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Escola dos glosadores

2011, Dicionário de Teoria e Filosofia do direito

O direito medieval, apesar de inserir-se em uma cultura totalmente distinta, corresponde ao início da experiência jurídica moderna porque desde então não se interrompeu o ensino universitário da disciplina, e dessa experiência acadêmica inicial os primeiros sujeitos foram os glosadores. O

Escola dos glosadores José Reinaldo de Lima Lopes (Alexandre Travessoni (coord.) Dicionario de Teoria e Filosofia do Direito,S. Paulo: LTr, 2011, pp.154-157) O direito medieval, apesar de inserir-se em uma cultura totalmente distinta, corresponde ao início da experiência jurídica moderna porque desde então não se interrompeu o ensino universitário da disciplina, e dessa experiência acadêmica inicial os primeiros sujeitos foram os glosadores. O nome de glosadores lhes vem do instrumento de análise e do gênero literário utilizados, a glosa, para explicar e de traduzir os textos do direito romano convertidos em matéria de estudo nas recém nascidas escolas de direito, particularmente em Bolonha, na Itália setentrional. O estudo dos grandes textos da Antigüidade expandira-se tanto na teologia (onde se estudavam as Escrituras e os textos dos padres latinos e gregos), quanto na filosofia e no direito. Neste o material submetido a estudo era composto do Digesto (compilação de livros de jurisconsultos, recuperado por partes, cada uma delas nomeada pela ordem de sua recuperação: Digesto velho, Digesto novo, Digesto reforçado – infortiatum), do Código (compilação de constituições e rescritos imperiais), das Novelas (compilação das constituições e rescritos imperiais recentes, daí seu nome), e de uma introdução ao direito, as Instituições. Ainda não se sabe ao certo como o material foi ‘redescoberto’, mas é fora de dúvida que no século XI estava já em sua maior parte disponível para estudo. Reconhece-se que o primeiro centro de estudos propriamente jurídicos foi Bolonha, onde a atividade dos glosadores praticamente nasceu. Seu nascimento costuma ser associado ao nome de Irnério (1050?-1130?), figura quase lendária de cuja vida há poucos detalhes oficiais confiáveis. Visto que havia um Imperador tido como herdeiro dos romanos e que só a ele competia interpretar as leis, foi necessário que os juristas obtivessem licença para expor e explicar o direito romano, ou direito imperial. Essa licença foi confirmada por Frederico Barba Ruiva em 1159 e a interpretação autorizada limitava o trabalho dos estudiosos (juristas) a traduzir os textos para seus contemporâneos (Kelley 1990). Traduzir significava tornar os textos compreensíveis tanto pela explicação das palavras, quanto do sentido das leis e instituições. Esse limite ajuda a compreender o tom que dominou essa geração de juristas, pois sentiram-se obrigados a manter-se dentro de uma explicação textual. Daí o recurso à glosa, isto é, ao comentário do texto. A glosa propriamente dita consistia no comentário breve dos textos. A glosa de Acúrsio compunha-se de breves comentários “acompanhados de uma intrincada estrutura de referências cruzadas levando a outras partes do Corpus Iuris Civilis. A matéria do argumento só pode ser avaliada confrontando-se todos os contextos a que se refere. Nesses, encontramos mais glosas, com mais referências. Ao explorá-las passo a passo somos apresentados a uma rede inteira de textos, alguns dos quais parecem ter pouco a ver com os outros à primeira vista, mas que estavam interconectados no pensamento do glosador e que, de fato, só se consideravam adequadamente compreendidos em virtude de suas interconexões.” (Tierney 1963, 386). Isso levou muitos a chamar os glosadores de pré-sistemáticos; a outros, a desistir de tentar entendê-los. A glosa assumiu duas formas, embora ambas tivessem o mesmo propósito de ‘tradução’: ou se colocava entre as linhas (glosa interlinear), ou se colocava ao lado do texto (glosa marginal). Com o tempo, já não se lia o texto sem a glosa, de modo que o comentário dos glosadores tornouse o verdadeiro filtro pelo