53
Dois Diabos na Periferia
Maria Cecilia Marks1
Abstract: The aim of this article is to analyze the representation of the devil in the novel The
Brothers Karamazov, by Fyodor Dostoevsky, and in the short story A Igreja do Diabo, by
Machado de Assis. The analysis is based on the tragedy of Faust, by Johann Wolfgang von
Goethe, the origin of a tradition that relates to the demonic insatiability of modern man.
Aspects of their historical contexts reflected in the works are also pointed as well as
differences and similarities between the experiences of heroes when it comes to good and
evil. Although universal, this theme reaches peculiar representations to the authors analyzed
in this study, by virtue of style and creativity of each and also their various historical and
cultural conditions.
Keywords: Machado de Assis; Dostoevsky; devil representation; modernity; Bakhtin.
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar comparativamente a representação do demônio no
romance Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, e no conto A Igreja do Diabo, de
Machado de Assis. A análise tem por base a tragédia Fausto, de Johann Wolfgang von
Goethe, origem de toda uma tradição que relaciona o demoníaco à insaciabilidade do homem
moderno. Aspectos dos respectivos contextos históricos refletidos nas obras também são
apontados, assim como diferenças e aproximações entre as experiências dos heróis no que
tange ao bem e ao mal. Embora universal, tal temática alcança representações peculiares nos
autores em estudo, em virtude do estilo e da inventividade de cada um deles e também das
condições históricas e culturais diversas.
Palavras-chave: Machado de Assis; Dostoiévski; representação do demônio; modernidade;
Bakhtin.
Introdução
Para analisar comparativamente a representação do demônio no conto “A
Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, e no romance Os Irmãos Karamázov, de
Fiódor Dostoiévski, partimos das ideias de Goethe, sobretudo na tragédia Fausto I.
Utilizamos também a teoria da carnavalização na literatura proposta por Mikhail
Bakhtin, que a desenvolveu tomando por base o papel catártico e transformador
desempenhado pela festa popular profana do Carnaval, desde a Antiguidade até o
Renascimento, e o processo de transposição dessa manifestação para a linguagem
literária.
1
Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo e doutoranda pela
mesma instituição. Endereço eletrônico:
[email protected].
54
Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou
indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência
de diferentes modalidades de folclore carnavalesco (antigo ou
medieval). Todo o campo do sério-cômico constitui o primeiro
exemplo desse tipo de literatura. (Bakhtin, 2010a, p. 122; grifo do
autor)
O conto “A Igreja do Diabo” foi publicado originalmente no volume Histórias
sem Data, de 1884. O livro faz parte da fase madura do autor, do considerado período
realista de Machado de Assis, que se inicia com Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de 1881.
Publicado em 1880, Os Irmãos Karamázov é o último romance de
Dostoiévski. Portanto, os dois escritores chegaram a ser contemporâneos e os
trabalhos em foco foram publicados na mesma época, não obstante a distância
geográfica e cultural existente entre as realidades em que Machado e Dostoiévski
construíram suas obras.
Pode-se afirmar, com enorme probabilidade de acerto, que Dostoiévski jamais
teve contato com a obra de Machado de Assis. Este, por sua vez, citou o nome do
escritor russo, de passagem, pelo menos uma vez. Trata-se de crônica publicada em A
Semana, com data de 16 de dezembro de 1894, sem título, em que Machado começa
comentando o suposto suicídio de uma bailarina chamada Labushka, amante do
imperador russo morto – “Foi telegramma o que li? Foi alguma pagina de
Dostoiewsky?” (Assis, 1946, p. 265) –, e acaba falando de problemas brasileiros da
época. Isso não significa que Dostoiévski represente uma influência para Machado. Já
Goethe foi, certamente, uma referência para ambos.
Quais são, então, as aproximações que podemos identificar nas representações
do demônio feitas por Machado de Assis e Dostoiévski? Como se constituem esses
caracteres e a narrativa? De que recursos se valem os autores para representar a
realidade e a figura demoníaca? Há consonâncias com o conceito bakhtiniano de
carnavalização? Eis algumas questões a investigar neste ensaio.
“A Igreja do Diabo” é o primeiro dos 18 contos de Histórias sem Data, título
que reforça a atemporalidade dos temas, sua perenidade e independência com relação
ao momento histórico e até à realidade local, embora tais assuntos, sempre presentes,
mudem de roupagem e/ou de abordagem ao longo do tempo, de acordo com a época,
a cultura, o país.
