma das formas de emancipação humana. [...] conhecimentos permitem ao
professor tomar consciência [...] sua própria reelaboração dos conhecimentos e
de suas experiências cotidianas.” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 17-18)
no sentido formulado por Saviani (2002) “Tornar o homem cada vez mais capaz
de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a
no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração
entre eles”(p. 39) é ação cotidiana recente na capoeira, e é necessário sobre
quem é esse novo homem que se deseja formar, e para que sociedade.
Neste contexto, a história constitui-se no complexo da sociedade como
âmbito de libertação do homem, na medida em que este se apropria do
49
Celi Taffarel (PE), Micheli Ortega (PE), Carmem Soares (SP), Lino Castellani (SP), Valter
Bracht (PR), Elizabeth Varjal (PE)
36
conjunto das objetivações do gênero humano. A negação da formação
humana, entretanto, a cisão entre os interesses presentes na produção da vida
vêem se constituído como base da formação do homem na sociedade
capitalista.
Todavia, para que ocorra a emancipação dos sujeitos, é mister que o
indivíduo, pela via da luta de classes, possa apropriar-se das possibilidades de
objetivação consciente, social, livre e universal.
Nessa perspectiva, entendemos que compreender a formação da
individualidade humana (DO CAPOEIRA) é fundamental para o exercício da
tarefa pedagógica, “[...] o homem pode controlar seu próprio destino, se ele
pode ‘se fazer’, se ele pode criar sua própria vida.” (GRAMSCI, 1978, p. 38).
Por conseguinte, a prática educativa da capoeira deve possibilitar “O confronto
do saber popular (senso comum) com o conhecimento científico universal [...]
instiga(r) o aluno a ultrapassar o senso comum e construir formas mais
elaboradas de pensamento.” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 32).
Incluindo nesse item o desvelamento histórico da própria manifestação do
senso comum.
A nossa posição sobre o trato pedagógico do conhecimento da capoeira
relaciona-se com a defesa do aprofundamento da sua história, considerando as
suas múltiplas determinações, pois estamos certos de que a essência da
mesma se manifesta no desenvolvimento histórico do seu fenômeno “[...]
Compreender o fenômeno é atingir a essência.” (KOSIK, 2002, p 16). Por conta
desta relação, que a história da capoeira passa a ser o elemento primordial da
prática educativa da capoeira.
37
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo educador deve ter definido o seu projeto
político-pedagógico. Essa definição orienta a sua
prática [...] a relação que estabelece com os seus
alunos, o conteúdo que seleciona para ensinar e
como o trata científica e metodologicamente, bem
como os valores e a lógica que desenvolve nos
alunos. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 26)
Reafirmamos a necessidade de que para a formação dos CAPOEIRAS,
admitidas às restrições impostas pelo momento histórico atual, os processos de
formação assumam a tarefa estratégica imediata de promover o “despertar das
consciências” mediante uma revolução cultural radical, restabelecendo os
vínculos entre capital e trabalho 50 de modo a contribuir para a construção
objetiva de uma ordem social qualitativamente diferente da ordem social na
qual nos encontramos.
Com a análise da forma mercantil da capoeira sedimentamos o caminho
para futuras análises em que buscaremos compreender a forma capital da
capoeira e a sua inserção na indústria cultural. Nesse horizonte chamamos
atenção para a necessidade de aprofundamento teórico nas análises sobre a
expansão da capoeira como expressão do movimento da contracultura, tendo
em vista que:
[...]A denominada moderna cultura de massa não
pode ser de maneira alguma separada dos
processos de produção em massa, marketing,
especulação com vistas a lucros extraordinários,
sistemas de comunicação de massa etc. [...].
(AHMAD, 1999-A, p.107).
Ademais, acreditamos que há no Brasil experiências que nos levam a
questionar
as
diferentes
influências,
práticas
e
de
organização
que
50
O trabalho ao qual nos referimos é o trabalho socialmente útil (natural), não a sua forma
social capitalista (trabalho produtivo – produtor da mais valia).
38
caracterizam o universo cultural da capoeira e que precisam ser sistematizadas
e socializadas, a saber: ACC: Pesquisa e o Ensino na Roda de Capoeira LEPEL/FACEDUFBA, PERI–Capoeira 51 – MOVER/CED/UFSC e Confraria
Catarinense de Capoeira 52 . Essas experiências apontam uma possibilidade de
construção da prática pedagógica superadora da capoeira.
A experiência da Confraria Catarinense de Capoeira como entidade
organizativa geral da capoeira enquanto movimento, nos inspira a dizer que
essa é uma tentativa, mesmo que carregada de contradições, que encontra-se
em um grau avançado de desenvolvimento, no que tange a organização dos
capoeiristas e numa perspectiva política. Os espaços de formação seriam
fundamentais para a construção desta prática pedagógica superadora.
Portanto, a construção desses espaços, relacionando práticas de capoeira,
ensino, pesquisa e extensão é essencial para a consolidação de uma capoeira
que se contraponha ao atual e hegemônico sistema mercadológico.