qual se ensinava o direito romano. Diferentes interpretações apareceram, dando lugar a controvérsias entre os autores, mas se reconhece em geral que o jurista italiano (toscano) Acúrsio (1189-1259) sintetizou os esforços anteriores a si na edição conhecida como Magna Glosa, a Grande Glosa, datada de 1250. Os textos do direito romano passaram a ser copiados e publicados sempre com esses comentários. As glosas propriamente ditas classificaram-se em diversos tipos. Lange (1997, 120ss) aponta as introductiones titolurum ou introductiones legum (indicando a matéria do texto); as nota, depois chamadas, notabilia (curtas definições dadas aos termos da lei), como a famosa nota natura, id est Deus, na Glosa ordinária; glosas de distinção ou explicação dos textos; glosas gramaticais (resolvendo problemas de sinonímia ou de casos gramaticais); glosas sumárias; brocardia, espécie de argumento pronto, sumariando explicações mais gerais. A seu lado apareceram as Summae. As Sumas devem ter procedido da atividade didática e recolhiam explicações sistematizantes de leis particulares, de conjuntos de leis, de temas, ou de conjuntos de livros. Segundo Cortese, as sumas compreensivas eram gênero preferido em França (Cortese 1999, 135) Os glosadores também desenvolveram, em suas atividades didáticas e práticas outros gêneros literários, como as lecturae (redução a escrito de suas aulas, ou leituras) e muito especificamente a questão (quaestio). Tratava-se de uma problematização de um tema qualquer. Normalmente começava pela pergunta (em latim a fórmula tradicional era videtur quod, parece que...) e se expunha uma opinião possível, geralmente a que se pretendia contradizer. Em seguida alinhavam-se os argumentos pró e contra aquela opinião (expositio e oppositio). Seguia-se o esclarecimento por parte do autor (determinatio) em que ele oferecia os fundamentos de sua opinião, indicando os erros ou equívocos da opinião alheia. Terminava com a resposta, com a fórmula tradicional respondeo. A questão era aplicada na filosofia e na teologia, sendo que no direito dividiu-se em duas espécies: a quaestio legitima (uma questão ou dúvida a respeito da lei), e a quaestio de facto emergens (a questão a respeito da aplicabilidade da lei a um caso controverso). A primeira, quaestio legitima, resolvia-se com o auxílio da logica vetus (a velha lógica, isto é, a lógica conhecida antes da tradução completa dos trabalhos lógicos de Aristóteles, em geral a lógica dos termos, ou seja, o estudo dos conceitos, das definições, da extensão e intensão dos termos, de suas funções possíveis no discurso, etc). Tratava-se da aplicação especialmente da lógica dos termos, particularmente estudada nas Categorias de Aristóteles, conhecidas pela tradução de Boécio – que também traduzira o De interpretatione, e as Isagoge de Porfírio. Pela distinctio separavam-se os termos e os institutos, pelo processo de classificação em gênero e espécie, levando a várias subespécies. O instrumento principal dessa espécie era a distinctio, pelo qual solucionavam-se as contradições nos textos legais ou dos textos legais entre si. O método era particularmente adaptado às definições e à determinação de conceitos. Foi assim que se encontraram as diferenças entre a possessio naturalis e a possessio civilis, o dominium utile e o dominium directum, os pacta nuda e os pacta vestita (cf. Errera 200 , 14-21). O mesmo método está na base da composição do Decretum de Graciano, o conjunto organizado de textos do direito canônico que serviu de base primeira para o desenvolvimento do direito da Igreja. A primeira parte do texto consiste em 101 Distinctiones, divididas em diversas questões, de modo a estabelecer conceitos, o de direito, lei, direito natural, direito positivo etc. O instrumento principal do segundo tipo de questão, a quaestio de facto emergens veio a ser a lógica nova, pela qual se determinava qual a melhor lei a aplicar a um caso difícil. Auxiliar dessa atividade era sobretudo a dialética, a disciplina do silogismo proveniente dos Analíticos de Aristóteles usada nos casos