55
Dostoiévski foi um célebre leitor de Goethe, este fartamente citado em suas
obras, assim como nas de Machado de Assis. Ainda que, segundo Bakhtin,
Dostoiévski contraponha-se ao conceito goetheano de formação – em que “no centro
do romance está a questão da formação do indivíduo, do desenvolvimento de suas
potencialidades sob as condições históricas dadas” (Mazzari, 1999, p. 67) –, a obra do
escritor russo é emblemática no que se refere ao “universalmente humano”, conforme
defendia o alemão em seu conceito de Weltliteratur, ou Literatura Universal. Expoente
do romance ideológico – entenda-se no sentido de ideias, e não de ideologias –,
Dostoiévski superou todos os seus contemporâneos ao expressar os limites da
condição humana por meio da arte literária. De acordo com Bakhtin, Dostoiévski foi
pioneiro na percepção de um mundo que, já naquele momento, vivia um processo de
fragmentação de ideias, valores, crenças, ideologias; ele “percebia a profunda
ambivalência e a plurivalência de cada fenômeno (...) contíguos e contraditórios,
consonantes mas imiscíveis” (Bakhtin, 2010a, p. 34). Foi pela observação do diálogo
infinito de consciências que Bakhtin desenvolveu a sua teoria do romance polifônico
em Dostoiévski.
Dostoiévski tinha o dom genial de auscultar o diálogo de sua época, ou,
em termos mais precisos, auscultar a sua época como um grande
diálogo, de captar nela não só vozes isoladas mas antes de tudo as
relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas.
(Bakhtin, 2010a, p. 100; grifos do autor)
Para Bakhtin, o dialogismo é uma das principais características do gênero
romanesco da literatura artística, em que o autor é capaz de impregnar o texto com as
diferentes línguas faladas na sociedade, sejam elas jargões de época, de profissões, de
grupos, sejam gêneros intercalados à narrativa ou a própria língua culta, abrigando,
enfim, em sua linguagem, o plurilinguismo que reflete o mundo real, em todas as suas
nuances e camadas da expressão verbal e ideológica, literárias e extraliterárias e em
permanente transformação.
Já o recurso da parodização, em essência dialógico, uma vez que é
indispensável haver um objeto parodiado para que a expressão paródica se realize,
desnuda o que é oficial, canônico, unívoco de uma perspectiva oblíqua, que
desconstrói dogmas e normas por meio da linguagem. “O parodiar é a criação do
duplo destronante, do mesmo „mundo às avessas‟” (Bakhtin, 2010a, p. 145).
56
Em Os Irmãos Karamázov, a figura do duplo desempenha papel
preponderante, seja ela personificada no demônio ou exercida também por outros
personagens. O duplo lança o olhar do outro sob a perspectiva do eu, é aquilo que o
protagonista vê de si refletido no outro ou nele projeta. “Na relação dialógica eu não
posso passar sem o outro, que me espia, me julga e me completa” (Bezerra, 2008, p.
249). Na tentativa de precisar a duplicidade em Dostoiévski, Paulo Bezerra assim
expõe:
Logo, a duplicidade é aquele estado de uma consciência na qual se
alojam, convivem e dialogam coisas às vezes até diametralmente
opostas ou antagônicas, pondo a consciência do protagonista no
movimento pendular entre aceitação e/ou recusa à consciência e ao
julgamento do outro, numa atitude às vezes desesperada para afirmar a
própria consciência. (...) Assim, a duplicidade radica no pavor do
homem diante da vida e se manifesta em formas de cisão da
consciência. A duplicidade enreda o homem numa teia de contradições
de tal ordem que ele, ao ver-se diante de problemas que reclamam
solução, não consegue tomar uma decisão firme e unívoca porque,
quando vislumbra uma saída, logo esbarra em tantas saídas “contra”
quanto em saídas “a favor”. E isto vai das questões aparentemente mais
simples às mais complexas, como a existência ou inexistência de Deus
(Bezerra, in Dostoievski, 2011, p. 240).
Com esse suporte teórico, passamos a analisar comparativamente o conto “A
Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, com o capítulo IX do livro XI do romance Os
Irmãos Karamázov – “O diabo. O pesadelo de Ivan Fiódorovitch”.
Entre Deus e o diabo
Tema universal e atemporal, a luta entre o bem e o mal, entre o poder de Deus
e o do diabo, perpassa a alma e a razão humanas, integrando aquele rol de “coisas que
não são especialmente do dia, ou de um certo dia” (Assis, 1994, p. 2), conforme
adverte Machado de Assis na abertura de Histórias sem Data. A seguir, serão
apontadas relações entre as obras e recursos empregados pelos autores para
representar o demônio e contextualizá-lo nos limites da realidade.
O conto “A Igreja do Diabo”, apesar de não ser muito extenso, divide-se em
quatro capítulos. As partes organizam-se conforme o desenrolar do enredo, o que o
reveste de uma lógica e de um encadeamento que provocam no leitor o princípio de
realidade, mesmo sendo um episódio improvável.
57
Apesar de o elemento fantástico estar presente em narrações nas quais o diabo
seja um personagem, esse elemento promove a aproximação com o leitor na medida
em que se reflete em crenças arraigadas, provenientes de toda a tradição religiosa
judaico-cristã, e em arquétipos da civilização que determinam o bem e o mal como
conceitos que se contrapõem.