Outro ponto de análise é a experiência do PERI-Capoeira, que
aconteceu no período de abril de 2005 até dezembro do mesmo ano. Essas
experiências indicam a necessidade de melhor analisar o conhecimento
produzido culturalmente nas atividades fora da Universidade, visto que estes,
apresentam-se de forma dinâmica e criativa podendo ser potencializado
através da articulação ensino, pesquisa e extensão.
A iniciativa do PERI-Capoeira se deu em conjunto com o Triplo ‘C’ e com
a linha de pesquisa Educação Intercultural e Movimentos Sociais (MOVER),
localizada no Centro de Ciências da Educação (CED), da Universidade Federal
51
Programa de formação de Educadores Populares de Capoeira, promovido pelo
MOVER/CED/UFSC.
52
Organização denominada de triplo C, que congrega os capoeiristas de Santa Catarina
independente do estilo, do grupo, ou de qualquer questão segregacionista no universo da
capoeira.
39
de Santa Catarina (UFSC), acima citado, e desenvolveu junto aos capoeiristas
a formação para compreensão dos fenômenos sociais que cercam a capoeira e
toda rede de relações humanas. O contato entre universidade e comunidade
gerou no espaço acadêmico e da capoeira uma demanda para um novo curso
dirigido por teorias cientificas que promovam avanços no trato do conhecimento
da capoeira.
O êxito da experiência do PERI-Capoeira I deu origem a outra edição do
programa, que se inicia com a coordenação mista entre capoeiristas e
acadêmicos, sendo estes, alunos da iniciação cientifica, mestrado e doutorado.
Essa atividade foi iniciada por um coletivo de pesquisadores do Núcleo
de Educação Intercultural e Movimentos Sociais, a frente da demanda
organizativa dos capoeiristas no Estado de Santa Catarina.
Ademais, atualmente, na Universidade Federal de Santa Catarina,
concentra-se uma das maiores produções acadêmicas de trabalhos científicos
em capoeira e educação no País. A construção do PERI-Capoeira se torna
uma importante ferramenta de pesquisa que culmina com sete dissertações 53
53
Profª Ms. Adriana D’Agostini – defendida em 2004, pelo programa de Pós-Graduação em
Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina. Título: O jogo da capoeira no
contexto antropológico e biomecânico (Doutoranda – Educação – UFBA)
Profº Ms. Christian Muleka Mwewa – defendida em 2005, pelo programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Título: Indústria cultural e educação do
corpo no jogo de capoeira: Estudos sobre a presença da capoeira na sociedade administrada
(Doutorando – Educação – UFSC)
Profº Ms. Valmir Ari Brito – defendida em 2005, pelo programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Título: (In)Visibilidade da contribuição
negra nos grupos de Capoeira em Florianópolis
Profº Ms. Bruno Emmanuel Santana da Silva – defendida em 2006, pelo programa de PósGraduação em Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina. Título: Menino
qual é teu Mestre? A Capoeira Pernambucana e as Representações Sociais de Seus Mestres
Profº Ms. Dráuzio Pezzoni Annunciato – defendida em2006, pelo programa de Pós Graduação
em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Título; Liberdade disciplinada:
relações de confronto, poder e saber entre capoeiristas em Santa Catarina.
Mestranda Joana de Paula Filgueiras – aluna da Pós Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Santa Catarina, desde 2004
Profº Mestrando Benedito Carlos Libório Caires Araújo – aluno da Pós Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, desde 2006.
40
de mestrado (cinco concluídas e duas em andamento) e uma tese de
doutorado 54 .
A guisa de conclusão, inspirados pelo Coletivo de Autores, e nos
debates acumulados nas edições dos ACC’s e PERI’s, iniciamos diversas
alterações nas relações instituídas na Associação Batukegê Capoeira 55 . Cujo
resultado, mais imediato, é a modificação do sistema de graduação (ANEXO) a
luz da lógica dos ciclos e a crítica ao desenvolvimento alienado e etapista de
formação do capoeira.
54
Profº Doutor Márcio Penna Corte Real – defendida em 2006, pelo programa de Pós
Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Título; As musicalidades
das Rodas de Capoeira(s): diálogos intercultural, campo e atuação de educadores.
55
Associação Batukegê Capoeira é uma agremiação de capoeiras sediada em Salvador-Bahia,
no bairro de Pituaçú, fundada em 2004, que tem objetivos de alteração do trato pedagógico nos
espaços de capoeira.
41
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49
(ANEXO)
No que se refere à proposta curricular (inclui-se sistema de graduação),
para melhor compreensão das possibilidades e exigências educativas, estando
nossa proposta pautada em conceitos que refletem como concebemos uma
proposta educacional, que se aproxime do real, ou seja, que possa oportunizar
um espaço de crescimento para as pessoas, respeitando seu processo
histórico de formação, suas vivências, seus estágios cognitivos e sua tradição
cultural e afetiva.