opináveis, isto é, incertos, visto que não previstos especificamente nos textos das leis (tanto de direito civil, isto é, romano, quanto de direito canônico). Chamou-se lógica nova aos textos traduzidos mais recentemente, especialmente em Palermo e Toledo, os dois grandes centros de tradução do século XI em diante. No caso dessas questões, o problema que se colocava era o da subsunção de um fato a uma norma. A dúvida se dava pelo fato não ser facilmente incluído nos tipos previstos. Era necessário então elaborar as diversas conseqüências dos enquadramentos possíveis. No Decretum de Graciano esses casos formaram a segunda parte do texto, as 36 Causae. Os civilistas (romanistas) também se valiam dessas questões de fato. As soluções iniciais, ou seja, as hipóteses de solução dos casos eram opináveis. Precisavam, portanto, ser determinadas, fixadas, com argumentos melhores. Os mais importantes representantes da escola foram em primeiro lugar os bolonheses: Pepo, Irnério (cujas datas de nascimento e morte são incertas, mas que se encontrava ativo em Bolonha pelo menos entre 1113 e 1125 pelo menos, alguns datando sua vida entre 1050 e 1130), os quatro doutores Búlgaro (1100-1174?), Martino (ativo certamente ca. 1150), Jacobo (*? - + 1178), e Hugo. Outros que ampliaram a escola foram Piacentino (+ 1192), o qual levou o estudo de leis a Montpellier e produziu um famoso texto (Summa codicis), João Bassiano (?) responsável por uma divulgadíssima Arborum actionum, e Azo (+ 1230?), autor de uma Summa codicis de longa vida, re-impressa até 1610. Odofredo (+ 1265) e Acúrsio (+ 1260?) são o ponto mais alto da escola, sendo que Acúrsio termina por organizar o texto padrão a ser usado pelos juristas, a Glosa ordinária, impressa e reimpressa repetidas vezes entre 1468 e 1627. Para além da Itália setentrional (com epicentro em Bolonha) e outras franjas do Mediterrâneo (como Montpellier), em meados do século XIII veio a destacar-se a escola de Orleãs, composta por vários eclesiásticos dedicados ao direito civil (romano). Dentre estes sobressaem Pedro de Belapertica e Jacques de Révigny. Para Cortese (1999, 390-452) houve um débito dos comentadores para com esses orleanenses, cujos pendores teóricos contribuíram para a mudança do estilo e do método. O nome que marca a transição da escola dos glosadores para a chamada escola dos comentadores é Cino de Pistóia (1270?-1336/1337), professor do maior comentador, Bártolo de Sassoferrato (1313-1357), transformado no jurista por antonomásia nos séculos seguintes, a ponto de se forjar o ditado nemo bonus est jurista, nisi sit bartolista (ninguém é bom jurista se não for bartolista) . O estilo e o método da glosa foi comum aos civilistas (cultores do direito romano) e aos canonistas (doutores em direito canônico). Era corriqueiro, aliás, que houvesse comunicação entre as duas disciplinas, a despeito de cada uma contar com seu próprio corpus de fontes e doutrinas, tanto que havia gente doutorada nos dois direitos (doctor utriusque iuris). (JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES, FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, DIREITO GV SÃO PAULO) Referências BELLOMO, Manlio. (1994) Societá e istituzioni dal medioevo agli inizi dell’etá moderna. Roma: Il Cigno Galilelo Galilei. ______________. (1995) The common legal past of Europe 1000-1800. Washington (DC): The Catholic University of America Press. BERMAN, Harold. (1983) Law and revolution: Cambridge (MA): Harvard Universty Press. CALASSO, Francesco. (1954) Medioevo del diritto – le fonti. I. vol. Milano: Giuffré. CANNING, Joseph. (1996) A history of medieval political thought 300-1450. London: Routledge. ____________. (2003) The political thought of Baldus de Ubaldis. Cambridge: Cambidge University Press. COING, Helmut, editor (1973) Handbuch der Quellen und Literatur der neueren europäische Privatrechtsgeschichte. München: Beck Verlag. CORTESE, Ennio. (1962) La norma giuridica – spunti teorici nel diritto comune classico. I. vol. Milano: Giuffré. ____________. 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