Ao referir-se, na frase de abertura da narrativa, à existência de um manuscrito
– “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de
fundar uma igreja” (Assis, 1994, p. 2) –, Machado de Assis utiliza mais um recurso de
verossimilhança, remetendo o leitor a uma suposta fonte fidedigna da história narrada.
Na estrutura do conto, primeiro é apresentada a ideia “mirífica” do diabo de
fundar uma igreja, a fim de formalizar a sua existência errante e deixar de viver “dos
remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos” (Assis, 1994, p. 2).
Depois, a conversa com Deus, para que este não o acuse de traiçoeiro, de
“dissimulação”. Em seguida, no terceiro capítulo, mãos à obra, o diabo parte para o
empreendimento de conquistar e trazer para a sua igreja as virtudes, transmutando-as
segundo a sua doutrina. Na conclusão, o diabo logrado descobre que seus fiéis estão
praticando as virtudes de outrora. “É a eterna contradição humana”, esclarece Deus ao
demônio frustrado.
Um diabo capitalista
O capítulo II de “A Igreja do Diabo” – “Entre Deus e o Diabo” – é uma
referência explícita ao “Prólogo no Céu”, terceiro texto introdutório do Fausto I.
Entretanto, pode-se interpretá-lo como uma réplica parodiada de Deus, por parte de
um já derrotado Mefistófeles, devido ao insucesso com Fausto. A ambientação é
semelhante: lá estão presentes os anjos e seu canto celeste, Deus e o diabo. A menção
a Fausto aparece na primeira frase emitida pelo diabo, em resposta ao questionamento
de Deus sobre o que tencionava ele ali: “Não venho pelo vosso servo Fausto,
respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos” (Assis,
1994, p. 3). Note-se que o riso, associado secularmente ao diabo, também é
mencionado no “Prólogo no Céu”, mas em contraponto, lembrando que Deus não é
afeito ao hábito de rir, conforme afirma o demônio:
Perdão, não sei fazer fraseado estético,
Embora de mim zombe a roda toda aqui;
58
Far-te-ia rir, decerto, o meu patético,
Se o rir fosse hábito ainda para ti. (Goethe, 2010, p. 51)
Ao se propor a fundar uma igreja e “congregar, em suma, as multidões ao pé
de si” (Assis, 1994, p. 5), o diabo machadiano passa do particular para o geral,
mostrando-se mais pragmático do que aquele apresentado por Goethe, cuja aposta
limitava-se a Fausto.
Que apostais? perdereis o camarada;
Se o permitirdes, tenho em mira
Levá-lo pela minha estrada! (Goethe, 2007, p. 53-54)
Em Dostoiévski, o demônio também adota critérios rigorosos para a escolha
de suas “vítimas”, conforme se observa nesta resposta ao seguinte questionamento de
Ivan Karamázov:
– Palhaço! Alguma vez tentaste ao menos um desses que comem
gafanhotos, que passam dezessete anos a fio orando no deserto nu,
mofando?
– Meu caro, foi só isso o que fiz. Haverás de esquecer o mundo inteiro
e os mundos, mas aderirás a um deles porque o brilhante é muito
precioso; uma alma como essa às vezes vale uma constelação inteira –
é que nós temos nossa aritmética. (Dostoiévski, 2008, p. 836)
A obra demoníaca a ser empreendida pelo diabo machadiano é voltada às
massas, a “todos os Faustos do século e dos séculos”, e se institui como um negócio
religioso, nos moldes mercantis e capitalistas, a competir no mercado das almas:
“Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel
avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem
ritual, sem nada” (Assis, 1994, p. 2).
Com a nova oportunidade identificada pelo demônio, ele acredita que “(...) o
céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar
uma hospedaria barata (...)” (Assis, 1994, p. 3), diz ele a Deus. Muitas outras menções
do diabo machadiano remetem ao valor material e monetário, mas, nos limites desse
trabalho, o importante é salientar que, para o diabo representado no conto de Machado
de Assis, a fundação de uma igreja é “(...) o meio eficaz de combater as outras
religiões, e destruí-las de uma vez” (Assis, 1994, p. 2). “É tempo de obter a vitória
final e completa” (Assis, 1994, p. 3).
59
O projeto do demônio dispõe de todo o aparato requerido para se tornar um
credo merecedor da fé dos homens, ou seja, oferece ritos e cânones equivalentes aos
que outras igrejas impõem. Nesse particular, o conto machadiano configura-se em
paródia da realidade religiosa desde o paradoxal título até ao enumerar os acessórios
necessários para a prática ritual: “– Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as
minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico” (Assis, 1994,
p. 2).