A Opção por diferenciar a graduação infantil da adulta, está vinculada a
nossa preocupação em desenvolver um trabalho mais condizente com as
possibilidades de uma intervenção pedagógica na capoeira, sem com isso,
provocar um esvaziamento da riqueza cultural e das tradições dessa
manifestação.
As cores são utilizadas para sinalizar as fases e ciclos de
desenvolvimento do estudante no espaço de formação da capoeira.
Articularemos esse método a partir de elementos que acontecem
simultaneamente na roda de capoeira: musicalidade (instrumentos e canto),
ritual (tradições e articulação dos elementos da roda), o jogo (movimentos e
estrutura do jogo), todos eles explicitados a partir da história social de
desenvolvimento dessa manifestação.
Optamos por teorias pedagógicas que condizem com nossa opção
política, para isso utilizaremos a referência do livro Metodologia do Ensino da
Educação Física no 2º Grau (Coletivo de Autores, 1992).
Entre 02 até 06 anos: Fase Elementar
1ªi Crua-Verde Claro
2ªi Crua-Amarelo Claro
1ª Fase
Elementar
3ªi Crua-Azul Claro
4ªi Crua-Marrom Claro
5ªi Crua-Vermelho Claro
Entre de 07 até 11 anos: Fase Suplementar
6ªi Crua-Verde
7ªi Crua-Laranja
8ªi Crua-Azul
2ª Fase
Suplementar
9ªi Crua-Marrom
10ªi Crua-Vermelho
50
Graduação Adulta
A partir de 12 anos
1ª Crua-Verde Cana
2ª Verde Cana
3ª Verde Cana-Verde
Iniciação Técnica
Iniciação
1ª Fase
4ª Verde
5ª Verde-Amarelo
6ª Amarelo
7ª Amarelo-Azul
Domínio da Técnica
Licenciatura
2ª Fase
8ª Azul
9ª Marrom-Verde
10ª Marrom-Amarelo
11ª Marrom-Azul
Socialização
Especialização
3ª Fase
12ª Marrom
13ª Vermelho-Amarelo
Produção
14ª Vermelho-Azul
Mestrado
15ª Vermelho-Marrom
4ª Fase
16ª Vermelho
17ª Branco-Azul
18ª Branco-Marrom
19ª Branco-Vermelho
Cátedra
Doutorado
5ª Fase
20ª Branco
*21ª Verde – Azul *
Estagiário
Adaptação
51
Todas as fases passam por quatro ciclos, porque seguindo as orientações do Coletivo
de autores, representam uma articulação entre a antiga seriação e a possibilidade de
desenvolver diversos conhecimentos de forma variada.
1ª FASE (INICIAÇÃO)
1ª Crua -Verde Claro
2ª Verde Claro
3ª Verde Claro -Verde
4ª Verde
Esta fase inicia-se com o batismo e dura até chegar a corda verde. A fase de iniciação
serve para a apreensão da técnica: tocar, cantar e jogar (apreender os movimentos corporais).
2ª FASE (LICENCIATURA)
5ª Verde-Amarelo
6ª Amarelo
(Monitor)
7ª Azul-Amarelo
(Instrutor)
8ª Azul
(Formado)
Fase de transição da iniciação para a complexificação, conceitos mais elaborados que
aprimoram a técnica e desenvolvem a capacidade docente. Busca-se nessa fase uma maior
interação com espaços externos de prática da capoeira.
*ESTAGIARIO*
*22ª Azul-Verde*
Casos Extraordinários – Pessoas que veio de outra entidade de ensino e tem um
reconhecimento como docente de capoeira, passa por estágio de adaptação até assumir uma
graduação de acordo com o seu desenvolvimento: ideológico, técnico e social (relação com
outros capoeiras.
52
3ª FASE (PROFESSOR-ESPECIALIZAÇÃO)
9ª Marrom-Verde
(P. Iniciante)
10ª Marrom-Amarelo
(P. Monitor)
11ª Marrom-Azul
(P. Instrutor)
12ª Marrom
(P. Formado)
Inicia o processo de aprimoramento no que se enquadra como envolvimento maior com
a capoeiragem, que envolvem produções em prol da capoeira como: pesquisas, eventos,
formando turmas e reconhecimento da comunidade.
4ª FASE (CONTRAMESTRE-MESTRADO)
13ª Vermelho-Amarelo
(C. Iniciante)
14ª Vermelho-Azul
(C. Monitor)
15ª Vermelho-Marrom
(C. Instrutor)
16ª Vermelho
(C. Formado)
Fase de transição entre o mestre e o professor, significa dedicação para se tornar
mestre. Amadurecimento necessário para assumir a responsabilidade do título.
5ª FASE (MESTRE-DOUTORADO)
17ª Branco-Azul
(M. Iniciante)
18ª Branco-Marrom
(M. Monitor)
19ª Branco-Vermelho
(M. Instrutor)
20ª Branco
(M. Formado)
Fase de desenvolvimento técnico completo, com um envolvimento no universo da
capoeira que o outorga como conhecedor dessa arte.
53