Assim, o conto ajusta-se com muita precisão à categoria carnavalesca da
profanação, conforme a teoria bakhtiniana. Como um sacrilégio, instala na cena
religiosa, com todo o seu aparato ritual, o seu inverso, o demônio, configurando-se
numa representação da “vida às avessas” (Bakhtin, 2010a, p. 140).
No quesito ordem, decerto não é à toa que Machado de Assis coloca como
referência para o diabo a ordem dos beneditinos. Duas vezes é citado o tal manuscrito
e uma vez a cogula, vestimenta característica daqueles monges, que o diabo escolhe
para usar – “como hábito de boa fama” (Assis, 1994, p. 4), mais uma expressão com
alto teor paródico. A Congregação de São Bento foi fundada por Bento de Núrsia,
santo que consta ter tido duros embates com o demônio. Bento de Núrsia pontificou
normas estritas para a vida monástica por meio da Regula Benedicti. Escrito no século
VI, esse documento serviu de inspiração para muitas outras ordens religiosas que se
estabeleceram posteriormente. A Regra expõe, de forma contundente e detalhada em
seus 73 capítulos2, como os seguidores da ordem beneditina devem se comportar e
agir. Ora et labora é o princípio fundamental da irmandade, que mantém uma rotina
de oração e trabalho, uma revolução em relação à herança romana, “que tinha como
ideal de vida o ócio pessoal do homem culto, o otium” (Rouche, 2009, p. 522). Além
desse argumento da ordem, tal escolha do escritor insere na narrativa uma marca da
realidade, pois o Mosteiro de São Bento, fundado em 1590, é um dos mais
tradicionais do Rio de Janeiro.
Também em Os Irmãos Karamázov, o diabo enaltece a ordem que observa
entre os homens: “Aqui entre vós, tudo é especificado, aqui há fórmula, aqui há
geometria, ao passo que entre nós tudo são equações indefinidas!” (Dostoiévski,
2
Conforme a Regra do Glorioso Patriarca São Bento, com tradução e notas de Dom João Evangelista
Enout, da Ordem de São Bento (RJ). O documento está disponível na internet: http://www.osb.org.br.
Acesso em setembro de 2010.
60
2008, p. 827), estas talvez equivalentes à “desorganização”, ao “reinado casual e
adventício” (Assis, 1994, p. 3) que o diabo machadiano tenta superar. No romance
russo, a congregação religiosa alvo de menções irônicas é a dos jesuítas, igualmente
caracterizada pela rígida disciplina de obediência e aceitação dos preceitos da Igreja
Católica. O irreverente demônio criado por Dostoiévski diverte-se ao narrar a relação
dos padres jesuítas com os fiéis: “Quanto a esses confessionários de jesuítas, são na
verdade minha mais encantadora distração nos momentos tristes da vida”
(Dostoiévski, 2008, p. 837).
Essa aspiração à ordem é paradoxal no “espírito de negação”, conforme o
próprio demônio se autodefine. Afinal, a ordem e a disciplina exigidas para a prática
religiosa impõem limites claros visando a reprimir transgressões, sufocar desejos e
manter sob controle paixões individuais a fim de preservar a coesão do grupo perante
o poder divino. Tais parâmetros acabam por permear toda a sociedade e contribuir
para a manutenção de padrões de convivência comunitária aceitáveis. Já o demoníaco
é justamente aquilo que vem para desagregar, negar e desestabilizar a ordem vigente
por meio da transgressão. “Se a figura de Deus se forma em torno da ideia de
absoluto, a do diabo é aquela que desagrega, que provoca o esfacelamento e a
oposição. É a própria ideia de fragmento, de parte cindida.” Por outro lado, “o espírito
que nega é o que brinca, o que oferece o inesperado, o que pode promover o jogo
irônico” (Moura, 2008, p. 136 e 138).
A escassa boa vontade demonstrada por Deus no capítulo II do conto “A Igreja
do Diabo” está distante da que se observa no “Prólogo no Céu”, no qual Deus chega a
ser condescendente com o demônio ao lhe destacar a função de não permitir que o ser
humano “soçobre em integral repouso” (Goethe, 2004, p. 57). No episódio
machadiano, o Criador dispensa conhecer os resultados do empreendimento do
demônio – que mesmo assim externa a sua admiração por Deus, a exemplo do que
ocorre no Fausto – e praticamente o enxota do céu.
Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua
espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e
redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força,
nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales
e te retires. (Assis, 1994)
61
Curiosamente, termos semelhantes são utilizados por Ivan Karamázov para
tentar se livrar do demônio que o assedia: “(...) não és capaz de me dizer nada de
novo. (...) És tolo e vulgar” (Dostoiévski, 2008, p. 825).
A benevolência divina para com o diabo só ressurge no final da narração de
Machado, quando “Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não
o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica” (Assis, 1994, p. 7).
No aspecto paródico da narrativa de Machado de Assis, Magali Moura é muito
feliz ao interpretar a conclusão do conto, em que se evidencia o jogo de contrários,
confirmando a afirmação de Mefistófeles de ser ele o espírito que, ao querer o mal,
gera o bem. Ficam também ali patentes as “contradições humanas”, a eterna
insatisfação, a busca ininterrupta de um sentido para a vida, a ponto de chegar ao
nonsense:
A surpresa do leitor ao final do texto é alcançada pela maestria de
Machado com a utilização do jogo irônico que subverte a ação e atribui
ao próprio humano a categoria de “espírito de negação” antes atribuída
ao Diabo. O ser humano é apresentado como um ser em eterno estado
de negação e o Diabo, falho em sua intenção de promover o mal, acaba
por criar o bem. O jogo promovido por Machado culmina na percepção
da apresentação dos homens como os próprios seres diabólicos por
estarem sempre em contradição, em estado de negação, o que acaba
por provocar a alternância, o movimento incessante que mantém a
própria vida. (Moura, 2008, p. 143)
Evidentemente, as duas narrativas, tanto a de Machado de Assis como a de
Dostoiévski, estão impregnadas de vários elementos identificados com a
carnavalização da literatura. Além da própria temática, que envolve a questão
primordial do bem e do mal, do certo e do bom, de Deus e do diabo, os textos contêm
a inversão de valores, a revogação das leis, a profanação de símbolos sagrados, os
duplos, os contrários, a paródia e, especificamente na obra de Machado de Assis, a
praça pública e o ritual de coroação e destronamento.
Todo esse material foi arrolado por Bakthin para desenvolver os conceitos de
carnavalização da literatura. O teórico toma por base as Saturnais romanas, festas
pagãs revestidas de caráter ritual, período em que os seres humanos podiam ver-se e
se relacionar como iguais, aproximar-se e se misturar na praça pública, destronar o
rei, parodiar o sagrado, enfim, destituir todo o poder e os valores constituídos,
colocando no lugar o seu oposto.
62
Formada ao longo de séculos, a linguagem romanesca incorporou esses
fenômenos chegando à literatura carnavalizada, que é, por excelência, a expressão
literária da modernidade, uma vez que comporta a multiplicidade de línguas, o
dialogismo, a coexistência, no cerne do discurso, de muitas vozes e entonações,
fazendo emergir a relativização de tudo, o movimento perene do ser humano
incompleto em seu presente inacabado.
Espírito de negação
Em “A Igreja do Diabo”, um trunfo apresentado pelo demônio para garantir o
sucesso de sua empreitada é a unicidade da instituição, na qual, pensa ele
precipitadamente, não há risco de ocorrerem cisões ou dissidências porque “há muitos
modos de afirmar; há só um de negar tudo” (Assis, 1994, p. 2). Em seu diálogo com
Deus, ele reforça essa posição: “Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega”
(Assis, 1994, p. 4).
Também em Goethe e em Dostoiévski, o “espírito de negação” do demônio é
ressaltado. Os três autores, no entanto, vão muito além de uma visão simplista e
maniqueísta em que se opõem vida e morte, bem e mal.
Sou parte da Energia
Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria. (...)
O Gênio sou que sempre nega! (Goethe, 2007, p. 139)
Dostoiévski aproveita essa citação de Goethe para que o demônio, em seu
diálogo
com
Ivan
Karamázov,
supere
ainda
mais
as
expectativas
que
convencionalmente lhe imputam e coloque em prática o “método” que adotou para
confundir seu interlocutor com paradoxos e o jogo entre real e imaginário:
“Mefistófeles, ao aparecer a Fausto, disse de si mesmo que desejava o mal, mas fazia
apenas o bem. Ora, faça ele lá como quiser, mas eu sou o oposto total. Eu talvez seja a
única pessoa em toda a natureza que ama a verdade e deseja sinceramente o bem”
(Dostoiévski, 2008, p. 838).
Ele desempenha a função de duplo parodiador de Ivan, uma das características
da literatura carnavalizada. “O diabo grita aos ouvidos de Ivan Karamázov as próprias
palavras deste (...) repetindo com o tom de outro as palavras mais caras dele”
(Bakhtin, 2010, p. 254). Para Bakhtin, o capítulo “O diabo. O pesadelo de Ivan
Fiódorovitch” constitui-se em uma verdadeira menipeia, um dos gêneros do sério-
63
cômico antigos incorporados à literatura moderna no processo de carnavalização. Em
seu discurso, o diabo dostoievskiano fala do seu papel no mundo, da sua
indispensável existência para que o sentido da vida não se perca.
Por uma missão primordial, que nunca consegui entender, fui destinado
a “negar”, (...) sem negação não haveria crítica, (...) Sem crítica, só
haveria Hosana. Mas, para viver, só o Hosana não basta, é preciso que
esse Hosana passe pelo crisol da dúvida, e assim sucessivamente. (...)
eu, por exemplo, exijo simples e francamente a minha destruição. Não,
vive, dizem, porque sem ti não haverá nada. Se tudo no mundo fosse
sensato, nada aconteceria. Sem ti não haveria quaisquer
acontecimentos, e é preciso que haja acontecimentos. E então trabalho
a contragosto para que haja acontecimentos e crio o insensato
cumprindo ordem. (...) Sem sofrimento, que prazer poderia haver em
viver? – tudo se transformaria num infinito Te Deum: é uma coisa
sagrada, porém meio chata. (Dostoiévski, 2008, p. 831)
Ainda de acordo com Bakhtin, “todos os símbolos carnavalescos incorporam a
perspectiva de negação (morte) ou o contrário. O nascimento é prenhe de morte, a
morte, de um novo nascimento” (Bakhtin, 2010, p. 142), e essa dinâmica favorece o
processo de mudança e renovação.
Considerando os autores em estudo, cuja profundidade e abrangência das
obras buscam desvendar a alma humana, a negação não se reveste de um caráter
negativo monolítico, mas sim pendular, representa o questionamento, significa abrir a
porta da dúvida para que o discernimento possa penetrar; é a inquietação fáustica que
coloca o ser humano em movimento e promove a sua evolução; é rejeitar o pronto e
acabado, o absoluto, relativizando a condição humana e a expondo em toda a sua
precariedade. Por tudo isso, esse “espírito de negação” é indispensável à vida, porque
é ele que impede a acomodação e impulsiona o ser humano a transgredir, pois, mesmo
trilhando o caminho da dúvida e da negação, é por ele que chegará a alguma verdade,
visto que esta também é vulnerável à mutabilidade dos tempos e à pluralidade de
visões.
Assim considera Magali Moura:
Sendo parte do mal que se verte em bem, [o diabo] é uma personagem
com caráter de esfinge que se põe diante de Fausto e acaba por ajudá-lo
a encontrar o caminho que o leva finalmente a Deus. (...) Há uma
inversão das ideias comuns e a admissão da valorização do que é tido
como mal como parte necessária para o alcance do bem. (MOURA,
2008, p. 138 e 140)
64
Se, por um lado, o “espírito de negação”, questionador e crítico, é motor de
transformação, por outro, alimenta a eterna insatisfação humana, consistindo em fonte
de tormentos e infelicidade. A solução apresentada pelo diabo dostoievskiano para
sair desse dilema é mais uma imagem mordaz e paródica:
Meu sonho é encarnar – mas que seja definitivamente,
irreversivelmente – em alguma mulher de comerciante, gorda, que
pese umas sete arrobas, e acreditar em tudo que ela acredita. Meu
ideal é entrar na igreja e acender uma vela de todo coração, juro!
Então seria o fim de meus sofrimentos. (Dostoiévski, 2008, p. 827)
Golpes de eloquência
O espírito de negação é o que leva os demônios representados em “A Igreja do
Diabo” e em Os Irmãos Karamázov a proferir seus discursos com uma retórica toda
própria, repleta de ironia e sarcasmo, que põe a nu a hipocrisia e as contradições
humanas. Esse discurso-paródia desvenda o interdito e a força da natureza, o lado
selvagem do humano, que, a despeito de todos os esforços exigidos pelo sagrado,
teima em emergir.
Os dois diabos apresentam-se queixosos pelo desprezo humano, mas assumem
sua condição em busca de mudar a imagem que lhes foi imputada, e salientam o
relevante papel dos instintos na natureza humana, dos quais são os defensores na
Terra. “Amo sinceramente os homens – oh, tenho sido alvo de muita calúnia!”
(Dostoiévski, 2008, p. 827).
Em verdade, estás furioso comigo porque não te apareci assim numa
auréola rubra, “entre ribombos e brilhos”, de asas chamuscadas, mas
nestes trajes tão modestos. (...) Ainda há pouco, quando vinha para cá,
pensei por brincadeira em me apresentar como um conselheiro de
Estado aposentado, que servira no Cáucaso, com a estrela do Leão e do
Sol no fraque, mas me deu muito medo de que me espancasses só pela
ousadia de ter posto no fraque o Leão e o Sol, e não ter posto pelo
menos a Estrela Polar ou Sirius. (Dostoiévski, 2008, p. 838)
Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção
que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito
contavam as velhas beatas.
– Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos
contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o
próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo
65
do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso
verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu
desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo,
tudo, tudo, tudo, tudo... (Assis, 1994; grifo nosso)
Uma lourinha, uma normanda de uns vinte anos, procura um velho
padre. Beleza, corpo, natureza – de dar água na boca. (...) aquilo era o
clamor da própria natureza, se quiseres, era melhor do que a própria
inocência! No mesmo instante liberei o pecado para ela e já ia dando as
costas para sair, mas fui imediatamente forçado a voltar: ouço pelo
buraquinho do confessionário o padre marcar um encontro com ela
para a noite, e o velho era uma rocha, mas caiu num piscar de olhos! A
natureza, a verdade da natureza se sobrepôs! (Dostoiévski, 2008, p.
837; grifos nossos)
“Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias,
os deleites mais íntimos” (Assis, 1994, p. 4). “A única hipótese em que ele permitia
amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie
de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do
indivíduo a si mesmo” (ASSIS, 1994, p. 6).
O demônio caracterizado por Dostoiévski com maestria desenvolve sua
argumentação alternando comentários jocosos e considerações filosóficas a respeito
de Deus e da fé – as grandes questões de Ivan Karamázov. Segundo Bakhtin, em
Dostoiévski a “fé vive em plena fronteira com o ateísmo, fita-o e o compreende,
enquanto o ateísmo vive na fronteira com a fé e a compreende” (Bakhtin, 2010, p.
204). Já na representação de Machado de Assis, o diabo adota o tom pedagógico para
realizar o seu intento de constituir uma igreja hegemônica.
A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso
quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil,
outras cínica e deslavada. (...)
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a
grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a
noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. (Assis, 1994,
p. 5)
No capítulo III do conto – “A boa nova aos homens” –, Machado de Assis
lança mão de um recurso antigo e muito utilizado pela Igreja Católica, pela literatura e
pelas artes em geral ao longo de séculos, que é a difundida noção dos Sete Pecados
Capitais, merecedores de condenação e penitência. A origem desse conceito remonta
ao poema épico Psychomachia, datado do século IV e cuja autoria é atribuída a
66
Prudêncio. Cada um dos pecados capitais tem, em contrapartida, uma das Sete
Virtudes, que, uma vez praticadas com contumácia, protegeriam os seres humanos de
caírem em tentação. Na ordem em que aparecem citados no texto, são estes os
pecados capitais e as respectivas virtudes correspondentes:
Soberba
Luxúria
Preguiça
Avareza
Ira
Gula
Inveja
Humildade
Castidade
Diligência
Generosidade
Paciência
Temperança
Caridade
Todo o trabalho do diabo machadiano partiu da constatação, feita depois de
séculos de observação, de que “as virtudes, filhas do céu, são em grande número
comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora,
eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás
delas virão as de seda pura (...)” (Assis, 1994, p. 3). Assim, o discurso proferido pelo
diabo se constrói invertendo os paradigmas das virtudes por meio de uma lógica
própria e de sofismas elaborados, denotando um narrador/autor sofisticado, cujo
domínio da linguagem leva a um resultado de fina ironia e crítica.
Nessa “vida às avessas”, nesse “mundo invertido” (Bakhtin, 2010, p. 140) está
presente a cosmovisão carnavalesca, conforme proposta por Bakhtin, e ainda pode-se
identificar o que o teórico denominou “palavra autoritária” e “palavra interiormente
persuasiva”. A primeira é o dogma religioso, monolítico, acabado, imposto e
inquestionável, e a segunda, o discurso ideológico do demônio, que, por outro prisma,
abre uma nova perspectiva de interpretação ao dialogar com questões muito humanas
– o desejo, a inveja, a vaidade. Entretanto, e isso é posto por Machado de Assis de
maneira muito original, essa palavra interiormente persuasiva se propõe a substituir o
antigo dogma, ocupando o seu lugar de autoridade, e talvez aí esteja a sua
vulnerabilidade diante da natureza humana – inconstante, mutável, contestadora e
crítica, ou ainda, para nos aproximarmos da colocação de Magali Moura, uma índole
“negadora”.
Uma a uma, as virtudes são puxadas pelo demônio por suas franjas de
algodão. Elevadas são as considerações às virtudes “naturais e legítimas” em que se
67
transformaram os sete pecados capitais. Com relação à gula e à luxúria, por exemplo,
“quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em
grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?” (Assis, 1994, p. 5). Ele
expõe a hipocrisia e o fingimento do homem em sociedade e como, sob o véu protetor
do ritual, abriga e dá vazão aos seus instintos e sentimentos mesquinhos, o que o
predispõe a aderir, com facilidade, à nova religião proposta pelo demônio.
– Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos
do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas
centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do
pecado. Vede o ardor, – a indiferença, ao menos, – com que esse
cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente
espalha, – ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas
matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho
em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso
amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos... (Assis, 1994, p. 4)
A título de contar como pegou um resfriado, também o demônio
dostoievskiano relembra sua participação em uma circunstância prosaica semelhante.
“Na ocasião eu tinha pressa de chegar a uma reunião diplomática em casa de uma
senhora da alta sociedade de São Petersburgo, que aspirava a ser ministra”
(Dostoiévski, 2008, p. 828).
Ambos os autores valem-se de diversas referências ao cotidiano de suas
respectivas realidades, tais como as menções a Liev Tolstói, Gatzuk e ao extrato de
malte de Hoff, em Dostoiévski; a Homero, Rabelais, Galiani e ao poema Hissope, em
Machado de Assis. Tal recurso fornece às narrativas a necessária sustentação de
verossimilhança, suficiente para alcançar algum grau de identificação do leitor,
mantendo-o conectado ao enredo e às ideias veiculadas.
Retomando os argumentos do diabo machadiano, para não nos determos em
cada um deles, destacaremos o conceito de “venalidade”, que aqui está relacionado ao
pacto fáustico, ou seja, ao ato de vender a alma ao diabo.
A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a
todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato,
o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas
que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua
opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que
68
tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é
cair no absurdo e no contraditório. (Assis, 1994)
O séquito do diabo machadiano foi levado a praticar o mal e a desfrutar dos
prazeres, tudo instituído e regulamentado, e assim o fez. Despiu o manto de veludo
que ostentava, do qual arrastava franjas de algodão pelo chão, ficou nu, dando vazão
aos seus instintos e perversidades. No entanto, mesmo sob a proteção do demônio e
podendo viver nesse “estado de natureza”, não se satisfez, negou o próprio “espírito
de negação” e partiu para praticar o bem. Em uma e outra condição, não chegou ao
absoluto. A explicação, no conto machadiano, vem do Criador, quase em consolo ao
demônio mais uma vez vencido: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de
algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.
Que queres tu? É a eterna contradição humana” (Assis, 1994, p. 7).
Sob o manto da “eterna contradição humana” estão as ambiguidades, a
multiplicidade de consciências em diálogo, a inquietação e a constante insatisfação, a
negação, o movimento pendular dos sentimentos humanos em relação a si e ao outro,
a necessidade de transgressão, de morte para renascer, de renovação. Tudo o que é
matéria da vida e não cabe nos limites restritos de uma doutrina.
A contradição humana é a propulsão à mudança. A aceitação dessa condição
tão precária e ao mesmo tempo tão vigorosa abre as comportas da energia para a
criação. Toda essa matéria da vida está presente nas obras estudadas. Se em Machado
de Assis apresenta-se em tom mais leve, com fina ironia e crítica mordaz, e em
Dostoiévski emerge do seu característico diálogo de consciências e do discurso
ideológico aliados à paródia, em ambos germina a semente do velho Goethe, dos
dilemas transcendentais do homem moderno e contemporâneo – a sua interioridade,
os seus desejos interditos, o seu questionamento, a sua incompletude. Essa capacidade
de representar a realidade além dos seus limites visíveis, embora sensíveis a todos os
seres humanos, de tornar evidente o que é latente e transmutá-lo em linguagem faz
desses escritores referências na arte e na vida.
Referências bibliográficas
Assis, J. M. Machado de. “A Igreja do Diabo”. In: Histórias sem Data. Disponível
em: http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn004.pdf. Texto-fonte:
Assis, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Vol. II.
Acesso em 14/7/2010.
69
______. A Semana. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1946. 2o vol., 263269.
Bakhtin, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Editora
Forense Universitária, 2010a. Tradução de Paulo Bezerra.
_____. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. São Paulo:
Hucitec Editora, 2010b. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e outros.
Bezerra, Paulo. “O Laboratório do Gênio”. In: Dostoiévski, Fiódor M. O Duplo.
Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2011, 237-248.
_____. “Mundos Desdobrados, Seres Duplicados”. In: Caderno de Literatura e
Cultura Russa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, 245-251.
Dostoiévski, Fiódor M. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008.
Tradução de Paulo Bezerra.
Goethe, J. W. von. Fausto – Uma tragédia (primeira parte). São Paulo: Editora 34,
2004. Tradução de Jenny Klabin Segall.
______. Fausto – Uma tragédia (segunda parte). São Paulo: Editora 34, 2007.
Tradução de Jenny Klabin Segall.
Mazzari, Marcus V. Romance de Formação em Perspectiva Histórica: O Tambor de
Lata de Günter Grass. São Paulo: Ateliê Editoral, 1999.
Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Regra do Glorioso Patriarca São Bento.
Tradução e notas de Dom João Evangelista Enout, da Ordem de São Bento (RJ).
Disponível em: http://www.osb.org.br/mosteiro/pdf/Regra_do_glorioso_Patriarca_
Sao_Bento.pdf. Acesso em setembro de 2010.
Moura, Magali. “O Riso Diabólico em Machado e Goethe. Algumas Reflexões sobre
a Luta do Mal contra o Bem”. In: Revista de Letras, vol. 48, no 2, 2008, 131-150.
Disponível
em:
http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/1193.
Acesso
em
setembro de 2010.
Rouche, Michel. “Alta Idade Média Ocidental”. In: História da Vida Privada – Do
Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.